ARTIGOS

APONTAMENTOS SOBRE O ENSINO RELIGIOSO ESCOLAR: uma contribuição da Pedagogia de ComênioO

Notes on School Religious Education: a contribution from Comenius’ Pedagogy

Taciana Brasil dos SANTOS
Doutora em Ciências da Religião, Mestra em Educação. Teóloga e Pedagoga., Brasil

APONTAMENTOS SOBRE O ENSINO RELIGIOSO ESCOLAR: uma contribuição da Pedagogia de ComênioO

Interações, vol. 14, núm. 25, 2019

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepção: 01 Dezembro 2018

Aprovação: 16 Junho 2019

Resumo: O Ensino Religioso, no Brasil, tem sofrido muitas transformações nas últimas décadas. Essas mudanças atingem, principalmente, seus objetivos, currículo e formação docente. Este artigo tem por propósito estabelecer propostas e críticas metodológicas para esse novo modelo da disciplina, a partir das contribuições da pedagogia de Comênio. Com vistas a atingir este objetivo, foram desenvolvidos três tópicos textuais. O primeiro dedica-se à biografia de Comênio e sua importância para a pedagogia moderna. A seguir, discorre-se sobre o novo Ensino Religioso, suas perspectivas epistemológicas e de formação docente. Por fim, são construídas críticas e proposições metodológicas para o conteúdo a partir dos princípios apresentados em um capítulo da Didática Magna, principal livro do autor. Conclui-se deste trabalho que, apesar do lapso temporal, a obra de Comênio permanece sempre atual para orientar e auxiliar os docentes em suas práticas.

Palavras-chave: Ensino Religioso, Metodologia de Ensino, Comênio, Didática Magna.

Abstract: The Religious Education in Brazil has undergone many changes in recent decades. These changes mainly affect their objectives, curriculum and teacher training. This article aims to establish proposals and methodological critiques for this new model of the discipline, based on the contributions of the Pedagogy of Comenius. In order to achieve this goal, three textual topics have been developed. The first is dedicated to the biography of Comenius and its importance to the modern pedagogy. Next, we discuss the new Religious Education, its epistemological perspectives and teacher’s training. Finally, critical and methodological proposals are constructed for the content based on the principles presented in a chapter of the Didactical Magna, the author’s main book. The conclusion of this work is that, despite the time lapse, Comenius' work remains always current to guide and assist teachers in their practices.

Keywords: Religious Education, Teaching Methodology, Comenius, Didactical Magna.

1 INTRODUÇÃO

Historicamente, a metodologia tem sido uma grande preocupação no pensamento educacional. Além de orientações gerais, que permeiam todo o processo educativo, facilmente encontram-se publicações e pesquisas específicas sobre a metodologia de cada disciplina.

Enquanto disciplina escolar, o Ensino Religioso também necessita de orientações metodológicas próprias, adequadas à sua proposta e conteúdo. Porém, essa disciplina tem sofrido um longo processo e transformação e adequação, que lhe permitiu migrar da confessionalidade à laicidade. Mais do que uma mudança de conteúdos, essa alteração significa também a saída da imposição de uma única narrativa religiosa como verdadeira, para a valorização e aceitação das múltiplas denominações e filosofias de vida.

Dessa forma, reforça-se a necessidade de pesquisas e publicações que procurem atender o novo Ensino Religioso, inspirando-lhe metodologicamente. Este artigo tem por objetivo oferecer propostas e críticas para as práticas relacionadas ao Ensino Religioso escolar, a partir da pedagogia de Comênio.

Assim, este artigo divide-se em quatro seções. A primeira discorre sobre Comênio e introduz sua obra. A segunda se ocupa de apresentar o novo Ensino Religioso, e suas perspectivas epistemológicas e de formação docente. A terceira parte apresenta um conjunto de proposições de Comênio em um dos capítulos da Didática Magna, indicando como as mesmas poderiam inspirar as práticas relacionadas ao Ensino Religioso escolar. A última parte estabelece perspectivas para o conteúdo à luz das reflexões anteriormente apresentadas.

Espera-se que a leitura deste texto conduza a uma reflexão didática e metodológica do Ensino Religioso escolar, revisitando proposições pedagógicas antigas, mas que se renovam cotidianamente.

2 A DIDÁTICA DE COMÊNIO

João Amós Comênio nasceu em 1592 na Morávia, região atualmente pertencente à República Tcheca. Sua família fazia parte de uma comunidade religiosa de matriz protestante, que tinha como um de seus principais sustentáculos a educação comunitária de crianças, jovens e adultos (GASPARIN, 1998).

Apesar disso, conforme relata Narodowski (2001), a escola frequentada por Comênio durante sua infância não oferecia um ensino de boa qualidade – assim como a maioria das instituições escolares de seu tempo. Para o autor, ter enfrentado essa dificuldade constituiu-se um fator fundamental para que Comênio começasse a se preocupar com a educação. Conforme relata Gasparin (1998), ao longo de sua vida, Comênio dedicou-se ao pastoreio na Igreja Morávia, e à docência, tendo escrito várias obras que propunham a reforma das escolas e métodos de ensino.

Sua principal obra, a Didática Magna (COMENIUS, 2006), é considerada o marco do surgimento da modernidade pedagógica. Ela conforma uma nova estrutura a partir de elementos já existentes na pedagogia da época (NARODOWSKI, 2001). De acordo com Garcia (2014), esta obra se situa entre o ardoroso antropocentrismo do Renascimento e o velho teocentrismo medieval.

Para interpretar a obra de Comênio, deve-se considerar que ele era um bispo protestante, que viveu durante o período de transição da Idade Média para a Idade Moderna. Por essa razão, a Didática Magna é permeada de conceitos confessionais, que podem ser verificados na motivação apresentada para a escrita da obra, e também na proposta de uma metodologia que levasse os educandos a adotar valores piedosos. Comênio ainda era fortemente influenciado pela forma de vida medieval, baseada em valores religiosos (NARODOWSKI, 2001). Questões como a laicidade e a importância da educação religiosa na diversidade ainda não haviam sido suscitadas em seu tempo. Desta forma, como destaca Batista (2017), Comênio reporta todo o trabalho proposto na Didática Magna ao “reitor universal, que é Deus” (BATISTA, 2017, p. 260).

As propostas de Comênio são inspiradas por aspectos religiosos, mas também vislumbram a sociedade e a escola próprias do nascente capitalismo industrial, procurando conciliar religião e ciência (GARCIA, 2014). É possível que estas características expliquem a aceitação da obra a seu tempo, e a consequente influência que a mesma constituiu ao pensamento pedagógico desde então.

Conforme Narodowski (2001), a Didática Magna apresenta princípios para a educação das crianças e jovens através de uma nova tecnologia social específica para esse fim: a escola. Garcia (2014) ressalta que o modelo de escolarização proposto por Comênio valorizava a disciplina, o trabalho honesto, a educação de massas, o aprender fazendo, o controle do tempo, a substituição de castigos físicos por coerção psicológica – características próprias de sociedades protestantes e capitalistas. Por essa razão, conforme relata Narodowski (2001), embora naquela época não houvessem escolas com todos os recursos descritos por Comênio, a Didática Magna direcionou seu paradigma de desenvolvimento em toda a modernidade.

Atualmente, pode-se perceber a influência da Didática Magna nos sistemas de ensino em elementos como organização por níveis de conhecimento, presença de um currículo formal, utilização de metodologias que se aproximam do contexto em que o aluno está inserido, e a massificação do ensino. Por essa razão, pode-se considerar a Didática Magna como um dos tratados educacionais mais importantes de todos os tempos (GARCIA, 2014).

Há que se ressaltar a importância da natureza e de seus elementos na obra de Comênio. Primeiramente, porque o autor enxergava uma similaridade entre os seus processos de desenvolvimento e a aprendizagem humana – o que motivava sua constante evocação como figura dos princípios apresentados (GASPARIN, 1998; NARODOWSKI, 2001). Além disso, o autor valorizava profundamente o aprender fazendo, que tornava necessária a realização de trabalhos de campo, colocando o aluno em maior contato com a natureza (GARCIA, 2014).

Antes de prosseguir em direção ao objetivo principal deste artigo, é necessário fazer algumas ponderações sobre esta obra e a interpretação adotada para a mesma. Conforme dito anteriormente, Comênio baseou-se em motivação e valores confessionais. Sua proposta educacional previa para o educando, além do desenvolvimento cognitivo, a adoção de fé e conduta coerente com os princípios moravianos (NARODOWSKI, 2001; GARCIA, 2014; BATISTA, 2017). Desta forma, a proposta de educação religiosa contida na Didática Magna é, necessariamente, confessional e protestante. Com relação a esta questão, Garcia (2014) destaca a convergência de pensamento entre Lutero, Calvino e Comênio, chegando a considerar os três como reformadores.

Como, então, seria possível elencar contribuições da Didática Magna para o Ensino Religioso laico? Para cumprir este objetivo, considerou-se a proposta principal da obra – ensinar tudo a todos – abandonando as ponderações específicas sobre o desenvolvimento de um comportamento piedoso por parte do educando. Parte-se de uma concepção de Ensino Religioso escolar que oferece conhecimento sobre as religiões, e não necessariamente a adoção de uma confissão religiosa. Dessa forma, os princípios comenianos serão aplicados ao Ensino Religioso e aos demais conteúdos curriculares equitativamente, sem qualquer intenção de imposição confessional.

No próximo tópico, este modelo de Ensino Religioso escolar, que não pressupõe a adoção de uma confissão religiosa, será descrito com mais pormenores.

3 O NOVO ENSINO RELIGIOSO ESCOLAR E OS FUNDAMENTOS DE SEUS SABERES

Apesar da origem confessional do Ensino Religioso no Brasil (CUNHA, 2013), pode-se afirmar que, desde a década de 1970, o conteúdo tem caminhado em direção a práticas mais democráticas e inclusivas, que consideram a diversidade religiosa e cultural presente no país. Influências como o trabalho do padre salesiano Wolfgang Gruen, e o surgimento de organizações como a Associação Inter-Religiosa de Educação – Assintec (FIGUEIREDO, 2006) prepararam o caminho para que, após a redemocratização, o Ensino Religioso tomasse uma direção condizente com a laicidade prevista na legislação do país.

O novo modelo do Ensino Religioso escolar no Brasil preza pelo respeito à diversidade como forma de experimentar a laicidade no país. Procurando vencer a confessionalidade como opção preferencial para o modelo da disciplina, várias iniciativas foram tomadas, tais como a fundação do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso – FONAPER, em 1995 (FÓRUM…, 1995), e a edição, por esta organização, de Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso (FÓRUM…, 2009) – uma vez que, por ocasião da publicação feita pelo Ministério da Educação (BRASIL, 1997), esta disciplina não foi incluída.

Atualmente, o documento que pretende orientar a composição curricular de todos os sistemas educacionais do país é a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a). Prevista pela Constituição Federal (BRASIL, 2017), pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996) e pelo Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014a), tem por principal função compor um conjunto de direitos e objetivos de aprendizagem em nível nacional.

Dentre as vantagens de criação de uma Base Nacional Comum Curricular, destaca-se a possibilidade de se oferecer uma identidade de conhecimentos a todos os estudantes da Educação Básica brasileira, almejando a correção da desigualdade de oportunidades através da oferta de conteúdos muito semelhantes em todas as escolas (CURY; REIS; ZANARDI, 2018). Além disso, conforme ressaltam Neira, Alviano Júnior e Almeida (2016), o projeto da Base prevê que os conhecimentos variados adquiridos durante o processo de escolarização colaborem para a construção de uma visão ampliada de mundo, possibilitando o reconhecimento de sua própria identidade cultural, e a construção de uma sociedade mais democrática.

A Base Nacional Comum Curricular representa um ganho epistemológico para o Ensino Religioso por considerá-lo uma área de conhecimento e um conteúdo curricular. Sua inserção lhe confere legitimidade, além de integrá-lo aos objetivos educacionais comuns a todos os conteúdos descritos no documento. Além disso, sinaliza para uma unificação epistemológica em todo o território nacional – Diniz e Carrião (2010) apontam para ao menos três modelos diferentes (Interconfessional, Confessional e História das Religiões) adotados para o conteúdo nos sistemas estaduais e distrital de educação no país à época da escrita de sua obra.

A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a) estabelece como objeto para o Ensino Religioso escolar o conhecimento religioso, que deve ser estudado sob pressupostos científicos e éticos. O espaço preferencial para produção do conhecimento que será ministrado em sala de aula são as Ciências Humanas e Sociais, em especial a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões). Esta opção de referenciamento teórico é muito importante, uma vez que confere à disciplina cientificidade, e um arcabouço epistemológico.

Para compreender melhor a ligação entre as Ciências da Religião e o Ensino Religioso escolar, há que se considerar o já conhecido pensamento de que este conteúdo escolar é uma transposição didática dessa área de conhecimento científico. Tal posição é defendida por autores como Passos (2007), Soares (2009), Junqueira (2013) e Damasceno (2016), e será melhor esclarecida nos parágrafos a seguir.

A transposição didática é um conceito oriundo da obra de Chevallard (1998). Este autor, da área da Matemática, aplica este conceito para se referir às diferenças entre o saber sábio, propriamente dito acadêmico, e o saber necessário a uma aula de matemática na educação básica. Embora eventualmente o mesmo princípio esteja sendo abordado em uma classe universitária e em uma escola elementar, a forma de fazê-lo, a linguagem e os recursos envolvidos não poderão ser os mesmos. O aluno da educação básica precisa compreender os conceitos a partir da visão de mundo que possui, que é ainda bastante limitada. O acadêmico pode usufruir de maior formalidade e teorização do conteúdo estudado, pois espera-se que no passado ele já tenha obtido a compreensão na forma que é ensinada ao aluno da educação básica.

Assim, pode-se compreender que o conceito de transposição didática se refere às diferenças próprias na forma de apresentação do conhecimento no ambiente acadêmico – onde o mesmo é produzido –, e nas salas de aula – onde deverá ser adaptado de forma a permitir a compreensão do aluno (CHEVALLARD, 1982; 1998).

A aplicação do conceito de transposição didática ao Ensino Religioso escolar, em autores como Passos (2007), Soares (2009), Junqueira (2013) e Damasceno (2016), se refere à tomada de consciência de que as Ciências da Religião produzem um conhecimento muito além do que é necessário ao Ensino Religioso escolar, sendo necessária uma seleção de conteúdos e abordagens que podem estar presentes na educação básica.

Esta forma de utilização do conceito de transposição didática no Ensino Religioso escolar deve ser feita com bastante cautela, por um conjunto de razões. Inicialmente, porque este é um conceito oriundo das Ciências Exatas, e pouco tem sido feito em prol de compreender sua viabilidade e forma de aplicação nas Ciências Humanas. Além disso, a transposição didática prevê adaptação da apresentação do conteúdo – tarefa prioritariamente exercida pelo docente. A seleção do conteúdo é uma tarefa muito maior, que deveria ficar a cargo não apenas do regente de aulas, mas deveria ser fruto de uma reflexão de todo o sistema educacional, em que se espera a participação de docentes, especialistas e até mesmo da comunidade atendida.

Seja como for, a partir do momento em que a formação do professor de Ensino Religioso escolar ocorre nos cursos de Ciências da Religião, assume-se que o conhecimento adquirido através desta formação será fundamental à docência do conteúdo curricular. Acerca da diferença existente entre o conhecimento academicamente produzido e o ensinado na sala de aula, ainda há muito que se problematizar sobre a aplicação do conceito de transposição didática e sobre a construção curricular do conteúdo.

Por ora, cabe ressaltar que atualmente os cursos de graduação e especialização em Ciências da Religião já têm sido os ambientes preferenciais de formação de professores de Ensino Religioso em muitos sistemas escolares brasileiros, e sua oferta tem se feito presente em todos os estados da Federação, com predomínio para as regiões Sudeste e Sul, conforme pode ser visualizado na Figura 1.

Cursos de especialização e de graduação em Ciência(s) da(s) Religião(ões) por unidade da federação (2018)
Figura 1
Cursos de especialização e de graduação em Ciência(s) da(s) Religião(ões) por unidade da federação (2018)
Elaborado pela autora com dados extraídos do Cadastro e-Mec de Instituições e Cursos de Educação Superior.

É necessário observar que os dados que embasam este gráfico foram obtidos em setembro de 2018 – antes, portando da aprovação do Parecer CNE/CP nº 12/2018 (BRASIL 2018b), que estabeleceu diretrizes curriculares nacionais para os cursos de licenciatura em Ciências da Religião. É possível que essa oferta se intensifique, considerada a legitimidade que o Parecer confere a estes cursos para formação de docentes do Ensino Religioso escolar.

Retomando o conceito de transposição didática (CHEVALLARD, 1998), deve-se considerar que a formação docente não acontece apenas por meio da absorção dos conhecimentos próprios do saber sábio, mas também através da aquisição de conhecimentos que auxiliarão à transformação deste conteúdo em saber ensinado. Sendo assim, os cursos de Ciências da Religião que se propõe, de alguma maneira, a formar docentes para o Ensino Religioso escolar, devem também se propor a problematizar a didática, as práticas e a metodologia do conteúdo, tendo em vista a necessidade de que o conteúdo seja compreendido e apreendido pelo aluno.

Como contribuição à problematização metodológica do Ensino Religioso escolar, será apresentada, no próximo tópico, uma reflexão a partir de um capítulo da Didática Magna de Comênio. Cabe ressaltar que este texto contém apenas algumas ponderações, das muitas possíveis, a partir da obra deste importantíssimo autor. Espera-se que, de alguma forma, este posicionamento auxilie na formação e prática de docentes do conteúdo.

4 CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA COMENIANA PARA A METODOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO ESCOLAR NA ATUALIDADE

Conforme dito anteriormente, a Didática Magna é uma obra importantíssima, que influenciou toda a modernidade pedagógica. Dada sua densidade e importância, optou-se por selecionar como fundamento de análise um único capítulo intitulado Requisitos gerais para ensinar e aprender: como se deve ensinar e aprender com a certeza de atingir o objetivo (COMENIUS, 2006, p. 145). Seus princípios serão apresentados no Quadro 1:

Quadro 1
Princípios comenianos para o processo de ensino-aprendizagem
Requisitos gerais para ensinar e aprender: como se deve ensinar e aprender com a certeza de atingir o objetivo
Primeiro princípioA natureza aguarda o momento propício.
Segundo princípioA natureza prepara a matéria antes de começar a introduzir-lhe a forma.
Terceiro princípioAo obrar, a natureza toma um indivíduo apto e prepara-o antes, oportunamente.
Quarto princípioEm suas obras, a natureza não procede confusamente, mas de modo claro.
Quinto princípioA natureza começa todas as operações pelas partes mais internas.
Sexto princípioA natureza inicia todas as suas formações pelas coisas mais gerais e acaba pelas mais particulares.
Sétimo princípioA natureza não procede por saltos, mas gradualmente.
Oitavo princípioDepois de iniciar uma obra, a natureza não a interrompe, mas conclui.
Nono princípioA natureza está sempre atenta para evitar as coisas contrárias e nocivas.
Elaborado pela autora com dados extraídos de Comenius (2006)

Cada um destes princípios será brevemente apresentado e discutido nos próximos parágrafos, considerando seu significado na obra de Comênio. Em seguida, será apontada sua importância na construção de uma proposta metodológica para o Ensino Religioso escolar. Eventualmente, outros autores cujas propostas metodológicas concordam com as apresentadas pela Didática Magna também serão referenciados.

4.1 Primeiro princípio

Desta forma, o primeiro princípio apresentado no quadro refere-se ao momento propício em que todas as coisas ocorrem na natureza. Inspirando-se nesta realidade, Comênio afirma que, na educação, os conteúdos devem ser adequados à idade dos alunos e ao nível de compreensão da turma (COMENIUS, 2006).

Este princípio coaduna com a aplicação do conceito de transposição didática das Ciências da Religião ao Ensino Religioso escolar. Os resultados das pesquisas desta área acadêmica não devem ser apresentados aos alunos da educação básica da mesma forma que o seriam no ensino superior e na pós-graduação. É necessário que haja uma seleção de conteúdos e abordagens de acordo com o nível intelectual e cognitivo da turma, evoluindo a complexidade à medida que os alunos se desenvolvem. Mesmo em contextos em que já exista uma estrutura curricular pronta para a disciplina, o professor pode atuar adaptando da melhor maneira o conteúdo a ser estudado. Martins (2010), inclusive, ressalta que essa tem sido uma tendência no trabalho docente no Brasil, em consequência à formação predominantemente progressista desses profissionais.

4.2 Segundo princípio

O segundo princípio trata da necessidade de preparação das aulas, de forma que os alunos reconheçam o objeto de estudo através de exemplos, e não de regras. Para alcançar este propósito, é necessário preparar a aula com antecedência, disponibilizando materiais que auxiliem os alunos nesse processo. Comênio ressalta a utilização de livros, mapas e gravuras, que devem ser escolhidos com antecedência para garantir o bom andamento da aula. Apenas depois que os alunos estejam familiarizados com o objeto de estudo na vivência prática, é que devem ser introduzidas as regras e formulações teóricas (COMENIUS, 2006).

Cabe ressaltar que o conhecimento do objeto de estudo antes e em conjunto com as regras foi também adotado no método de alfabetização freireano (FREIRE, 1967). Para aplicar esse conceito ao Ensino Religioso escolar, é necessário que o professor identifique o contexto em que o aluno está inserido, demarcando quais fragmentos de sua realidade podem ser úteis ao desenvolvimento do conteúdo, e como isso pode ser feito. Esse processo de imersão pode ser feito considerando-se o pertencimento social e familiar do educando, mas também se pode (e se deve) considerar produções culturais, artísticas e midiáticas a que o mesmo tem acesso.

Atualmente, existe a possibilidade de utilização de recursos que não estavam disponíveis à época de Comênio, tais como as mídias digitais. A mera utilização de tecnologias digitais, conforme adverte Carenzio (2013), não é o suficiente para que a didática seja considerada inovadora. Porém, não as utilizar pode levar à queda de interesse, empenho e constância por parte dos alunos, que podem ver os instrumentos da escola como ultrapassados. Embora muitos professores tendam a ver os materiais tradicionalmente escolares, como o livro, em uma relação de superioridade às mídias digitais, sua utilização pode ajudar a superar o fosso cultural e de comunicação entre alunos e escola. Pode, inclusive, incitar a atividade e responsabilidade dos alunos, através de atividades que os solicitem como sujeitos competentes, tais como a criação de vídeos, desenvolvimento de um produto, etc.

4.3 Terceiro princípio

Retornando aos princípios de Comênio, sua terceira proposição refere-se à necessidade de que os alunos estejam mentalmente predispostos ao estudo. Para isso, todo tipo de obstáculo deve ser removido da sala de aula (COMENIUS, 2006).

Tradicionalmente, um dos principais problemas relatados por professores é a indisciplina escolar. Discorrendo sobre o tema, Parrat-Dayan (2008) realiza algumas importantes ponderações. Para a autora, é importante considerar que, embora a educação e seus métodos tenham se modificado ao longo do tempo, é comum que professores ainda esperem de seus alunos um comportamento típico da educação tradicionalista, em que o educando deve oferecer atenção, disponibilidade e obediência.

A transformação dos métodos e técnicas educativas deve, também, ser acompanhada pelos conceitos de disciplina escolar. Pois um método educativo que almeje crianças ativas deve também lhes permitir dialogar com o adulto, desenvolvendo sua autonomia intelectual e social. O respeito entre professor e aluno deve ser mútuo, de forma que juntos possam desenvolver e respeitar as normas de conduta em sala de aula (PARRAT-DAYAN, 2008).

Essa nova noção de disciplina escolar é particularmente interessante à proposta de Ensino Religioso defendida neste capítulo. Pois se este conteúdo deve valorizar a diversidade, os conhecimentos prévios do aluno e sua própria narrativa de sentido para a vida, deve também valorizar o diálogo e a capacidade discursiva da criança.

4.4 Quarto princípio

O quarto princípio de Comênio discorre sobre a necessidade de linearidade no processo de estudo de um conteúdo (COMENIUS, 2006). Sob o requerimento deste princípio, ressalta-se a necessidade do estabelecimento de um currículo claro e ordenado para o Ensino Religioso escolar.

O estabelecimento de um currículo linear para o Ensino Religioso escolar tem sido um desafio ao longo das últimas décadas. Muitas têm sido as dificuldades enfrentadas pelo conteúdo, tais como a falta de uma tradição epistemológica para a disciplina (CURY, 2004), ou mesmo as oposições deliberadas. Este quadro, porém, tem apresentado um significativo progresso com a inserção do Ensino Religioso escolar na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a). Conforme apresentado anteriormente, o estabelecimento de objetivos e conteúdos comuns em todo o país representa um avanço para a disciplina, que passará a se fundamentar em um único ideário em todo o território brasileiro.

4.5 Quinto princípio

O quinto princípio comeniano descreve como deveria ser o processo de aprendizagem. Primeiro, os alunos devem compreender o tema que estão estudando, para então memorizar a seu respeito, e apenas por fim discursar ou pôr em prática o que tem sido estudado (COMENIUS, 2006).

Esta proposta da sequência: compreensão – memorização – prática, também pode ser verificada no método de alfabetização freireano (FREIRE, 1967). Nessa proposta, o aluno contempla palavras a partir de seu vocabulário e de sua compreensão de mundo. Depois, memoriza as famílias silábicas para, então, começar a construir outras palavras. E esse processo é sempre permeado pela reflexão e discussão sobre a realidade de vida dos alunos.

É importantíssimo que as propostas metodológicas para o Ensino Religioso escolar se espelhem nesses exemplos. Pois a simples memorização de conteúdo sobre as tradições religiosas ou as narrativas de sentido não conduzirá o aluno à compreensão do que está sendo estudado. O professor de Ensino Religioso deve auxiliar os alunos a perceber e analisar a realidade em que estão inseridos, e a partir desse processo apresentar os conteúdos teóricos a serem trabalhados na disciplina. Em seguida, o aluno deve colocar em prática o conhecimento adquirido através de exercícios que estimulem a atitude e a discursividade, demonstrando sua compreensão e/ou a relação do conteúdo estudado com sua própria experiência de vida.

4.6 Sexto e sétimo princípios

Devido à semelhança entre os avanços e dificuldades em relação ao que é retratado no sexto e sétimo princípios, estes serão tratados conjuntamente. Comênio aborda, no sexto princípio, a necessidade de se iniciar o estudo de qualquer tema a partir dos níveis mais simples, evoluindo com o tempo para os mais complexos. Assim, os primeiros anos de escolarização serão uma base para os posteriores. O sétimo refere-se ao tempo gasto e à progressão dos níveis de conhecimento ao longo do processo de escolarização. É necessário estar atento para que não haja nenhuma inversão na ordem dos conteúdos, nem nenhum salto cognitivo, nem mau aproveitamento do tempo escolar (COMENIUS, 2006).

Novamente destaca-se a importância da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a) para o Ensino Religioso escolar. Pois este documento estabelece os conteúdos a serem trabalhados durante todo o Ensino Fundamental, garantindo que os alunos tenham uma evolução do conhecimento ao longo de sua escolarização.

4.7 Oitavo princípio

O oitavo princípio trata sobre a necessidade de concluir o processo educacional, considerando-se o tempo e o aproveitamento adequados. A escola deve ser um ambiente livre de distrações que impeçam a aprendizagem do aluno (COMENIUS, 2006). Embora esse princípio também seja afetado pelos mesmos avanços e dificuldades que o sexto e o sétimo princípios, existem outras questões específicas a serem discutidas.

A primeira delas refere-se à avaliação da aprendizagem apropriada para o Ensino Religioso escolar. É necessário que a avaliação esteja de acordo com o conceito de educação e os objetivos que sustentam a construção da disciplina. Com o intuito de se problematizar o processo de avaliação escolar, recorrer-se-á aos apontamentos feitos por Perrenoud (1998).

Para o autor, as diferenças sociais e culturais entre os alunos não são motivos para o fracasso escolar, e sim a maneira como a escola os trata (PERRENOUD, 1998). No caso do Ensino Religioso, emerge a necessidade de que o professor esteja preparado para tratar a diversidade religiosa presente em sala como uma ferramenta que possibilita a aprendizagem, e não como um motivo para que determinados alunos se saiam melhor ou pior que nas outras disciplinas.

Perrenoud (1998) ainda descreve o conceito de observação formativa, em que se constrói uma observação realista das aprendizagens. O resultado dessa orientação servirá para orientar e otimizar a prática pedagógica, auxiliando o progresso dos alunos.

A observação formativa pode ser uma importante ferramenta para o Ensino Religioso escolar. Em primeiro lugar, porque se relaciona de forma mais profunda com as atitudes dos alunos que com os saberes mecanizados. Em segundo lugar, porque permite que o desenvolvimento dos alunos seja avaliado a partir de sua origem, ou seja, como o mesmo evoluiu em seu conhecimento sobre tradições religiosas e na adoção de uma narrativa de sentido. Por fim, a observação formativa permite ao professor repensar suas práticas a partir do efeito que as aulas têm provocado nos alunos.

4.8 Nono princípio

O nono e último princípio faz referência à necessidade de que se impeça os alunos de terem contato com conteúdo e convivências contrárias e nocivas ao aprendizado que se tem desenvolvido na escola (COMENIUS, 2006).

No tempo de Comênio, limitar o contato do aluno com convivências e conteúdos nocivos à sua educação constituía-se em uma questão de barreira, ou impedimento. Atualmente, em uma sociedade conectada, é praticamente impossível impedir que as crianças tenham acesso a conteúdo que reflita maus hábitos e conduta perniciosa, tais como manifestações de ódio e preconceitos, jogos e desafios desumanizantes e destrutivos, violência física e simbólica, abuso de substâncias e qualquer tipo de alienação do sentido da vida.

Torna-se um desafio para todos os educadores, mas em especial ao docente de Ensino Religioso, levar o aluno a enxergar a vida sob uma perspectiva de profundidade, rejeitando as amarras da alienação e das más influências, e construindo uma narrativa pessoal repleta de significação e propósito.

5 A ARTE DE ENSINAR TUDO A TODOS – INCLUSIVE O ENSINO RELIGIOSO ESCOLAR

A partir da análise dos princípios didáticos de Comênio, formulou-se uma breve reflexão acerca da atual situação do Ensino Religioso escolar. Essa direcionou-se a três principais elementos relacionados ao conteúdo, a saber: aspectos curriculares, aspectos metodológicos, e objetivos educacionais. Nos próximos parágrafos, discorrer-se-á mais pormenorizadamente acerca de cada um deles, comparando aos atuais progressos e desafios para o Ensino Religioso escolar.

Considerando os princípios comenianos estudados no tópico anterior, pode-se observar uma contribuição ao desenvolvimento curricular do Ensino Religioso escolar a requisição de um currículo claro e objetivo, que parta do mais simples ao mais complexo, e possibilite a adequação do conteúdo ao nível de compreensão e desenvolvimento do aluno. Embora estas proposições sejam relativamente simples, ao longo da história da educação brasileira pode-se perceber que nem sempre foi possível atendê-las. Conforme ressalta Cury (2004), foi extremamente comum que a presença ou ausência do Ensino Religioso no currículo escolar brasileiro se devesse mais a questões políticas do que à construção epistemológica do conteúdo. Assim, pode-se concluir que o atual desenvolvimento curricular experimentado é um significativo avanço para essa área de conhecimento.

O surgimento de documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso (FÓRUM…, 1995) e, posteriormente, a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a) podem ser considerados, à luz destes princípios comenianos, um importante crescimento para o conteúdo analisado. Isso porque estabelecem e ordenam o corpo de conhecimentos próprio da área. Por outro lado, os princípios comenianos suscitam maiores exigências à forma como esse desenvolvimento curricular tem ocorrido. Estas propostas têm considerado adequadamente as fases de desenvolvimento da criança? Têm se valido de conhecimentos sobre o desenvolvimento cognitivo infantil, tais como se lê em Piaget (1993) e Vygotsky (1984)? Têm compreendido e aplicado adequadamente o conceito de transposição didática (CHAVALLARD, 1998), ao selecionar e adaptar os conhecimentos produzidos pelas Ciências da Religião? Muita atenção deve ser dispendida a estas questões, em nome de um desenvolvimento satisfatório do Ensino Religioso escolar.

As metodologias de ensino também são diretamente afetadas pelas proposições da Didática Magna. Inicialmente, é necessário eliminar toda distração do ambiente escolar, que impossibilite o adequado aproveitamento do conteúdo. Durante a aula, espera-se que sejam utilizados materiais e recursos que liguem a teoria à realidade, permitindo a efetividade do ciclo compreensão – memorização – prática. A conclusão do processo educacional também pode ser considerada elemento de grande importância.

O aspecto metodológico do Ensino Religioso escolar carece de um maior desenvolvimento para adequar-se às proposições de Comênio. A começar pela eliminação das distrações que possam prejudicar o desenvolvimento do conteúdo, tais como os preconceitos, a intolerância e a falta de conscientização sobre os limites e perspectivas da vivência religiosa em um país laico. Que tipo de medidas seriam necessárias para garantir que essas distrações não fossem um impedimento ao adequado desenvolvimento do conteúdo?

Inicialmente, há que se tratar sobre a importância de uma formação adequada do professor, que lhe capacite a lidar com essas questões. Acredita-se que a composição curricular da Licenciatura em Ciências da Religião, conforme o Parecer CNE/CP nº 12/2018 (BRASIL 2018b), lhe ofereça fundamentação teórica e orientação metodológica para tal. Porém, há que se ressaltar que o Ensino Religioso não é ministrado apenas por estes profissionais. Tomando como exemplo o caso específico da Rede Estadual de Minas Gerais, desde a promulgação da Resolução SEE nº 2.253, em 2013 (MINAS GERAIS, 2013), o Ensino Religioso é ministrado nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental pelo próprio Regente de Turma, cuja formação atualmente exigida é a Licenciatura em Pedagogia, curso que nem sempre oferece orientação didática e metodológica para o conteúdo.

Dessa forma, percebe-se a necessidade de que a discussão sobre a perspectiva da laicidade, o combate à intolerância e aos preconceitos religiosos se faça presente não apenas na Licenciatura em Ciências da Religião, mas em todos os cursos que formem docentes para o Ensino Religioso escolar. Principalmente na Licenciatura em Pedagogia, que forma Regentes de Turma e Especialistas que deverão coordenar e orientar o trabalho dos demais docentes.

É necessário discutir ainda sobre a disponibilidade de materiais didáticos adequados para o Ensino Religioso escolar. Embora o livro didático não seja o único recurso possível, constitui-se um material de extrema importância às práticas de ensino e aprendizagem na escolarização brasileira. Acerca do caso específico do conteúdo estudado, Gilz (2009) ressalta que

Por contribuir com o processo de ensino-aprendizagem escolar, por propiciar diferentes leituras da realidade e dos fenômenos, por mediar a pesquisa de projetos e práticas escolares em determinado momento histórico, por ser, enfim, um dos recursos de sustentação da teia dos processos educacionais, o livro didático é mais do que um manual de iniciação ou de familiarização aos temas de estudo de uma disciplina. (GILZ, 2009, p. 138-139).

Apesar de todo esse potencial, o Programa Nacional do Livro Didático (BRASIL, 2017b) não disponibiliza às escolas públicas do país a possibilidade de adquirir material para o Ensino Religioso escolar. Ressalte-se que essa informação é referente ao Edital para 2019, ou seja, após a reafirmação da importância do conteúdo através de sua inserção na Base Nacional Comum Curricular.

Além disso, percebe-se uma considerável carência de materiais que orientem o trabalho do professor, e auxiliem sua prática na docência do Ensino Religioso escolar. Tome-se por exemplo o fato de o banco de materiais do Portal do Professor, no sítio do Ministério da Educação brasileiro, não retornar nenhum resultado referente a esta área de conhecimento ou à sua disciplina análoga. Ou sua não abordagem em ao menos três livros – Cury, Reis e Zanardi (2018), Pacheco (2018), e Veiga e Silva (2018) – que analisam a Base Nacional Comum Curricular, e as alterações que o documento propõe para a educação no país. Ou a inexistência de revistas cadastradas na Plataforma Sucupira cuja temática principal relacione-se à metodologia do Ensino Religioso. Conclui-se, portanto, que seria de grande importância a criação de bancos de materiais, publicações e meios que auxiliem o professor em seu desenvolvimento didático-pedagógico, no planejamento de sua aula e na escolha de recursos e materiais didáticos adequados.

Acerca da conclusão do processo educacional, no caso específico do Ensino Religioso, é necessário ponderar se a mesma está ocorrendo da maneira mais adequada no processo de escolarização. Ao analisar a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a), percebe-se que ao longo dos anos de escolaridade os conteúdos curriculares são sempre ampliados e desenvolvidos, mas nunca interrompidos. Com exceção do Ensino Religioso escolar. Sua oferta é prevista durante todo o Ensino Fundamental, mas não durante o Ensino Médio. Desta forma, priva-se o aluno de discussões mais aprofundadas na área, justamente quando sua habilidade crítica e discursiva está atingindo os mais altos níveis de desenvolvimento.

Compreende-se, desta forma, que a atual organização curricular oferece um tratamento diferenciado ao Ensino Religioso escolar quando comparado às demais áreas do conhecimento, interrompendo sua oferta antes que o mesmo tenha a oportunidade de promover todo seu potencial desenvolvimento. Seria desejável que o conteúdo também fosse ofertado durante o Ensino Médio.

Almeja-se, através destas metodologias, alcançar os objetivos estabelecidos para o Ensino Religioso escolar. Estes podem ser descritos como a adoção de uma conduta coerente com os conteúdos estudados, o que remonta à rejeição de elementos contrários e nocivos à ética de respeito e valorização da diversidade religiosa e à construção de uma narrativa pessoal repleta de significação e propósito.

Destaca-se a contribuição das premissas do Ensino Religioso antropológico, conforme proposto por Gruen (1995), para alcançar estes objetivos. De acordo com o autor, o Ensino Religioso escolar deve trabalhar as experiências cotidianas do ser humano, com o intuito de oferecer ao aluno vivências, informações e reflexões que o ajudem a encontrar o sentido de sua existência, bem como sua utilidade à comunidade. Assim, ele poderá construir de forma responsável seu projeto de vida.

Essa construção deve partir do aluno, de suas possibilidades e necessidades. A atuação do professor é fomentar uma reflexão que conduza a uma abertura à transcendência radicada na imanência. A transcendência não necessariamente precisa situar-se no elemento religioso propriamente dito, mas naquilo que se constitui, para o aluno, no sentido mais profundo de sua existência (GRUEN, 1974).

O não desenvolvimento desta perspectiva de sentido, conforme Tillich (1970), condena o ser humano a uma vida de alienação. Por outro lado, seu desenvolvimento adequado é capaz de afetar tanto o âmbito religioso quanto profano do indivíduo, uma vez que o torna protagonista de sua própria existência, prosseguindo em direção àquilo que lhe oferece uma perspectiva de sentido.

Nesse ponto, há que se ressaltar que os principais objetivos do Ensino Religioso antropológico – desenvolvimento de uma perspectiva de sentido para o aluno, que lhe oriente na construção de seu projeto de vida e inserção na sociedade – não são uma exclusividade desse conteúdo escolar. Antes, fazem parte de um cabedal de objetivos educacionais atualmente almejados em documentos como a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a), tendo em vista a formação cidadã do alunado.

Conclui-se, portanto, que o desenvolvimento curricular, metodológico e dos objetivos do Ensino Religioso escolar não representam interesses apenas desta área de conhecimento. Antes, cooperam através de suas singularidades com o projeto educativo como um todo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, o Ensino Religioso escolar encontra-se em um período de franco desenvolvimento epistemológico, curricular, didático e metodológico. Este desenvolvimento, em geral, coaduna com os objetivos educacionais pós-redemocratização, que primam pela liberdade, democracia e valorização da diversidade.

Essa perspectiva para o Ensino Religioso foi particularmente fortalecida com a promulgação da Base Nacional Comum Curricular, que pretende orientar os conteúdos curriculares em todas as redes de ensino do país. Além disso, a implementação em nível nacional da Licenciatura em Ciências da Religião, curso específico para formação de docentes desta área do conhecimento, propicia certa unidade no discurso e práticas desses profissionais.

As conquistas epistemológicas e curriculares alcançadas pelo Ensino Religioso como área de conhecimento serão ainda mais significativas com o investimento em pesquisa e publicação de materiais que constituam um aporte teórico e metodológico tanto para os profissionais em formação, quanto para aqueles que já se encontram em exercício.

Embora Comênio possa ser considerado o primeiro pensador da modernidade pedagógica, sua contribuição à educação permanece atual, permitindo reflexões a profissionais que atuam em um contexto escolar inimaginável àquele tempo. Torna-se necessário ressaltar que este trabalho consiste apenas em uma interpretação possível da obra de Comênio, aplicada à realidade da educação brasileira e do Ensino Religioso escolar. Muitas outras leituras podem ser alcançadas através da mesma obra, possibilitando contribuições ainda mais valorosas. Assim, espera-se que este artigo se constitua em um aporte didático e metodológico para o conteúdo, dentre os já existentes e os muitos que deverão ser criados.

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