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FÉ INABALÁVEL E RAZÃO: o significado de religião para Allan Kardec
UNSHAKABLE BELIEF AND REASON: the meaning of religion to Allan Kardec
FÉ INABALÁVEL E RAZÃO: o significado de religião para Allan Kardec
Interações, vol. 14, núm. 25, 2019
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Recepção: 09 Agosto 2018
Aprovação: 09 Maio 2019
Resumo: Mais de 150 anos depois da codificação da doutrina espírita, ainda são frequentes os debates entre os seus fiéis a respeito do aspecto religioso do Espiritismo. A doutrina, codificada por Allan Kardec no século XIX, surgiu em meio a uma profusão de novas teorias e concepções científicas e filosóficas, tendo sido fortemente marcada pelo legado iluminista e pelos pensadores de sua época. O objetivo deste artigo é estabelecer um diálogo entre o conceito de Kardec sobre religião e alguns autores, tais como Benson Saler, Clifford Geertz, dentre outros. Para isto, num primeiro momento, discutiremos as origens do termo “religião” e seu conceito. Procuraremos entender, por meio de pesquisa bibliográfica, o porquê de Kardec ter afirmado que o Espiritismo não era uma religião, bem como investigaremos a sua perspectiva secular. Concluiremos com a maneira pela qual Kardec posicionava o Espiritismo em termos de Religião.
Palavras-chave: Allan Kardec, Espiritismo, Conceito de Religião.
Abstract: More than 150 years after the codification of the Spiritist doctrine, the debates among its faithful about the religious aspect of Spiritism are still frequent. The doctrine, codified by Allan Kardec in the 19th century, came amid a profusion of new scientific and philosophical theories and conceptions, having been strongly marked by the Enlightened legacy and thinkers of his day. The purpose of this article is to establish a dialogue between the concept of Kardec about religion and of some authors, such as Benson Saler, Clifford Geertz, among others. For this, in a first moment, we will discuss the origins of the term "religion" and its concept. We will try to understand, through a bibliographical research, the reason why Kardec affirmed that Spiritism was not a religion, as well as investigate its secular perspective. We will conclude with the way in which Kardec placed Spiritism in terms of Religion.
Keywords: Allan Kardec, Spiritism, Concept of Religion.
1 INTRODUÇÃO
A partir dos fenômenos de 1848, vivenciados pelas irmãs Fox em Hydesville, nos Estados Unidos[1], o Espiritismo tornou-se uma fonte que prometia oferecer respostas para uma série de questões da Ciência, da Filosofia e da Religião. O fenômeno das mesas girantes[2] tornou-se uma febre na Europa e servia como diversão nos salões da alta sociedade. Diversos observadores se dedicaram aos experimentos e esperavam obter uma fundamentação científica para tais fenômenos, o que significava, em meados do século XIX, encontrar uma prova irrefutável para a sobrevivência do espírito após a morte. (ARAUJO, 2010, p. 119)
Entre os observadores vamos encontrar Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), eminente pedagogo francês discípulo de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que se tornou muito conhecido por seu pseudônimo de Allan Kardec, nome que adotou quando publicou “O Livro dos Espíritos”, a obra basilar do Espiritismo. Esse livro traz, logo na contracapa, a declaração de que o mesmo se trata de filosofia espiritualista (KARDEC, 2008, p. 3), algo sobre o qual os seus adeptos não têm dúvidas. Apesar disso, porém, hoje a terceira maior religião brasileira (IBGE, 2010), com 3,8 milhões de seguidores, se debate com uma questão de identidade no que tange ao seu aspecto religioso. Um grande número de adeptos tem questionado se o Espiritismo é ou não uma religião, a ponto de existirem movimentos não reconhecidos pelos órgãos unificadores do Espiritismo[3], como o chamado espiritismo-científico ou filosófico-científico (CHAVES, 2013). Um dos pontos centrais dessa discussão é decorrente da afirmação de Kardec, que diz que o Espiritismo não é religião:
O Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, como qualquer filosofia espiritualista; por isso mesmo, vai ter forçosamente as bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote. (KARDEC, 2016, p. 232).
Não obstante Kardec tenha dito que a doutrina espírita não fosse uma religião, ele acreditava, como veremos mais à frente, que a mesma deveria servir como elemento aglutinante às diversas religiões. Mas disse também, anos depois da publicação de “O Livro dos Espíritos”, em seu discurso em reunião pública, na noite de 1° de novembro de 1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que "O Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto.[4]" (KARDEC, [1868] [5]/(2007c), p. 491).
Quando iniciamos as nossas pesquisas sobre o Espiritismo, havia um desejo particular de identificar um “conceito de religião” que pudesse harmonizar-se de forma clara com o Espiritismo e, assim, oferecer um possível “alento” a essa discussão, que por tanto tempo tem se desenvolvido no meio espírita em relação ao seu aspecto religioso. Porém, essa busca confrontou-se logo em seus primeiros passos, a partir da afirmação de Benson Saler:
Como indica a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. (Alguns acadêmicos, de fato, propuseram rótulos como "quase-religiões" ou "semi-religiões" para indicar que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma forma, mas não o suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de "religião".) Além disso, algumas religiões apresentam um volume maior de características típicas às quais associamos no nosso modelo geral de religião do que outras, e talvez uma maior elaboração dessas características do que é o caso em outros lugares. Algumas religiões, por assim dizer, são "mais religiosas" do que outras. (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa).[6]
As afirmações de Saler nos levaram a constatações com significados inquietantes; primeiro, não há uma definição clara e universalmente aceita sobre o conceito de religião; segundo, há margens de discussão importantes para o assunto, as quais vislumbram a necessidade de compreender melhor o conceito de religião. Ao afirmar que possam existir religiões que são mais ou menos religiosas do que outras, Saler abre um leque para incluir o Espiritismo como uma religião, e de fato tem sido tratada como tal, conforme já afirmamos anteriormente, devido à maioria dos Espíritas, como demonstra o censo do IBGE de 2010. Apesar disso, existem discussões teológicas entre os seus seguidores que têm dificuldades de assumir essa postura de religião constituída, a partir das definições de Kardec, que não deixam clara a questão.
Com vistas a colaborar com essa discussão, este artigo tem a intenção de oferecer um referencial teórico, metodologicamente distanciado das paixões que envolvem aqueles que se dedicam à discussão do aspecto “religioso” do Espiritismo, de forma a fornecer reflexões a respeito do ambiente histórico em que essa doutrina foi cunhada. Para tentar compreender a questão, pretendemos, portanto, estabelecer um breve diálogo com os pensamentos de Kardec acerca do conceito de religião. É importante frisar, porém, que este diálogo será estabelecido em relação à época e também levando-se em consideração como a cultura[7] influenciou o seu pensamento e o de seus contemporâneos. Falamos aqui de cultura, porque foi a partir de um modismo extremamente popular, denominado “as mesas girantes”, que surgiu o Espiritismo (KARDEC, 1987, p. 68).
2 RELEGERE OU RELIGARE?
Para compreender o conceito de religião ao qual abraçou Kardec, temos que avaliar algumas questões de cultura e conceito. O termo religio, antes de pertencer ao domínio específico do religioso, esteve presente no cotidiano de Roma e foi empregado tanto nos cultos romanos quanto nos cultos da religião cristã. O termo em questão navegou entre duas etimologias possíveis, uma de origem cristã e outra romana, e a pergunta é: como podem dois princípios tão diferentes terem designado coisas tão distintas? Dubuisson explica que a palavra religio “só podia ser o sentido primeiro e muito especializado de uma palavra latina antes ordinária e que permaneceu assim até que os primeiros pensadores cristãos se apoderaram dela e favoreceram seu excepcional destino.” (DUBUISSON, 1998, p. 41).
O significado inicial romano de religio tinha um sentido de escrúpulo em relação ao culto, de um preciosismo em relação aos atos exteriores de adoração, aos quais os Romanos se orgulhavam grandemente, inclusive se autoproclamando, dentre todos os povos, o mais religioso:
Quando Cícero fala da religião romana, o conceito de religio que utiliza tem como origem etimológica o termo relegere que deixa transparecer a “atenção escrupulosa, o respeito, a paciência, inclusive o pudor e ou a piedade”. A prática religiosa romana está associada ao zelo, a uma relação respeitosa com os deuses que torna necessária a repetição precisa dos ritos. Com isso, a realização correta dos rituais ganha extrema importância já que é a maneira de estar em contato direto com a divindade. (AZEVEDO, 2010, p. 91).
Segundo esse conceito, é necessário que se empreenda uma escuta escrupulosa, tenaz e atenta ao que dizem os deuses, de forma que se escute aquilo que eles têm a dizer, o que justifica o uso dos oráculos pelos Romanos. Portanto, negligere, neste caso, era exatamente o contrário de religio, ou seja, não escutar o que os deuses diziam era negligenciar a divindade (AZEVEDO, 2010, p. 92). Cabe aqui uma observação: já que em nosso trabalho estamos falando de Espiritismo, a consulta aos espíritos por meio dos médiuns (que são os oráculos modernos) poderia levar a uma associação do Espiritismo, em uma primeira análise, ao relegere; no entanto, não é assim. A interpretação de que os espíritos que se manifestavam pelos oráculos eram deuses foi um equívoco que levou a religião ao erro; Kardec afirma que “do mesmo modo que o sabeísmo[8] nasceu da astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo. Hoje, graças às luzes do Cristianismo, podemos julgá-lo com mais critério.” (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 206-208).
O significado de “religião”, com o sentido de “relegere”, ou seja, de escrúpulo em relação ao culto, passou por transformações e não se alinhou com o sentido com o qual o cristianismo se apresentava no século XIX. Segundo Bouillard, o significado de de “religio” não poderia designar aquilo que foi tido como “a verdadeira” religião, pois que era necessário encontrar outro termo que pudesse corresponder à fé cristã. (AZEVEDO, 2010, p. 92).
Assim, uma nova compreensão para o termo surgiu através da imposição de diferenças e de exclusões. Segundo Dubuisson, a religião enquanto domínio radicalmente separado e diferente daquilo que a cerca é uma criação exclusiva e original dos primeiros pensadores cristãos de língua latina como Lactâncio, Tertuliano e Santo Agostinho. Ao se criar um domínio específico para a religião, surge também o espaço do não religioso, do profano: “a diferença e a superioridade que ela [religião] reivindicava para si mesma enquanto religião verdadeira reservada ao Deus verdadeiro [...] fazia apelo à necessidade do mundo profano”. Nesse mesmo sentido, Benveniste afirma que só se poderia conceber claramente a religião a partir do momento em que ela é delimitada, quando ela ganha um domínio distinto, onde pode-se saber o que lhe pertence e o que lhe é estranho. (AZEVEDO, 2010, p. 92).
Diante disso, era necessário estabelecer uma origem etimológica própria para o religio-relegere, considerando que essa se referenciava às práticas exteriores e não à “verdadeira” religião que se dirigia ao “verdadeiro” Deus, a divindade única, já que o sentido era de estabelecer a ligação do ser humano com Deus, o religare como propõe Lactâncio. No primeiro conceito, segundo Lactâncio, no religio-relegere de culto aos deuses, o indivíduo está separado dos mesmos porque não se busca a sabedoria, porque aqui não há preocupação com a moral, e sim apenas uma preocupação com o rito exterior. Para ele, ainda mesmo a filosofia não alcança a Deus, pois não se encontra com a piedade, já que só o Cristianismo seria a verdadeira filosofia: “a verdadeira sabedoria para os pensadores, a verdadeira religião para os ignorantes.” (LACTÂNCIO, apud AZEVEDO, 2010, p. 93). Dessa forma, a verdadeira religião consistiria no laço de piedade que nos une a Deus, e aos homens caberia servir e obedecer ao Deus único e verdadeiro.
Entendemos que embora Kardec não tenha deixado uma relação explícita com Lactâncio, os aspectos morais do Espiritismo guardam correspondência a esse pensamento quando escreve que:
Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não o de uma religião, e a prova disso é que conta, entre seus aderentes, homens de todas as crenças, e que nem por isso renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, exceto materialistas e ateus, porque essas idéias são incompatíveis com as observações espíritas. O Espiritismo, pois, repousa sobre princípios gerais, independentes de toda questão dogmática. É verdade que tem conseqüências morais, como todas as ciências filosóficas. Essas conseqüências são no sentido do Cristianismo, porque, de todas as doutrinas, o Cristianismo é a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira essência. (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 205, grifo nosso).
No texto acima, Kardec não só reafirma a sua posição de independência de pensamento em relação à religião oficial, como ainda marca sua posição de uma perspectiva secular[9], quando diz que os homens podem procurar suas crenças com liberdade. Estabelece também com clareza que entende o Cristianismo como sendo a sua referência maior de moral e religião. Ele complementa ainda, dizendo que o Espiritismo não é religião porque não possui cultos, templos, ritos ou ministros:
O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus ministros. Sem dúvida cada um pode fazer uma religião de suas opiniões e interpretar à vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja há uma grande distância e creio que seria imprudência seguir tal idéia. (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 206).
Com essas afirmações, é possível identificar que Kardec faz, sem sombra de dúvidas, um contraponto do Espiritismo com as religiões mais influentes de sua época, particularmente o Cristianismo, mas não se afasta do seu conceito particular de que religião se alinha ao religare de Lactâncio. Apesar disso, traz uma perspectiva secularizada do entendimento de religião, o qual aprofundaremos mais à frente, e separa esse conceito da instituição, ao falar da constituição de “nova Igreja”. Observe-se que ele não fala em Igreja Católica ou Igreja Protestante, mas em Cristianismo (com “C” maiúsculo), englobando, segundo o nosso ponto de vista, as duas vertentes religiosas como famílias de religião, já que o mesmo foi educado em instituição protestante em Yverdon, na Suíça, no Instituto Pestalozzi, tendo sido católico de batismo. Para ele, o Espiritismo não é, pois, religião, porque o Cristianismo é “A Religião” e que tem seus fundamentos nas questões morais (religare) e não de forma exterior (relegere); e o Espiritismo, como não possui as mesmas características, não poderia ser tratado da mesma forma.
Nos textos de Kardec acima, fica então evidenciada a preocupação com consequências morais e uma desvinculação com o culto exterior e com os ritos, o que deixa bem claro o alinhamento de Kardec com o religare, e não com o relegere.
3 A PERSPECTIVA SECULARIZADA DE KARDEC SOBRE A RELIGIÃO
O Iluminismo, segundo a ótica de seus defensores, foi um conjunto de eventos que instauraram a permissão à humanidade de pensar sobre Deus, sobre o universo e tudo ao seu redor. Para os iluministas, o ser humano não mais estaria submetido às estruturas sagradas das instituições religiosas, pois elas não poderiam mais se proclamar guardiãs das verdades do mundo. Pensadores dos mais diversos matizes surgiram, desvendando realidades no campo da ciência e da cultura:
Em 1784 Kant publicou um pequeno panfleto intitulado O que é o Iluminismo? Trata-se de uma descrição do novo homem que ele julgava ver nascer. Livre da tutelagem de forças externas a ele mesmo, não mais submisso a qualquer poder heteronômico, este novo homem anuncia a sua bandeira: “Sapere aude! Ousa Saber. Tem coragem de usar sua razão”. Abre-se um mundo novo como permissão e convite. Nasce o homem livre e com coragem para conhecer e dominar tal mundo. Transformação fundamental. De santo a cientista. (ALVES, 1984, p. 67).
Alguns pensadores à luz de uma perspectiva secular, como Hegel (1770-1831), Heinrich Heine (1797-1856) e Nietzsche (1844-1900) suscitaram a morte de Deus, num mundo onde haveria a prevalência tão somente da existência do ser humano e a realidade científica à sua volta. O mundo intelectual não mais escutaria aos argumentos teológicos da existência de Deus. Ao contrário do que se acreditou por um tempo, o pensamento secularizante não matou Deus, e sim deu a possibilidade de fazer as perguntas essenciais de forma diferente:
Pode o cientista como cientista levantar a pergunta acerca de Deus? Não implicaria esta pergunta que ele já rompeu com a ortodoxia da ciência? A morte de Deus, assim, se apresenta como um silêncio túrgido de significações antropológicas e sociais. Vivemos em uma época que proibiu o mistério [...]. Porque o grande dogma do mundo que se chama científico é que a realidade é auto-explicativa e que a razão dispõe dos instrumentos para decifrar o enigma que lhe é proposto. Talvez que, ao invés de falar da morte de Deus, seria mais correto falar do “eclipse de Deus”, como Martin Buber sugere. (ALVES, 1984, p. 61).
E é nessa linha de raciocínio que vamos encontrar Kardec questionando os princípios da vida, indagando de onde viemos e para onde vamos, como todos os pensadores de sua época:
Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma, toda uma revolução nas idéias e nas crenças; fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspeção e não levianamente; ser positivista e não idealista, para não me deixar iludir. (KARDEC, 2016, p. 240, grifo nosso).
Na citação acima, Kardec se refere aos seus estudos sobre o que chamou de fenômenos espíritas. Nessa passagem é possível perceber que o seu pensamento, se não era claramente científico, era com certeza filosófico, já que ele não estava em busca de uma explicação religiosa para as situações que ele vivenciara. Fica claro o pensamento secularizante no trecho grifado, pois o princípio que outrora tratava apenas da separação do Estado e da Igreja, agora atingia o indivíduo, que se permitia investigar aquilo que tinha sido tratado no passado por mistérios que pertenciam tão somente ao domínio da Igreja, e Kardec não estava sozinho nisso.
Contudo, ainda aqui a linha de separação entre o que é religioso e o que é filosófico é extremamente tênue. “Desde que a filosofia nasceu, a religião tornou-se um tema seu. Com efeito, a maior parte das questões a que os filósofos tentaram responder [...], foram antes temas de narrativas mitológicas, de celebrações culturais e sentenças da sabedoria religiosa.” (SCHAEFFLER, 1992, p. 13).
Augusto César Dias de Araújo, doutor em Ciência da Religião pela UFJF, defende que há no Espiritismo um caráter polissêmico, quando navega entre a Filosofia, a Ciência e a Religião. Em seu artigo datado de fevereiro de 2010, Araújo afirma que o Espiritismo tratar-se-ia de um híbrido. Em seus estudos, ele afirma que Kardec posiciona o Espiritismo numa posição de ponte entre a Filosofia, a Ciência e a Religião:
Como se viu, em suas relações com a ciência, a filosofia e a religião, o espiritismo se coloca como um entre-lugar – um espaço de encontro e reapropriação. A partir daí, forja uma identidade híbrida, marcada pelo signo da mediação. Ou seja, para Kardec, o espiritismo aponta para algo além, para o pós-ciência, pós-filosofia e pós-religião. [...] no espiritismo, [...] encontra-se um tipo bem-acabado de movimento religioso de fronteira, que tende a transitar entre representações ambíguas e cuja configuração híbrida indica uma dupla tendência. Por um lado, pode-se dizer que há um esforço de Kardec no sentido de secularizar a religião ao aproximá-la de conceitos como ciência e filosofia – esta última não mais compreendida como serva da teologia, mas, em certo sentido, como instrumento de validação racional da religião –, já que, aliada à noção de método experimental, a filosofia espírita pretende dar à religião – e religião cristã – a prova definitiva de seus postulados básicos. Por outro lado, Kardec parece querer propor que a ciência amplie seus horizontes e passe a considerar o antigo objeto da religião (Deus, alma e vida futura) como parte dos fenômenos naturais a serem investigados. (ARAUJO, 2010, p. 132).
No ano seguinte à publicação da obra basilar do Espiritismo, Kardec fundou, em 01 de janeiro de 1858, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que se tratava de uma associação civil dedicada ao estudo dos fenômenos espíritas, o que aponta para um movimento de desvinculação com as instituições tradicionais, já que não tinha nenhum vínculo nem com Estado, nem com a Igreja. A sociedade fundada por Kardec podia figurar-se como um dos exemplos do fenômeno da secularização, um dos diversos embriões da sociedade pós-cristã, que era novidade àquele tempo, mas que é comum na sociedade secular Europeia nos dias de hoje, possuindo as mesmas características que nos relata Jean Paul Willaime:
A passagem da religião por herança à religião por escolha significa, para o cristianismo na Europa, o fim da “cristianitude”, ou seja, o fim do cristianismo como cultura englobante da sociedade, mesmo sob forma secularizada, e a evolução na direção de um cristianismo como subcultura particular numa sociedade global. Não é, pois, apenas a separação do político e do religioso [...], é também a separação da cultura global e da religião. É neste sentido forte que se pode falar de sociedades pós-cristãs. Individualização, abandono institucional e atomização, de uma parte; buscas identitárias e afirmações comunitárias, de outra. A mundialização e a desterritorialização do religioso acarretam sua reconfiguração como subculturas e como comunidades-redes nas sociedades secularizadas e pluralistas. Doravante, as religiões constituem subculturas que oferecem um sentido a seus membros, permitindo a eles se orientarem numa sociedade pluralista, em grupos de referência, em recintos de convicção que os indivíduos escolhem individualmente. O religioso não é mais o dossel sagrado das sociedades, os guarda-chuvas sagrados de que Christian Smith fala ou, antes, o que poderíamos qualificar de “capiteis sagrados” ou “tendas sagradas”, para melhor assinalar a um só tempo o caráter comunitário e individual dessas subculturas religiosas nas sociedades pluralistas. (WILLAIME, 2007, p. 04).
Como diz Willaime, não há mais “uma cultura englobante” que determina a forma de pensar Deus; não havia uma forma única de pensar, e não existia para Kardec e seus adeptos uma atitude de radicalização de pensamento, como a ideia de Deus estar morto ou o pensamento de o indivíduo estar submetido à Igreja. Allan Kardec e seus colegas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas pensavam livremente e não se intitulavam ateus; ao contrário, entendiam que os estudos do Espiritismo fortaleceriam suas crenças individuais, pois não acreditavam, pelo menos naquele momento, que seu pensamento se caracterizava como religioso. O pensamento secularizado de Kardec fica mais fortemente estabelecido em suas palavras, quando diz que:
Visando a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião. Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem; quem não sabia o que era orar, ora com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular. Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas pela sua consciência [...] (KARDEC, [1862]/(2007b), p. 62-63, grifo nosso).
A citação acima traz diversas questões que julgamos relevantes e dentre elas destacamos as frases: “a maioria de vós, que mal acreditáveis em Deus e na alma, agora creem” e “Deixa a cada um a liberdade de adorar a Deus à sua maneira”. Essas afirmações trazem embutidas em si pelo menos dois significados relevantes: no primeiro, Kardec aceita a existência de Deus e da alma, e acredita que cada indivíduo tem a liberdade de “orar” ou “cultuar” a divindade como queira. Também deixa claro que não é contra a religião e que acredita que o conhecimento do Espiritismo pode, na verdade, fortalecer a crença do indivíduo em sua crença particular. Para Kardec, isso se dá na medida em que o que estava oculto no passado vem à tona com o Espiritismo, pelos liames da razão.
Ao dizer que “não aconselha a ninguém que mude de religião” e que cada um pode “adorar a Deus à sua maneira”, percebemos ainda que Kardec alimentava em si a ideia de que não havia uma só religião e que cada um poderia escolher a sua. Além disso, acreditava que os fatos que ele pesquisava iriam trazer elementos palpáveis do mundo metafísico e que não seria papel do Espiritismo lidar com essa relação do ponto de vista teológico, já que a religião se ocupava de tal função. Apesar de dar crédito às religiões, Kardec tinha um conceito particular a respeito do Cristianismo, como já falamos. Outra questão, que é mais importante por sinal, é que ele põe a religião e o Espiritismo em “lugares” separados e não conflitantes, sendo, porém, complementares. Com essas afirmações, Kardec faz a compatibilização de algo que o antropólogo Clifford Geertz (1978) anos mais tarde diria não ser possível “A Perspectiva Religiosa” e a “Perspectiva Científica”.
Geertz define “perspectiva” “como um modo de ver, no sentido mais amplo de ‘ver’ como significado ‘discernir’, ‘aprender’, ‘compreender’, ‘entender’. É uma forma particular de olhar a vida, uma maneira particular de construir o mundo” (GEERTZ, 1978, p. 81). Kardec tinha sua própria perspectiva, a qual não era propriamente religiosa, podendo se dizer que era filosófica, mas que não descartava a “perspectiva religiosa”. Na perspectiva de Kardec, a autoridade do Espiritismo advém da lógica e da observação dos fatos pela razão, devendo a razão rejeitar tudo que esteja em “contradição manifesta com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos que possuímos, por mais respeitável que seja o nome que a assine, devendo ser rejeitada.” (KARDEC, 2013, p. 17).
Como já deixamos claro anteriormente, não há critérios bem definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. Apesar disso, temos que partir de algum ponto e, por essa razão tomamos a definição antropológica de Geertz para compreender alguns pontos de vista de Kardec, sem com isso definitivamente esgotarmos o assunto:
[...] uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 1978, p. 67).
Tentando estabelecer um exercício de diálogo entre os pensamentos de Kardec e Geertz, destacaríamos dois pontos importantes: em primeiro lugar, Kardec concorda com a primeira e a segunda parte da afirmação antropológica de Geertz, a qual estabelece que os símbolos e rituais são a motivação central das religiões; que as mesmas não sobrevivem sem os seus símbolos e rituais (GEERTZ, 1978, p. 71-73), e inclusive, por isto, entende que o Espiritismo não é religião quando afirma que “não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote. ” (KARDEC, 2016, p. 232).
Por outro lado, Kardec não tem o mesmo entendimento de Geertz (1978, p. 80) quando este detalha a terceira e quarta parte de sua definição, afirmando que a crença religiosa não envolve uma indução baconiana da experiência cotidiana baseada numa autoridade estabelecida previamente. É exatamente nesse ponto que Kardec apresenta a possibilidade de uma “perspectiva científica[10]” na relação com o metafísico, apostando na existência da alma, baseada numa autoridade racional e empírica, e na observação de “provas positivas”, como discorre Mircea Eliade sobre o Espiritismo:
Os fenômenos espiritistas[11] são conhecidos desde os tempos antigos e têm sido diferentemente interpretados por várias culturas e religiões. Mas o elemento novo e importante no espiritismo moderno é a sua perspectiva materialista. Antes do mais, existem agora “provas positivas” da existência da alma, ou antes, da existência post-mortem de uma alma: pancadas, inclinações da mesa e, algum tempo depois, as chamadas materializações.” (ELIADE, 1989, p. 61, grifo nosso).
A “perspectiva cientifica” proposta por Kardec, ao contrário do que Geertz (1978, p. 82) apregoa, afirma que o Espiritismo pode enfrentar os fatos seculares sem receios, sem que se torne violável pelas revelações discordantes ou sem “fatualidade” e, ao contrário, Kardec afirma ser plenamente falseável, chegando a afirmar que a fé tem que ser objeto da razão, dizendo que: “Fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade ” (KARDEC, 2016, p. 232). É por tal “perspectiva científica” que ele vai afirmar, como já dissemos acima, que o Espiritismo não é religião, pois declara formalmente que a mesma prescinde de toda forma ritual na sua prática.
Para a formulação de conceitos, ao contrário do que Geertz afirma no tópico 3 de sua definição, Kardec lançou mão do método de experimentação de Francis Bacon (1561-1626), o qual previa que a formação das leis deveria passar pelo crivo das situações empíricas propostas, numa lógica sequencial de formulação de hipóteses e validação da sua consistência. A isso, Bacon definiu como sendo experimentação. Essa forma de atuação ocupou um lugar privilegiado na proposição de uma metodologia científica, que se pautava pela racionalização de procedimentos e que foi caracterizada como a indução e a dedução.
O método da indução defendido por Bacon é o processo de formular enunciados a partir de observações e coleta de dados sobre o particular, contextualizado no experimento. Estabelecido um problema, o cientista executa experimentos que o levem observações cuidadosas, coleta de dados, registro e divulgação entre outros membros de sua comunidade, na tentativa de refinar as explicações para os fenômenos subjacentes ao problema em estudo (GIORDAN, 1999, p. 2). Esse método fundamenta a chamada ciência indutivista, que nas palavras de Bacon se resume a:
Só há e só podem haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a seguir, a descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua inamovível verdade. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado. (BACON, 1988, p. 16).
O método científico utilizado por Kardec, portanto, é claramente o “método da experimentação” legado por Francis Bacon, cuja utilização corrobora com “um sentimento profundamente criador, uma confiança absoluta na edificação e na renovação do mundo” (CASSIRER, 1966, p. 195) na Europa, nessa época. Extremamente presente, o evolucionismo herdou do século XVIII esse sentimento de renovação, trazendo em seu bojo o evolucionismo biológico de Darwin (1809-1882), o transformismo de Lamarck (1744-1829), as teorias sociais de Karl Marx (1818-1883) e a revolucionária forma de pensar de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que dentre outros foi colocada em prática por Pestalozzi, mestre de Rivail.
Ao utilizar-se desse método, Kardec tinha a intenção de fugir exatamente do que Geertz propunha como condição para os fenômenos metafísicos: uma “aura de fatualidade” como descreve no tópico quatro; ou seja, a crença no metafísico, ou no religioso, pode sim passar por uma indução baconiana contrariando Geertz.
4 UMA NOVA RELIGIÃO EM PARIS
Apesar de Kardec não ter tido a pretensão de criar uma religião, desde o princípio muitos ao seu redor encaravam o Espiritismo dessa forma, inclusive a Igreja Católica. Em 13 de abril de 1859, o Abade de Chesnel publicou no jornal L’Univers um artigo intitulado “Une religion nouvelle à Paris”, em que o mesmo tratava do Espiritismo como uma religião.
Em resposta, Kardec publicou na Revista Espírita de Maio de 1859 um artigo fazendo questão de esclarecer as atividades e objetivos das reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, deixando claro a sua característica não ritualística e descaracterizando-a como religião:
[...] a denominação Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não se assemelha ao de nenhuma seita; tão diferente é o seu caráter que seu estatuto proíbe tratar de questões religiosas; está classificada na categoria das sociedades científicas, porque, com efeito, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos que resultam das relações entre os mundos visível e invisível; tem seu presidente, seu secretário e seu tesoureiro, como todas as sociedades; não convida o público às suas sessões; ali não se faz nenhum discurso, nem coisa alguma que tenha o caráter de um culto qualquer. Conduz os seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiro porque é uma condição necessária para as observações e, segundo, porque sabe que devem ser respeitados aqueles que não vivem mais na Terra. Ela os chama em nome de Deus porque crê em Deus, em sua Onipotência e sabe que nada se faz neste mundo sem a sua permissão. Abre as sessões com um apelo geral aos Espíritos bons, uma vez que, sabendo que os há bons e maus, cuida para que estes últimos não venham se misturar fraudulentamente nas comunicações que recebe e induzi-la em erro. O que prova isso? Que não somos ateus; mas de modo algum implica que sejamos partidários de uma religião. (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 206).
Aqui há de se pontuar que ele havia dito que o Espiritismo “não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos, e que, entre seus adeptos reais, nenhum tomou o título de sacerdote ou de sumo sacerdote” (KARDEC, 2016, p. 232). Até aqui temos que ponderar que “cultos” e “ritos”, para Kardec, se encaixam no que Geertz classifica como ritual:
[...] ritual – isto é, [...] comportamento consagrado – que se origina, de alguma forma, essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas. É em alguma espécie de forma cerimonial – ainda que essa forma nada mais seja que a recitação de um mito, a consulta a um oráculo ou a decoração de um túmulo. (GEERTZ, 1978, p. 82).
Outra questão relevante é que o mesmo já havia demonstrado no passado a sua intenção de trazer esclarecimentos que pudessem acabar com as disputas religiosas e suas dissenções:
Nascido na religião católica, mas estudando em um país protestante, os atos de intolerância a que foi submetido por este motivo lhe fizeram conceber desde a idade de 15 anos, a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante longos anos, com a intenção de chegar à unificação das crenças. Contudo, faltava-lhe o elemento indispensável para a solução deste grande problema. O espiritismo, mais tarde, veio fornecer-lhe e imprimir uma direção especial a seus trabalhos. (LACHÂTRE, 1867, p. 199).
Kardec teve sua formação como pedagogo no famoso Instituto de Pestalozzi em Yverdon, na Suíça. Esse instituto, apesar de ter em seu quadro professores luteranos e calvinistas, procurava manter-se distante das querelas e paixões religiosas. Dava à Bíblia valor relativo e não demonstrava fervor às lições de catecismo (WANTUIL, 1984, p. 69). Aliás, enquanto discípulo de Jean Jacques Rousseau, acreditava em
[...] uma religião natural, emancipada de rituais, hierarquias e dogmas. Princípios universais, imanentes à natureza humana, como a crença em Deus, na imortalidade da alma, na prática do bem constituiriam o fundamento de uma religião sem nome, individual, e muito mais orientada para a ética do que para o culto. (INCONTRI, 2001, p. 71).
Tais pensamentos, por sua vez, são facilmente encontrados nas obras do Professor Rivail, bem como na sua obra como Allan Kardec.
Por conta da postura em relação ao ensino da religião, o Instituto de Pestalozzi sofreu diversos ataques externos e internos. Mais de uma vez teve que rebater, por meio da imprensa, imputações inverídicas a respeito do ensino religioso no instituto. Internamente teve embates de cunho religioso com seu administrador Johannes Niederer, que chegou a fazer declarações embaraçosas junto aos seus alunos, particularmente nas comemorações do Pentecostes de 1817, como registra a história do instituto. A maneira de pensar aceitando o cristianismo, mas rejeitando os dogmas e as suas formas, foi citada por mais de um de seus biógrafos, como James Guillaume (1844-1916) e Gabriel Compayré (1843-1913). Compayré disse: “Não lhe perdoavam por contentar-se com uma religião natural, com um deísmo filosófico à Rousseau, com um cristianismo racionalista.” (WANTUIL, 1984, p. 70).
Na contramão do método pestalozziano, Rivail viu o nascimento de uma vivificação da fé protestante, denominada “réveil” e que pregava uma teologia estreita e opressiva, a qual pretendia anular o livre arbítrio e a tentativa do ser humano de trabalhar a sua própria santificação. Os adeptos deste movimento, o “réveil”, chegaram a afirmar que Pestalozzi não era verdadeiro cristão e tentaram, a todo custo, impor ao fundador do instituto sua forma de pensar acerca do seu método de ensino religioso. (WANTUIL, 1984, p. 70).
Kardec demonstra seu incômodo com as disputas religiosas da seguinte forma:
[...] se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta de habilidade, porquanto seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro. O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em particular. (KARDEC, [1862]/(2007b), p. 62 e 63).
Na citação acima fica clara a necessidade de Kardec de trazer, portanto, uma harmonização entre os sentimentos religiosos, e evidencia que não era, então, sua intenção instituir uma nova religião.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Discutir o aspecto religioso do Espiritismo não é tarefa fácil, aliás trabalhar com o conceito de religião também não o é. De um lado, a indefinição sobre o aspecto religioso do Espiritismo em meio a uma disputa de ideias que perfazem mais de um século e meio, do outro, a dificuldade de tratar o conceito de religião. Como se viu, os limites estabelecidos para dizer o que é ou não religião passam por um vasto leque de concepções, navegando entre duas etimologias possíveis, o relegere e o religare; uma de origem romana, voltada para a adoração de diversos deuses, e a outra reconceituada como cristã. A religião não fica, porém, somente entre essas duas concepções, passando por outros pensamentos que poderiam se dizer intermédios ou, como disse Benson Saler, com “características típicas às quais associamos no nosso modelo geral de religião do que outras”, estabelecendo lugares mais ou menos “religiosos” (SALER, 2000, p. xiv). Praticamente todos esses conceitos podem ser englobados na afirmação de Geertz, de que todas as religiões se revestem de uma aura de fatualidade, dada por rituais que seriam, segundo ele, sua motivação central. (GEERTZ, 1978, p. 67).
No século XIX, para a maioria dos Europeus[12], isso tudo parecia correto e acertado, bastando apenas situar as religiões entre o relegere ou o religare. Quando se destacam os fenômenos espiritistas com os eventos de Hydesville e as mesas girantes na França, analisadas por Kardec, uma nova visão veio à tona, considerando a existência de “provas positivas da existência da alma, ou antes, da existência post-mortem de uma alma”, como afirma Eliade. (ELIADE, 1989, p. 61).
Allan Kardec, pois, surge com uma perspectiva científica baconiana e principalmente secular do que, até aquele momento, era apenas do domínio das religiões ditas tradicionais. O pedagogo francês propõe, em meio às revoluções do pensamento moderno do iluminismo, que o metafísico, outrora assunto das religiões ou da Filosofia, passe a ser assunto da Ciência, ou pelo menos da razão. A “fé inabalável é somente a que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.” (KARDEC, 2016, p. 232).
Procuramos neste artigo, portanto, demonstrar a visão Kardeciana[13] a respeito da religião, de forma a contribuir com o meio acadêmico e o próprio meio espírita, que “sofre” com as diferentes correntes de pensamento dentro de seu próprio universo.
O próprio posicionamento de Kardec, porém, evoluiu com o tempo e passou por uma fase que foi nomeada por ele próprio como um período religioso (ARAÚJO, 2014, p. 218), particularmente quando publicou “O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Segundo Araújo, as afirmações de Kardec com o tempo passaram por modificações, inclusive chegando a afirmar que o Espiritismo era, a seu ver, uma religião, em termos filosóficos. Tal afirmação corrobora com a ideia de Saler, em cuja a definição existem características particulares que permeiam a religião:
A religião, na minha forma de ver, é uma categoria graduada cujas instâncias estão ligadas por semelhanças de família. Além disso, defendo que reconhecemos explicitamente que, para a maioria dos estudiosos ocidentais, os exemplos mais claros da categoria religião, os exemplos mais prototípicos dela, são as famílias de religiões que chamamos de "judaísmo", "cristianismo" e "islamismo". Essas famílias exibem os maiores agrupamentos de características típicas que associamos à religião. E, claro, essas são as religiões que a maioria de nós, quando crianças, identificou pela primeira vez com o termo religião. Bem cedo na vida aprendemos a afastar a religião de outras coisas, embora de forma imperfeita. [...] Como estudiosos, procuramos refinar e aprofundar tais entendimentos de maneira sistemática. Usamos nossos entendimentos, de fato, para buscar no mundo outras religiões. Identificamos várias afirmações verbais e outros comportamentos em sociedades não ocidentais como "religiosas" por analogia com o que encontramos no Ocidente. (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa).[14]
Assim, as religiões seriam compostas de um conjunto de características, das quais cada uma tomaria para si um pequeno subconjunto e, por assim dizer, existiriam áreas periféricas que são “menos comuns” às religiões, tidas como as maiores referências ocidentais de religião. Dessa forma, o hibridismo apontado por Araújo no Espiritismo que seria, segundo ele, um entre-lugar, uma ponte entre a ciência e a filosofia com a religião “tida como referência” (ARAUJO, 2010, p. 132), nada mais é, ao nosso modo de ver, no conceito de Saler, uma área periférica do conjunto de características das religiões apontadas por esse.
Por isso, não obstante tenha dito que a doutrina espírita não é uma religião propriamente constituída e que serviria como elemento aglutinante às diversas religiões (KARDEC, 2016, p. 232), Kardec, anos depois, em seu discurso em reunião pública, na noite de 1° de novembro de 1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, afirma: "O Espiritismo é uma religião e nós nos vangloriamos por isto. " (KARDEC, [1868]/(2007c), p. 491). O que parece de certa forma hora apontar numa direção (Perspectiva Científica), hora em outra (Perspectiva Religiosa).
Retomando a definição de Geertz de religião, Kardec parecia não acreditar que fosse possível, em termos de religião, desvincular “um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens” de uma “formulação de conceitos de uma ordem geral” (GEERTZ, 1978, p. 67) não baconiana. Por essa razão, pelo menos naquele momento Kardec não acreditava que o Espiritismo pudesse ser uma religião, pois os ritos, os símbolos e os sacerdotes seriam características que estariam, segundo seu entendimento, sempre presentes na religião.
Por fim, entendemos que Kardec fez das famílias do Cristianismo (a Igreja Católica e a Igreja Protestante) como suas referências de religião, o que corrobora o pensamento de Saler. Dessa forma, em contraponto, afirmou que o Espiritismo não era uma religião, simplesmente por não possuir, ritos, símbolos ou sacerdotes, o que fica demonstrado como insuficiente. Concluímos que isso se deu por dois motivos: primeiro porque se para ele, de todas as doutrinas, o Cristianismo era a mais esclarecida e a mais pura, não haveria, portanto, razão para criar nova religião, e sim, agregar as “revelações dos espíritos” ao Cristianismo (ou a outras religiões que aceitassem as concepções do Espiritismo); e em segundo lugar, porque o mesmo não tinha a ideia de fundar uma nova religião, mas sim fornecer elementos para fazer “uma reforma religiosa, [...], com a intenção de chegar à unificação das crenças.” (LACHÂTRE, 1867, p. 199). Intenção essa que parece ser cada dia mais inalcançável.
REFERÊNCIAS
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Notas
por todos os Estados Unidos, e posteriormente na Europa, espalhou-se a febre das evocações dos chamados espíritos batedores. (DOYLE, apud ARAUJO, 2010, p. 119).