DOSSIÊ
Recepção: 19 Abril 2019
Aprovação: 02 Agosto 2019
Resumo: Em ano eleitoral, a Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD) escolheu o tema “Valores Cristãos: enfrentando as questões morais do nosso tempo” para as “Lições Bíblicas” da Escola Dominical, um dos mais importantes ambientes das Assembleias de Deus (ADs) no Brasil. Entre abril e junho de 2018, meses antes das eleições presidenciais, foram abordados temas como ideologia de gênero, direitos humanos, aborto, sexualidade e política. As escolas dominicais sempre exerceram papel fundamental na educação pentecostal e continuam sendo o principal elo entre os fiéis e a doutrina pentecostal. Com a instalação da crise política no Brasil e extremismos espalhados por todas as partes, as “Lições Bíblicas” das ADs vêm marcar posição quanto às suas crenças e esclarecer quais são os valores defendidos pela igreja. Ao mesmo tempo, os pentecostais abraçaram a candidatura de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, que apresenta uma série de divergências com o pentecostalismo apresentado como oficial para as Assembleias de Deus em sua Declaração de Fé publicada em 2017.
Palavras-chave: Eleições, Pentecostalismo, Escola Dominical, Assembleia de Deus, Política.
Abstract: In an election year, the Assemblies of God Publishing House (CPAD) chose the theme “Christian Values: Addressing the Moral Issues of Our Time” for Sunday School Bible lessons, one of the most important AD environments in Brazil. Between April and June 2018, months before the presidential election, topics such as gender ideology, human rights, abortion, sexuality and politics were addressed. The Sunday Schools have always played a fundamental role in Pentecostal education and continue to be the main link between the faithful and Pentecostal doctrine. With the onset of the political crisis in Brazil and extremism scattered everywhere, the Bible Lessons of the AD come to position their beliefs and clarify what are the values defended by the church. At the same time, Pentecostals embraced Jair Bolsonaro's candidacy for the presidency of Brazil, which presents a series of disagreements with Pentecostalism presented as an official for the Assemblies of God in his Statement of Faith.
Keywords: : Elections.
1 INTRODUÇÃO
A Escola Bíblica Dominical (EBD) das Assembleias de Deus é o principal ambiente de ensino dentro da denominação, atendendo a todas as faixas etárias e tratando dos mais diversos temas, que vão desde as questões teológicas até os fatores que envolvem diretamente a sociedade como um todo. Utilizamos de uma fonte primária para destacar o que significa a Escola Bíblica Dominical para o pentecostalismo assembleiano, mostrando como os próprios pentecostais leem a importância da EBD para a denominação. Para o fiel da Assembleia de Deus, as EBDs não fazem parte da igreja, mas é a própria igreja ministrando o ensino bíblico de forma sistematizada e metódica (GILBERTO, 2014, p. 125). De acordo com o Censo 2010 do IBGE, 25 milhões de brasileiros professam a fé pentecostal, sendo 12 milhões destes pertencentes a Assembleia de Deus, que tem na Escola Dominical o ambiente propício para o ensino e propagação das suas doutrinas.
Neste artigo, vamos propor uma comparação entre os valores morais defendidos pela fé pentecostal, especialmente pelas Assembleias de Deus, e o comportamento destes fieis durante as eleições presidenciais, especialmente a de 2018, que elegeu o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro a presidência da república. Para tanto, tomaremos como base a revista “Lições Bíblicas” que circulou no segundo trimestre de 2018, meses antes do pleito presidencial, distribuída para a venda pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD).
Em primeiro lugar, precisamos entender as origens das Escolas Dominicais e o que ela representa para a comunidade pentecostal. Em seguida, faremos uma breve análise do perfil do pentecostal brasileiro. Os números do Censo 2010 do IBGE revela-nos a escolaridade, a cor e a renda do pentecostal no Brasil. Traremos então uma análise baseada nas pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais de 2018, que apresentam o comportamento do eleitor pentecostal.
Nosso artigo também aborda o conteúdo das “Lições Bíblicas” que trataram de valores morais antes do pleito que elegeu Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), para, finalmente, trazermos apontamentos sobre o pentecostalismo e sua relação com o fundamentalismo baseado, principalmente, em conceitos trabalhados por Jack David Eller e Peter Berger.
2 AS ESCOLAS DOMINICAIS E AS “LIÇÕES BÍBLICAS”
O “Manual das EBDs”, material confessional da instituição[1], dialoga com o fiel afirmando que a função da Escola dentro do meio assembleiano atende a algumas demandas específicas. Entre elas está o que o autor do “Manual da Escola Dominical”, Antonio Gilberto, chama de “ensinar as verdades eternas da Bíblia e cooperar na formação dos hábitos legítimos e cristãos” (2014, p. 126), incluindo aí as práticas e deveres sociais. Para ele, são estes valores que resultam na formação “de um caráter ideal, segundo os princípios do genuíno cristianismo”.
A Escola Dominical, quando devidamente aparelhada, é de fato a agência de formação religiosa popular das igrejas evangélicas. É aí que as crianças desde a mais tenra idade, os adolescentes e os adultos, ao receberem o ensino sadio e inspirador das Escrituras, são todos beneficiados: as crianças recebem formação moral e espiritual, os adolescentes formam sua personalidade cristã e os adultos renovam suas forças morais e espirituais para uma vida cristã sempre frutífera e abundante (GILBERTO, 2014, p. 126-127).
De acordo com o manual assembleiano, a escola secular não tem a função de instruir ou contribuir para a formação do caráter cristão dos alunos, já que a sua função é trabalhar prioritariamente o intelecto dos estudantes. É o mesmo argumento utilizado para discordar do ensino da educação sexual nas escolas, base para o projeto de lei “Escola sem Partido”[2]. Esta linha de pensamento afirma que o ensino escolar deve ser voltado para as disciplinas como português, matemática, física, química. Desta forma, no que se refere ao desenvolvimento do caráter, dos costumes e da moral, esta é uma demanda a ser atendida pela EBD. O manual confessional das Assembleias de Deus apresenta a instituição da Escola Dominical desde os dias do profeta Moisés no Antigo Testamento, passando por sacerdotes, reis, profetas, pelo cativeiro babilônico e pelos dias de Jesus, até chegar aos dias atuais[3].
Este modelo pedagógico de ensino, atualizado ao longo dos anos, chega ao século XXI revestido de importância, quando levamos em consideração que o espaço das salas de aula das escolas dominicais são hoje mais do que ambiente teológico. É também espaço para discussões sociais e aplicações doutrinárias que falam diretamente ao comportamento do indivíduo dentro da sociedade. Em 2018, ano de uma disputada eleição presidencial no Brasil, as “Lições Bíblicas” abordaram, durante três meses, de abril a junho, temas considerados importantes pelo o fiel pentecostal e geralmente discutidos pelos candidatos à presidência da república. Um grande número de fiéis em todo o país estudou, domingo após domingo, sobre os valores cristãos e as formas como as questões morais devem ser enfrentadas pela população pentecostal.
As discussões apresentadas durante as lições foram amplamente debatidas. Meses após, durante a campanha presidencial e o pleito eleitoral, pudemos observar pontos de convergência e outros contraditórios na hora da escolha do candidato. As pesquisas de opinião pública dos institutos IBOPE e Datafolha, como veremos mais à frente, apontaram que, dentre as religiões presentes no Brasil, os evangélicos, especialmente os pentecostais, em sua maioria, optaram pelo então candidato Jair Messias Bolsonaro (PSL), que, apesar de convergir com o pensamento pentecostal assembleiano em alguns pontos, diverge e se distancia drasticamente em muitos outros.
O movimento que origina a Escola Dominical no modelo como ela existe hoje foi iniciado por volta de 1780, em Gloucester, no sul da Inglaterra, pelo jornalista evangélico Robert Raikes. Antes deste movimento, há registros denominacionais afirmando que, em 1737, em Geórgia, John Wesley tenha promovido estudos dominicais. A partir de 1763, Hannah Moore, uma mulher metodista, também realizou por anos uma série de estudos bíblicos aos domingos. Robert Raikes era anglicano e uma das suas preocupações era a reforma prisional inglesa. O sistema prisional submetia os detentos a condições sub-humanas. Sua primeira classe de Escola Dominical foi formada por crianças que trabalhavam em uma fábrica de segunda a sábado e passavam o domingo nas ruas. O jornalista estabeleceu uma escola e contratou mulheres que alfabetizavam os meninos. O trabalho com a Bíblia só acontecia quando os alunos já estavam lendo e escrevendo. A instituição se deu independente da igreja que, só a partir de 1783, passou a receber o trabalho, que foi, pouco a pouco, saindo da casa das pessoas e ocupando os templos das mais diferentes denominações.
No Brasil, o trabalho foi iniciado em 1855, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, por escoceses da igreja Congregacional. Na época, o público era formado majoritariamente por crianças, especialmente os filhos dos imigrantes ingleses. Antes, já existiam os encontros dominicais no Rio de Janeiro. No entanto, as aulas eram ministradas em inglês para a comunidade americana (GILBERTO, 2014, p. 136).
A EBD exerce a função de expor a doutrina e o pensamento da igreja para os seus fiéis. A publicação “Lições Bíblicas” é o instrumento utilizado para a sistematização destas informações doutrinárias. A revista é produzida desde 1930, quando a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), reunida em Natal, Rio Grande do Norte, decidiu padronizar e administrar o ensino bíblico por meio das lições em todas as congregações do país. Antes, os estudos para as EBDs eram publicados no jornal “Boa Semente”, então veículo oficial da denominação. As publicações eram feitas em formato de suplemento desde 1919, circulando em todo o país com o nome “Estudos Dominicaes”.
Desde o início das publicações, as “Lições Bíblicas” tiveram importância doutrinária e apontavam para a questão dos valores morais à luz da Bíblia. Em 1935, o comentarista Nils Kastberg já falava sobre “o problema das diversões à luz da Bíblia”, afirmando que as “diversões do mundo contaminam a alma e nos desligam do Senhor”. Ao falar sobre o Estado, Kastberg destaca que os crentes são bons cidadãos, e que “aquele que não é um cidadão respeitável, não é bom crente”. Em 1940, Samuel Nystrom, também comentarista das “Lições Bíblicas”, trabalhou o tema “Vida Cristã”. Á época, ele defendia que os pentecostais não poderiam tomar concepções e costumes dos povos como padrão para a integridade moral, já que o homem não teria a lei básica da integridade. Nystrom divide a sociedade em dois grupos: os bons e os maus[4].
3 PERFIL PENTECOSTAL BRASILEIRO E AS ELEIÇÕES 2018
Precisamos, para entendermos a importância do tratamento dos valores morais dentro das “Lições Bíblicas”, analisar para quem o texto é direcionado, identificando assim de que forma ela se comunica com o seu público alvo. De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os que se denominam “evangélicos” chegaram a 22,2% (42 milhões de indivíduos) da população, sendo 13,3% pentecostais (25 milhões de pessoas). A maioria pertence às Assembleias de Deus, que a época somava mais de 12 milhões de fiéis. É a igreja evangélica com a maior capilaridade do país. Sobre o número total de pentecostais (não apenas os assembleianos) cerca de 11 milhões são homens. As mulheres somam 14 milhões[5].
O pentecostalismo é também o segmento religioso que reúne o maior número de pessoas autodeclaradas pardas (48,9%). Ao mesmo tempo, entre os evangélicos (de missão, pentecostal e não-determinados), os pentecostais são os que possuem o maior número de pessoas não alfabetizadas: 8,6% deles não sabem ler ou escrever. São os pentecostais que reúnem o maior número de fiéis com o ensino fundamental incompleto entre as religiões pesquisadas pelo censo (42,3%) e são eles também os que menos tiveram acesso à universidade. Apenas 4% concluíram um curso superior. A título de comparação, este número sobe para 31,5% entre os espíritas e para quase 13% entre os candomblecistas. Entre os evangélicos, 12% dos protestantes de missão têm curso superior e 8,4% daqueles que não têm uma igreja determinada também passaram pela faculdade e concluíram o curso.
Dentre os segmentos religiosos brasileiros, são os pentecostais os menos escolarizados. É o que afirma o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O pentecostal é o segmento que mais possui fiéis inseridos nas camadas mais pobres da sociedade. Quase 68% deles moram em casas onde a renda per capita é igual ou menor que um salário mínimo. Nesta mesma situação, os católicos são cerca de 56% e, os evangélicos de missão, 48%. Menos de 5% dos pentecostais vivem com renda superior a três salários mínimos. O total para os que vivem com mais de cinco salários era, em 2010, de 1,6%.
Conforme aponta Teixeira, a irradiação evangélica aponta para uma “singular e vigorosa ressurgência da religião, que ganha uma fisionomia particular na pujante presença pentecostal” (2013, p. 20). De 1991 a 2010, o pentecostalismo somou 17 milhões de pessoas ao seu rol de membros no Brasil, chegando aos 25 milhões do último censo. Entre 2001 e 2010, em uma década, os evangélicos ganharam 4.408 novos adeptos por dia. Se levarmos em conta apenas os pentecostais, foram 2.124 novos fiéis diariamente. Se o cálculo leva em conta apenas a Assembleia de Deus, em uma década, a denominação ganhou 1.067 pessoas por dia[6].
Os números despertam, naturalmente, o interesse eleitoral. Os pentecostais querem estar legitimamente representados no poder público e os políticos, cientes deste interesse, fazem a sua oferta. O disputado voto evangélico pode ser conferido nas pesquisas de intenção de votos. Em 2014, pesquisa Datafolha encomendada pela TV Globo e pelo jornal Folha de S. Paulo divulgou os números das intenções de votos nos candidatos de acordo com a religião dos entrevistados. A pesquisa foi realizada nos dias 25 e 26 de setembro de 2014, quando Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva disputavam a presidência da república com mais chances de irem ao segundo turno. Entre os pentecostais, a candidata Marina Silva, evangélica, atingia o primeiro lugar com 38% dos votos. Entre os evangélicos não pentecostais, Marina também liderava, mas com um índice menor, 36%. A candidata Dilma aparecia em segundo lugar com 33% entre os pentecostais e 27% entre os evangélicos não pentecostais. Aécio Neves atingiu 13% entre os pentecostais e 21% com os evangélicos não pentecostais. Entre os católicos, Dilma aparecia em primeiro lugar, com 45% dos votos, mais de vinte pontos de vantagem sobre a candidata evangélica Marina Silva, que disputava a segunda colocação entre os católicos com Aécio Neves. Marina somou 22%, e, Aécio, 20% no eleitorado católico.
Mas foi em 2018 que o voto evangélico protagonizou a disputa eleitoral. Os votos dos pentecostais foram disputados por todos os principais candidatos à presidência da república, mas nenhum deles conseguiu tanta aderência quanto o candidato do PSL, Jair Bolsonaro. Declaradamente católico, Bolsonaro conseguiu dialogar com o povo pentecostal apresentando propostas que respondiam as ansiedades do segmento conservador. A relação era um tanto contraditória se levarmos em consideração alguns fatores religiosos. A doutrina pentecostal assembleiana, baseada nos preceitos defendidos oficialmente pela instituição em documento com sua Declaração de Fé, publicada em 2017, é absolutamente baseada na possibilidade de transformação do ser humano em abandonar sua vida pregressa da criminalidade, por exemplo, e ser reinserido na sociedade. O então candidato do PSL chega com um discurso baseado na máxima do “bandido bom é bandido morto” e, mesmo assim, garante a aderência dos pentecostais na sua base eleitoral.
Em 2017, a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) publicou o documento contendo a Declaração de Fé das Assembleias de Deus. Sobre a salvação, o texto afirma que ela está disponível “a todos os que confessam a Jesus Cristo como seu único salvador pessoal” (SOARES, 2017, p. 109). O texto afirma, ainda, que o evangelho “contempla a todos e a ninguém exclui” e que “todos, sem exceção, podem ser salvos através dos méritos de Jesus” já que Deus “não predestinou incondicionalmente pessoa alguma à condenação” e “almeja que todos, arrependendo-se, convertam-se dos seus maus caminhos” (SOARES, 2017, p. 110).
A pesquisa eleitoral divulgada pelo IBOPE no dia 27 de outubro de 2018, um pouco antes do segundo turno entre Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal - PSL) e Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores - PT), apontava que, entre os evangélicos, Bolsonaro somava 58% das intenções de voto contra 31% de Haddad. A diferença numérica de 27 pontos é expressiva, apesar de ser a menor na série de pesquisas do IBOPE. Em 15 de outubro, Bolsonaro tinha 66% contra 24% de Haddad entre os evangélicos. No dia 23 do mesmo mês, o placar era de 59x27 para o candidato do PSL. Entre os católicos, a diferença era bem menor. Em 15 de outubro, Bolsonaro somava 48% contra 42% de Haddad. Em 23/10, o primeiro tinha 47% contra 41% do candidato do PT. Às vésperas da eleição, uma virada: 45% dos católicos declararam o voto em Haddad, contra 43% de Bolsonaro. Os números das pesquisas realizadas pelo instituto Datafolha oscilam numericamente por conta das diferentes metodologias de pesquisa, mas seguem as mesmas tendências destes apresentados pelo IBOPE[7].
A população evangélica, especialmente a pentecostal, possui um vasto histórico de participação na política nacional. A primeira Constituição brasileira não permitia que evangélicos concorressem nas eleições. Os cargos deveriam ser pleiteados por católicos, conforme aponta Freston (1994, p. 74). Havia a obrigação de juramento pela manutenção da fé católica por parte dos candidatos. Assim, um pentecostal poderia até votar, mas nunca ser votado. Mais à frente, na década de 80, os evangélicos vivem um período crucial para a conservação da sua fé com a elaboração da Constituição Federal de 1988, onde foi garantido o direito à ampla participação no processo eleitoral. Em 2017, a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil se posicionou em sua “Declaração de Fé” sobre a questão da participação política entre os fiéis da denominação:
Sendo um direito público subjetivo de natureza política, o sufrágio decorre naturalmente de nossa condição de cidadão, pelo que, como cidadãos cristãos, podemos votar, ser votados e participar da organização e da atividade do poder estatal (SOARES DA SILVA, 2017, p. 150).
O “Cidadania AD Brasil”, projeto da CGADB para desenvolver, de acordo com a instituição, “a consciência política na liderança das Assembleias de Deus”, foi lançado para gerenciar os chamados “candidatos oficiais da igreja” em todo o país. A bancada assembleiana chegou a contar com mais de 20 deputados federais, quase 40 estaduais e mais de mil vereadores[8].
4 VALORES CRISTÃOS EM ANO ELEITORAL
No ano eleitoral de 2018, as “Lições Bíblicas” das Assembleias de Deus ligadas a CGADB em todo o Brasil adotaram o tema “Valores Cristãos: enfrentando as questões morais de nosso tempo”, iniciando em 1º de abril e indo até 24 de junho, três meses antes do pleito presidencial. As eleições 2018 assumem um caráter absolutamente distinto das outras. O pleito acontece após um impeachment, o governo de Michel Temer, que dividiu opiniões quanto a sua legitimidade, e a prisão do ex-presidente Lula, que alcançou expressivos índices de aprovação durante seu governo. O acirramento político e os extremismos atingem os dois ou mais lados que possam existir no cenário eleitoral brasileiro. As “Lições Bíblicas” chegam no momento em que o eleitor pentecostal precisa avaliar e decidir quem ele quer à frente da nação e dos governos estudais pelos próximos quatro anos. O trimestre é comentado pelo pastor Douglas Baptista[9], líder da Assembleia de Deus Missão, no Distrito Federal.
É preciso levarmos em consideração, a partir de então, para quem fala o texto das lições. São informações direcionadas para um segmento que, como aponta os números do IBGE, é o menos escolarizado e o mais pobre do país em comparação com os outros segmentos religiosos. A lição, na versão para os professores, começa com um texto do presidente do conselho administrativo da CPAD, pastor José Wellington Bezerra da Costa[10], afirmando que “leis são propostas todos os dias pelo atual sistema mundano a fim de fazer com que a Igreja esteja confinada nos lares de seus membros”. Ainda, afirma que atualmente existe uma perseguição “ideológico-intelectual”. A primeira lição já aborda o conceito de ética cristã, afirmando que estes princípios são universais e tem aplicação para todas as épocas e culturas. Por isso, afirma o comentarista, “em tempos de ataques ideológicos contra a cultura judaico-cristã, a Igreja não deve furtar-se de ser o sal da terra e a luz do mundo em pleno século XXI” (BAPTISTA, 2018, p. 09).
Após a semana de abertura com a introdução ao tema, as lições passam a abordar questões éticas práticas. A ideologia de gênero aparece já na segunda semana. O autor-comentarista afirma que a ideologia surgiu a partir do contexto social marxista que deu origem ao que ele chama de “fantasiosa luta de classes entre homens e mulheres”. A lição destaca que há um processo de desconstrução dos papéis do homem e da mulher na sociedade e que existe uma “apologia à prática do homossexualismo e do lesbianismo” (BAPTISTA, 2018, p. 15). O texto tem, entre seus pontos, a “troca de papéis entre homens e mulheres”, a “confusão de identidade para o ser humano”, e a “desvalorização do casamento e da família”. Baptista (2018, p. 15) destaca que a família deve explicar e orientar que “homens e mulheres possuem órgãos sexuais distintos, fisiologia diferente e personalidades díspares”. Sobre o tema, o comentarista afirma:
A ideologia de gênero pretende relativizar a verdade bíblica e impor ao cidadão o que deve ser considerado ideal. Acuada parcela da população não esboça reação e o mal vem sendo propagado. No entanto, a igreja não pode fechar os olhos para a inversão de valores (BAPTISTA, 2018, p. 15).
Na terceira lição, o tema são os direitos humanos. O autor deixa clara a opção pela legitimidade destes direitos, muitas vezes encarado com preconceito por aqueles que relativizam a pauta. O texto caracteriza o trabalho escravo como aquele onde a carga horária é exaustiva, os salários são baixos e as condições degradantes. O autor afirma que “a igreja de Cristo não pode ficar insensível diante do trabalho escravo” (BAPTISTA, 2018, p. 15). Sobre a superlotação do sistema carcerário, é dito que os presídios públicos não oferecem as condições mínimas de dignidade humana, higiene e insalubridade. No último ponto da lição, “a Igreja e o problema social”, o comentarista afirma que “a igreja deve unir forças para restaurar a nação por meio da confissão sincera e do clamor a Deus”.
As lições quatro, cinco e seis tratam de questões relacionadas a sacralidade da vida. O comentarista condena a prática do aborto em todos os casos, chamando de eugênica a decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012, que permitiu a interrupção da gravidez em casos de anencefalia. O aborto em caso de estupro também foi condenado na lição. O texto afirma que “em uma sociedade secularizada, o cristão precisa tomar cuidado com o relativismo e estar alerta quanto às ações de manipulação de sua consciência” (BAPTISTA, 2018, p. 29). Na lição seguinte, pena de morte e eutanásia são condenadas por violar a soberania divina, já que “o poder absoluto sobre a vida e a morte pertence a Deus” (BAPTISTA, 2018, p. 37).
Em 6 de maio de 2018, as Escolas Dominicais em todo o Brasil estudaram acerca do suicídio. A lição de número seis abordou em um de seus pontos o “posicionamento ético”. O autor aponta cinco motivos pelos quais é antiético tirar a própria vida:
A posição da Ética Cristã é contrária ao suicídio pelos seguintes e principais motivos: a) o suicídio implica banalizar a vida e afrontar a soberania divina; b) o suicida viola o mandamento de “amar o próximo como a si mesmo”; c) o suicídio é um ato egoísta de quem pensa em aliviar seu sofrimento sem se importar com os outros; d) suicidar-se denota inversão dos valores da vida e falta da confiança em Deus; e) o suicídio é um gesto de ingratidão que interrompe o ciclo e a missão da vida outorgada por Deus (BAPTISTA, 2018, p. 43).
A conclusão da lição é que o suicídio é resultado de uma ideologia que enaltece a criatura em lugar do criador.
Um dos temas semanais da lição trata especificamente sobre a sexualidade. O texto destaca o sexo como criado por Deus, sendo a sexualidade uma criação divina que deve ser usufruída dentro de um casamento monogâmico e heterossexual. Baptista afirma que o sexo e a sexualidade não são elementos maus ou pecaminosos, mas que o pecado está na depravação. Esta depravação é tudo aquilo que “contraria os princípios estabelecidos nas Escrituras Sagradas” (2018, p. 55). A multiplicação da espécie humana e a satisfação e prazer conjugal seriam os dois propósitos do sexo no casamento. Em um tópico intitulado “o correto uso do corpo”, o autor destaca as práticas condenáveis: “São condenadas, dentre outras, as relações incestuosas, o coito animal, o adultério e a homossexualidade. O corpo não pode servir a promiscuidade, mas deve glorificar a Deus, o nosso pai”. (BAPTISTA, 2018, p. 56).
O trimestre da ética cristã tratou ainda de planejamento familiar, com uma lição focada na responsabilidade com o número de filhos de um casal; da vida financeira, onde o autor pede cautela com a busca por aprimoramento intelectual como forma de ter um emprego com um salário maior, já que esta busca por aprimoramento pode ocasionar do fiel ser “enredado por meio de filosofias e vãs sutilezas”; e, ainda, o cuidado com os vícios e jogos.
Em 12 de junho de 2018, as “Lições Bíblicas” trazem um estudo específico sobre a ética cristã e a política. Neste momento o autor considera que, por muitas décadas, a política foi “satanizada no meio evangélico e, como resultado, e com sua omissão, a igreja permitiu que o poder público fosse exercido muitas vezes por ateus, ímpios e imorais” (BAPTISTA, 2018, p. 83). Desta forma, considera que o comportamento omisso da igreja com a política levou com que o país tivesse “governos contrários à cultura judaico-cristã” e que isto só pode ser mudado quando a igreja “amadurecer e aprofundar sua consciência política” (BAPTISTA, 2018, p. 83). De acordo com o autor,
O perigo dos atos politiqueiros envolvendo os cristãos é colocar em descrédito o Evangelho e a igreja. Assim, os políticos contrários às convicções cristãs não podem receber o apoio nem o voto da igreja. No cristianismo primitivo, a igreja em Corinto foi advertida a observar o seguinte princípio: Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis (BAPTISTA, 2018, p. 86).
A lição afirma que Deus governa o aspecto político da vida no mundo, que a separação entre igreja e estado é uma herança da reforma protestante e que a Bíblia é contrária a um governo onde o estado interfira na igreja e vice-versa. Baptista observa que, apesar da necessidade de conscientização da igreja, os cultos não devem ser transformados em campanha política, de modo que os momentos da liturgia não sejam substituídos pelos discursos de uma campanha eleitoral.
5 APONTAMENTOS ACERCA DAS RAÍZES PENTECOSTAIS E A QUESTÃO DO FUNDAMENTALISMO
O movimento pentecostal, que no Brasil tomou expansão principalmente nas periferias, sempre foi, na verdade, um movimento que empoderava os periféricos e marginalizados. Mattos (2018, p. 13) afirma que o pentecostalismo global não foi privilegiado com estudos acadêmicos durante quase toda a primeira metade do século XX porque o movimento que teve origem na Rua Azusa, nos Estados Unidos, era “coisa de gente doida”. Os pentecostais, diante da rejeição acadêmica, afirmam Mattos, desenvolveram o anti-intelectualismo que marca o movimento, inclusive no Brasil. É comum que as línguas estranhas seja a marca principal do fiel deste segmento, no entanto, há que se ressaltar que o pentecostalismo não se caracteriza por um só aspecto. Até mesmo porque no século XIX, as chamadas línguas estranhas também foram verificadas entre os shakers e os mórmons (DAYTON, 2018, p. 36).
Os fundamentos da fé pentecostal estão muito próximos da reforma radical do século XVI, movimento que se originou em 1516 quando Erasmo de Roterdã publicou uma versão crítica do novo testamento em grego. Os reformadores radicais defendiam a separação entre a igreja e o estado e eram críticos das igrejas territoriais. Também eram pacifistas, sendo contrários ao uso da violência. Por este motivo não serviam ao exército e muitos se recusavam a trabalhar em repartições públicas. Havia entre estes reformadores radicais uma ênfase importante no trabalho social e na filantropia (OLIVEIRA; TERRA, 2018, p. 146).
O pentecostalismo vive a partir de uma hermenêutica sem complexidades ou excessivas reflexões. Conforme afirma Menzies (2016, p. 22), é uma hermenêutica direta e simples onde as histórias dos Atos dos Apóstolos facilmente se identificam às histórias dos fiéis. O pentecostalismo é antimoderno não como militância, mas como vivência (SIQUEIRA, 2018, p. 44). Apesar disso, o movimento nunca foi homogêneo, sempre marcado pelas muitas diferenças internas (MARIANO, 1999, p. 23). É absolutamente comum que a fé pentecostal abrace o marginalizado justamente por sua hermenêutica simples e direta, ainda que o movimento possibilite que falemos de pentecostalismos, no plural. Contudo, o que se viu nas eleições de 2018 foi uma fuga a estas raízes inclusivas.
Famoso por seus posicionamentos polêmicos, o então candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) apareceu em fotos ao lado do presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, o pastor José Wellington Costa Junior. Na edição de número 1.600, que circulou em setembro de 2018, o jornal oficial das Assembleias de Deus no Brasil, o Mensageiro da Paz, trouxe em sua capa matéria que afirmava "a diferença do voto evangélico em uma eleição acirrada". O voto dos evangélicos, afirmava a publicação, seria determinante.
A matéria apresentou um polêmico quadro que circulou nos grupos de WhatsApp de todo o país. Uma tabela continha o nome dos candidatos à presidência da república e temas relacionados aos costumes sociais e questões morais: "liberação do aborto", "casamento gay", "liberação das drogas", "ideologia de gênero", "redução da maioridade penal", "desarmamento da população" "economia" e "embaixada em Jerusalém". Somente o candidato Jair Bolsonaro aparece alinhado com todas as perspectivas defendidas pela publicação, conforme podemos avaliar na imagem abaixo. De acordo com a publicação, o candidato do PSL é o único a favor da embaixada de Israel em Jerusalém, o único que apoia uma economia focada no livre mercado e o único contra o que a publicação chama de “desarmamento da população”. Bolsonaro também aparece como o único candidato a favor da redução da maioridade penal e contra o casamento gay. O candidato do PT foi excluído do texto da matéria (Haddad, neste momento, era candidato a vice-presidente da chapa encabeçada pelo ex-presidente Lula):

Quatro anos antes, em setembro de 2014, a edição 1.552 do Mensageiro da Paz trouxe também na matéria de capa a chamada para conhecer o perfil de quatro dos candidatos à presidência: Dilma Rousseff (PT), Aécio Neves (PSDB), Marina Silva (PSB) e Everaldo Dias (PSC)[11]. O texto destaca Marina Silva como a melhor opção para os evangélicos. Aécio Neves e o pastor Everaldo Dias aparecem também bem posicionados. Sobre Dilma, a legenda da imagem com a foto da candidata destaca os “anos conturbados” do seu primeiro governo. O texto afirma ainda que a candidata à reeleição esquivou-se quando perguntada se Deus existe, é a favor da legalização do aborto e do casamento gay, além de, segundo o texto da matéria, seu primeiro governo ter diminuído pela metade o investimento anual em segurança pública. A tabela abaixo apresenta a frase que serviu de legenda nas imagens dos candidatos nesta edição do mensageiro da paz:

O estreitamento da relação entre as Assembleias de Deus e a política defendida por Bolsonaro causa estranhamento quando tomamos por base as raízes do movimento pentecostal, que difere quase que absolutamente de uma série de questões morais defendidas pela igreja. A denominação que protegeu a sacralidade da vida humana em suas “Lições Bíblicas” aproximou-se de um candidato que, em entrevista à Rádio Jovem Pan, em junho de 2016, afirmou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”[12]. Em maio de 1999, Jair Bolsonaro afirmou à TV Bandeirantes que "no período da ditadura, deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique, o que seria um grande ganho para a nação"[13]. Em comício da campanha presidencial no Acre, o então candidato declarou, simulando atirar com um fuzil, a intenção de "fuzilar a petralhada aqui do Acre"[14]. Há ainda o emblemático episódio em que Jair Bolsonaro afirmou que não estupraria a deputada Maria do Rosário porque “ela não merece”[15]. Ao extinto humorístico CQC, da TV Bandeirantes, Bolsonaro afirmou submetido um detector de mentiras, sobre a prática de sexo com animais: “todo mundo ia atrás de galinha no galinheiro na minha cidade. Alguns, mais malandros, iam atrás da bezerrinha, da jumentinha. Era comum. Não tinha mulher como tem hoje”[16]. É uma ideia que está em oposição ao tópico “o correto uso do corpo” das “Lições Bíblicas” que condenam a prática da zoofilia. No entanto, as bandeiras do antipetismo, anticorrupção e pró-Israel legitimaram o então deputado diante do eleitor pentecostal assembleiano, ainda que o candidato ignorasse uma série de outras recomendações morais do mesmo segmento religioso.
Apesar dos estranhamentos quanto a acolhida pentecostal de um candidato que reúne tantos episódios polêmicos em sua trajetória política, já que há pontos de divergências com a doutrina pregada pela igreja, a escolha por Bolsonaro pode ser explicada quando pensamos a religião integrada com a cultura circundante, a partir do princípio do holismo, onde todas as partes de uma cultura estão interconectadas e se influenciam mutuamente (ELLER, 2018, p. 16). Desde os protestos políticos de 2013, passando pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e com a ascensão de Michel Temer ao poder, começou a desenhar-se um novo cenário político no Brasil que influenciou a guinada na mudança das escolhas políticas, inclusive na preferência do público religioso. Diante do polêmico processo eleitoral, o pentecostalismo assembleiano se mostrou uma religião modular, uma composição de muitos fragmentos que permite ao seu fiel pregar que Jesus liberta o homem do pecado, do crime, e, ao mesmo tempo, defender a posse de armas para matar o ladrão que porventura venha a assaltar a sua propriedade.
Para Antoun (2001, p. 3), o fundamentalismo é “uma orientação para o mundo, tanto cognitiva quanto afetiva. A orientação afetiva, ou emocional, indica indignação e protesto contra a mudança e contra certa orientação ideológica, a orientação do modernismo”. A expressiva aderência a candidatura de Jair Bolsonaro por parte dos evangélicos pentecostais se dá, principalmente, por esta orientação afetiva que protesta contra as mudanças (vimos que o pentecostalismo é antimoderno) e tenta promover aquilo que o movimento entende por verdade. Esta é uma espiral que sempre existiu: a ameaça da mudança, a orientação afetiva, o discurso conservador. Desta vez o movimento ganhou a disposição política para institucionalizar o conservadorismo. O chamado “excesso de escolha” promovido pela modernidade ganha como resposta o fundamentalismo que se desenha como uma anti-hermenêutica: deve-se parar de buscar interpretações e caminhos porque a verdade que se busca já existe (NAGATA, 2001, p. 481).
É interessante observar também que, conforme aponta Eller (2018, p. 436-438), o fundamentalismo não vai se apresentar como um algo monolítico, desenhando-se em vários níveis de sofisticação. Os puristas morais e ideológicos são menos extremados, deixando com que sua religião defina mais ou menos todos os aspectos da sua vida. Os separatistas pacíficos dão um passo à frente ao se separarem ideologicamente e fisicamente da sociedade mais ampla. O fundamentalista ativista vai se envolver na sociedade com o objetivo de alinhá-la a seus valores e crenças. Os reconstrucionistas vão em busca da reinvenção social a partir das suas práticas religiosas e, por fim, há os militantes, que estão dispostos a fazer uso da força para impor o seu ponto de vista. Deste modo, a relação entre o fundamentalismo e a sociedade assume não uma, mas várias formas de conflito. Berger (2017, p. 34) também distingue os fundamentalismos entre reacionários e progressistas ao afirmar que “pessoas firmemente enraizadas numa tradição podem permitir-se uma certa margem de tolerância em relação àqueles que não compartilham a tradição” (2017, p. 35). É a diferença entre tradição e neotradicionalismo.
O envolvimento do discurso conservador do fiel pentecostal com o discurso fundamentalista de Jair Bolsonaro é uma tentativa de usar a identidade religiosa como base exclusiva e absoluta para uma ordem política e social recriada, que se oriente para o futuro e não para o passado (MARTY; APPLEBY, 1991, p. 3) já que o fundamentalista, em seu ponto de vista, vive a tentativa de criar uma religião boa e verdadeira para recriar o mundo (ELLER, 2018, p. 439). A fundação de instituições, sejam elas religiosas ou não, são fundamentais para a manutenção de um programa fundamentalista. Com a adesão de vários segmentos do movimento pentecostal ao programa de governo de Jair Bolsonaro, a fusão entre a instituição religiosa e o governo passa a garantir este funcionamento. Apesar de naturalmente oposicionista, estar ocupando o poder não descaracteriza o fundamentalismo, pois sua oposição não é ao poder, mas as estruturas que um governo pode ter dentro das sociedades. Ocupando o poder, o fundamentalismo pode opor-se ainda mais ferrenhamente ao fazer uso da máquina pública para viabilizar suas ideias ou supervalorizá-las em detrimento de outras, em uma prática que ignora o pluralismo e o respeito ao diferente.
Diferente do que se pensou inicialmente, a modernidade não acarretou em um declínio da religião. Pelo contrário, o mundo é tão religioso quanto antes, e, em alguns lugares, mais religioso hoje do que já foi um dia (BERGER, 2017, p. 11). O que assistimos ao longo dos anos foi uma explosão do pluralismo, que Berger define “como uma situação social na qual pessoas de etnias diferentes, cosmovisões e moralidades vivem juntas pacificamente e interagem amigavelmente” (2017, p. 20). O trabalho fundamentalista vem justamente no sentido de interromper a oferta das múltiplas escolhas, o que afeta diretamente o conceito de pluralidade já que, para que ela exista, é necessário haver uma conversação constante entre indivíduos diferentes, não necessariamente entre iguais. A relativização que provoca a diminuição das certezas com as quais as pessoas costumam viver provoca, por outro lado, a reação que assistimos durante o período eleitoral, quando movimentos religiosos se organizam em torno de um candidato que promete restabelecer a verdade dada como certa, mesmo que, por outro lado, este mesmo candidato fira uma série de valores regados com cuidado pelo pentecostalismo ao longo dos anos. É um esforço para restaurar a certeza ameaçada (BERGER, 2017, p. 34). É um fenômeno religioso, mas também social e antropológico.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Escolas Dominicais são fundamentais para as Assembleias de Deus por exercer um importante papel na disseminação de doutrinas e trabalhar de forma enfática junto aos fiéis os principais posicionamentos da denominação. As EBDs tornam-se ainda mais importantes quando levamos em consideração que os pentecostais são os fiéis menos escolarizados do Brasil, os que recebem os menores salários e os que menos têm integrantes com educação de nível superior. Dentro das Escolas, as “Lições Bíblicas” possuem participação e valor histórico. Em 2018, ano de eleições presidenciais, a denominação usava o espaço para tratar de questões que envolvem os valores morais, ressaltando, inclusive, a legitimidade da participação da igreja no cenário político do país. Ao mesmo tempo em que fala de moralidade, várias vertentes do movimento pentecostal, em especial a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, abraçaram a candidatura do então deputado Jair Bolsonaro (PSL) a presidência do país.
Apesar das muitas divergências morais entre o pentecostalismo assembleiano baseado na Declaração de Fé da instituição e o candidato, lideranças e fieis aderiram em massa à sua candidatura. Quando apontamos estas divergências, não queremos falar de um pentecostalismo mais genuíno que outro ou de uma doutrina moralmente mais “pura” que a outra, mas nos baseamos no que o próprio pentecostalismo assembleiano apresenta em sua Declaração de Fé. O processo envolveu dois discursos, o secular e o religioso, de modo que não havia desconforto em pregar mensagens bíblicas de restauração ao mesmo tempo em que se defendia, na esfera política, um candidato que afirmava preferir ter um filho morto a um filho gay. No entanto, existem várias leituras acerca desta negociação entre os discursos religiosos e políticos, já que este é um fenômeno social, antropológico e religioso. As lideranças pentecostais, neste caso, especialmente as assembleianas, encontraram na figura de um candidato à presidência a possibilidade de efetivação do seu projeto de eliminação das múltiplas escolhas ideológicas, ainda que, para tanto, precisem fazer uma série de concessões morais. Por outro lado, o conservadorismo do fiel pentecostal acabou sendo utilizado politicamente pelo candidato.
O pensamento de Eller (2018) e Berger (2017) nos ajudam a compreender um pouco deste fenômeno. No primeiro, vamos perceber como se dá a formação do discurso fundamentalista a partir da tentativa religiosa de recriar o mundo a partir de um ponto de vista tido como o verdadeiro ou ideal. No segundo, vamos concluir que há no fenômeno das últimas eleições uma concretização da negociação de dois discursos: o religioso e o secular. Estes, nem sempre precisam estar em concordância e podem ocupar mais ou menos espaço, variando de acordo com a situação.
REFERÊNCIAS
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Notas