ARTIGOS
RUTE: como permitiam a sua presença na Bíblia?
RUTE: como permitiam a sua presença na Bíblia?
Interações, vol. 14, núm. 25, 2019
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Recepção: 19 Julho 2018
Aprovação: 18 Janeiro 2019
Resumo: Este artigo aborda o contexto histórico e a força social do livro de Rute como bandeira de defesa do direito dos pobres, dos estrangeiros, das viúvas e mulheres, em confronto e desafio às posições etnocentristas, xenófobas e ideologias de intolerância de gênero de Esdras no pós-exílio. Discutir-se-á a problemática da aceitação do livro de Rute no cânon hebraico bem como a tentativa de atenuar, senão anular, seu ideal igualitário através da inclusão da genealogia sacerdotal no final do mesmo.
Palavras-chave: Força social, Direito dos pobres, Etnocentrismo, Xenofobia.
Abstract: This article discusses the historical context and the social strength of the book of Ruth as a banner of defense of the rights of the poor, foreigners, widows and women, in confrontation and challenge to the ethnocentric, xenophobic and ideological intolerance positions of Ezra in the post-exile period. It will be discussed the acceptance of the book of Ruth in the Hebrew canon as well as the attempt to attenuate, if not to annul, its egalitarian ideal through the inclusion of the sacerdotal genealogy at the end of it.
Keywords: Social force, The rights of the poor, Ethnocentrism, Xenophobia.
1 INTRODUÇÃO
Duas janelas serão abertas para se conhecer a vida do povo de Israel, após o exílio da Babilônia. Elas foram, totalmente, antagônicas.
É preciso olhar a vida social das pessoas, dos grupos e das classes sociais para se entender o fenômeno gritante que se manifestou em Israel do pós-exílio: a questão das relações raciais. Após um tempo significativo (586-538 a.C.), pelo Decreto de Ciro, os descendentes da elite israelita estavam retornando do exílio na Babilônia para a terra de Judá, com força e poder. Era a turma da Golah. Uma grande parte fixou residência em Jerusalém, com o objetivo de reconstruir o Templo e dar força ao novo povo de Israel, agora judeu.
Do outro lado, como nunca fora exilado, morava o “povo da terra” (ham ha’aretz), por todo Israel. O “povo da terra”, sem as repressões da elite, com liberdade, constituiu um tipo de vida dentro das tolerâncias de gênero, de etnias e de religião. Os/as estrangeiros/as conviviam, sem problemas, por quase setenta anos, com os hebreus.
Ao retornarem os descendentes do cativeiro da Babilônia, agora reconhecidos e valorizados pelo novo império persa, subitamente, manifestaram sua estranheza diante dos grupos sociais dos que ficaram e enraizaram a solidariedade étnica. Naquele susto, definiram, imediatamente, os limites e os muros da nova sociedade, não mais hebreia, mas judaica. O termo “judeu” tomou corpo.
O novo grupo, ao retomar os poderes, vendo que as raízes de outra mentalidade do povo da terra se estenderam pelos arredores, resolveu, em nome de Deus, atacar e destruir as experiências autóctones com os étnicos. Surgiu, então, uma ideologia da intolerância contra os estrangeiros, contra o gênero feminino e contra as crianças. Espelharam-se, a partir daí, as profundas desigualdades sociais. Não podia haver mais diversidade. Todos tinham que se alinhar ao pensamento do grupo sacerdotal ligado a Esdras. Começou, para o novo povo judeu, um embate de preconceitos contra o estrangeiro, contra a mulher e, fortemente, contra as crianças daquelas mulheres. Com isso, as desigualdades sociais ficaram explícitas.
A partir do grupo sacerdotal de Esdras e com a força ideológica de Sequenias (Esd 10, 2)[1] explicitaram-se a intolerância, o preconceito, a arrogância e a dominação. Na base do decreto, os “exilados” (Esd 10, 7) e a “assembleia dos exilados” (Esd 10, 8), na voz de Esdras, “separaram” a comunidade exilada dos “povos da terra” (Esd 9, 11; Esd 10, 2-11) e das “mulheres estrangeiras” (Esd 10, 3-11) e, mais duramente, dos “filhos” (Esd 10, 3). Os “povos da terra” eram imundos, aos olhos dos que retornavam do exílio (Esd 9, 11).
Clarearam, também, do outro lado, os tipos de vida dos tolerantes, dos discriminados, dos segregados e dos subordinados (Rute). Se Esdras (Esd 9 e 10) é um texto xenófobo, pedófobo e racista, ao contrário, Rute mostra, exatamente, o oposto para se viver, a partir da comunidade dos pobres.
É, a partir desse jogo de adjetivos, que se pode entender a “questão racial” (IANNI, 2004, p. 21-30) criado pelo universo esdriano contra o “povo da terra”. Segundo Ianni, a questão racial revela como funciona a fábrica da sociedade (IANNI, 2004, p. 21). É esta fábrica da elite esdriana que precisa ser olhada, a partir da dominação e da hierarquização.
Agora, fica a questão: se o livro de Rute foi uma denúncia firme e resistente contra a linha esdriana, como explicar a sua entrada na Bíblia? Esdras entrou na Sagrada Escritura. Evidente! Eles controlavam tudo, principalmente, a ideologia. Escreviam o que queriam, em nome de Deus. Porém, e Rute? Não se pode explicar apenas como “livro inspirado por Deus”. As autoridades esdrianas não suportavam crítica alguma. Deve ter alguma explicação, em nível científico. É o que se procurará responder ao final deste artigo. Uma possível explicação está na genealogia introduzida no final do livro de Rute 4, 18-22, o qual termina com a figura de Davi que só aparecerá, narrativamente, em 1Sm 16 no horizonte da instituição monárquica (sendo ungido pelo profeta Samuel). A tōləḏah (= genealogia) começa com Farés, o primogênito dos gêmeos gerados por Judá e sua nora Tamar (Gn 38). Tamar fez valer o direito do levirato que seu sogro lhe havia negado, não permitindo que ela se casasse com o último de seus filhos. Vestindo-se de prostituta, ela conceberá gêmeos do próprio sogro. No momento do parto, o irmão gêmeo, Zara, parecia ser o primeiro, pondo uma mão para fora, na qual foi amarrado um fio de escarlate. Mas depois, tendo recolhido a mão, o outro irmão, Farés (= brecha), abriu uma brecha e saiu primeiro (Gn 38, 29-30). As questões que se impõem são fundamentalmente duas: o livro de Rute termina com uma genealogia ou esta é um acréscimo posterior? Em tal caso, qual a função dessa genealogia no conjunto do livro? Em nossas considerações finais tentaremos responder a essas questões.
2 PROGRAMAS DE ESDRAS E DE RUTE
Ver-se-ão, neste tópico, dois projetos, absolutamente, antagônicos: o de Esdras, que sintetizou o totalitarismo do poder de quem chegou de fora e se impôs de cima para baixo e o de Rute, um projeto que foi surgindo, de baixo para cima, à medida que as/os pobres iam se unindo na defesa das/os marginalizadas/os.
2.1 O esquema anterior a Esdras
Ciro, em 539 a.C, após derrotar os babilônios, permitiu que os povos dominados retornassem às suas antigas regiões de origem. Assim, os judeus que quisessem poderiam retornar para a região de Jerusalém. A situação da elite exilada se modificou. De exilados, os ex-cativos tornaram-se heróis. Algumas lideranças se destacaram (MESTERS, 1985, p. 23-24):
Zorobabel com cinquenta mil pessoas foram os primeiros (Esd 1-6) a retornar. Ele e Josué iniciam a reconstrução do Templo e o altar (Ag 1, 1-15; Zc 4, 1-6; 10-14; Esd 3, 1-13). Até Ageu e Zacarias são citados no incentivo à reconstrução (Esd 6, 14). O ideal desse plano era que o povo, os sacerdotes e levitas se uniriam na causa comum;
Também o governador Neemias tinha um plano maior que era a reconstrução de Jerusalém. Além disso, quis perdoar as dívidas dos camponeses arruinados em dívidas (Ne 5, 1-19). Ele exigiu que os ricos devolvessem aos pobres as terras roubadas e perdoassem as dívidas acumuladas. Ele deu o exemplo. Procurou, também, reconstituir as famílias e os clãs (Ne 7). Reconstruiu as muralhas de Jerusalém (Ne 2, 11-3; 38). Criou os anos jubilares, atualizando a visão do Levítico e Deuteronômio: a cada cinquenta anos deveriam ser desfeitas todas as compras e vendas de terras. O seu plano, com o tempo, ficou só no registro (FERREIRA, 2011, p. 187).
2.1.1 O esquema de Esdras e o grupo sacerdotal (Esd 9-10): intolerância contra o gênero feminino e contra as crianças[2]
Esdras teve todo apoio dos persas para o retorno. Isso se deu em 458 a.C. Com um mil e setecentas pessoas, o grupo de Esdras veio para Jerusalém, terra dos seus antepassados. Como estava, em nível econômico e político, a serviço do rei da Pérsia, e como era de linhagem sacerdotal e especialista em leis, ele via que o sofrimento dos antepassados recentes era um castigo de Deus. Era preciso haver uma reconciliação em massa por parte de toda aquela gente. Então, com o seu grupo, traçou um programa significativo que marcou, por séculos e séculos, a elite judaica e, especialmente, uma linha sacerdotal poderosa.
Com o demorado exílio, os israelitas (ham há’aretz = povo da terra) se relacionaram com outros povos que ali estavam chegando (moabitas, egípcios, amorreus, edomitas, heteus etc.) e, então, aconteceram vários matrimônios entre israelitas e estrangeiras. Nasceram muitas crianças.
Em Esdras 9 e 10, tem-se todo o programa em torno da “pureza”. Foi um programa que chegou ao ápice com a estruturação do judaísmo. Os repatriados da Babilônia estarão separados, absolutamente, da população local (hebreu-israelitas que não foram exilados e que se misturaram com os estrangeiros). No intuito de salvar a “raça santa” (Esd 9, 2), Jerusalém, as muralhas, o novo Templo, o povo judeu (agora, não mais hebreu), o programa apontou várias tendências discricionárias: “pedofobia” (aversão às crianças), “misoginia” (ódio ou aversão às mulheres), “xenofobia” (aversão aos estrangeiros), “etnocentrismo” (etnia e práticas culturais superiores aos outros grupos) e “racismo” (uma raça se acha superior às outras). É um texto carregado de preconceitos e segregacionismos.
Em Esdras (Esd 9-10) aparecem as medidas inflexíveis contra os matrimônios com estrangeiro/as. Parece que Esdras se baseou em Ex 34, 15-16 e Dt 7, 1-4 para fundamentar sua perspectiva separatista. De fato, a medida drástica era para proteger os repatriados do exílio. Esses que retornaram seriam os verdadeiros judeus.
Foi, após os relatos dos “chefes” (Esd 9, 1-2) que Esdras rasgou as roupas, o manto e arrancou os cabelos da cabeça e da barba e, desolado, caiu de joelhos e levantou as mãos a Javé (Esd 9, 3-5), fazendo uma longa oração (Es 9, 6-15) de confissão e com choro (Esd 10, 1). Estavam arrependidos (Esd 10, 2).
Sequenias, porta-voz dos repatriados, apresentou o grande problema a Esdras: casamo-nos com “mulheres estrangeiras”, tomadas da “população local” (Esd 10, 2). Porém, havia “esperança para Israel”. Nesse momento, o mesmo Sequenias fez a proposta mais aviltante que se podia imaginar: “Nós nos comprometemos a despedir ‘todas as mulheres estrangeiras’ e os ‘filhos’ que tivemos com elas” (Esd 10, 3). Tudo em nome de Deus. Colocando-se como aliados de Deus (um pacto) e pondo-se como esteios de Esdras, o grupo pede a ele para agir (Esd 10, 4).
Houve a obrigação enfática: era preciso jurar que estavam do lado de Esdras (Esd 10, 5) e, após isso, se convocaram todos os repatriados, sob pena de terem seus bens confiscados (Esd 10, 8). Um detalhe: os repatriados eram descendentes das tribos de Benjamim e Judá (Esd 10, 9). E as outras dez tribos? Eram todos ham há’aretz? Seriam judeus de segunda categoria?
Foi aqui que se deu o veredicto fatal contra as mulheres estrangeiras e contra as suas crianças (Esd 10, 10-12), segundo as autoridades, por “vontade” de Deus (Esd 10, 11). A seguir, com muita chuva em Jerusalém, decidiram que os chefes deveriam representar o povo na condução final. No entanto, escreveram uma expressão significativa: afastemos a “ira de Deus” (Esd 10, 14). Os problemas humanos são transferidos para Deus como se ele fosse racista e xenófobo.
Os repatriados, ou seja, os “impostores judeus” terminaram todos os processos de homens que haviam se casado com mulheres estrangeiras (Esd 10, 16-17) que deveriam ser expulsas e excluídas. E, no final, ofereceram carneiro para reparar os pecados. O “deus” daqueles sacerdotes era passível de negociação: “façam-me sacrifícios que eu perdoo os seus pecados” (Esd 10, 19). Os carneiros foram os culpados?
Em seguida, o livro apresentou uma longa lista dos novos “puros” de Judá e Benjamim (Esd 10, 18-44).
2.1.2 O que se pode criticar e objetar de Esdras 9 e 10?
É um texto de quem vem de “fora” e “dá o golpe” nos que nunca saíram do local. De fato, se se olha numa perspectiva política e econômica, é preciso entender que o grupo sacerdotal que veio com poderes, foi mantido com recursos financeiros persas (Esd 7, 20-23), tinha a isenção de impostos e pedágios (Esd 7, 24) e que o próprio Esdras recebia as sobras de ouro e prata (Esd 7, 18) para o que achasse melhor. A nova Judá de Esdras, assim, tornou-se totalmente dependente do rei da Pérsia. Criou-se um clima de que, agora, haveria segurança no “limite sudoeste do rio Eufrates” (Esd 7, 25);
O choro e o arrependimento de Esdras e do povo ligado a ele, foi de fato, uma conversão para Deus, ou foi uma estratégia de quem via as grandes dificuldades para implantar um novo regime ditatorial, à custa do rei da Pérsia? Como dominar o povo da terra?;
Que Deus era aquele de Sequenias e Esdras? Esses líderes usaram o nome, em vão, de Deus para impor um regime no estilo nacionalista, como conhecemos hoje. Aquele “deus” de Esdras era discricionário e preconceituoso. Era racista e xenófobo;
Na visão de Sequenias e Esdras, Deus não gostava de mulheres estrangeiras e seus filhos. Os filhos não eram, também, de homens israelitas? Os distúrbios mentais dos líderes foram jogados para Deus;
O texto (Esd 10, 11), ao expressar a palavra “vontade” de Deus, reflete a ideologia da insegurança: para se determinar uma decisão tão drástica e para se imporem diante da absurda irracionalidade, tiveram que usar o nome de Deus. Não era isso, um modo de usar o nome de Deus em vão? Usaram o nome dele para a ideologia da morte (destruir as famílias, aniquilar as crianças para sempre, fulminar com as mulheres estrangeiras, incentivar a xenofobia);
A que nível se chegou a ideologia do poder sacerdotal esdriano? Se o Deus do grupo de Esdras era xenófobo e misógino, jamais poderia perdoar os “pecados” das crianças e suas mães estrangeiras. Somente quatro pessoas não aceitaram o programa de Esdras e seu grupo (Esd 10, 15);
Além das mulheres, como ficariam, a partir daqui, as crianças? Um filho tem mãe e pai. Com quem ficariam as crianças que quisessem ficar com os pais? Como ficariam os pais que quisessem seus filhos? Como ficariam as mulheres, agora, sem maridos e com filhos? Como sustentá-los? Como ficaria a dimensão humana do amor, da amabilidade, da afeição, da ternura entre filhos, mamães e papais? O programa de Esdras provocou uma hecatombe anti-bíblica;
Além dos quatro que tiveram coragem de ir contra um programa tão desumano (Esd 10, 15), e os outros papais? Perderam o coração? Em nome da “lei” inventada, tiveram coragem de renegar seus filhinhos? Será que nunca tiveram amor, de verdade, quando se relacionavam, na intimidade, com suas mulheres?;
A visão do deus objeto: será preciso, para agradar mais a Deus, oferecer um sacrifício (oferta de um carneiro) para reparar os pecados. O grupo de Esdras não deve ter conhecido o profeta Oséias: “eu não quero sacrifício, mas amor. Não quero holocaustos, mas conhecimento de Deus” (Os 6, 6). Se eles conheceram, não deram atenção às suas palavras. Sempre foi difícil para o sacerdote escutar o profeta;
Qual raça Deus prefere? Para Esdras e seu grupo é o povo da nova Judá, agora nas vestes dos repatriados do cativeiro da Babilônia (Golah). Os capítulos 9 e 10 de Esdras são os mais agressivos textos que se pode imaginar, elaborados por um grupo profundamente xenófobo, racista, etnocentrista e pedófobo que se encontra na Bíblia Hebraica;
A desumanidade contra os filhinhos e suas mães estrangeiras não foi um verdadeiro “holocausto”?;
O grande clamor: o desprezo, além de todos, pelas criancinhas. Que grupo é esse que perdeu toda sensibilidade humana e jogou os filhinhos na masmorra? Os inocentinhos, também, estavam condenados. O difícil é que, também, em suas veias corria o sangue israelita. O mais duro é jogar essa ideologia infame como se fosse vontade do Deus do Amor;
Esdras e seu grupo criou confusão na massa (israelitas pobres, “povo da terra” que convivia com estrangeiros) com a “nova” religião imposta;
Não se vê em Esdras um mínimo de compaixão e empatia para com “o povo da terra”;
Esdras nacionalizou a fé. Deus estava a serviço da raça judaica. O seu projeto será perpetuado na história israelita;
Programa de Esdras: o grito da defesa da “raça pura”.
2.2 O Livro de Rute: abertura para as/os estrangeiras/os, para as mulheres e para as crianças
Este livrinho (quatro capítulos) abordou a história de três viúvas pobres, Noemi, Órfa e Rute, sendo que estas duas últimas eram estrangeiras. O texto foi elaborado como se tratasse do tempo dos Juízes (após Moisés até Samuel). Porém, é um artifício que os autores ou autoras usaram (DA SILVA, 2008, p. 107-120) para retratar o tempo em que estavam vivendo (LAFFEY, 2007, p. 1087). Esta época era, provavelmente, o tempo de Esdras (458 a.C.) ao de Neemias (445 a.C.), quase um século depois do cativeiro da Babilônia. Ao remontar ao tempo dos Juízes, os escritores de Rute estavam criticando, severamente, o momento (tempo de Esdras), mostrando que era possível aplicar as leis da “respiga”, do “resgate” e do “levirato” e, com isso, dar espaço às crianças, às mulheres e às estrangeiras.
A terra estava ocupada pelo povo da terra (ham ha aretz) e por estrangeiros sendo que as condições sociais eram conflituais: fome (Rt 1, 1; Ne 1, 3; 5, 2), migração (Rt 1, 1), falta de terra (Ne 5, 5), morte (Rt 1, 3-5), desunião, desagregação familiar e comunitária. Um homem chamado Elimeleque emigrou para Moab com a mulher Noemi e os filhos Maalon e Quelion em busca de trabalho. Os filhos se casaram com Órfa e Rute, duas estrangeiras. Como o povo era desnutrido morreram, por lá, o marido e os filhos. Sobraram as três viúvas. Parece que as mulheres eram menos melindrosas (FERREIRA, 2011, p. 188).
Noemi decidiu voltar de Moab para Israel, insistindo para que as duas noras não a acompanhassem. Após muita insistência, uma das noras, Órfa, ficou em Moab, porém a outra, Rute, não aceitou abandonar a sogra: ficará com ela até a morte. Detalhe: a israelita traz a estrangeira para sua terra. Se Esdras expulsava, as mulheres faziam o contrário. Retornaram a Belém (casa do pão) de Judá. Quem reconheceu Noemi? As mulheres. Após tantas desgraças, Noemi disse que agora se chamava Mara (amargurada, cheia de dores).
Nos campos de Belém estava começando a colheita de cevada (tempo de fartura). Aqui entrou em ação, Rute, a mulher determinada, estrangeira e cheia de fibra. Para salvar a sogra e a si também, decidiu ir à lavoura, caminhando atrás, para catar os restolhos das espigas que sobravam ou caíam dos jacás dos catadores. A lei (lei da respiga) permitia aos pobres, estrangeiros, viúvas e órfãos esse procedimento (Lv 19, 9-10; Dt 24, 19). Rute tinha o triplo direito de catar, pois era pobre, estrangeira e viúva. Quem escreveu o texto se aproveitou da tradição dos Juízes para questionar, duramente, o tempo de Esdras.
Por acaso, Rute foi parar na lavoura de Boás (Rt 2, 3), um dos dois parentes de família de Elimeleque, o finado esposo de Noemi[3]. Ao chegar de Belém, Boás conheceu a moabita Rute e se admirou de sua tenacidade e fidelidade à sogra Noemi. Ele a agregou às outras trabalhadoras, deu-lhe condição de trabalho e até a chamou para comer do pão com ele e os trabalhadores (Rt 2, 4-14). Aí apareceu, de novo, a crítica ao projeto de Esdras que discriminava os estrangeiros e as mulheres. Ao contrário de Esdras, no diálogo de Rute com Boás, vê-se a dimensão do Deus tão cheio de ternura (Rt 2, 11-12).
No capítulo 3 de Rute aparecem, além da “lei da respiga”, as “leis do resgate” (pronunciada sete vezes: Rt 3, 9-13) e do “levirato” (Dt 25, 5-10) que, ao contrário de Esdras, uniu, no amor, um israelita com uma estrangeira. Boás e Rute, em união, apresentaram o projeto onde as estrangeiras, de fato, faziam parte do povo de Abraão (Gn 12, 1). A salvação provinha, também, dos pobres, dos estrangeiros. O projeto segregacionista de Esdras foi derrubado na prática. O Deus de Noemi, de Boás, de Rute é um Deus de todas as etnias. Se Noemi representava o ham ha aretz (povo da terra), se ela trouxe para sua casa uma estrangeira, se ela estimulou o matrimônio da moabita com o israelita, ela estava denunciando o programa segregacionista de Esdras e os grandes exploradores do povo que se apoderaram de Jerusalém para impor um sistema ditatorial contra as dez tribos do norte e um massacre contra o universo estrangeiro. As pobres vão realizando o plano de Deus, do modo como entendem, sem ouvir os legalistas de Jerusalém. Unindo-se Boás (israelita) e Rute (estrangeira) começou-se a se antever um herdeiro, a herança e o futuro, porque havia muito amor. Amor não era um conceito querido pelo grupo de Esdras. Porém, o era pela abandonada (Noemi), pela estrangeira (Rute) e pelo israelita distante do centro do poder (Boás).
Então, o livro de Rute uniu, além da “lei da respiga”, a “lei do resgate” com a “lei do levirato”, a partir da experiência profunda de fidelidade de Rute a Noemi e, agora, com a lealdade e amor de Boás. O quadro dos defensores dos pobres foi se expandindo. Se a lei anterior contemplava somente a “pequena família” agora estará na defesa da “grande família”, isto é, o clã, a comunidade. De familiar, a lei tomou uma perspectiva social mais ampla. A preocupação se expandiu para a sociedade. Quando os pobres se identificam na luta, suas leis se tornam vivas.
Se as leis sectárias de Esdras vieram de cima para baixo, a reconstrução comunitária se fazia de baixo para cima. Havia outro parente (Rt 4, 1) que era “a face” de Esdras. Ele não compreendeu a novidade e se recusou a entrar no projeto dos pequenos.
Diante de tudo, Boás, pela “espiga”, alimentou a estrangeira e a amargurada (Noemi). Pelo “resgate” ficou sem nada. Pelo “levirato”, não será pai dos filhos que vierem. E aí? As dez testemunhas proclamaram: “E você, Boás, seja poderoso em Éfrata e tenha nome em Belém. Pelos filhos que Deus lhe der com esta jovem, sua família seja tão abençoada como a de Farés, que Tamar deu à luz para Judá” (Rt 4, 12). Por que isso? Porque Boás falou ao coração de Rute (Rt 2, 13-14). Coração não tem raça e etnia. Ele pedira a Deus que desse a Rute uma farta recompensa (Rt 2, 12). O Messias surgirá do amor entre Boás e Rute e do povo que aí nascer[4].
Os autores/autoras de Rute leram a história de Israel na direção de quem era pobre e marginalizado. A lei da “pureza” de Esdras criou uma “raça” xenófoba (Esd 10, 30; Rt 1, 1). Porém, Noemi ultrapassou a lei da migração porque viu que a estrangeira Rute era amada e querida por Deus. Rute era do seu “time”.
Se Esdras “pegou pesado” na observação da lei nacionalista, Noemi, Rute e Boás expressaram a prática do amor: “espiga”, “resgate” e “levirato” – as três janelas estavam acenando para o amor – todos deveriam ter pão em abundância.
O livro de Rute mostrou que as segregadas (Rute), as subordinadas (Noemi), as discriminadas (estrangeiras e crianças) e os tolerantes (Boás) são aqueles que, em comunidade, descobriram que podiam ter espaço, voz e vez. Esta é a outra face da Sagrada Escritura do Antigo Testamento.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como um livro tão aberto, tolerante, de visão cristalina e, ao mesmo tempo, de crítica tão drástica contra a linha de Esdras e seu grupo sacerdotal, entrou na Bíblia? Como explicar que os sacerdotes esdrianos, tão avessos à crítica, suportaram esse escrito? Certamente que o livro de Rute termina de forma extraordinária, com a bela família de Boás que, com sua esposa Rute, gera um filho ao qual é dado o nome de Obed, cujo significado é: “aquele que serve”, ou “o servo (de Javé)”. No projeto de família e de comunidade desenhado pelo livro de Rute, o fruto esperado é o serviço no amor, no respeito, na inclusão e na fraternidade. Todavia, no final do livro aparece uma genealogia (Rt 4, 18-22). Trata-se de uma conclusão primitiva do texto ou seria um acréscimo posterior? Em caso afirmativo, qual seria a finalidade dessa glosa final?
Consideramos que a genealogia do final do livro de Rute não faz parte da sua narrativa mais antiga, sendo um acréscimo posterior. Para tal, podem ser aduzidas razões exegéticas, teológicas e ideológicas:
Razões exegéticas: O final “original” do livro de Rute terminava em Rt 4, 17c. Com efeito, o retículo narrativo conclusivo do livro é o texto de Rt 4, 13-17c (penúltima parte do v. 17, o qual pode ser facilmente divivido em 4 partes) está elaborado narrativamente com a técnica da inclusão. Os limites dessa cena são marcados pelo verbo wattêleḏ bên (conceber/dar à luz a um filho) no v. 13, onde diz que “ela concebeu um filho”; e yullaḏ-bên no v. 17 (nasceu-lhe um filho). A cena mesma pode ser dividida em dois episódios, em que cada um deles contém uma exposição narrativa do autor (a, v. 13; a’, v. 16) seguida (cada uma) por uma ação da parte das mulheres da cidade (b, vv. 14–15; b’, v. 17a-c). Vejamos a organização do texto em um quadro[5]:
A: v. 13 | E tomou (wayyiqqaḥ) Boaz a Rute, e ela tornou-se para ele (wattəhî lō lə) mulher; coabitou com ela, e o Senhor lhe concedeu a concepção, e ela concebeu um filho. |
B: vv. 14-15 | E disseram as mulheres (hannāšîm) a Noemi: Seja o Senhor bendito, que não deixou, hoje, de te dar um goel, e será aclamado o nome dele (wəyiqqārê šəmō) em Israel. Ele será restaurador da tua vida e consolador da tua velhice, pois tua nora, que te ama, o deu à luz, e ela te é melhor do que sete filhos. |
A’: v. 16 | E tomou (wattiqqaḥ) Noemi o menino, e o pôs no regaço, e ela se tornou para ele (wattəhî lō lə) uma guardiã. |
B’: v. 17a-c | E deram-lhe as vizinhas (haššəḵênōṯ) um nome, dizendo: A Noemi nasceu um filho. E lhe chamaram o nome dele (wattiqrenāh šəmō) Obed. |
Cada uma das ações das mulheres (a primeira, nos vv. 14-15, sendo um discurso; e a segunda no v. 17a-c, o ato de dar um nome à criança), constitui uma expressão da voz e vez das mulheres na compreensão dos eventos de toda a narrativa. Da mesma forma, as declarações narrativas do v. 13a-e (todas as cinco partes do versículo) e do v. 16a-c estão em paralelo seja na forma quanto no conteúdo. Ambos começam com uma sentença de estrutura sintática idêntica usando o verbo “tomar” (lāqaḥ), nos vv. 13a, 16a, e a expressão “e ela se tornou para ele...” (wattəhî lō lə): “Ela se tornou para ele esposa” (v. 13b); “Ela se tornou para ele uma cuidadora” (v. 16c). Pode-se perceber claramente o estrito paralelismo sinonímico da construção com uma lógica interna e conclusiva deste retículo comunicativo. De fato, tanto a estrutura quanto o conteúdo confirmam essa organização textual.
O restante do v. 17d: “Este é o pai de Jessé, pai de Davi”, é bastante estranho ao texto que o precede. Toda a perícope conclusiva do relato precedente (vv. 13-17c) é uma celebração das mulheres. Este adendo (v. 17d) revela a voz do autor (masculino) que deixa de lado as mulheres e o coro feminino precedente, com sua exuberante celebração do retorno de Noemi, para descrever o significado da criança de forma estranha à narrativa mesma (a narrativa já havia dado o significado da criança pelo próprio significado do nome “Obed”).
Em seguida deparamo-nos com o texto da genealogia (Rt 4, 18-22). O início da narrativa genealógica segue a estrutura gramatical de um novo início. A expressão “e estas são as gerações de…” (wə’êlleh tōləḏōṯ) é uma fórmula padrão no Pentateuco para introduzir uma genealogia descendente (cf. Gn 6, 9; 10,1; 11, 1; Nm 3, 1). Embora haja diferenças consideráveis (CAMPBELL, 1975, p. 170), todos os nomes desta genealogia figuram na genealogia de 1Cr 2, 2-15. A sua única relação linguística com o que precede está na menção de Farés (Rt 4, 12), sendo assim uma construção estranha ao texto de Rute;
Razões teológicas: Sabe-se que as genealogias formam um gênero literário típico da tradição sacerdotal[6] que, em geral, tem preocupações de demonstração de pureza de linhagem, sobretudo aquelas genealogias de tipo lineares (WILSON, 1977, p. 9) cujo escopo principal é de legitimar uma função ou uma dignidade considerada hereditária. Os recentes estudos sobre o uso da genealogia nas sociedades baseadas em parentesco têm demonstrado que as genealogias lineares (FLANAGAN, 1981, p. 58–65), têm a função de legitimar papeis políticos, jurídicos, ou religiosos da última pessoa mencionada. Essa temática é totalmente ausente em todo o livro de Rute, e como tal, a genealogia não faz parte dos/as autores/as do livro de Rute, como demonstram diversos autores[7]. A genealogia está em clara desarmonia com o resto da trama histórica do livro. Habilidosos narradores, tais como os autores/as do livro de Ruth não encerrariam a história recorrendo a um gênero literário pedante e esteticamente estranho ou discordante. Neste lugar, a genealogia é um “claro anticlímax para uma história... já completa sem ela” (CAMPBELL, p. 1975, p.15);
Razões ideológicas: Neste prisma, é preciso compreender que o livro de Rute, sem as glosas, foi escrito a partir da periferia. O “lugar social” pertencia aos oprimidos. No texto, os marginalizados tiveram espaço e voz. Ao contrário, as “glosas” no mesmo livro, apresentaram uma perspectiva que refletia o “lugar social” das escolas sacerdotais ligadas ao templo e à cidade de Jerusalém. Foram ouvidas, no mesmo texto, as vozes dos reprimidos e dos repressores. Resta, então, uma última questão: qual a função de uma genealogia, claramente inserida como acréscimo no final do livro de Rute? Como já foi demonstrado, o período de composição do livro se situa no tempo pós-exílico em que havia conflitos entre os repatriados (a turma da golah) e o povo da terra (ham ha’aretz). Mais claramente, o texto de Rute é situado no tempo de Esdras, fruto de um movimento popular que fez resistência à política de “purificação” da raça impetrada pelas autoridades esdrianas. A história de Rute para essas autoridades político-religiosas era inaceitável. Como aceitar um livro tão revolucionário no cânon das escrituras? A genealogia acrescentada, no final foi a “jogada de mestre” das autoridades. Com esse expediente literário se lançou o livro para um período histórico de Israel (tempo dos Juízes) em que “não havia rei em Israel e cada um fazia o que parecia bem aos próprios olhos” (Jz 17, 6; 18, 1; 19, 1; 21, 25), isto é, um tempo que precisou ser “reparado” pela monarquia. Certamente, que no pós-exílio a monarquia não existia mais. Todavia, a pirâmide do poder era constituída com mais radicalidade. O poder teocrático devia fazer “reparos” nas tradições populares. E na genealogia de Rt 4, 18-22[8] veem-se diversos “reparos”. Primeiramente, as mulheres desapareceram: tentou-se apagar toda a dedicação de Rute e sua recepção como estrangeira. Na lei do levirato, o filho gerado por Boás devia ser considerado filho de Elimelec, cujo nome não aparece na genealogia: tentou-se apagar a força social do levirato. Mais ainda. Tendo em vista que a genealogia terminava em Davi, era preciso considerar como ele eliminou todos os estrangeiros da terra prometida (e inclusive submeteu os edomitas, conforme 2Sm 6,11-12), o verdadeiro executor do ḥerem (o anátema de extermínio dos estrangeiros, conforme Dt 7,1-6).
Procurando amarrar: ao que parece, o grupo de Esdras só aceitou o livro “Rute” numa leitura historicizante do mesmo, isto é, como reflexo de um passado onde a Torá não foi observada, cuja única função foi preparar a chegada da monarquia, onde (na monarquia) o poder implementou a “lei” de Deus. Mas o livro de Rute, assim como na história de Farés, encontrou uma “brecha” no cânon das Escrituras. Ele sempre foi lido pelas comunidades acolhedoras com um “entre-sorriso maroto” de desdém pelos defensores da “raça pura”. Seus leitores nunca “ligaram”; antes, desafiaram essa tentativa do poder constituído; tudo somado, ineficaz em desmontar a sua força narrativa. Uma força narrativa que é também pragmática de construção alternativa de relações humanizadas e humanizantes, inclusivas e multiculturais.
REFERÊNCIAS
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CAMPBELL, Edward F. Ruth: A New Translation with Introduction, Notes and Commentary. New York: Doubleday, 1975. (Anchor Bible, v. 7).
DA SILVA, Airton J. Leitura socioantropológica do livro de Rute. Estudos bíblicos, 98. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 107-120.
FERREIRA, Joel A. Paulo, Jesus e os marginalizados. Goiânia: PUCGOIÁS, 2011.
FLANAGAN, J. W. Chiefs in Israel. The journal for the study of the Old Testament, v. 20. 1981. p. 47–73.
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Notas