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RELIGIÃO,VIOLÊNCIA E POLÍTICA NO BRASIL: vivemos em uma Democracia ou em um Estado de Exceção?

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RELIGIÃO,VIOLÊNCIA E POLÍTICA NO BRASIL:vivemos em uma Democracia ou em um Estado de Exceção?

Glauco BARSALINI
Pós-Doutor em Teologia pela Loyola University Chicago e Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Mestre em Multimeios pela UNICAMP (2001), bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UNICAMP (1995; 1997), bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas (2002)., Brasil

RELIGIÃO,VIOLÊNCIA E POLÍTICA NO BRASIL: vivemos em uma Democracia ou em um Estado de Exceção?

Interações, vol. 15, núm. 1, 2020

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 23 Octubre 2019

Aprobación: 14 Mayo 2020

Resumen: 1Apesar dos avanços que se pode perceber na Nova República brasileira, no que concerne aos direitos humanos, em que se incluem os direitos das minorias, bem como os direitos difusos, observa-se, no contexto da própria democracia, a escalada dos discursos e das propostas políticas de cunho ultraconservador, notoriamente também lastreadas em movimentos religiosos de caráter moralista. Seria este um fenômeno atípico, anacrônico e desconectado das estruturas de poder do Brasil? Ou ele é apenas uma das faces, talvez a mais reveladora, da forma como se constitui a política e a economia neste país, e que ganha, nos últimos tempos, enorme visibilidade, galgando o podium da política institucional nacional ao ter, como seu porta-voz, o próprio presidente da República? O caráter quase nada dialógico dessa forma de fazer política, arvorada na intolerância e no sectarismo, indica uma anomalia na tradição política brasileira ou demonstra, sem qualquer prurido, o caráter autoritário e violento de nosso Estado e de nossas elites políticas, sociais e econômicas? No vértice da teologia política, este artigo pretende investigar as relações entre a religião, a violência e a política no Brasil, entendendo que estamos, ainda, muito distantes de um estado, de fato, democrático.

Abstract: Despite the advances we can see in the Brazilian New Republic regarding human rights, including minority rights, as well as diffuse rights, there is, in the context of democracy itself, the rise of political discourses and proposals ultra-conservative, notoriously also backed by religious movements of a moralistic character. Is this an atypical, anachronistic phenomenon, disconnected from Brazil's power structures? Or is it just one of the most revealing faces, perhaps, of the way in which politics and economy are constituted in this country, and which has gained enormous visibility in recent times, extending the podium of national institutional politics by having, as its representative, the President of the Republic himself? Does the non-dialogical character of this form of politics, based on intolerance and sectarianism, indicate an anomaly in the Brazilian political tradition or demonstrates, without any qualms, the authoritarian and violent character of our state and our political, social and economic elites? In the context of political theology, this article intends to investigate the relations between religion, violence and politics in Brazil, understanding that we are still very far from a de facto democratic condition.

Keywords: Religion, Politics, Violence, Brazil, Political theology.

Palavras chave: Religião, Política, Violência, Brasil, Teologia política

1 INTRODUÇÃO

Apesar do discurso de matiz democrática que se hegemoniza dentre os formadores de opinião, os políticos e os meios de comunicação em geral, pode-se observar, nos últimos tempos, em parte expressiva do ocidente, e no Brasil, nova escalada de políticos que se associam a discursos de ódio e autoritários. A compreensão desse fenômeno não é de fácil explicação, e vários intelectuais, filiados a diferentes linhas analíticas, têm dedicado esforços para satisfazê-la.

Em vista do caso brasileiro, procurarei interpretar essa problemática a partir de referenciais de nossa sociologia, em articulação com subsídios oferecidos pela teologia política. O percurso a ser feito aqui é a discussão sobre a intrínseca ligação entre a violência e a política, compreendendo que esta, na contemporaneidade, não se separa, em momento algum, da teologia.

A par de sociólogos brasileiros como Florestan Fernandes, Antonio Flávio Pierucci, Ronaldo de Almeida e Regina Novaes, os autores de fundo para esta análise são Max Weber, Carl Schmitt e Giorgio Agamben.

Objetiva-se compreender porque os avanços sobre os direitos humanos, das minorias e do meio ambiente, e a perspectiva da solidariedade entre os seres humanos, que pareciam estar consolidados, veem-se, agora, tão fortemente ameaçados pela recente ascensão política de protagonistas ultraconservadores, com sua retórica moralista e seus ataques aos direitos individuais, coletivos e difusos e, ao mesmo tempo, de ultraliberais, obstinados em destruir direitos outrora conquistados, que conferiam certas garantias trabalhistas, previdenciárias, educacionais e ambientais.

2 RELIGIÃO, VIOLÊNCIA E POLÍTICA: VIVEMOS EM UMA DEMOCRACIA OU EM UM ESTADO DE EXCEÇÃO?

Em um texto intitulado Bolsonaro Presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira (2019), Ronaldo de Almeida lembra da afirmação que Antonio Flávio Pierucci faz em um artigo escrito em 1987: As bases da nova direita (PIERUCCI, 1987). Analisando a conjuntura política brasileira da época, Pierucci identifica um movimento associativo entre segmentos religiosos sectários e militares – bloco que, embora pequeno, naquele momento, era “[...] bem barulhento no Congresso Constituinte [...]” (PIERUCCI apud ALMEIDA, 2019, p. 211). Escreve:

É que sua [o moralismo] penetração na massa é enormemente facilitada por sua dupla e vantajosa aliança: com a extrema direita da mídia policial e com a extrema direita evangélica, esta igualmente midiática (linhagens estas da extrema direita que também se fazem representar no parlamento) [...]. Este novo espaço sociocultural para a extrema direita, representado por denominações cristãs fundamentalistas, converge no seu anticlericalismo específico com o outro, o anticlericalismo-de-caserna-e-delegacia para acusar a arquidiocese de São Paulo de pactuar com os delinquentes através da política dos direitos humanos. (PIERUCCI apud ALMEIDA, 2019, p. 212).

A nova república brasileira mal iniciava sua trajetória democrática e já estavam, ali, como pedras de sua fundação, institucionalizados, grupos representantes da moralidade da família tradicional, associados aos militares, em um contexto de construção de uma República frágil, na linha do que diagnosticava Florestan Fernandes (1989), ao identificar o acordo conservador entre a burguesia brasileira e os militares, garantindo-se, por meio de um congresso constituinte (e não de uma Assembleia Constituinte), uma transição do regime militar para o democrático, harmônica com os fundamentos da ideologia da segurança nacional.

O crescimento exponencial do segmento evangélico na sua face pentecostal (e neopentecostal), que se apresenta entre o início dos anos 1990 e o ano 2010, pulando, nesses 20 anos, de 9% em 1991 para 22,2% em 2010 (IBGE apud NOVAES, 2017, p. 12) e a cisão interna da Igreja Católica que divide praticamente a metade de seus fiéis entre conservadores e progressistas, associados à disputa no cenário público pela institucionalização das pautas conservadoras, em que evangélicos2 se comportam “[...] como religião pública com pretensão reguladora do mundo secular [...]” (MONTERO apud ALMEIDA, 2019, p. 208) – e, aqui, incluo católicos conservadores, que se alinham nesse empreendimento político,3 culmina na consolidação de uma ampla bancada parlamentar resultante da aliança entre ruralistas, militares e religiosos, vulgarmente chamada por BBB – boi, bala e bíblia.4

Há, nesse contexto, a confluência de três importantes segmentos, cujas práticas políticas opõem-se radicalmente, desde o seu surgimento, a qualquer perspectiva inclusiva, especialmente nos âmbitos de sua tônica: um, econômico – titular da economia mais profunda do Brasil, a agrária (com a qual a burguesia urbana brasileira esteve associada desde a sua origem); outro, militar – grupo hegemônico no exercício do poder soberano em nosso país ao longo de toda a República; e, finalmente, outro, religioso, de cariz conservador. Juntos, reúnem as forças mais atávicas de nosso estado-nação, marcando profundamente nossa experiência moderna e contemporânea, que viu, na sua história, momentos muito curtos em que se pôde apenas ensaiar possibilidades de construção de um Estado afinado com projetos emancipatórios associados às demandas de uma sociedade plural, cuja população é, desde a sua constituição, predominantemente pobre.

Pode-se pensar que a conjugação de tais forças resulta da liberdade que os diversos núcleos de interesse têm em se conectar na esfera pública. Ganham força, entretanto, diante de realidade como a brasileira, em que o conservadorismo impera desde as origens do Estado, as seguintes perguntas: vivemos, realmente, em uma democracia, ou nossa democracia, historicamente conservadora, disfarça um estado de exceção de fundo, que subjaz mesmo nos curtos intervalos nos quais se apresentam indícios de avanços em relação às demandas sociais – a exemplo do período Jango (no início da década de 1960) e do tempo em que o PT ocupou a Presidência da República – experiências embrionárias cuja incompletude se deveu aos golpes políticos sucedidos por governos conservadores e de perfil autoritário? O que temos realmente aqui: o simples predomínio das forças conservadoras no poder soberano ou, muito mais do que isso, um poder soberano constituído nas bases do conservadorismo, pela sua própria genética, impermeável à efetivação de pautas associadas ou diretamente originárias das demandas dos pobres, dos trabalhadores e dos grupos não hegemônicos – as minorias? E como explicar a não tão recente, porém agora na maior das evidências, associação entre o ultraliberalismo econômico e o ultraconservadorismo ideológico e religioso? Como duas orientações aparentemente tão diferentes, aliás, em princípio opostas entre si, podem declarar mútuo casamento, como verbalizou o próprio atual presidente da República brasileira, Jair Bolsonaro, ao referir-se, ainda mesmo enquanto candidato, ao seu ministro da economia, Paulo Guedes?

Minha hipótese é de que o Estado brasileiro não é, desde a sua origem, um lugar público apto a ocorrerem, de forma efetivamente livre, disputas sociais, religiosas, econômicas e políticas, mas sim capturado por um poder soberano caracteristicamente unitário e ultraconservador, fundamentalmente violento e excludente, que se expressa por diferentes formas, em governos constituídos nas bases da retórica de esquerda ou de direita, no mais das vezes, de direita. Esse poder não abre qualquer possibilidade para que governos, mesmo os bem intencionados e comprometidos com projetos de emancipação política, cultural, social e econômica das classes populares, consigam definitivamente avançar em tais projetos, consolidando-os de qualquer maneira. Na mesma linha, considero que o poder econômico aqui estabelecido, desde a colônia, com todas as suas implicações nos âmbitos social e do desenvolvimento tecnológico, inclusive na formação técnica de trabalhadores e profissionais das mais variadas áreas – não transpõe, um milímetro sequer, sua característica servil em âmbito global, de modo que mesmo o ultraliberalismo econômico – apenas aparentemente dicotômico à discursiva tradicionalista e moralizante catalisada atualmente por políticos e pastores evangélicos, bem como por padres e demais lideranças religiosas exclusivistas – pode encontrar ressonâncias e quase total harmonia com esse Estado conservador.

Tais hipóteses reclamam um estudo de muito maior fôlego do que este que apresento aqui, que passa, inclusive e especialmente, pelo conhecimento sobre as possíveis influências do movimento ultramontano católico na constituição da República brasileira e pelos conflitos e/ou possível atípica confluência dele com o positivismo que os fundadores dessa etapa política nacional, especialmente militares e bacharéis, adotaram; pela repercussão que o pensamento conservador católico, em disputa com o pensamento secularizado de conotação laica teve na construção do modelo moderno de Estado em nosso país, entre os anos 1930 e 1960; pela influência ativa (de caráter conservador) e reativa (associada à Teologia da Libertação) dos movimentos políticos que a Igreja Católica e as Igrejas Protestantes assumiram junto à sociedade brasileira e ao Estado nos anos 1960 a 1980; pela força que a política conservadora do Papa João Paulo II teve sobre a Igreja no Brasil, em paralelo ao crescimento do pentecostalismo na política institucional brasileira a partir dos anos 1980 até a primeira década dos anos 2000; e, agora, pela repercussão dos conflitos internos da Igreja, que convive com a existência de dois papas, representantes de linhas políticas diferentes entre si, um emérito (Papa Bento XVI) e, outro, em plena atividade de governo (o Papa Francisco), em disputa hegemônica com os pentecostais, especialmente os neopentecostais.

Não fiz, até o momento, essa trajetória, embora tenha várias hipóteses a respeito da ligação dos diferentes movimentos religiosos com o Estado brasileiro, em suas diferentes épocas. Pretendo, todavia, em projeto futuro, proceder a levantamento mais detalhado de estudos desenvolvidos sobre o pensamento conservador católico, os fundamentalismos evangélicos, a teologia pública, a teologia da libertação, a política e a religião no Brasil, destacando-se entre outros, os realizados pelo Grupo de Pesquisa Teologia Pública em Contexto Latino-Americano (PUC-PR), pelo Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT-PUC Minas), pelo Laboratório de Antropologia Religiosa (LAR-UNICAMP), pelo Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa (UCP) e pelos grupos de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas, além de investigações pertinentes a essa temática, que se apresentam nos encontros regulares do GT Religião e Espaço Público (SOTER) e na ST Religião, Espaço Público e Política (ANPTECRE).

Dedicarei, todavia, nas próximas páginas, espaço para traduzir alguns conceitos centrais próprios ao território da Teologia Política sobre o poder soberano estatal e sua ligação intrínseca com a violência e a teologia – e, com ela, a própria religião, enquanto poder normativo, os quais, em meu entendimento, trazem chaves de análise bastante importantes para a compreensão do Estado brasileiro.

Max Weber (1982) define o Estado como “[...] uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território.” (WEBER, 1982, p. 98). Não há, pois, conforme o sociólogo, Estado que não tenha a vocação para o exercício exclusivo da violência sobre o seu povo. Vale, aqui, traçar paralelos entre a teoria sobre o Estado, weberiana, e a que seu aluno, Carl Schmitt (2006), formulou. Como procurei demonstrar em outra oportunidade,5 de acordo com o jurista alemão, “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção.” (SCHMITT, 2006, p. 7), a exceção à lei, concedida por ela própria. Embora tal soberano seja o povo, seu condutor exerce a legítima dominação de Estado e deve decidir sobre o uso da força física. Estado e povo não se confundem e, sendo assim, o líder estatal, legítimo representante do poder popular, é o único que tem a licença para decidir, em última instância, sobre o uso ou não da força física. É inequívoca a fonte hobbesiana dessa concepção. O pensamento schmittiano é antiliberal. Seu formulador concebe que a lei não pode limitar o poder soberano sob pena de o Estado ver-se cair na mais profunda anarquia. A lei (ou Constituição) pode, no máximo, indicar quem deve agir no caso limite mas, como dito, nunca delimitar o seu poder em razão do caso excepcional; afinal, “[...] o caso não descrito na ordem jurídica vigente pode ser, no máximo, caracterizado como caso de extrema necessidade, como risco para a existência do Estado ou similar, mas não ser descrito com um pressuposto legal.” (SCHMITT, 2006, p. 8). Reside, aqui, o problema do decisionismo. Para Schmitt, a lei apresenta lacunas, razão pela qual se faz necessário o reconhecimento da decisão – não de uma decisão delimitada pela norma, ou de um decisionismo estritamente jurídico, originário apenas e tão somente da regra, como defende o jurista neokantiano Hans Kelsen (1998), mas de uma decisão que cria a norma, um decisionismo político que, claro, é também jurídico, na medida em que cria a regra. Nessa fórmula, o soberano está dentro e fora, ao mesmo tempo, da lei, decidindo “[...] tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como o que se deve fazer para saná-lo.” (SCHMITT, 2006, p. 8). Afinal “[...] o soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser suspensa in toto.” (SCHMITT, 2006, p. 8). Para Schmitt, não reconhecer esta natureza mesma do poder soberano significa criar um tal estado de condições em que os poderes, institucionalmente divididos, se equilibram e se obstruem reciprocamente, inviabilizando a decisão.

Estão em jogo, aí, ao menos duas questões: a do poder soberano como unidade indivisível e a do poder soberano como poder de decisão. Pensar o poder soberano como unidade indivisível significa, na perspectiva schmittiana, afastar em absoluto o conceito de tripartição de poderes, ou demover o que ele considera ser a confusão promovida pela democracia burguesa entre soberano e legislateur. Para ele, a lei não pode delimitar o poder do soberano. O que ela pode, no máximo, é dizer quem é o soberano. Querer que a lei delimite o poder do soberano significa negá-lo.

O problema de fundo desse debate é teológico-político. A pergunta que mobiliza toda a discussão sobre o decisionismo moderno é se aquele que cria a lei (Deus, ou, modernamente, o povo) deve se submeter completamente a ela ou pode subvertê-la, justamente por ter o poder de criá-la. O modelo tripartite preenche a primeira tese. Nele, a legislação é soberana, e todo o poder que dela advém precisa obedecê-la a fim de que se mantenha a ordem. O modelo unitário, todavia, pressupõe o poder anterior à lei, realizado pelo povo ou por seu representante, liderança que o personifica.

Faço, agora, uma digressão para a nossa realidade brasileira. Em sua tradição, a retórica jurídica por aqui tem se esforçado por hegemonizar uma perspectiva constitucionalista do poder e do direito: a ideia de que vivemos em uma democracia legal e política, em um Estado constituído por três poderes distintos e independentes entre si, lugar das legítimas disputas públicas entre os diversos segmentos da sociedade. Na chave desse discurso, os períodos ditatoriais que experienciamos constituem-se como anomalias inesperadas, indesejadas, simples exceções à regra.

Não me parece, contudo, que tal narrativa faça verdadeiro sentido na ordem do dia. No Brasil reina, desde as suas origens, uma composição de forças de grupos político- econômicos internos sintonizados, em seus interesses e ações, com a política internacional empreendida pelos países imperialistas e pelo capital que eles articularam e ainda articulam em torno do seu poder. Essas forças externas desenharam, desde sempre, um projeto de desenvolvimento civilizatório muito acanhado para os países a elas submetidos, o que, no caso brasileiro, encontra boa ressonância com a visão de mundo de sua classe dirigente que forjou, na história de nossa República, algum tipo de retórica liberal6 para justificar, no plano do discurso, a sua democracia, mas que nunca abandonou, no fundo, nas bordas, no centro e no topo do exercício de seu poder, o mais radical preconceito contra o seu próprio povo e uma típica forma de praticar o poder de modo violento. A ideia de que o poder soberano, no Brasil, se ergue sobre três poderes autônomos e em mútuo equilíbrio, não passa de miragem. O poder soberano, no Brasil, é unitário, autoritário e violento. Aqui, os que criaram as regras podem, livremente, intervir nelas a qualquer momento e, até, criar novas regras. Mas esses protagonistas do poder nunca se confundiram com o povo: são, eles, uma oligarquia, hábil em disseminar, de modo muito eficaz, o espírito de sua mentalidade – o moralismo e a disposição pela criminalização dos pretos, das mulheres, dos retirantes, dos índios, dos pobres, dos LGBT+, sempre acompanhada pelo sistemático e irrestrito modus operandi excludente e violento de seus juízes e de sua polícia.

Jessé Souza (2017) descortina, com êxito, a imbricação entre o preconceito e a luta de classes no Brasil, que resulta na perpetuação da escravidão dos pobres. Demonstra como as barreiras educacionais e culturais que se impõem a eles impede, à maioria de seus membros, de ascenderem socialmente. A combinação do preconceito com os interesses econômicos da classe média e da burguesia nacionais lança os pobres na condição de desqualificados para o trabalho, que pressupõe níveis de desempenho intelectual relativamente elaborados e, também, de espiritualmente desclassificados, criando um senso comum de que seu fracasso social e econômico se deve à sua incapacidade interna de vencer na vida. Tal como os escravos, os trabalhadores pobres no Brasil moderno e atual – a ralé – não podem ser mais do que simplesmente os braços dos endinheirados, mera ferramenta de desempenho de atividades que estes se recusam a realizar. Vale transcrever a seguinte análise de Souza (2017):

Hoje em dia, o capitalismo financeiro começa a criar sua própria classe trabalhadora crescentemente precarizada e ameaçada pelo desemprego e corte de direitos. Pior ainda. Parte dela se identifica com os opressores e se imagina “empresário de si mesmo”. A competição tende a superar a solidariedade de classe como efeito de vários fatores. A conquista dessa nova classe trabalhadora precarizada – que um marketing míope e pouco inteligente do próprio PT chamou de “nova classe média” – será o principal desafio para qualquer perspectiva crítica no espectro político do futuro. (SOUZA, 2017, p. 108).

Faltam-me, aqui, dados efetivos sobre as proporções numéricas da disposição desse conjunto de pessoas, integrantes dessa classe trabalhadora precarizada, em aderirem às vertentes religiosas e aos discursos das lideranças políticas conservadoras.7 Parece-me consistente, todavia, a hipótese de que elas se constituem como base importante dos avanços dos movimentos carismáticos, da teologia da prosperidade, e das conquistas no plano da política institucional de tais lideranças.

No livro O reino e a glória, o filósofo contemporâneo Giorgio Agamben (2011) realiza profunda associação entre a teologia e a economia. Explorando os fundamentos do liberalismo, recorda-se da passagem de Nicole e Pascal, de que “[...] não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos nossa refeição, mas do zelo que têm por seus próprios interesses [...]” (AGAMBEN, 2011, p. 306-307). Agamben destaca que “[...] é nessa perspectiva que deveria ser investigada a genealogia da célebre imagem da ‘mão invisível’.” (AGAMBEN, 2011, p. 307). E prossegue:

Como se sabe, ela aparece duas vezes na obra de Smith: a primeira, na Teoria dos sentimentos morais, e a segunda, no capítulo 2 do livro IV da Riqueza das nações:

“todo indivíduo ... dirigindo sua indústria para aumentar tanto quanto possível o valor de seu produto, não pensa senão em seu próprio interesse; mas nisso, como acontece amiúde, é conduzido por uma mão invisível para um fim que não estava absolutamente entre suas intenções; e não está dito que seja um mal para a sociedade que ele ignore esse fim.”

Não há dúvida alguma de que a metáfora tenha origem teológica. Ainda que a derivação imediata deva ser procurada com toda probabilidade em autores cronologicamente mais próximos dele, nossa investigação sobre a genealogia do paradigma econômico providencial levou-nos a cruzar casualmente e várias vezes com a mesma imagem. Em Agostinho, Deus governa e administra o mundo, desde as coisas grandes até as pequenas, com um gesto oculto da mão (“omnia, maxima et minima, oculto nutu administranti”, Gn 3,17,26); no tratado sobre o governo do mundo de Salviano, não só os impérios e as províncias, mas também os mínimos detalhes das casas privadas são guiados “quasi quadam manu et gubernaculo” [como por uma mão e com governo]; Tomás de Aquino fala no mesmo sentido de uma manus gubernatoris [mão de governante], que sem ser vista, governa o criado; em Lutero, no De servo arbitrio, a própria criatura é mão (Hand) do Deus escondido; por fim, em Bossuet, “Dieu tient du plus haut des cieux les rênes de tous les royaumes; il a tous les coeurs en sa main [Deus tem do mais alto dos céus as rédeas de todos os reinos; tem todos os corações em sua mão]. (AGAMBEN, 2011, p. 307)

A associação entre o Deus soberano da política, Deus que está acima de tudo, inclusive de um governo que, por sua vez, está acima de todos, e o Deus soberano da economia, o todo poderoso Mercado, tão passional como o Deus do antigo testamento, conforme os analistas econômicos da grande mídia insistem, diariamente, em metaforizar, conflui para a consolidação de uma fórmula de poder unitário, tirânico e violento como tende a ser qualquer perspectiva de mundo que se nega a compreender e a integrar-se ao mundo da pluralidade e das diferenças.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Nova República brasileira completou trinta e quatro anos e presenciou, em seu curto tempo de vida, uma eleição presidencial indireta e dois impeachments de presidentes. Nesse breve período, dos cinco presidentes eleitos, apenas dois completaram seus mandatos: Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva, tendo sido este, apesar da alta margem de intenções de voto de que gozava, inviabilizado de disputar as eleições presidenciais de 2018, por uma polêmica decisão judicial.8

Um dia antes da promulgação da Constituição Brasileira vigente, Florestan Fernandes publicou, no Jornal Folha de São Paulo, artigo intitulado A Constituição de 1988: conciliação ou ruptura?,9 expressando:

A Constituição de 1988 vem à luz com data marcada para sofrer uma revisão global e contém mecanismos que remetem a revisões parciais seguidas e constantes. Foi posta sob um signo do precário, durante a sua elaboração e posteriormente. Ela não responde às exigências da situação histórica. [...] Sufocada pelo poder do dinheiro; tisnada por uma hegemonia de classe, que sequer se deteve diante da mercantilização do voto; oprimida pelo arbítrio de uma “Nova República”, que prolonga a ditadura através de seus métodos, práticas políticas, militares e policiais; vergada pela corrupção, manejada pelo Governo e pelo grande capital nacional e estrangeiro; incapaz de sustentar-se sobre um poder originário e soberano: ela veio para durar pouco e servir de elo ao aparecimento de uma constituição mais democrática, popular e radical.

Sua principal missão consiste em limpar o terreno minado pela ditadura, prepará-la para outro plantio, mais generoso e fértil. A ditadura, a “Nova República” e o bloco histórico no poder enredaram-na na “conciliação conservadora” e tentaram submetê-la, por fora e por dentro dela mesma, à “transição lenta, gradual e segura”. Foi uma vitória dos constituintes “radicais” e de “esquerda” que isso não fosse levado até o fim e até o fundo. No entanto, as sementes reacionárias e conservadoras vingaram e tiveram a seu favor entidades parlamentares, como o Centrão, ou civis, como a UBE e a UDR. A minoria remou contra a corrente. Mas possui muita força. O pêndulo balançou contra a democracia, contra a Nação e anulou todas as rupturas que deveriam ser desencadeadas pela Assembléia Nacional Constituinte e, depois, a pleno vapor pela própria Constituição. (FERNANDES, 1989, p. 360-361).

Apesar do diagnóstico realista, Fernandes demonstra profundo otimismo, confiando na potência da carta constitucional em possibilitar futuras conquistas aos trabalhadores, garantindo que as reformas estruturais, então reprimidas, ocorressem.

É bem verdade que os brasileiros puderam ver, na sequência da Constituição de 1988, a criação de legislações ambientais (como a Lei de Crimes Ambientais) e protetivas dos direitos humanos e das minorias (a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha, o Estatuto do Idoso, a Lei de Migração – publicada apenas em 2017, dentre outras). Todavia, assistiram e assistem, também, ao sistemático e generalizado desrespeito a tais legislações – praticamente naturalizado na cultura brasileira – e, mais recentemente, ao franco e obstinado ataque discursivo e político, por grupos de poder, contra o espírito que as norteia.

Mas os brasileiros não viram, desde 1988, a regulamentação – e, tampouco, a instalação – de reformas estruturais que implicassem, efetivamente, na reinvenção da ordem política e econômica que têm, desde as origens do Brasil, garantido a esmagadora concentração de poder e de riquezas nas mãos dos oligarcas do país e dos países e grupos estrangeiros que por aqui atuam.

O recente avanço dos discursos e das propostas políticas de caráter ultraconservador, vinculados a movimentos religiosos moralistas, não estão desconectados das estruturas do poder soberano no Brasil. Eles evidenciam, sem máscaras e sem qualquer constrangimento, o que ele de fato é: intolerante, preconceituoso e violento.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória. São Paulo: Boitempo, 2011.

ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro Presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, v. 38, jan.-abr. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002019000100010. Acesso em: 20 set. 2019.

BARROS, Douglas Ferreira. Atuação teológico-política exclusivista: confrontos em torno de religião e direitos no Brasil contemporâneo. In: SOTO, Boris Briones; HIJERRA, Stefanie Butendieck; CAU, Cremildo António; OPAZO, Andrea Monsálvez. (org.). Breviario multidisciplinario sobre el fenómeno religioso. Buenos Aires: CLACSO, 2019, v. 01, p. 12-400.

BARSALINI, Glauco. Direito e política na obra de Giorgio Agamben: soberania e estado de exceção permanente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2013.

FERNANDES, Florestan. A constituição inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Martins Fontes: São Paulo, 1998.

NOVAES, Regina. Os evangélicos e a política: reflexões necessárias. In: KUZMA, Cesar; VILLAS BOAS, Alex. (org.). Religiões em Reforma: 500 anos depois. São Paulo: Paulinas, 2017, v. 1, p. 9-20.

PIERUCCI, Antônio Flávio de Oliveira. As bases da nova direita. In: Novos Estudos CEBRAP. Artigos. São Paulo, ed. 19, v. 3, dez. 1987. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/produto/edicao-19/. Acesso em: 11 maio 2020.

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SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982.

Notas

1 Este artigo resulta de comunicação realizada em Mesa Temática, em 9 de outubro de 2019, no IV CONACIR – Religião e Democracia, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Agradecimentos especiais aos alunos do Programa, organizadores do evento científico e ao presidente da comissão organizadora, Prof. Dr. Emerson Sena da Silveira.
2 Importante observar que não se fala, aqui, de todos os evangélicos, mas dos que se filiam à perspectiva conservadora, exclusivista. Nesse sentido, o tratamento que Douglas Ferreira Barros (2019) tem feito sobre a questão é, no meu entendimento, o mais adequado. Ele define o campo da teologia política exclusivista, em que seus protagonistas, religiosos conservadores, propõem uma compreensão da comunidade a partir de certas fundamentações teológicas, associadas a uma prática política exclusivista, no espaço público.
3 Segundo Almeida (2019), no caso das últimas eleições presidenciais, ocorridas em 2018, conforme publicação do DataFolha em 25 de outubro de 2018, 29.795.232 de eleitores católicos votaram em Bolsonaro e 29.630.786 de eleitores católicos votaram em Haddad (uma diferença de apenas 164.446 votos – o que demonstra uma comunidade e, talvez, uma Instituição bem dividida), ao passo que 21.595.284 de eleitores evangélicos votaram em Bolsonaro contra 10.042.504 para Haddad, computando-se uma diferença de 11.552.780 votos para o candidato evangélico. (ALMEIDA, 2019, p. 206).
4 Destacando a relação entre a bancada evangélica e a bancada da segurança, Ronaldo Almeida (2019) escreve: “Boa parte dos que falam em nome dos evangélicos apoia uma maior ação repressiva dos aparelhos de segurança do Estado. Cerca de dois terços dos deputados evangélicos votaram a favor da redução da maioridade penal [...]. A atuação da bancada evangélica tem servido como linha auxiliar dos interesses dos aparelhos de segurança pública e privada. Em resumo, o conservadorismo religioso oscila entre resistir às mudanças (só existem famílias heterossexuais, por exemplo), provocar mudanças regressivas (o aborto é criminalizado em qualquer situação, o que retroage à legislação de 1943) e aderir a certos valores deste mundo (a ética empreendedora e o aumento da violência do Estado)”. (ALMEIDA, 2019, p. 209).
5 Este parágrafo, e o que a ele se segue, reproduzem, com algumas modificações, texto anteriormente escrito por mim, e publicado em livro sob o título Direito e Política na obra de Giorgio Agamben: soberania e estado de exceção permanente (BARSALINI, 2013). Os referidos trechos estão nas páginas 63-64, 75-77.
6 Ensaio, aqui, um diálogo com Jessé Souza (2017), especialmente a partir de A elite do atraso.
7 Intenciono fomentar e colaborar para pesquisas futuras pelas quais se possa mapear o perfil de classes, cruzado com o perfil religioso dos eleitores conservadores. Embora não realize exatamente essa tarefa, é importante, para esse estudo, a leitura da pesquisa coordenada por Isabela Oliveira Kalil (2018), coordenadora do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual (NEU), vinculado à Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), intitulado Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro, bem como de notícias e dados apresentados no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU (2020). A pesquisa que pretendo realizar, todavia, não deverá restringir-se ao recorte das eleições presidenciais de 2018; terá caráter prospectivo e deve abrir-se a um espectro bem mais amplo do que as eleições para presidente da República.
8 A sentença condenatória de Lula tem sido questionada por diversos juristas nacionais, vide o livro Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula, organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom e João Ricardo Dornelles (PRONER et al, 2017); e internacionais, veja-se matéria da Revista Exame: Indignados, juristas estrangeiros pedem que STF liberte Lula (REVISTA EXAME, 2019).
9 Artigo publicado no livro de sua autoria, intitulado A Constituição inacabada: vias históricas e significado político (FERNANDES, 1989).
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