ARTIGOS
O DOGMA TRINITÁRIO E A TEOLOGIA POLÍTICA: aproximações entre Jürgen Moltmann e Giorgio Agamben.
THE TRINITARY DOGMA AND POLITICAL THEOLOGY: approximations between Jürgen Moltmann and Giorgio Agamben
O DOGMA TRINITÁRIO E A TEOLOGIA POLÍTICA: aproximações entre Jürgen Moltmann e Giorgio Agamben.
Interações, vol. 15, núm. 1, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Recepción: 10 Julio 2019
Aprobación: 04 Junio 2020
Resumen: 1Em O Reino e a Glória, o pensador italiano Giorgio Agamben procura demonstrar que o poder, forjado pela teologia cristã, apresenta-se por dois grandes paradigmas: teológico político e teológico econômico. A teologia política aponta não só para a origem estrutural que alicerça o Estado Moderno firmado sob conceitos teológicos, como também enfatiza a primazia do paradigma teológico econômico sobre o teológico político. É a partir dessa dupla estrutura advinda da teologia cristã que se consolida a máquina governamental, na qual todo poder tipicamente soberano articula-se segundo essas duas polaridades, Reino e Governo, o poder de julgar e o exercício do julgamento, trindade imanente e trindade econômica. Ao buscar incansavelmente renovar essa clássica separação entre as duas trindades, Deus e sua práxis, Jürgen Moltmann parece observar, tal como Agamben, problemas na constituição da dogmática trinitária. Nosso objetivo é apresentar alguns pontos desse diálogo acerca da doutrina trinitária, cujo pano de fundo revela a crítica dos dois pensadores ao atual modo de governo, o teológico político.
Abstract: In The Kingdom and the Glory, the Italian thinker Giorgio Agamben seeks to demonstrate that power, forged by Christian theology, presented by two great paradigms: political theological and economic theology. The political theology points not only to the structural origin that underlies the Modern State established under theological concepts, but also emphasizes the primacy of the economic theological paradigm over the political theological one. From it is by starting from this double structure originated from the Christian theology that the governmental machine is consolidated, in which all typically sovereign power is articulated according to these two polarities, Kingdom and Government, the power to judge and the exercise of judgment, immanent trinity and economic trinity. While relentlessly seeking to renew this classic separation between the "two trinities," God and his praxis, Moltmann seems to observe, like Agamben, problems in the constitution of Trinitarian dogmatic. Our purpose is to present some points of this dialogue about the Trinitarian doctrine, whose background reveals the criticism of the two thinkers to the current mode of government, the political theological.
Keywords: Political theology, Agamben, Moltmann.
Palavras chave: Teologia política, Agamben, Moltmann
1 INTRODUÇÃO
A busca em compreender Deus através da história humana certamente precede a tradição veterotestamentária, mas se impõe com maior vigor na tradição neotestamentária com o envio de Jesus Cristo, o Deus encarnado. Este é o limiar da problemática cristã em que todos os renomados teólogos irão se debruçar por responder: como conciliar a imutabilidade e impassibilidade divina com o envolvimento de Deus na história através do seu Filho unigênito; em outras palavras, numa abordagem mais agambeniana, poderia se dizer: como explicar a transcendência na imanência. A necessidade em responder a tal pergunta passou pela filosofia grega como instrumental, o que agravou ainda mais a questão na medida em que esta descartava a multiplicidade, o movimento e o sofrimento, à verdadeira divindade.
O cristianismo, ao proclamar que Deus vem ao encontro da humanidade para salvá- la e reintegrá-la à vida divina de felicidade plena, a cada momento histórico necessita atualizar seus discursos explicativos sobre Deus e sua ação no mundo. Na contemporaneidade, palco de duas grandes guerras mundiais, o desafio de teólogos e teólogas foi o de promover discursos que aproximavam o Deus cristão frente ao sofrimento humano. Moltmann, certamente pela sua própria trajetória de vida, foi um desses teólogos que com grande impacto evidenciou a teologia do sofrimento de Deus.
Na obra O Reino e a Glória, Agamben desvela, a partir da teologia cristã, como toda máquina jurídico-política do Ocidente foi erigida sob um maciço sistema bipolar político/econômico; esta bipolaridade é anunciada também em outras formas como: Reino e Governo, Teologia e Economia. Nesse sentido, o paradigma teológico-econômico a partir do conceito de oikonomia trinitária demonstra como esse termo articulou e estruturou a máquina governamental de modo vicário e dual. A oikonomia trinitária, bem como toda a construção da doutrina trinitária será analisada pela perspectiva teológica de Jürgen Moltmann, com a qual Agamben dialoga principalmente os temas relativos à trindade imanente e trindade econômica, pois é partindo dessa dupla estrutura advinda da teologia cristã que se consolida a máquina governamental na qual todo poder tipicamente soberano articula-se segundo essas duas polaridades, Reino (trindade imanente) e Governo (trindade econômica), o poder de julgar e o exercício do julgamento. Moltmann, ao buscar incansavelmente renovar essa clássica separação patrística entre as “duas trindades”, Deus e sua práxis, parece validar a tese agambeniana de que a oikonomia trinitária, constituída inseparavelmente de ordo e gubernatio, é condição necessária para o bom funcionamento da máquina governamental.
2 CRÍTICA À DOUTRINA TRINITÁRIA
Moltmann observa que tanto a teologia quanto o pensamento ocidental apresentam a trindade através de uma única substância. Essa ideia se concretizou por Tomás de Aquino com o tratado De Deo uno e De Deo trino. A divisão do tratado aponta claramente para valorização da existência una de Deus primeiramente, desdobrando-se em seguida na doutrina de Deus uno e trino. O problema em lidar com a trindade reside justamente no fato de que, segundo Moltmann, não se entende Deus a partir do acontecimento da cruz de Cristo. Em De Deo uno, seguido do De Deo trino, a preocupação do autor está em provar a existência do Deus uno. Mas, unidade e trindade de Deus deveriam, para Moltmann, pertencer a um mesmo tratado, afinal, como se pode expor a unidade, a essência de Deus e, em seguida, distingui-la em três pessoas divinas? Desse modo, o teólogo complementa que “a redução do uno e trino ao Deus uno” permanece resultando “[...] involuntariamente, mas de modo inevitável, à resolução da doutrina trinitária em um monoteísmo abstrato” (MOLTMANN, 2000, p. 31).
A partir da filosofia hegeliana no século XVIII, a trindade cristã passa a ser caracterizada pelo conceito de sujeito absoluto, ou seja, um sujeito - três modos de ser. Essa nova caracterização apresenta um Deus que realiza sua vida em três modos distintos de existir e, novamente, Moltmann aponta uma inadequação na conceituação da doutrina trinitária, pois as pessoas da trindade passam, tão somente, a representar os momentos desse uno. “A representação das pessoas trinitárias baseadas no sujeito divino, uno e idêntico leva, involuntariamente, mas de modo inevitável, à redução da doutrina trinitária ao monoteísmo.” (MOLTMANN, 2000, p. 32).
A tese de Moltmann é que, tanto a trindade substancial, como a subjetiva, herdadas da teologia cristã, criaram “a separação e o isolamento de seus objetos”, em outras palavras, a doutrina trinitária até aqui parece não ter sido suficientemente clara para Moltmann, razão pela qual tentará, a partir da sua doutrina histórica da trindade, reconstruir esse revés:
A tradição ocidental principiou com a unidade de Deus, e em seguida colocou a questão da Trindade; nós começaremos com a Trindade das pessoas [...] Surge então um conceito diversificado – e por isso pioneiro na capacidade de pensar – da unidade divina como unicidade da Trindade. Vamos desenvolver aqui um pensamento relacional e comunitário, a partir da doutrina trinitária, e instaurá-la na relação do homem com Deus, com os outros homens e com a humanidade, bem como na comunhão com toda a criação. [...] Por essa forma, não apenas será reelaborada a teologia trinitária cristã, mas também procurar-se-á desenvolver e aplicar um modo de pensar trinitário. (MOLTMANN, 2000, p. 33).
Nesse sentido, para o teólogo da esperança, a teologia cristã não conseguiu dar um salto em relação ao dogma trinitário, limitando-se apenas a um “monoteísmo fracamente cristianizado”2. Isso se deu em virtude da renúncia à doutrina trinitária desde a antiga tradição da Igreja, a qual sempre colocou em primeiro lugar o louvor e a contemplação a Deus, em detrimento da economia da salvação. Moltmann está fazendo aqui dura crítica à teologia cristã, pois ela procede efetivamente da ruptura entre transcendência (apatia/imutabilidade/ressurreição) e imanência (cruz/crucificação/ressurreição) para assim definir a dogmática trinitária; a direção tomada pela tradição cristã é questionada pelo teólogo:
Por que se tornou a doutrina da trindade em especulação isolada e mera decoração de dogmática na tradição da idade média? (MOLTMANN, 1975, p. 339, tradução nossa).3
Se já é bastante difícil acreditar que existe um Deus, e viver segundo os seus mandamentos, não tornaria a fé na Trindade, desnecessariamente, ainda mais difícil a vida religiosa?! Por que será que a maioria dos cristãos do Ocidente, sejam eles católicos ou protestantes, pelas suas experiências e práxis da fé, são de fato apenas “monoteístas”? Que Deus seja um, ou uno e trino, isso aparentemente faz tão pouca diferença na doutrina da fé quanto na ética. (MOLTMANN, 2000, p. 17).
Desse modo, conclui-se que todas as tentativas a respeito da doutrina trinitária na tradição ocidental implicam numa visão reducionista e fatalmente monoteísta4. Ao expor e criticar o atual quadro teológico-trinitário inserido na tradição trinitária, Moltmann objetiva sistematizar, a partir desta tradição cristã, sua própria doutrina da Trindade que será, então, histórica e pericorética. Para tanto, recorre ao ensino trinitário clássico da Igreja oriental, em clara oposição ao monoteísmo extremado advindo da teologia ocidental. Busca, nessa teologia ortodoxa oriental, demonstrar, primeiramente, o aspecto trinitário das pessoas divinas e, em seguida, a questão da unidade. O teólogo apresenta uma trindade integrada cristológica e soteriológica, rompendo com os antigos métodos teológicos que privilegiavam o Deus absoluto e acabam por consagrar a soberania do monarca divino.
2.1 Theologia Crucis
Certamente pela sua própria história, Moltmann identifica-se com Jesus crucificado, afirmando nesse sentido que todo discurso cristão precisa estar alicerçado na cruz de Cristo – onde o Deus amoroso revelou-se a todos. Essa aproximação o levou a desenvolver sua própria theologia crucis, cujo intuito resume-se a incluir o negativo presente na história nas formas de guerras, morte, sofrimento e, através do Deus crucificado, reavivar a esperança cristã. “Voltar hoje à teologia da cruz significa evitar a unilateralidade da tradição, interpretando o Crucificado à luz e no contexto de sua ressurreição e, consequentemente, da liberdade e esperança” (MOLTMANN, 1975, p. 13, tradução nossa).5
A theologia crucis de Moltmann é marcadamente desenvolvida em duas de suas obras: Teologia da Esperança (1964) e O Deus Crucificado (1972). Na primeira, o lema central é a ressurreição, entendida como verdadeira e única fonte de esperança, propondo, pela ressurreição, uma nova possibilidade de mundo. Mais adiante, sua teologia avança, passando a ser, o evento na cruz, seu principal assunto.6
O resultado da crucificação parece ser o mais importante em sua abordagem, numa clara tentativa de cindir o significado da cruz/ressurreição com o pensamento grego.7 Para tal feito, o teólogo resgata o significado da cruz pela história, evidenciando que a crucificação era uma pena vergonhosa aplicada pelo império romano a escravos e subversivos.
Então a cruz ainda não era o sinal de triunfo, nem sinal de vitória nas igrejas, nem um adorno dos tronos imperiais, nem sinal de ordens e condecorações, mas um sinal de contradição e escândalo, que frequentemente trazia rejeição e morte. (MOLTMANN, 1975, p. 54, tradução nossa).8
O crucificado não representava, no mundo antigo, uma figura estética, pelo contrário, segundo a crença israelita aquele que foi morto em tal condição, é amaldiçoado por Deus: "Maldito é aquele que está pendurado no madeiro" (Gal 3:13, Dt 21: 23). Está separado da comunhão com Deus, uma vez que foi condenado pela lei como um blasfemo, por isso, as ideias de se venerar e adorar um Deus crucificado eram totalmente inconcebíveis no mundo antigo. A fé cristã no crucificado parecia desse modo, blasfêmia tanto para judeus como para romanos.
A fé no crucificado está em contradição com os ideais de beleza, justiça e moralidade do homem e, em última análise, para Moltmann, também se contrapõe a todo imaginário humano sobre Deus, como um ser supremo e bom. E, ainda que a tradição cristã tenha suavizado as explicações sobre a cruz/crucificação, o teólogo afirma: “É precisamente o sofrimento de Deus no Cristo rejeitado e morto à distância de Deus, que qualifica a fé cristã como um não desejo”, (MOLTMANN, 1975, p. 59, tradução nossa)9 ou seja, a cruz como negação de tudo que se pode imaginar religioso, a cruz arreligiosa, é propriamente um fator constituinte da fé cristã.
Segundo Moltmann a simbologia que a cruz carrega não é algo tão natural quanto a Igreja fez parecer ser; o Deus crucificado não estava nos belíssimos altares entre candelabros luxuosos, mas entre dois ladrões no Calvário dos danados, oprimidos e abandonados. O autor deseja converter, mudar a forma de se pensar a cruz:
A "religião da cruz" é uma contradição em si, porque o Deus crucificado é a contradição nessa religião. Suportar essa contradição significa dizer adeus às suas tradições religiosas; significa libertar-se de suas necessidades religiosas; implica em renunciar à identidade que até agora se tinha e que era conhecida dos outros, ganhando na fé a identidade de Cristo; significa converter-se em anônimo e desconhecido em seu ambiente, para ganhar os direitos à cidadania na nova criação de Deus. Atualizar a cruz em nossa cultura significa praticar a libertação experimentada do próprio medo; significa não se acomodar a esta sociedade, aos seus ídolos e tabus, às suas hostilidades e fetiches, mas, em nome daquele a quem a religião, a sociedade e o estado sacrificaram em outro tempo, se solidarizar hoje com as vítimas atuais da religião, da sociedade e o estado do modo como o Crucificado tornou irmão e libertador delas.10 (MOLTMANN, 1975, p. 63, tradução nossa).11
Ao experimentar Deus na negatividade, numa condição de prisioneiro, Moltmann enxerga Deus como aquele que se revela no seu contrário, abandonando, todavia, o discurso metafísico para assumir uma postura dialética acerca da relação transcendência – imanência. Seus escritos sobre a teologia da cruz objetivam mostrar, por meio do sofrimento do Deus trino na paixão e morte do Filho, justamente a força libertadora de Deus. Moltmann está interpretando o sofrimento e morte de Cristo como potencialidade positiva, como possibilidade de liberdade para a humanidade, ou seja, de alguma maneira está atenuando a divisão transcendência-imanência, afirmando que mesmo na vida humana mais sofrida, angustiada, existe a abertura para / existe a possibilidade de - se elevar: a imanência permite a transcendência.
Observa-se, portanto, que o projeto theologia crucis de Moltmann concebe a cruz por uma perspectiva marcadamente hegeliana, como a negação da negação, ou seja, o Cristo Crucificado como morte (alienação) de Deus é o primeiro negativo, o qual deve negar-se uma vez mais (kénosis) para, finalmente ressurgir. Entretanto, a cruz, em sua realidade concreta, sempre foi desprezada pelo cristianismo. Segundo o autor, este Cristo não-humanizado colocava em xeque os conceitos acerca de Deus. E, à medida que esta Igreja se consagrava como religião dominante na sociedade, costurando acordos para, de maneira geral, conseguir institucionalizar-se, “[...] mais e em maior medida se distanciava da cruz, embelezando-a com esperanças e ideias de salvação.” (MOLTMANN, 1975, p. 64, tradução nossa).12
2.2 Teologia Trinitária é Teologia da Cruz
A cruz é o principal objeto da fé cristã, e por isso, segundo Moltmann deve sempre ser entendida trinitariamente – ali as pessoas divinas estabelecem-se numa recíproca relação. Ao partir do Novo Testamento, especialmente dos textos neotestamentários de Marcos e Paulo, o teólogo ressalta a importância de que o Ressuscitado é o Crucificado. A interpretação paulina diz que “Deus estava em Cristo” (2 Cor 5:19), “ou seja, Deus não apenas agiu na crucificação de Jesus ou permitiu que sofresse, mas com sua própria essência ele estava agindo e sofrendo com Jesus moribundo” (MOLTMANN, 1975, p. 266, tradução nossa).13 Deus mesmo sofreu junto de Jesus e morreu na cruz por toda humanidade. A paixão e morte de Jesus foram entendidas como paixão e morte do filho de Deus, sendo esta a forma que trouxe vida e liberdade novamente aos ímpios e pecadores: “Na cruz do filho de Deus, em seu abandono por ele, o ‘Deus crucificado’ é o Deus humano de todos os ímpios e abandonados de Deus.” (MOLTMANN, 1975, p. 272, tradução nossa).14
Identificar na cruz as pessoas da trindade é o ponto chave de toda teologia moltmanniana, pois nela a trindade está claramente revelada na cruz, sendo, portanto, necessário fazer distinções entre o sofrimento do Pai e do Filho. A paixão e morte do Filho no abandono de seu Pai são diferentes do sofrimento do Pai por causa da morte do filho, a morte de sua paternidade. 15 Segundo o teólogo, para se entender o que realmente ocorreu entre Jesus e seu Pai na cruz, faz-se necessário um olhar trino, ou seja, o Pai sofre a morte do seu Filho, mas é apenas o Filho quem experimenta a morte. Não há, portanto, que se falar em morte de Deus, mas do sofrimento de Deus ao ver a morte de seu Filho: “[...] se não fosse assim, a doutrina da trindade ainda teria um fundo monoteísta.” (MOLTMANN, 1975, p. 345, tradução nossa).16 Moltmann recorre ao trecho de Gálatas para demonstrar que Cristo se entregou como sujeito “[...] o filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gal 2:20).
Por causa de seu amor, o Pai sofre a dor da morte do Filho. O que emerge de um acontecimento entre o Pai e o Filho deve ser entendido como o Espírito da entrega do Pai e do Filho, como o Espírito que dá amor aos abandonados, como o Espírito que vivifica os mortos [...] Aqui interpretamos trinitariamente o evento da cruz como um evento de relação entre as pessoas, no qual elas se constituem em seu relacionamento mútuo. (MOLTMANN, 1975, p. 347-348, tradução nossa).17
Este relacionamento mútuo que ocorre entre as pessoas divinas refere-se à relação de amor - à pericorese18 que faz com que a trindade forme uma comunidade que, embora seja constituída na pluralidade, permanece na unidade. “O Novo Testamento fala de Deus, na medida em que narra e anuncia as relações comunitárias, extensivas ao mundo, entre o Pai, Filho e o Espírito Santo.” (MOLTMANN, 2000, p. 78, ênfase do autor). Isto confere à cristologia moltmanniana fundamentos essencialmente trinitários, ou seja, ao sustentar a existência da dimensão pericorética, o autor afirma que as pessoas divinas estão numa relação de iguais na intimidade da vida divina e, consequentemente, sua cristologia refere- se a um ser trinitário:
Se a vida divina for entendida “pericoreticamente”, então essa mesma vida divina não pode ser realizada monadicamente por um único sujeito, mas somente mediante a comunidade vital das três pessoas, no seu mútuo exercício relacional e na sua existência uma na outra. A sua unidade não se fundamenta na soberania divina única, mas sim na união da tri- unidade. (MOLTMANN, 2000, p. 183).
A cristologia de Moltmann, desse modo, se apoia na pericorese trinitária de João Damasceno, que a apresenta como um eterno processo vital de trocas de energia no Deus uno e trino. A trindade não é entendida apenas historicamente, mas também socialmente, na medida em que se apresenta como verdadeiro modelo de relações do reino de Deus, as quais não são hierárquicas, de submissão e obediência: “Nesse reino, Deus não é o Senhor, mas o Pai misericordioso. Nesse reino não há servidores, mas apenas filhos de Deus, livres.” (MOLTMANN, 2000, p. 84). Nota-se que a compreensão trinitária de Moltmann se coloca contrária às estruturas monárquicas políticas e clericais, cujos modelos organizaram grande parte das sociedades; em certa medida aponta para uma suposta superação do paradigma do grande monarca no céu, a qual justifica e legitima o modelo de soberania na política ocidental contemporânea. Essa saída vislumbrada pelo teólogo está assentada num modelo democrático de governo: “Em lugar de autoridade e da obediência, instala-se o diálogo, o consenso e a concordância” (MOLTMANN, 2000, p. 208)19.
A cruz é um acontecimento que afetou totalmente as relações intratrinitárias de maneira que Pai e Filho romperam suas relações, embora permanecessem unidos na entrega. E, aqui, encontra-se outra chave do pensamento teológico de Moltmann - a partir dessa afetação das relações ocorridas na cruz é que se dá a autorrevelação da trindade, ou seja, que a theologia crucis culmina na theologia trinitatis. Tanto o Pai como o Filho20 estavam em comunhão, pois o seu projeto amoroso de salvar a humanidade é o que mantém os movimentos de abandono e entrega unidos pelo mesmo Espírito. Desse modo as relações trinitárias foram afetadas, mas a comunhão continuou através do Espírito Santo.
Desse modo, Moltmann legitima sua teologia trinitária através da paixão de Cristo - a cruz está no centro da trindade, “[...] a teologia da cruz deve ser a doutrina trinitária e esta tem que ser a teologia da cruz, porque, se não é assim, o Deus humano e crucificado não pode ser completamente descoberto.” (MOLTMANN, 1975, p. 342, tradução nossa).21 Ao chegar nessa conclusão de que a teologia trinitária é a teologia da cruz, o teólogo entende que a cruz desvela as relações do Filho com o Pai e vice-versa; a cruz separou e uniu as pessoas divinas.
2.3 Transcendência imanente
O evento trinitário exposto na cruz representa a abertura para uma vida plena, uma história escatologicamente aberta, em que toda a humanidade, até então abandonada, está livre para o amor. Moltmann considera que a trindade é um acontecimento para a história, pois a vida triunfou sobre a morte e agora a humanidade já está inserida na vida divina: “[...] os homens abandonados já foram incorporados à ‘história divina’ através do abandono de Cristo e que ‘vivemos em Deus’, porque participamos de sua vida escatológica pela força da morte de Cristo.” (MOLTMANN, 1975, p. 363, tradução nossa).22 A cruz é o ponto principal desta história trinitária de Deus junto do Pai, do Filho e do Espírito, mas não é concluída ali. Pelo contrário, na cruz essa nova história é aberta; a cruz é o começo da história trinitária de Deus e o fim da história do mundo, ela é a superação da história de todo sofrimento e dor. O evento da cruz resulta na reconciliação de Deus pelo Espírito, movendo-a para a unificação escatológica do mundo com Deus. Antes vista apenas como um sinal de revelação soteriológica, de ressurreição (eschatologia glorae), a cruz assume também a perspectiva de solidariedade e abandono (eschatologia crucis) mais antropológica, pois na cruz o ser humano encontra-se com aquele que é o referencial de sua imagem – o Deus trino. Desse modo, estabelece-se a relação entre theologia trinitatis e theologia crucis, cuja chave hermenêutica desdobra-se numa nova narrativa trinitária redentora e libertária.
Na encarnação do Filho, Deus cumpre a promessa do homem ser sua imagem e semelhança, pois o Filho abre novamente o relacionamento da humanidade com o Pai. O Espírito, ao unir na cruz Pai e Filho, surge a partir da ressurreição de Jesus como o Espírito Santo, movendo toda a história para transformação escatológica do mundo, ou seja, Deus age na história da humanidade de modo trinitário e está em todas as coisas (transcendência imanente):
O espírito do Senhor enche a terra. Ele, que a tudo dá consistência, tem conhecimento de tudo que se diz” (Sb 1, 7). Por isso a experiência de Deus é possível em, com e ao lado de toda experiência diária do mundo, na medida em que Deus está em todas as coisas e todas as coisas estão em Deus, e, portanto, o próprio Deus, à sua maneira “experimenta” todas as coisas. Se as experiências de Deus contêm experiências de vida, como mostra toda interpretação existencial, também podemos, considerando do lado oposto, dizer que as experiências de vida contêm experiências de Deus. (MOLTMANN, 1999, p. 136).
Observa-se que Moltmann (1999) aponta o Espírito Santo como o agente da reconciliação entre a humanidade e Deus-Pai, de forma que toda a criação será impregnada pelo Espírito, ocorrendo sua vitalização, pois Deus é transcendente e imanente ao mesmo tempo.
Teologicamente, o mundo é compreendido como um sistema aberto, participativo e antecipatório, uma vez que compreendemos a história da criação como uma interação entre a transcendência de Deus em relação ao mundo e sua imanência nesse mundo. Mas é claro que qualquer declaração teológica baseada em hipóteses científicas só podem ser esboços; elas nunca podem ser dogmas. (MOLTMANN, 1985, p. 206, tradução nossa).23
É apenas com o conceito trinitário de criação que, segundo Moltmann, a transcendência de Deus une-se à sua imanência, pela perspectiva panenteísta24, após Deus ter criado o mundo. Nele também faz sua morada, da mesma maneira que o mundo criado existe em Deus.
Através do acontecimento da cruz, os poderes do Espírito Santo25 espraiaram-se sobre o mundo e, assim, Deus está novamente presente na criação, em outras palavras, o Criador retorna à sua morada, pois “A experiência do Espírito é a experiência da Shekinah, a habitação de Deus: homens e mulheres se tornam em seus corpos 'o templo do Santo Espírito (1CO 6.13-20).” (MOLTMANN, 1985, p. 96, tradução nossa).26
3 OIKONOMIA TRINITÁRIA
No decurso da obra O Reino e a Glória, um dos pontos centrais investigados por Giorgio Agamben é a oikonomia trinitária. Ao realizar uma arqueogenealogia para o termo oikonomia, o pensador investiga os motivos pelos quais o poder foi assumindo a forma de uma oikonomia, ou de um governo dos homens, resultante na soberania da política ocidental. É a partir do tratado aristotélico que Agamben resgata seu significado – administração da casa (oikia refere-se à casa), em oposição à cidade – polis. Com o passar do tempo, essa oposição aristotélica oikos/polis foi esvaziada e os vocábulos economia e política relacionaram-se mutuamente, a ponto de não mais se distinguirem. Perscrutando diversos e inúmeros autores, desde os Pais da Igreja, passando por filósofos e pensadores da Antiguidade clássica e chegando aos contemporâneos, Agamben afirma que o termo oikonomia passa efetivamente a ter um caráter mais gerencial, assumindo-se como atividade de gestão, uma prática, e não uma episteme. No início da cristandade, o termo oikonomia move-se para a esfera teológica com o significado comum de plano divino de salvação, correspondente direto da ação redentora de Jesus Cristo. Como “[...] não há na realidade um ‘sentido’ teológico do termo, mas um deslocamento de sua denotação para o âmbito teológico, que aos poucos começa a perceber-se como um novo sentido” (AGAMBEN, 2011, p. 35), o autor propõe, através de uma investigação léxica, examinar o pressuposto significado teológico do termo, legitimado desde esse momento como o mais autêntico.
A pesquisa do vocábulo apontou para um delicado e decisivo problema na teologia cristã – a Trindade. Para o pensador italiano, no desejo de se evitar a quebra do monoteísmo e assim afastar definitivamente ideias politeístas, os Padres da Igreja utilizaram o termo para a formulação do dogma trinitário. A partir daí a oikonomia serviu, na história da Igreja, entre os séculos II e VI, para expressar certa pluralidade divina, não no plano do Ser de Deus, na ontologia, mas em sua práxis, no plano da economia.
Paulo de Tarso foi o primeiro a utilizar o termo grego para fins teológicos – foi-me confiada uma oikonomia, ou seja, algo confiado, como um dever, encargo, atividade ordenada a um fim, e não plano salvífico remetendo à vontade divina, tal como ficou notadamente conhecida. Agamben observa o forte tom doméstico dado por Paulo às comunidades cristãs, anunciando-as em termos muito mais econômicos que políticos; a economia paulina se expressa, portanto, como uma economia do mistério referindo-se à economia como atividade desenvolvida (pela criatura) para revelar a palavra (vontade) de Deus, que era a promessa de salvação – antes totalmente oculta e agora revelada.
O alargamento do termo oikonomia ocorreu, todavia, pelas mãos de importantes apologistas cristãos: Hipólito, discípulo de Ireneu de Lião, e Tertuliano, mais antigo autor a utilizar a palavra trindade. Hipólito é quem outorga novo sentido à oikonomia, invertendo o sintagma paulino economia do mistério em mistério da economia. A inversão da expressão paulina para “mistério da economia” oferece nova interpretação, uma vez que não há mais economia do mistério (atividade humana voltada para realizar e, consequentemente revelar o mistério divino) mas, misteriosa, torna-se, então, a própria pragmatéia (práxis divina). A atividade em si misteriosa, é efetuada por Deus e representada na relação da vida interna divina: articulação da vida trinitária e sua revelação ao mundo criado. A inversão da expressão original de Paulo parece ser consequência do complicado contexto histórico vivido pela Igreja, cujo problema maior era extremamente delicado e decisivo para a teologia cristã; esse imbróglio era a Trindade.
Desde o século II havia acirrada discussão acerca das figuras divinas, Pai, Filho e Espírito Santo, na qual o grande temor era um retorno ao politeísmo e ao paganismo. A melhor maneira que os teólogos Tertuliano, Hipólito, Ireneu e outros encontraram foi justamente a utilização do termo oikonomia. Desse modo, contra aqueles que entendiam ser impossível conceber as três pessoas e um único Deus (sob pena de cair no politeísmo ou paganismo), esses teólogos da Igreja primitiva recuperam o termo grego de administração da casa dando-lhe novo sentido: assim como em uma casa o pai delega tarefas e funções aos filhos, mas nem por isso tem seu estatuto de pai questionado, ou seja, sua autoridade comprometida, da mesma maneira o Pai confere a gestão, a economia, a administração dos homens a seu Filho, não sendo por isso rebaixada a sua condição suprema de Deus, que, quanto à sua substância, continua sendo uno e, quanto à economia, tríplice. E, nesse ensejo, “Hipólito inverteu de forma simples e frequente a expressão de Paulo em Ef 3: 9” (MOINGT apud AGAMBEN, 2011, p. 51).
Ao estancar o problema da unidade no Ser de Deus com a expressão paulina invertida mistério de oikonomia, outra fratura surge no interior da Igreja em torno das pessoas da trindade, pois se é Jesus Cristo quem revela o mistério de Deus, então: Jesus é Deus? O Filho estava junto do Pai desde os princípios eternos? E tantas outras questões careciam de respostas, de maneira a se tentar explicar e conciliar o Deus-Pai e sua ação (Jesus). O ser de Deus (substância, trindade imanente) e o seu governo no mundo (práxis, trindade econômica) executado por Cristo explicam-se com na unidade oikonomica – oikonomia como paradigma gerencial (teológico-econômico), não epistêmico. A doutrina da oikonomia elaborada pelos Padres da Igreja equivaleria à continuidade da supremacia monoteísta anulando, de todo modo, qualquer possibilidade de incorporação de outras figuras divinas. Nesse sentido, Agamben destaca a importância do termo à teologia: “O ser divino não é dividido porque a triplicidade de que falam os Padres se situa no plano da oikonomia, e não naquela da ontologia.” (AGAMBEN, 2011, p. 67).
Os Padres capadócios, especialmente Gregório de Nazianzo e Gregório de Níssa, foram os responsáveis pela melhor elaboração a respeito do dogma da trindade. São eles que buscaram suavizar a fratura entre ser e práxis – a ideia era não enfatizar a existência de duas esferas distintas: natureza /essência de Deus e sua ação salvífica (práxis), mas demonstrar a especificidade de cada uma das duas racionalidades. Essas duas racionalidades, se davam por modo relacional, ou seja, o ser e a práxis de Deus relacionam-se mútua e ordenadamente. A união entre ser e práxis, transcendência e imanência ocorre através da ideia de ordem (taxis), confirmada, curiosamente, por uma natureza econômica. O conceito de ordem, segundo Agamben, vem da teologia de Aristóteles, em que transcendência e imanência são apresentadas como distintas, sendo a transcendência superior à imanência e, na articulação de ambas, instala-se uma máquina (providencial), ou uma teoria de governo divino no mundo.
A fratura originalmente exposta entre transcendência e imanência, advinda do aristotelismo, é ressignificada pela teologia cristã, de modo que o Deus cristão é esse em que ordem transcendente e ordem imanente relacionam-se mutuamente, passando de uma para a outra. Então, se o ser de Deus, enquanto práxis de governo no mundo revela-se como uma oikonomia divina, Aristóteles, talvez sem querer, tenha legado à política do ocidente um paradigma econômico divino e gerencial.
Assim, temos que a oikonomia trinitária (articulações das três pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito Santo) e, o próprio governo do mundo (gubernatio) – coincidem-se reciprocamente, ou seja, tudo diz respeito a uma oikonomia divina. Desse modo, Agamben afirma que as práticas político-jurídicas do mundo ocidental revelam-se como uma oikonomia, uma vez que se referem a uma única gestão econômica e divina, sendo este, justamente, o legado da teologia cristã à modernidade.
A oikonomia como paradigma gerencial se apresenta como uma única máquina governamental da providência (do cuidado de Deus com o mundo criado), indo do campo teológico ao político; contrariando a teoria moderna (completa separação entre Igreja e Estado, fé e razão), e concordando com Carl Schmitt, a teologia não só permanece como teologia política como também modelou todo arcabouço político-jurídico moderno.27
O dogma da trindade, servindo-se da oikonomia trinitária, pôde oferecer à teologia cristã um instrumento adaptável àquela difícil situação, tanto da processão das pessoas da trindade, quanto do governo de Deus no mundo; no entanto, a suposta resolução deste problema, iniciada por Hipólito, ao inverter o sintagma paulino, não impediu a cesura entre Deus e sua ação, em outras palavras, a mesma oikonomia que uniu o ser trino de Deus também o dividiu, entre ser e práxis, entre articulação da vida divina e relação com o mundo criado, entre trindade imanente e trindade econômica.
Ao se distinguir a substância divina de sua economia, separa-se Deus, enquanto Ser, e Deus, enquanto seu agir. E este é o epicentro do Projeto homo sacer do pensador italiano – a dualidade expressa em ontologia e práxis, reino e governo, auctoritas e potestas, ordinatio e executio, teologia e economia, trindade imanente e trindade econômica, poder espiritual e poder temporal; todas elas sinalizam a herança deixada pela teologia cristã que concebeu o governo providencial do mundo, de maneira que toda a cultura política-jurídica ocidental está alicerçada numa máquina de poder bipolar. Agamben revela que a distinção entre o poder de ordenatio (ordenação) e o poder executivo, ordinis executio (execução da ordem) ocorre primeiramente no domínio teológico e não político, daí poder-se afirmar que a doutrina moderna da divisão de poderes estrutura-se no paradigma econômico. “Através da distinção entre poder legislativo ou soberano e poder executivo ou de governo, o Estado moderno assume para si a dupla estrutura da máquina governamental.” (AGAMBEN, 2011, p. 159).
A temática em que o pensador italiano se embrenha parece ser a grande questão dos teólogos ainda hoje: uma das mais importantes tarefas de Jürgen Moltmann em O Deus Crucificado é justamente reconstruir, através de sua theologia crucis, essa separação criada pela patrística entre o ser de Deus e sua práxis. No decurso de sua obra o teólogo critica, como visto acima, a tradição cristã, por reduzir a doutrina trinitária ao monoteísmo, pois está sempre pendendo a um dos lados, Deus ou Cristo, ontologia ou práxis. O dogma trinitário também não solucionou a fratura existente no interior da trindade na perspectiva do teólogo e, por essa razão, elaborou sua própria maneira de pensar entendendo a trindade pericoreticamente.
A dimensão pericorética moltmanniana não se funda na soberania divina única, mas na união da tri-unidade em que as três pessoas divinas vivem e revelam-se umas às outras, razão pela qual Moltmann se coloca ao lado de Rahner na defesa de que a trindade econômica é o imanente e, o imanente é o econômico. No círculo íntimo da vida divina é que as pessoas divinas se constituem, não havendo, pois, divisão.
Até aqui nota-se que Moltmann confirma a suspeita que Agamben provavelmente teve ao se debruçar sobre o conceito da oikonomia trinitária, dado que o referido termo foi o limiar de inúmeros problemas no domínio teológico, desdobrando-se para o político. A questão entre a essência e a revelação, interior e exterior de Deus uno e trino, teologia e economia, é tão resistente, segundo Agamben, que os teólogos modernos a apresentam sob a forma de trindade imanente e trindade econômica, ou seja, não é em vão todo o trabalho de Moltmann em torno do dogma trinitário– o teólogo o reformulou, afirmando que a teologia trinitária é a teologia da cruz, produzindo uma versão trinitária, segundo ele, mais real e próxima do ser humano. Ao seguir a tradição de Ireneu de Lião, Moltmann está mais preocupado com o rebanho do que com grandes formulações teológicas. Sua atenção está em trazer Deus novamente para a história, atenuando a divisão entre transcendência e imanência. Para o teólogo, Deus age trinitariamente na história da humanidade e está em todas as coisas, em outras palavras, a imanência permite a transcendência – essa é a questão que realmente importa para o teólogo da esperança. Com a vinda do Espírito Santo ao mundo, após a ressurreição de Cristo, Deus passa a agir diretamente na história, movendo- a para a transformação escatológica do mundo.
A visão de Moltamnn não é diferente do diagnóstico de Agamben quando este afirma que a oikonomia e o próprio governo do mundo (gubernatio) – coincidem-se reciprocamente, ou seja, tudo diz respeito a uma oikonomia divina. As práticas político- jurídicas do mundo ocidental revelam-se mediante a uma oikonomia, uma vez que se referem a uma única gestão econômica e divina. Se Deus é transcendente e imanente ao mesmo tempo, então O Reino é Governo e o Governo é o Reino. Moltmann comprova a tese de Agamben de que tudo diz respeito a uma única casa, a uma única oikos divina, única história de salvação, única economia: “[...] uma doutrina ecológica da criação hoje deve perceber e ensinar a imanência de Deus no mundo”. (MOLTMANN, 1985, p. 13-14).
Para o teólogo, as questões sobre Deus e o mundo criado estão resolvidas; a eterna pericorese entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo revela-se como o instrumento salvífico que culminará na plena unificação de todo o mundo. Já para o jusfilósofo, esse parece ser um tema em construção. Em Altíssima Pobreza, talvez Agamben esteja delineando a traços finos tal questão:
Também é obvio que uma forma de vida praticada com rigor por um grupo de indivíduos terá necessariamente consequências no plano doutrinal, que poderão levar – como de fato levaram – a conflitos e contrastes extremos com as hierarquias eclesiásticas; mas é precisamente sobre tais contrastes que se concentrou prevalecentemente a atenção dos historiadores, deixando em segundo plano o fato de que, talvez pela primeira vez, estava em jogo nos movimentos não a regra, mas vida, não o fato de poder professar este ou aquele artigo de fé, mas de poder viver de maneira determinada, praticando alegre e abertamente uma determinada forma de vida. [...] a reivindicação da pobreza e do usus pauper por parte dos franciscanos levou, a certa altura, a um conflito doutrinal interminável com a Cúria Romana, combatido por ambas as partes com abundância de argumentos não só teológicos, mas também jurídicos; [...] confrontada com essa “novidade”, a estratégia da Igreja consistiu, por um lado, em procurar ordená-la, regulá-la e confrontá-la de modo a canalizar os movimentos para uma nova ordem monástica ou inseri-los num movimento já existente; por outro, quando isso era impossível, deslocar o conflito do plano da vida para o da doutrina, condenando-os como heréticos. Em ambos os casos, o que continuava não pensado era praticamente a aspiração originária que havia levado os movimentos a reivindicar uma vida e não uma regra, uma forma vitae e não um sistema mais ou menos coerente de ideias e doutrinas – ou mais precisamente, a propor não uma nova exegese do texto sagrado, mas sua pura e simples identificação com a vida, como se eles não quisessem ler e interpretar o Evangelho, mas apenas vivê-lo. (AGAMBEN, 2014, p. 99-100).
À medida que autor mostra que a vida é que era suplicada e não a regra, uma vida que coincidia com a forma sem que isso fosse pesado, ou sofrido, não importando a doutrina, a dogmática, mas apenas a vida como tal, talvez se possa pensar que Agamben esteja a seu modo em paralelo com a proposta de Moltmann, a apresentar a transcendência na imanência, mas não mediada pela Igreja ou qualquer outro aparato, que decerto irá orientá- la, regulá-la, inserindo-a na rede da oikonomia:
Dessa maneira, na perspectiva que aqui nos interessa, o franciscanismo pode ser definido – e nisso consiste sua novidade, ainda hoje impensada e, nas atuais condições da sociedade, totalmente impensável – como a tentativa de realizar uma vida e uma prática humanas absolutamente fora das determinações do direito. Se chamarmos de “forma de vida” essa vida inatingível pelo direito, então podemos dizer que o sintagma forma vitae expressa a intenção mais própria do franciscanismo. (AGAMBEN, 2014, p. 116)
Portanto, enquanto para Moltmann essa vitalização ou, em outras palavras, essa vida especial, qualificada, já foi alcançada pelo envio do Espírito Santo à humanidade, de tal modo que todos agora podem ascender, para Agamben, diversamente, o paradigma oikonomico operativo, que está na figura do officium, ainda aprisiona e prevalece sobre esse puro existencial que ele denomina, forma-de-vida. A teoria do usus facti deve, ainda, procurar uma nova perspectiva para se confrontar com aquele velho e estável paradigma da operatividade.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A manobra feita pelos teólogos da Igreja Antiga resultou, segundo Agamben, em uma única gestão econômica e divina, de modo que o governo do mundo é o próprio governo divino. Nesse sentido, o paradigma gerencial no qual todos estamos inseridos, tem em seu cerne o dispositivo oikonomico, instituído desde o início por uma natureza bipolar (ontologia e práxis, auctoritas e potestas). Esse legado da teologia cristã estruturou toda a forma de poder ocidental, o que significa que os atos de governo já nascem indefinidos, uma vez que emergem de uma matriz dupla: no momento inicial de um ato de governo já existe, ali, a indeterminação entre o geral e o particular, entre o reino e o governo. É justamente desta indeterminação que resulta a estrutura do estado de exceção - também, desde o início, algo incerto impossibilitando a real distinção entre o reino e o governo, entre a lei e sua ausência. A oikonomia trinitária é, para o pensador italiano, a grande chave para se entender a máquina governamental produtora de violência e exclusão, que cria e conserva a cada dia o homo sacer e o estado de exceção. Já o olhar de Moltmann sob o dogma trinitário, embora profundamente crítico dentro do campo teológico, parece ter resolvido a questão ao afirmar que a teologia da cruz é a teologia trinitária, dada a dimensão pericorética entre elas, e que a humanidade segue com a imanência de Deus no mundo, pelo Espírito Santo. Agamben continuará, ao longo de suas obras, a se debruçar sobre a instauração e as consequências da maquinaria de poder; Moltmann, como bom pastor, desejará manter as ovelhas cheias de esperança, a qual, transformada em confiança e certeza, possa lhe dar a vida em Cristo.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza: regras monásticas e formas de vida. São Paulo: Boitempo, 2014.
AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. São Paulo: Boitempo, 2011.
CASEIRO, Eduardo Domingues. O drama original: a «kénosis» intradivina segundo Hans Urs von Balthasar no quadro da problemática da (i) mutabilidade e (im) passibilidade de Deus: uma leitura a partir da Teodramática. 2017. Dissertação. (Dissertação em Teologia) - Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia, Lisboa.
LADARIA, Luis F. O Deus vivo e verdadeiro: o mistério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005, p. 82-98.
MOLTMANN, Jürgen. El Dios crucificado la cruz de Cristo como base y critica de toda teología cristiana. Salamanca: SIGÚEME, 1975.
MOLTMANN, Jürgen. God in creation: an ecological doctrine of. London: SCM, 1985.
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1999.
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e o Reino de Deus: uma contribuição para a teologia. Petrópolis: Vozes, 2000.
Notas