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TEXTOS QUE ABREM PORTAS: Leitura Popular da Bíblia apresentada a partir de textos bíblicos
TEXTS THAT OPEN DOORS:The Popular Reading of the Bible presented from biblical texts
Interações, vol. 15, núm. 1, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS



Recepción: 19 Febrero 2019

Aprobación: 16 Abril 2020

Resumen: A Leitura Popular da Bíblia foi/é uma das grandes contribuições da interpretação que a Igreja no Brasil fez das intuições do Concílio Vaticano II. Nesta trajetória, Carlos Mesters e o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) são grandes expoentes. A preocupação com um método de leitura da bíblia que contribuísse (e tivesse significado) para a vida das pessoas foi um dos objetivos centrais. O uso de leituras bíblicas como síntese metodológica e a compreensão do êxodo como evento fundante também marcam este estilo hermenêutico. O presente artigo visa fazer uma recapitulação desse processo a partir de uma literatura próxima do CEBI, bem como sinalizar possibilidades hermenêuticas para uma leitura bíblica a partir dos jovens.

Abstract: The Popular Reading of the Bible was / is one of the great contributions of interpretation made by the Church in Brazil to the institutions of Second Vatican Council. In this trajectory, Carlos Mesters and the Ecumenical Center for Biblical Studies (CEBI) are its main figures. The concern with a method of reading the Bible that contributed (and had meaning) to people's lives was one of the central objectives. The use of biblical readings as a methodological synthesis and the understanding of the exodus as a founding event has marked as well this hermeneutic style. The aims of this article is to recap this process from a literature close to CEBI, as well as to point out hermeneutical possibilities for a biblical reading from young people.

Keywords: Bible, Method, Carlos Mesters, Liberty, Hermeneutics.

Palavras chave: Bíblia, Método, Carlos Mesters, Libertação, Hermenêutica

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta parte da pesquisa desenvolvida no mestrado, na área de pesquisa de Literatura Sagrada das Religiões da PUC GOIÁS. A dissertação teve como título Hermenêutica Bíblica da Pastoral da Juventude: cenários e aproximações a partir de Êx 3, 1-6.1 A investigação tratou das possibilidades e especificidades da interpretação dos textos bíblicos que é feita pelos jovens da Pastoral da Juventude (PJ). Desta forma, este artigo aborda a Leitura Popular da Bíblia reconhecendo traços e escolhas do jeito de ler a Bíblia de cristãos que estão comprometidos com os processos de libertação.

Inicia apresentando a Leitura Popular da Bíblia como parte de um jeito de ser Igreja que tem como uma de suas características principais a experiência de reconhecer a presença de Deus nas lutas pela libertação dos povos latino americanos, no seguimento de Jesus no compromisso com os empobrecidos. Esse método tem como base um triângulo hermenêutico contexto-texto-pretexto. A Bíblia é lida a partir de uma determinada vivência eclesial e realidade social, que marca o tipo de perguntas que fazemos a ela. A literatura sagrada é lida não separada da vida, mas para iluminar a mesma. Esse método também reconhece que as interpretações abrem e fecham possibilidades de leitura do texto.

Por fim, investiga a escolha de perícopes, livros e eventos como chave para essa interpretação. Tanto o Êxodo como elemento central para o Cristianismo da Libertação, como as escolhas de personalidades ligadas ao CEBI, quanto o uso de perícopes do Novo Testamento para apresentar um método popular e libertador de leitura da Bíblia, acenam possibilidades àqueles que buscam fazer leituras contextuais da literatura sagrada de judeus e cristãos, em especial de uma leitura bíblica a partir de experiências concretas vividas pelos jovens da PJ.

2 LEITURA POPULAR DA BÍBLIA: UM MÉTODO QUE BROTA DE UM JEITO DE SER IGREJA

A experiência que se deu entre os cristãos latino-americanos, e que os sociólogos Michael Löwy (2000, p. 56-134; 2016, p. 73-140) e Flávio Sofiati (2012, p. 25-72) intitulam Cristianismo da Libertação, brotou de uma práxis e um jeito de pensar a fé que se constituem a partir de um jeito de ler a Bíblia (LÖWY, 2000, p. 61; 2016, p. 77; SOFIATI, 2012, p. 61). Dentre os precursores desse processo encontra-se o Frei Carmelita e biblista Carlos Mesters, que também é um dos pesquisadores que mais se dedicaram, no Brasil, a sistematizar a caminhada que se deu entre os cristãos da Libertação. No balanço que este fez dos primeiros 20 anos de renovação bíblica na Igreja Católica, sinaliza um dos primeiros desafios para abordar a Leitura Popular da Bíblia:

Descrever o movimento bíblico popular dos últimos vinte anos traz uma dificuldade. O povo não se preocupa em documentar o que faz. Os pobres não escrevem livros, não citam autores, nem consultam bibliografias. Muitos dos que estão neste movimento bíblico mal sabem ler. Por isso, as coisas do povo, quando contadas, seja por ele mesmo, seja por outro, parecem não ter muita consistência (MESTERS, 1988, p. 1).

A Leitura Popular da Bíblia, mais do que um conjunto de técnicas, é uma atitude diante da vida. É uma maneira de se aproximar da Palavra de Deus por meio da qual o povo sente-se à vontade com a Bíblia, de acordo com Mesters (1984, p. 13-18), que leva a sério as perguntas que o povo faz, bem como o que está por detrás dessas perguntas (MESTERS, 1984). O mesmo autor afirma que é uma técnica que ajuda o povo a encontrar o caminho para construir uma nova relação com a Bíblia. Seu grande interesse é restabelecer o contato entre o povo e a Palavra de Deus.

Talvez alguns espaços acadêmicos tenham dificuldade com a expressão popular. Diante disso, Mesters afirma: “Quando falo em povo ou em uso popular da Bíblia, entendo falar sobretudo do povo pobre que se reúne nas comunidades eclesiais de base e nos grupos de reflexão, ou seja, do povo que, de alguma maneira, está se organizando em torno da Palavra de Deus” (MESTERS, 1988, p. 1, grifo do autor). Por causa disso, nasceu um grupo para subsidiar, dar apoio, a esta experiência. Essa articulação de exegetas de formação acadêmica e lideranças eclesiais que animavam Círculos Bíblicos foi denominada de Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI). Este “nasceu exatamente para explicitar, articular, dinamizar e sistematizar uma leitura que já estava sendo feita pelo povo nas comunidades de fé” (MESTERS; OROFINO, 2006, p. 5).

Nesse estilo de leitura, a Bíblia é acolhida pelo povo como a Palavra de Deus, ao mesmo tempo em que, em sintonia com toda a caminhada de pastoral popular no Brasil, segue-se o método Ver-Julgar-Agir (MESTERS; OROFINO, 2006, p. 9; BORAN, 1982). A Bíblia aparece, então, iluminando a realidade, abrindo os olhos para vê-la e trazendo critérios para o Agir. No ato de interpretar a Bíblia, o que se quer, no fundo, é “[...] interpretar a vida com a ajuda da Bíblia” (MESTERS; OROFINO, 2006, p. 11).

Segundo Mesters (1983, p. 47-50) os exegetas fazem parte do processo deste novo estilo de leitura, mas não exclusivamente, e nem o determinam. A Leitura Popular da Bíblia é um método e um espaço que se constroem a partir do protagonismo dos empobrecidos/excluídos/outros, ao passo que, também, os gera. Isto torna a Bíblia um importante instrumento de libertação, de crescimento na autonomia, de construção de visões de mundo e pessoas humanas emancipatórias, de construção de um rosto de Igreja de comunidades e sinodal.

Ao falar do olhar dos pobres sobre a Sagrada Escritura, Mesters (1983) afirma: “Eles fazem uma leitura com o olhar do oprimido que sofre no ‘cativeiro’ e que luta para se libertar” (MESTERS, 1983, p. 46). Ou seja, olham a Bíblia com a vida nos olhos, de tal forma que a vida ilumina a Bíblia. Justamente, por isso, nasce uma empatia entre as duas (Bíblia e vida) que possibilita, ao mesmo povo, ler a vida com os olhos da Palavra de Deus. Nosso autor também nos lembra de que a própria Bíblia nos ensina caminhos para lê-la (MESTERS, 1984, p. 91-2).

É um espaço de novidade: “O que importa, na interpretação, é que cresça e se desenvolva esta planta nova da Leitura Popular da Bíblia; que cresçam o novo sujeito, o novo objetivo, o novo contexto, o novo olhar, a nova consciência de pertença e de responsabilidade” (MESTERS; OROFINO, 2006, p. 12).

Todo este processo sinaliza um caminho que parte das preocupações das pessoas (MESTERS; OROFINO, 2006, p. 43), o que faz com que um dos pontos enfocados pela Leitura Popular da Bíblia seja o lugar do intérprete. A experiência a partir da qual se lê a Bíblia. Não se busca ver o lugar do texto simplesmente, mas reconhecer a implicação do lugar social e eclesial de quem lê, levando em consideração não só o livro lido, mas, também, o povo que lê o livro. Essa preocupação do método tem exigido que ele dialogue com as mudanças ocorridas no mundo contemporâneo.

3 ELEMENTOS DO MÉTODO: TEXTO-PRETEXTO-CONTEXTO

A maneira de ler a Bíblia dentro da pastoral popular se dá de forma conjuntural, por isso, quer extrapolar uma pura preocupação em aprender elementos de textos bíblicos, ou mesmo, um acúmulo de conhecimento sobre o mundo da Bíblia. Não se foca exclusivamente em seu sentido espiritual, nem em seu sentido literal. Não se satisfaz com resolver as dificuldades que se tem com as perícopes difíceis. A Leitura Popular da Bíblia quer ir além de um exercício de arqueologia ou de descobrir o sentido original do texto, o que faria desta um instrumento de informação. Tudo isso pode ser útil e significativo, mas não é a proposta pela qual este método opta. Ela acredita que o texto tem um sentido para quem o lê hoje. Tem algo a dizer hoje.

O que a Leitura Popular quer é colocar o sistema de interpretação da Bíblia em sintonia com as pessoas atuais. Propor um diálogo entre o passado (o texto) e o presente (a realidade e a comunidade), colocando o acento no conteúdo da conversa, e não só na conversa em si; ressaltando a presença atual Daquele que fala, e não apenas em uma informação do passado. A situação atual dos sujeitos da interpretação fica mais forte que a do contexto que gerou aquele texto. Afinal, o povo não lê a Bíblia para se informar. A Bíblia é como uma ponte que liga aquele que crê com o destinatário da crença. Para tanto, a linguagem empregada não é uma aula de um professor catedrático. Ela é construída a partir do mundo dos interlocutores. Imagens, palavras e gestos presentes no mundo de quem lê o texto marcam esse processo. O lógico dialoga com o lúdico. Pretexto e Contexto são mais que conteúdo. São, também, forma.

Em Flor sem defesa, Mesters (1983) apresenta o esquema da Leitura Popular da Bíblia:

Na interpretação da Bíblia devem ser levados em conta três fatores, misturados entre si: o pré-texto da realidade, o con-texto da comunidade e o texto da Bíblia. Estimulados pelos problemas da realidade (pré-texto), o povo busca uma luz na Bíblia (texto), que é lida e aprofundada dentro da comunidade (con-texto). O pré-texto e o con-texto determinam o “lugar” de onde se lê e interpreta o texto (MESTERS, 1983, p. 42).

Em seu balanço sobre sua própria experiência metodológica, o CEBI, a partir de uma exegese sobre a perícope de Emaús, afirma: “No início dos anos 70, falava-se do triângulo ‘pretexto-texto-contexto’. A partir do episódio de Emaús, começamos a falar de ‘Realidade- Bíblia-Comunidade’” (MESTERS; OROFINO, 2006, p. 26).

Qualquer uma das duas formulações se torna um triângulo hermenêutico, no qual um vértice questiona o outro; um ilumina o outro; um possibilita o acesso ao outro com uma intensidade que remete ao mistério da Trindade. Assim, a leitura da Bíblia (texto) é feita em comunidade (contexto), tendo perguntas da realidade (pretexto), como elementos de base. Isso constrói um lugar hermenêutico, que faz de uma determinada comunidade ou contexto comunitário inserido em uma realidade – aliada a este pretexto – um lugar, a partir do qual o intérprete se dirige ao texto. Como sintetiza Pereira: “o pré-texto é para Carlos Mesters a realidade que hoje vivemos com seus problemas; o contexto é a fé da comunidade, da Igreja” (PEREIRA, 1996, p. 951). Desta forma, o texto, como algo codificado dentro de uma determinada língua, torna-se Palavra de Deus.

No Contexto, então, encontra-se a eclesialidade. A vivência concreta em comunidade/grupo com suas experiências e implicações, suas opções de fé e escolhas metodológicas, suas visões de mundo e de pessoa humana. No caso da Leitura Popular da Bíblia, há uma grande implicação com as CEB’s.: estas eram um jeito de uma Igreja nascente – naquele momento em que a literatura de Mesters começava a ser redigida. Em Por trás das palavras (MESTERS, 1984) e em Flor sem defesa (MESTERS, 1983), o autor enfatiza a importância da Bíblia para a caminhada da Igreja da Libertação, entendendo-se como povo da Palavra, os herdeiros da memória perigosa de Jesus. A Bíblia é sentida como história do povo. O povo sente-se em continuidade com o povo daqueles tempos.

O pretexto – a realidade –, é, segundo Mesters (1978), o lugar a partir do qual o povo lê a Bíblia. Em Seis dias nos porões da humanidade (MESTERS, 1978), uma de suas principais obras, esse autor questiona a abordagem costumeira da realidade. Afirma ele: “[...] desconfio que os arquitetos do assim chamado ‘Ocidente Cristão’ não entendiam nem entendem muita coisa da vida nem do cristianismo” (MESTERS, 1978, p. 100).

A Leitura Popular da Bíblia busca iluminar, com a Palavra de Deus, as realidades concretas dos povos e grupos em busca da libertação. Reconhece que é a partir das situações que vivem, e das bandeiras que levantam, que os grupos elaboram suas perguntas quando se aproximam da Bíblia.

Em Flor sem defesa, Mesters (1983) apresenta sua visão sobre a importância da realidade para a leitura do texto bíblico. A realidade torna-se o lugar, os olhos a partir dos quais é possível reconhecer o texto, para que ele fale a seus leitores, que se configure dentro do horizonte da comunidade como Palavra de Deus e Boa Notícia:

É a realidade que hoje vivemos e que nos questiona. É a situação: religiosa, familiar, cultural, social, econômica, política. É o nosso povo do jeito que é. É a vida que todos vivemos. Numa palavra, é o pré-texto, isto é, tudo aquilo que preexiste em nós, antes mesmo de entrarmos em contato com o texto, e que nos leva a procurar dentro do texto um sentido para a vida (MESTERS, 1983, p. 140).

O lugar em que os grupos estão configura as perguntas que remetem ao sagrado. Mesters (1983) sinaliza esse dado geográfico do processo hermenêutico com uma imagem bíblica, de um lugar que também foi determinante para leituras e releituras que o povo de Israel teve que fazer. Ao falar do olhar dos pobres sobre a Sagrada Escritura, afirma que “Eles fazem uma leitura com o olhar do oprimido que sofre no ‘cativeiro’ e que luta para se libertar” (MESTERS, 1983, p. 46), ou seja, eles olham a Bíblia com a vida nos olhos, de tal forma que a vida ilumina a Bíblia.

Um dos pontos enfocados pela Leitura Popular da Bíblia é o lugar do intérprete, ou seja, ela busca ver o lugar do texto, mas reconhece a implicação do lugar social e eclesial de quem lê. Leva em consideração não só o livro lido, mas, também, o povo que lê o livro. Não é uma realidade vista com um pretenso olhar de neutralidade, mas é o reconhecimento de estar num sistema opressivo, em cativeiro, em um exílio, que marcará a abordagem da realidade. Justamente, por isso, nasce uma empatia entre as duas, que possibilita, ao mesmo povo, ler a vida com os olhos da Palavra de Deus. Há, aqui, uma diferenciação da visão conservadora. A vida pode iluminar a Bíblia e não somente o contrário. A vida também tem o que dizer para a Bíblia. Mesters (1984, p. 91-92) afirma que a “própria Bíblia ensina caminhos para lê-la”:

O objetivo último da Bíblia não é a investigação científica do seu sentido literal e histórico, mas é preparar os homens para a luta que nos é proposta (cf. Hb 12, 1) e ajudar a viverem a vida em plenitude. A melhor interpretação da Bíblia não é aquela que explica melhor as coisas difíceis da mesma, mas aquela que faz perceber melhor o sentido da Bíblia para a vida, que faz o povo rodar novamente na larga estrada da fé, da esperança e do amor, que faz a vida da gente ser vida de gente. (MESTERS, 1984, p. 85).

Esta intencionalidade de buscar viver bem, como dizia Weber (1991), ou de dar um sentido à realidade vivida, no olhar de Berger (1985), marca a hermenêutica presente em Mesters. Isso ele o faz com ajuda de um instrumental sociológico, reconhecendo a realidade a partir de suas contradições. A leitura da Bíblia não vem para eliminar as contradições, mas para iluminar o caminho para superá-las. “Ao ler a Bíblia, o povo tem nos olhos problemas da realidade dura de sua vida. A Bíblia torna-se espelho daquilo que ele mesmo hoje vive.” (MESTERS; OROFINO, 2006, p. 10). Por isso é comum, nessa abordagem, ter uma estória que ilustra a realidade e provoca a reflexão, tal como afirma Mesters: “Um fato, uma luta ou uma situação da vida de hoje, confrontada com um texto da Bíblia, e algumas perguntas para orientar a reflexão em comum” (MESTERS, 1988, p. 8).

Quando Melo, Mesters e Cavalcanti (1993) apresentam as reflexões sobre a espiritualidade que perpassa o método, dão-se conta de que a leitura do texto bíblico não abrange, apenas, a dimensão racional. Toca o ser humano como um todo. Para eles “[...] o pré-texto tornou-se mais amplo e mais denso: pessoal, comunitário, cultural, corporal, cotidiano, sócio-político, religioso” (MELO; MESTERS; CAVALCANTI, 1993, p. 55, grifo dos autores).

Logo emergem dois elementos decisivos e inseparáveis na sistematização que Mesters apresenta-nos: o olhar e o lugar. Eles estão conectados, pois o lugar determina/possibilita certo olhar; e o olhar, de alguma forma, torna-se lugar – é um ponto de vista a partir do qual se interpreta a Bíblia. Por isso, as várias realidades e experiências comunitárias darão matizes à Leitura Popular da Bíblia. Nas últimas décadas, alguns sujeitos emergentes têm sinalizado demandas para além da categoria socioeconômica. Essas novas categorias são mulheres, gays, negros, indígenas, ecologia e jovens.

4 PERÍCOPES COMO CHAVE DE INTERPRETAÇÃO

No trabalho com a pastoral popular, encontram-se obras que apresentam o método da Leitura Popular da Bíblia, partindo de perícopes. Desse encontro nasceu uma série de inquietações sobre se este seria o caminho para outras possibilidades hermenêuticas. A inquietação/pergunta fundamental é: seguindo o caminho já feito pela Leitura Popular da Bíblia (PEREIRA; MESTERS, 2011; DREHER, 2011), a perícope Êx 3, 1-62 pode ser uma porta de entrada semelhante? Ou, posto da seguinte forma: a leitura de Êx 3, 1-6, numa ótica libertadora, oferece possibilidades à hermenêutica da PJ?

Nesta parte, pretende-se somente abordar os casos dos livrinhos de Nancy Cardoso Pereira e Carlos Mesters (2011), e o de Carlos Dreher (2011), para a seguir trazer os elementos que levaram à escolha de Êx 3, 1-6. As possibilidades vislumbradas são uma provocação importante para iluminar e contextualizar alguns procedimentos e enfoques na Exegese que vem depois.

Esta pesquisa não só toma referências da Leitura Popular da Bíblia, nem entende somente a maneira de ler a Bíblia dos jovens da PJ: insere-se numa experiência de ler o texto sagrado feito pelo Cristianismo da Libertação, mas, também, busca, em seu esforço hermenêutico, perfazer o caminho, já aberto, por célebres biblistas e, a partir dos passos presentes em imagens de algumas perícopes bíblicas, entrever um método.

Um dado bem relevante para esta pesquisa é a existência de autores que, a partir de perícopes do Novo Testamento, apresentam o percurso metodológico que se dá com o povo. Isso acontece numa abordagem de Nancy Cardoso Pereira e Carlos Mesters (2011) que tomam por base a parábola da moeda perdida, e outra de Carlos Dreher (2011) sobre os discípulos de Emaús à luz da educação popular. Essas obras, reeditadas pelo CEBI, tiveram sua primeira edição em 1993 e 1995, respectivamente. Chama-nos a atenção, também, o fato de as duas perícopes implicarem movimentos, deslocamentos, afastamentos. As duas partem de situações de falta e de busca. As duas obras são inspiradas em perícopes lucanas. Nos dois comentários, a Bíblia tem um lugar central no momento de iluminação da realidade: denotam os usos da Bíblia, que são vividos e realizados.

Ao começar apresentando a alegoria sugestiva, Pereira e Mesters (2011) afirmam que “[...] a mulher procura diligentemente, com método, com cuidado, com sistemática. Um processo que é animado pela ausência concreta, pelo desejo de encontrar” (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 7). E prosseguem afirmando a conexão com as lutas dos empobrecidos e excluídos e que, no meio dela, para junto com as perdas presentes em sua história, estes tomam consciência de que perderam a Bíblia. Esta, tirada da mão de povo, ficou limitada a espaços acadêmicos, à mão da hierarquia, em discursos fundamentalistas (PEREIRA; MESTERS, 2011). Por isso sistematizam a experiência que o povo faz de reapropriação da Bíblia em uma síntese: “Espaço de ausência: desejo; consciência; organiza; procura; com cuidado, com método, com sistemática; reconhece sujeira, mofado, rachado; significado do perdido e encontrado; reúne amigas; celebra.” (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 9).

Segundo os autores:

O povo se organiza, para reaprender a Bíblia. Usa seus aprendizados na luta pela vida, na construção de um movimento de leitura da Palavra de Deus que se articula com a realidade, com as necessidades e lutas concretas, com os confrontos e superações de estrutura de morte e pecado (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 11).

Eles apresentam a metodologia de A Leitura Popular da Bíblia (2011), que se deixa entrever na perícope em cinco momentos: acender a luz, varrer a casa, procurar diligentemente até encontrar, reúne amigas e vizinhas, e alegrai-vos (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 11-16). O primeiro passo, acender a luz, parte de entender a Bíblia dentro do contexto maior em que ela foi vivida e redigida. Para os autores, “[...] trabalhar a história do (s) povo (s) da Bíblia significa buscar uma visão global das narrativas, que, sem encobrir as diferentes leituras e conflitos, possibilita compreender as preferências e prioridades da ação de Deus na história.” (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 11).

Com o varrer a casa, os autores abordam o exercício metodológico e sistemático de penetrar nas camadas do texto, e repensar traduções e conceitos cristalizados que podem afastar os leitores atuais de sentidos pretendidos pelo autor bíblico e projetar sobre a Bíblia preconceitos e relações de poder assimétricas. Tendo em vista que “[...] o lugar social histórico do grupo que lê a Bíblia condiciona as preferências e prioridades, mas é metodologicamente importante explicitar estas motivações e, ao mesmo tempo, procurar uma visão global da Bíblia; nisso somos ajudados por um estudo histórico.” (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 13).

Com o procurar diligentemente até encontrar, dá-se o ato da busca de fidelidade ao texto e se debruçar sobre a perícope em questão para “[...] articular de forma criativa e exigente o espaço da pastoral com o espaço acadêmico, reconhecendo a complementariedade destes espaços, ao mesmo tempo que procura manter-se sensível à palavra profética que se ergue fora dos espaços eclesiais e acadêmicos.” (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 14).

Na expressão reúne as amigas, expressa-se a dimensão comunitária que perpassa a Leitura Popular da Bíblia. Esta impele para ações comunitárias, promove encontros, exige contato com a realidade, incita para a organização popular. Segundo os autores, a “[...] leitura da Bíblia é um processo comunitário que diz respeito à vida na sua concreticidade imediata dos grupos e às questões da dignidade e integridade da humanidade e da natureza como um todo. Isto é ecumenismo.” (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 15). E, por fim, no convite feito através do alegrai-vos, está a espiritualidade, um elemento que perpassa todo o processo, que motiva, “[...] uma espiritualidade militante e encarnada, que critica a alienação e manipulação que as estruturas e os modelos de culto têm promovido na espiritualidade popular.” (PEREIRA; MESTERS, 2011, p. 16). Na segunda parte do livro, os autores apresentam uma visão global da Leitura Popular da Bíblia.

Já na obra A Caminho de Emaús: leitura Bíblica e educação popular o biblista Carlos Dreher (2011) encarrega-se de sistematizar as reflexões de um seminário sobre este tema que aconteceu em 1992. Vale-se da perícope de Emaús, um texto bastante usado na Leitura Popular da Bíblia e no planejamento pastoral, para falar de metodologia, para refletir sobre o caminho metodológico da leitura bíblica. Percebe-se que o enfoque está na perspectiva da educação popular. Por isso, o texto reforça, a todo tempo, a perspectiva de, através da literatura sagrada, dar a palavra às pessoas; por isso as imagens de silêncio, palavra, pergunta, escuta devem ser destacadas no texto. Há um passo além da obra anterior: não é usada só uma perícope para apresentar uma metodologia da Leitura Popular da Bíblia, mas também para enfatizar uma perspectiva, a partir de seu estilo; uma perícope sinalizando não só um caminho metodológico, mas contornos ou enfoques específicos presentes na Leitura Popular da Bíblia.

A obra divide-se nos capítulos: Os discípulos e a cultura do silêncio; Jesus e os discípulos – o começo da prática popular; O saber dos discípulos – sua análise da realidade; O papel da Bíblia - o momento certo, sendo esta a maior parte da obra. Este capítulo está subdivido em: a Bíblia vem em segundo lugar; a Bíblia e a história; lendo a Bíblia toda; uma releitura da Bíblia; a postura pedagógica do educador popular. Os demais capítulos possuem os seguintes títulos: A prática abre os olhos, a teoria só esquenta o coração; A coragem de desaparecer, e O objetivo último: formar sujeitos históricos.

Na primeira parte, Os discípulos e a cultura do silêncio, Dreher, ao retomar que os discípulos caminhavam tristes e estavam impedidos de ver, afirma que a “[...] situação do casal de Emaús lembra, em muito, o que Paulo Freire ensinou-nos a chamar de ‘Cultura do silêncio’.” (DREHER, 2011, p. 10). As palavras ditas são as palavras de seus opressores. São o que o medo lhes impõe. Medo este que impede a palavra que emergiria do discipulado. Diante disso, a primeira atitude de Jesus é “[...] caminhar junto e escutar.” (DREHER, 2011, p. 12). “É apenas depois desta escuta silenciosa e demorada, que ele pergunta.” (DREHER, 2011, p. 13). E a atitude de Jesus sinaliza o quanto ele dá importância ao saber dos discípulos. Tem uma postura de acolher a experiência que se deixa entrever em suas palavras, o que permite aproximar-se e se colocar no lugar do outro para entender como “analisam a realidade” (DREHER, 2011, p. 16-17).

Aí encontra-se a maior parte do texto que se ocupa em comentar o papel da Bíblia dentro da educação popular, preconizada pelo CEBI (DREHER, 2011). A Bíblia aparece em segundo lugar, ou seja, iluminando a vida. O repassar da escritura feito por Jesus aparece na visão do autor como entendimento de que “[...] as Escrituras representam a História dos discípulos.” (DREHER, 2011, p. 19). O fato de Jesus utilizar a Bíblia toda, também mostra um jeito de se aproximar dos textos sagrados. Nesta parte, o autor retoma o pensamento de Santo Agostinho, usado por Carlos Mesters, de que Deus criou dois livros: a Bíblia e a vida. A Bíblia vem para ajudar as pessoas a “ler a vida” (DREHER, 2011, p. 21). Nesse diálogo com a realidade, também retoma a frase de Karl Barth, de que “[...] um pregador tem que ter a Bíblia em uma das mãos e o jornal na outra.” (DREHER, 2011, p. 22). Ao buscar uma hermenêutica da PJ, é possível dizer: a Bíblia em uma das mãos e o facebook ou o WhatsApp, na outra. O que se busca neste caminho hermenêutico não é aumentar o conhecimento sobre a Bíblia. Entende-se:

Se Deus quer uma vida melhor para as pessoas, então a Bíblia precisa falar para dentro desta vida. E aí é preciso conhecê-la, antes de ler qualquer texto. Da vida se vai para a Bíblia; busca-se ali a Palavra que melhor ilumine nossa situação de vida; e então volta-se à vida, para transformá-la (DREHER, 2011, p. 22).

Isso reforça uma postura de escuta a partir da qual se reconhecerá os temas geradores, pois “[...] decisivo é que o tema brote do que as pessoas falam, ou daquilo que elas experimentam, sem saber expressá-lo muito bem.” (DREHER, 2011, p. 24). É do grito, mesmo que emudecido, que brota a Palavra, o que está em profunda sintonia com a visão do povo da Bíblia da centralidade da categoria memória, tão presente na história das lutas dos povos da América Latina. Na perspectiva da História da América Latina, o autor lembra que a Bíblia, por vezes, foi usada como reforço para os conquistadores e a opressão. Os grupos populares possibilitam ver a história a partir de baixo, da ótica de quem, por vezes, perdeu. Na Leitura Popular da Bíblia, a escritura sagrada vai contribuindo neste processo de se reapropriar da própria história e transformá-la (DREHER, 2011). Por isso, aí reside um chamado a aproximar-se da Bíblia toda para ultrapassar os riscos de visões reducionistas. Aprendendo, com a Bíblia, a relê-la e reconhecer nela a postura de educador popular presente em Jesus.

Nisso o autor sinaliza a importância da Bíblia nos processos de libertação e, ao mesmo tempo, a importância da prática. Dreher (2011) insiste: “[...] é claro, que a Bíblia é importante. Aliás, é fundamental no conjunto do processo de transformação da realidade. É ela que nos dá força, é ela que nos dá coragem, é ela que indica o caminho, é ela que nos dá esperança. Mas insisto, por si só ela não basta.” (DREHER, 2011, p. 48). Algumas páginas à frente ele afirma que:

Uma olhada para a história das CEBs e da Leitura Popular da Bíblia nos mostrará exatamente isto. As reflexões bíblicas animaram, encorajaram e estimularam diferentes grupos. Mas a caminhada destes grupos populares somente começou a criar corpo quando fizeram pequenas experiências que lhes demonstravam que a transformação era possível. (DREHER, 2011, p. 51).

E Jesus desaparece para deixar os discípulos caminharem com as próprias pernas: grande protagonismo e autonomia! – o que dá coragem de voltar a Jerusalém e enfrentar a realidade. Esse processo forma sujeitos históricos em sua dimensão de ser único e relacional, nas relações estabelecidas consigo mesmo, com o outro, com a sociedade e com a natureza. Por fim, o autor faz um pequeno comentário sobre o fazer pedagógico na prática popular.

5 ÊXODO COMO CHAVE DE INTERPRETAÇÃO

Várias obras enfatizam que a experiência de Leitura Popular da Bíblia é sempre um ato comunitário, que se dá a partir de uma comunidade de fé. O sujeito da interpretação é a comunidade (MESTERS; OROFINO, 2006). Ao falar de contexto, segundo Mesters, fala-se de comunidade, de vivência eclesial. Aqui também reside uma compreensão e uma experiência eclesial. Entende-se como Igreja de comunidade, uma grande koinonia, o que constitui um jeito de experienciar e ser Igreja. A sua dimensão eclesial marca a relação com o jeito de ser Igreja, uma Igreja que nasce da base, uma Igreja nascente naquele momento em que a literatura de Mesters começava a ser redigida. O autor refere-se às CEB’s, onde é visível a importância da Bíblia para a caminhada da Igreja da Libertação, pois a comunidade entende-se como povo da Palavra, herdeira da memória perigosa de Jesus. A Bíblia é sentida como história do povo; o povo das comunidades sente-se em continuidade com o povo da Bíblia. Mesters (1983) recorda que, mesmo quando não é abordada explicitamente, a Bíblia está no fundamento da prática e da fala da comunidade. Parte de uma compreensão de continuidade histórica, de um povo que se sente a caminho, em êxodo. Aqui encontra-se um dos elementos da centralidade do Êxodo na caminhada do Cristianismo da Libertação.

Dentro dessa trajetória e da Leitura Popular da Bíblia, o Êxodo ocupa um lugar de destaque. Por isso, para tratar da hermenêutica da PJ, busca-se uma perícope emblemática. Assim, no estudo do Antigo Testamento, na Teologia da Libertação e na trajetória da PJ, este livro merece destaque, já que a Escritura Sagrada dos judeus se concentra não em narrativas mitológicas, mas em testemunhar “[...] sua vida com Jeová neste mundo.” (ARMSTRONG, 2007, p. 18). Neste processo, a experiência feita pelo povo do Êxodo é um ponto chave que já é consenso entre os exegetas (ANDIÑACH, 2010; 2014a; PIXLEY, 1987; SCHWANTES, 1987; 1996; CLIFFORD, 2007; SILVA, 2008; BIBLIA SAGRADA EDIÇÃO PASTORAL, 1990, p. 65)

Schwantes (1996) afirma que “[...] o êxodo é um paradigma. Faz as vezes de; é um exemplo. Assemelha-se a uma lâmpada. Ilumina toda a história bíblica. Aparece como sua veia principal [...] O êxodo deu origem ao povo de Deus. É sua manjedoura.” (SCHWANTES, 1996, p. 9).

Pablo R. Andiñach escolheu para título da conferência que proferiu no VI Congresso Nacional da ABIB (Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica): O Êxodo como centro do mundo e do tempo: a teologia do Deus que está, do Deus que liberta (ANDIÑACH, 2014b, p. 55-77), o que também reforça a ideia de centralidade deste fato e desta obra. Sem ter em mente essa experiência, os textos sagrados dos judeus podem se apresentar difíceis de decifrar ou podem dar margem a fundamentalismos.

Francisco Orofino (2008), no primeiro parágrafo do artigo sobre As releituras do Êxodo na Bíblia, afirma que:

As pesquisas bíblicas nestes últimos anos têm mostrado sempre mais que o fio condutor que une os mais diferentes livros dentro da Bíblia é o êxodo, tanto o evento em si, registrado no livro do mesmo nome, quanto as sucessivas releituras de um modelo paradigmático de recomeço e de refundação do Povo de Deus [...] A Bíblia lê e interpreta, atualiza e (re) interpreta o Êxodo mantendo-o sempre vivo na memória do povo. Essas releituras, feitas em celebrações comunitárias, fizeram que o êxodo se tornasse o ponto de referência nos momentos mais críticos da vida do povo (OROFINO, 2008, p. 27).

Na introdução de seu comentário ao livro do Êxodo, Andiñach (2010) afirma que:

Cada texto é um enigma a ser decifrado. E quando o texto a ser lido tem a riqueza e a complexidade do livro do Êxodo, o empreendimento não apenas se torna fascinante e sedutor, mas também exige, de nossa parte, um esforço supremo para revelar seus sentidos e vasculhar seus recantos (ANDIÑACH, 2010, p. 11).

Silva (2008), ao relacionar o Êxodo com a Teologia da Libertação, argumenta

[...] sobre o paradigma do êxodo na teologia da libertação afirmando que “a releitura do Êxodo atravessa a história da Igreja latino-americana”.

Êxodo é evento fundante, início de Israel, manifestação de Yhwh. Tornou-se referencial sagrado, normativo, palavra de Deus para nós, uma espécie de cânon privilegiado dentro do cânon bíblico. Vale dizer que houve uma apropriação do Êxodo por parte de nossos povos latino-americanos (SILVA, 2008, p. 14).

O que o livro do Êxodo e, por conseguinte, toda Bíblia, testemunha-nos, é que o totalmente outro, o misterium tremendum (OTTO, 1985, p. 44) encontra-se no cotidiano das pessoas, mas também nos processos de libertação e na organização popular (SCHWANTES, 1996, p. 18). A Sagrada Escritura hebraica sinaliza que o desejo de Deus é que a pessoa humana viva bem. Desta forma, lê-se o Êxodo no contexto da Teologia da Libertação (DUSSEL apud SILVA, 2008, p. 14), como o faz o CEBI.

A experiência de libertação feita por quem saiu do Egito configura-se como algo tão importante que não pode ser esquecida (Dt 26, 5-11; 6, 12-13; Êx 15, 1-21; 20, 2; 12, 51). Nela, Israel descobre e afirma que seu Deus é Javé. Nela, Israel tem revelado não só o nome de Deus, mas seu próprio nome, sua identidade e “[...] a divindade se revelou de forma mais clara do que nunca em sua vocação de compadecer-se do ser humano que sofre” (ANDIÑACH, 2014b, p. 56). Aquele que acompanhará o povo em tudo que lhe possa acontecer, que lhe dará forças para enfrentar o cotidiano e a opressão dos outros povos (ANDIÑACH, 2014b, p. 67).

Se é possível dizer que o Êxodo é o fio condutor de toda a TaNaKa, nas três partes da Bíblia Hebraica – Torá ou Pentateuco, Nebiim ou Profetas, e Ketubim ou Escritos –, também que é o fio que conduz toda a Bíblia (Antigo e Novo Testamento). O Deus que criou é o Deus que libertou o povo. Pelo chamado de Javé é que os profetas falavam. Javé manifesta-se em toda a Escritura como o ‘Deus da presença’. Ele é Aquele que sempre está com seu povo. Há textos que até afirmam que Ele estava também com povos vizinhos (Am 9, 7). Mudam os contextos, os líderes, os desafios, mas Deus permanece o mesmo.

“A experiência de fé vê nos acontecimentos da história a intervenção de Deus e, por isso, incorpora à narração aquilo que é captado pela fé e que faz com que um acontecimento fortuito e passageiro se transforme em mensagem para a sua época e para a posteridade” (ANDIÑACH, 2014b, p. 67). Desta forma, o Êxodo é experienciado de forma comunitária por grupos do Cristianismo da Libertação como luz e provocação para leituras atuais da Bíblia.

6 A VOCAÇÃO DE MOISÉS COMO UMA POSSIBILIDADE HERMENÊUTICA

A figura de Moisés enquanto libertador está presente no imaginário dos cristãos da libertação. Ele, junto com os profetas, por vezes é apresentado como paradigma do agente de pastoral. Escolhendo como porta de entrada a aproximação de Moisés com YHWH, mais especificamente em Êx 3, 1-6, busca-se encontrar nesta perícope a experiência fundante que dá origem a todo o movimento de libertação: a relação do povo com YHWH através de Moisés, a relação de Moisés com o povo por causa de YHWH, a relação de YHWH com o povo na pessoa de Moisés.

Por isso, o Êxodo, enquanto evento e enquanto narrativa, está “[...] marcado por uma densidade narrativa que faz com que transcenda todos os tempos. A palavra a respeito da escravidão de Israel fala sobre nossas escravidões, sofrimentos e injustiças. E não fosse assim, não caberia ou não poderia ocupar um lugar nas Escrituras.” (ANDIÑACH, 2014b, p. 57).

Ao buscar focar mais na parte do Êxodo onde está inserida a perícope estudada, tem- se um comentário de Milton Schwantes (1987) que afirma:

Na Bíblia, existem livros e textos que têm o dom da síntese. Neles o todo está presente de um modo bem especial. Ex 3-4 pertence aos textos com dom de síntese. Nele confluem diferentes tradições. Pode-se observar que seus primeiros versículos retomam o livro de Gênesis: A manifestação de Deus que se dá em meio à sarça ardente lembra Abraão que ia aos carvalhais de Mambré para prestar seu culto a Deus. O conteúdo de Ex 3-4 antecipa o que os demais livros de Moisés esmiúçam em detalhes. Portanto, nossos dois capítulos assemelham-se a um lago: para ele, confluem diferentes tradições e conteúdos (SCHWANTES, 1987, s/p.).

Já Thompson afirmará que Êx 3-6 são os capítulos centrais dentro do Pentateuco (THOMPSON apud RIBEIRO, 2004, p. 55). Esta síntese encontra-se em meio ao conjunto de capítulos que preparam a saída. Visto o Êxodo enquanto evento e literatura, e a pessoa de Moisés, chegou o momento de aumentar o zoom e focar mais na perícope que foi escolhida como porta de entrada.

Foi o contato com as abordagens de Nancy Cardoso Pereira e Carlos Mesters, em relação à parábola da Moeda Perdida (Lc 15, 4-7), e de Carlos Dreher, sobre o episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35), que levam a questionar sobre as possibilidades hermenêuticas que emergiriam em alguns textos sobre uma hermenêutica juvenil.

O aprofundamento, numa leitura contextual na ótica das juventudes, do jogo de deslocamentos e experiências presente em Êx 3, 1-6, nos possibilita entrever contornos de uma leitura bíblica a partir do jovem, numa ótica libertadora. Da mesma forma que aconteceu com a Leitura Popular da Bíblia, o caminho talvez nos seja oferecido pelas próprias tentativas de abordar uma perícope e reconhecer o caminho metodológico que dela emerge, como indicado em Pereira e Mesters (2011) e Dreher (2011).

O triângulo hermenêutico apresentado por Mesters (1983) formado pelo Texto- Pretexto-Contexto apresenta um arcabouço que possibilita aprofundar a referida perícope. Dessa forma, tem-se por Texto, Êx 3, 1-6, o trecho inicial do relato da vocação de Moisés; por Pré-texto, a condição juvenil e as três marcas desta, apresentadas por Regina Novaes (2008), e a PJ, entendida como expressão juvenil do Cristianismo da Libertação enquanto contexto. Este triângulo, no qual cada vértice ilumina, questiona e aprofunda o outro, aponta elementos de uma hermenêutica juvenil. Os passos dados pela PJ, o gênero literário do texto e os próprios elementos presentes na perícope, servem de base para a sistematização da leitura bíblica a partir dos jovens.

A perícope estudada apresenta a composição de cenário do relato da vocação de Moisés e serve de base para o entendimento da aproximação da Palavra de quem está ou acompanha quem esteja na condição juvenil. Aproximam-se, também, da dimensão vocacional ao olhar o livro do Êxodo de forma mais ampla e o próprio êxodo enquanto evento. É possível falar de uma experiência fundante devido à sua relevância dentro do Cristianismo da Libertação e do próprio Antigo Testamento. Tudo isso se configura em um conjunto de possibilidades para reconhecer contornos, matizes e tendências de uma hermenêutica juvenil.

A perícope de Êx 3, 1-6 oferece, portanto, uma série de elementos para uma intepretação a partir das juventudes: deslocamento, imagem, autonomia, conflitos, marcas que a hermenêutica específica deixa, experiência do sagrado, incertezas, escolhas, apelos, e nesta investigação hermenêutica é possível encontrar os elementos que balizam uma possível hermenêutica juvenil.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo intentou apenas apresentar os pressupostos que possibilitam novas hermenêuticas contextuais. Percorrido o que foi produzido por autores ligados à Leitura Popular da Bíblia, buscou-se reconhecer no próprio texto sagrado caminhos de sínteses metodológicas que apontam estas possibilidades.

Dentro das obras do CEBI encontram-se dois textos: Lc 15, 8-9 e Lc 24, 13-33, utilizados para a apresentação de uma síntese da Leitura Popular da Bíblia. Em pesquisas anteriores, buscou-se Êx 3, 1-6 para apresentar uma síntese dentro dos traços da leitura bíblica que a PJ tem feito.

A intuição de Nancy Cardoso Pereira, Carlos Mesters e Carlos Dreher de reconhecer as possibilidades hermenêuticas que algumas perícopes têm para sintetizar o método e as nuances que ele tem nos vários grupos, abre um caminho. Resta agora à pesquisa bíblica, à teologia pastoral e à ação evangelizadora continuarem a experimentar possibilidades.

Este artigo pretendeu apresentar uma contribuição e perspectiva. O importante talvez seja reconhecer que há textos (perícopes) que abrem portas (sinalizam caminhos e nuances hermenêuticas) e há portas (hermenêuticas) que nos colocam diante de alguns textos (perícopes).

REFERÊNCIAS

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WEBER, Max. Economia e sociedade. v. 1. Brasília: UNB, 1991.

Notas

1 Todas as citações bíblicas do texto têm como referência a BÍBLIA SAGRADA EDIÇÃO PASTORAL, 1990.
2 Os livros bíblicos citados ao longo do texto têm como referência a Bíblia Sagrada da Edição Pastoral (1990).


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