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O PROBLEMA DA INTUIÇÃO MÍSTICA COMO INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO METAFÍSICA NA OBRA DE HENRI BERGSON
THE PROBLEM OF MYSTICAL INTUITION AS A METAPHYSICAL RESEARCH INSTRUMENT IN THE WORK OF HENRI BERGSON
Interações, vol. 15, núm. 2, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS



Recepção: 19 Março 2020

Aprovação: 05 Setembro 2020

Resumo: Bergson buscou o estabelecimento de uma nova metafísica, que levasse o ser humano a um conhecimento mais profundo de si mesmo e do cosmos, e que nesse processo fundasse uma nova moral, assim como outras categorias gnosiológicas que transcendessem o instrumentalismo violento de um mundo escravo de uma ciência excessivamente baconiana. Nosso propósito neste artigo é mostrar como, ao final de sua obra e vida, a temática religiosa surge como campo privilegiado para a realização e a compreensão da totalidade e da essência de seu projeto refundador da filosofia. Da crítica ao pragmatismo jamesiano à mística como única saída para o ser humano (transcendendo um pensamento geométrico em direção ao pensamento da duração), Bergson desenha no horizonte, ainda numa época cega a este questionamento, a indagação se de fato, como crê uma inteligência desavisada, a religião morreu como agente ativo no diálogo intelectual ocidental.

Palavras-chave: Duração, Intuição, Élan vital, Mística.

Abstract: Bergson sought the establishment of a new metaphysics, which would take the human being to a deeper knowledge of himself and the cosmos, and in this process would found a new morality, as well as other gnosiological categories that transcend the violent instrumentalism of a world slave to an excessively baconian science. Our purpose in this article is to show how, at the end of his work and life, the religious theme emerges as a privileged field for the realization and understanding of the totality and the essence of his refounding project of philosophy. From criticism to Jamesian pragmatism to mystique as the only way out for the human being (transcending a geometric thought towards the thought of duration), Bergson draws on the horizon, even at a time blind to this questioning, the question of whether in fact, how one believes unsuspecting intelligence, religion died as an active agent in Western intellectual dialogue.

Keywords: Duration, Intuiton, Élan vital, Mystique.

1 INTRODUÇÃO

Participante da virada fenomenológica no início do século XX, Bergson é de certa forma, um Husserl à la française (INGARDEN, 1959). Seu chamado a um retorno aos dados imediatos da consciência é na realidade uma atitude filosófica crítica: no entendimento de Bergson, a experiência pura da consciência não oferece o mesmo conteúdo que a (posteriori) elaboração inteligente nos dá. Nesse sentido, Bergson rompe com uma suposta evidente associação de fundo entre consciência e inteligência, assim como anuncia que um método crítico, de certa forma desconstruído dos esquematismos geometrizantes da inteligência, se faz necessário para acessarmos o conteúdo profundo da consciência. Trata-se de um modo particular de redução eidética bergsoniana, que fundará sua fenomenologia enquanto a descoberta da importância ontológica primeira do tempo (durée) em detrimento do espaço e de sua noésis específica, de um eu profundo não pragmático e descolado da atenção à vida em oposição a um eu superficial que tende à geometrização utilitarista ativa de tudo que toca, de uma memória pura sem apelo às necessidades de uma percepção fundada na instrumentalização da matéria, e, finalmente, de um modo de existir que se apresenta como uma visão do ser enquanto liberdade criativa pura em oposição a um modo de pensar e existir que privilegia o enquadramento utilitarista desse mesmo ser.

A categoria de abertura dinâmica em religião e moral, em oposição à de fechamento e estática, é fruto desse processo. Nossa proposta de trabalho pretende iluminar exatamente esse momento do processo, privilegiando o que viria a ser um agir religioso que, ainda que atento à vida, não se faz geométrico e utilitarista, e o nome desse agir é o agir místico. Portanto, trata-se de uma reflexão que procura harmonizar a ideia de contemplação mística com a urgência da inserção transformadora do mundo. Nesse sentido, acreditamos que o objetivo da filosofia bergsoniana consiste na “[...] mais antiga tarefa da filosofia, que não é distinguir entre conceitos, mas entre condutas, não somente pensar, mas intervir na vida, para a reformar ou transformar.” (WORMS, 2011, p. 12).

2 EVOLUCIONISMO ESPIRITUALISTA

A filosofia de Bergson constituiu o ponto de referência do pensamento francês entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Nessa filosofia, fundem-se os temas do espiritualismo antigo (como o de Santo Agostinho) e os da tradição introspectivo- espiritualista francesa, que encontra suas maiores expressões em Descartes e Pascal. Esses temas, em uma síntese rica e original, convergem com as instâncias do evolucionismo spenceriano e com a crítica das verdades científicas. Em linhas gerais, Bergson desenvolve o espiritualismo de Maine de Biran e de Ravaisson e, ao mesmo tempo, seu pensamento apresenta-se como continuação articulada das reflexões filosóficas de Boutroux1.

O objetivo de fundo da filosofia de Bergson é a defesa da criatividade e da irredutibilidade da consciência ou espírito, contra toda tentativa reducionista de matriz positivista. Mas a defesa do espírito elaborada por Bergson adquire sua peculiaridade precisamente porque ele, a fim de entender plenamente a vida concreta da consciência, torna seus os resultados da ciência e não minimiza em absoluto a presença do corpo e a existência do universo material. Escreveu Bergson em A evolução criadora: “O grande erro das doutrinas espiritualistas foi supor que, isolando a vida espiritual de tudo o mais, suspendendo-a no espaço tão alto quanto possível acima da terra, a deixavam a salvo de ser atingida” (BERGSON, 2005, p. 293).

Entretanto, com tais operações, os espiritualistas fizeram com que a vida espiritual ficasse exposta a ser confundida com o efeito de uma miragem. Para Bergson (2005), as coisas são diferentes: a consciência ou vida espiritual é irredutível à matéria; ela é uma energia criadora e finita, continuamente às voltas com condições e obstáculos que podem bloqueá-la e degradá-la. Em suma, o pensamento de Bergson é uma filosofia que pretende ser fiel à realidade, mas onde a realidade não é concebida como reduzida nem envolvida pelos fatos dos positivistas.

2.1 Uma filosofia da duração

Seguindo a pista que nos deixa Frédéric Worms (2004) de que a ideia de duração perpassa toda a filosofia bergsoniana – sendo mesmo anterior ao desenvolvimento do método intuicionista do autor – sustentamos a tese de que Bergson, em sua filosofia da religião, não se afastou de sua metafísica do tempo2. Esta é, também aqui, o fundamento de seu pensar, havendo, assim, intrinsecamente, ligação entre a percepção do tempo e a dinâmica mística. Isso para não dizer que o fenômeno místico é a mais pura representação da duração que o ser humano pode ter. Como podemos constatar em A evolução criadora a palavra élan é usada por Bergson (2005) para definir uma das formas de manifestação da duração, tornando a mística, assim, uma intuição da duração.

O ponto de partida da filosofia bergsoniana é a oposição que ela estabelece entre o espaço e o tempo e entre o conceito e a intuição, ou, em outras palavras, o fundamento de toda a doutrina de Bergson é a doutrina da duração do real, que pode ser definida, de forma esquemática, como o tempo vivenciado ou real. Todavia esse conceito se desenvolve também de outras formas, pois sua classificação não deve ser rígida. Por isso, encontramos algumas fases que se destacam no pensamento bergsoniano, conforme observa Gilles Deleuze: “Duração (Durée), Memória (Mémoire) e Impulso Vital (Élan Vital) marcam as grandes etapas da filosofia bergsoniana” (DELEUZE, 2012, p. 09). Os três conceitos que marcam estas fases se relacionam, intimamente, podendo ser tidos como formas de expressão de uma mesma realidade.

Ainda em Deleuze, temos que a “[...] intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia.” (DELEUZE, 2012, p. 9). Entretanto existe ainda, em Bergson, o conceito de mística, que é, também esquematicamente, a faculdade pela qual algumas personalidades privilegiadas têm a percepção da duração em sua qualidade de élan vital. Estas pessoas seriam os místicos, os artistas e os heróis. Elas puxariam a humanidade em sua evolução moral. Como veremos, para Bergson, religião, moral e progresso estão intrinsecamente ligados.

Com a publicação da primeira edição crítica do conjunto da obra de Bergson, estamos como que numa virada decisiva da história do seu pensamento. No centro dos valiosos desenvolvimentos que esta filosofia conhece depois de uma década, o lugar da vida como questão filosófica retoma um olhar de interesse. É o que mostram, por exemplo, obras como Bergson ou les deux sens de la vie (2013) acima citada, ou ainda Bergson, la vie et l’action, que sustenta que “é com a vida que se decide de uma forma evidente o espiritualismo de Bergson” (VEILLARD-BARON, 2007, p. 10). Estes dois livros, mais recentes, fazem eco ao clássico trabalho de Pierre Trotignon, L’idée de vie chez Bergson et la critique de la metafisique (1968), que sugere partir da noção de vida para compreender as relações que ligam Bergson a seus contemporâneos. Nestas diferentes obras, a vida é entendida como sabedoria prática. Nesse sentido, A evolução criadora (BERGSON, 2005) e, As duas fontes da moral e da religião (BERGSON, 1978) seriam complementares uma à outra. A ligação entre essas duas obras foi colocada em destaque no quarto volume dos Annales Bergsoniennes (WORMS, 2008). Este volume contém vários artigos tratando da questão de saber se, As duas fontes da moral e da religião seria ou não uma espécie de continuação ou até mesmo coroamento de A evolução criadora. De nossa parte, sustentando a tese da continuidade entre as duas obras, nos deparamos, contudo, com o seguinte problema: a questão do misticismo só aparece, de fato, no final da evolução do pensamento bergsoniano – uma vez que o conceito de experiência mística só foi trabalhado explicitamente na sua última obra –, ou seria, antes, uma preocupação que atravessa toda a obra do filósofo?

Se o problema da imagem do élan vital continua, como dissemos acima, umas das questões mais controversas do pensamento bergsoniano, a questão do misticismo não nos parece menos problemática. Nos dois casos, chama a atenção o fato de Bergson ter estendido as fronteiras da filosofia para outros domínios de reflexão: a biologia pelo élan vital e a religião pela mística. É nesta espécie de categorização entre ciência e religião, ou ainda, entre metafísica e religião que o élan vital e a mística foram respectivamente compreendidos na filosofia de Bergson. Sabemos que os dois conceitos, de maneira distinta, motivaram interessantes análises, pesquisas e comentários pelo mundo a fora, principalmente na França, mas nos parece que no Brasil, pelo menos até onde sabemos, a articulação entre ambos até o momento não foi suficientemente trabalhada.

De modo singular, a temática do nosso trabalho foi recentemente objeto de análise de diversos especialistas da filosofia bergsoniana em Bergson et la religion, sob a direção de Ghislain Waterlot (2008). No seu conjunto, os diferentes trabalhos deste livro referem-se aos problemas concernentes às principais teses defendidas por Bergson (1978) em As duas fontes da moral e da religião.

2.2. Uma filosofia aberta

O final da conferência de Oxford parecia insinuar a intuição das almas privilegiadas como simples continuação das demais intuições. Seria, quando muito, um simples caso extraordinário, como o gênio. Será, na mente de Bergson, simples questão de mais e menos, no contato com o élan vital? Deixará ou não a filosofia bergsoniana um ponto de inserção para o sobrenatural? É ou não, como disse Maurice Blondel, uma filosofia aberta? (BLONDEL, 1943, p. 73).

O pensamento de Bergson é todo cheio de curvas e sinuosidades, nas suas explicações e deduções. Esforçar-nos-emos por seguir o mais de perto possível a sua dialética fugidia, por penetrar o mais profundamente possível o sentido do sistema e a alma que o anima. Mas uma argumentação pode pecar contra a lógica e ocultar, no fundo, uma argumentação verdadeira. Por isso, tentaremos seguir o pensamento profundo de Bergson o mais perto possível, por detrás da torrente de imagens do seu estilo de artista. As imagens fazem viver a realidade. Por isso Bergson as emprega. Quer fazer experimentar as suas intuições, quer que pensemos com ele, que com ele sigamos a realidade móvel e vaporosa no seu fugidio deslizar.

Bergson não define, descreve. Quer fazer ver. Quer fazer experimentar o que ele experimenta. Se quisermos uma definição, somos nós que a temos de buscar. Bergson descreve sempre, mesmo quando parece definir, mesmo quando define. Daí a margem para as várias interpretações. Mas uma descrição não se interpreta como uma definição metafísica. Compreende-se facilmente por que Bergson frequentemente foi tão mal compreendido, mesmo por pessoas eminentes na própria especialidade. Nem mesmo por filósofos de profissão – e por isso mesmo, disse Bergson, por se tratar de um método totalmente novo – foi sempre compreendido o bergsonismo.

O ponto de contato entre Bergson e nós é a realidade que ele descreve. Quando coincidem as descrições, estamos de posse da mesma realidade. Este método de comparação das várias descrições psicológicas parece ser o único meio de determinar, muitas vezes, em termos não bergsonianos, as realidades com que Bergson nos quer pôr em contato, porque ao lado das palavras de todos, há as palavras mágicas de sentido estritamente pessoal. Só quando as tivermos compreendido, poderemos criticar a sua filosofia, e tentar, quando for necessário, outra formulação da mesma realidade.

Mas uma filosofia vale também pelo que nos faz penetrar mais profundamente na realidade, embora não chegue e exprimi-lo perfeitamente. Tem por isso razão, dentro de certos limites, Jacques Chevalier quando diz: “O que realmente importa na obra de um homem é menos aquilo que ele disse do que aquilo que ele quis dizer” (CHEVALIER, 1926, p. 336). Realidade que ele viu, portanto, de algum modo, e nos fez ver.

2.3. A experiência mística

A nosso ver, vinha de longe a questão do misticismo. Há muito que Bergson se perguntava se a intuição da duração não se prolongaria na intuição mística. A verdadeira metafísica, o agir tornado consciente, não poderia levar ao menos algumas almas privilegiadas a coincidir com o élan vital, com o princípio mesmo da criação? A obra de Bergson estava incompleta. Houve mesmo quem chegasse a desesperar: “Agora a idade chegou, a obra está incompleta; e a nossa volta, os frutos não corresponderam à promessa das flores” (CHEVALIER, 1926, p. 66). É que Bergson se mantinha no escrúpulo de nunca dar lugar, nos seus trabalhos, ao que fosse simples opinião pessoal, ou convicção incapaz de se objetivar por esse método particular, o método da sua metafísica empírica. Toda a filosofia devia estar baseada na experiência exterior e interior, e não devia ultrapassar em nada as considerações empíricas sobre as quais se fundava. Como podemos verificar em uma de suas conversas com Chevalier: “Meu livro é, com efeito, um livro de filosofia. É pacífico que, enquanto o escrevo, não admito outra fonte de verdade além da experiência e do raciocínio” (CHEVALIER, 1959, p. 152).

Nem mesmo estava certo de vir a publicar alguma coisa a esse respeito. Só o faria, escreveu um dia ao padre Joseph de Tonquédec, se chegasse a resultados que lhe parecessem tão demonstráveis como os resultados dos seus outros trabalhos. Para lá da cosmologia de A evolução criadora havia lugar para uma teodiceia? Bergson traçara alguns delineamentos: simples perspectivas e não um estudo aprofundado e completo da existência e da natureza de Deus. A questão ficava aberta. Um ponto de interrogação a que muitos responderam, à pressa, pelo autor de As duas fontes da moral e da religião (BERGSON, 1978). Havia quem falasse resolutamente de monismo bergsoniano. Não faltava, por outro lado, quem defendesse a incompatibilidade absoluta de A evolução criadora com qualquer monismo ou panteísmo.

No pensamento de Bergson havia ainda pontos de interrogação. Um fato, porém, ficava, segundo ele, inabalável: o fato da Criação. Que de tudo se desprendia

[...] claramente a ideia de um Deus criador e livre, gerador ao mesmo tempo da matéria e da vida, [...] e cujo esforço de criação [se continuava,] do lado da vida, pela evolução das espécies e pela constituição das personalidades humanas. [De tudo se desprendia, consequentemente,] a refutação do monismo e do panteísmo em geral. [...] Mas para precisar ainda mais estas conclusões, e acrescentar outras, seria necessário abordar problemas [de outro gênero,] de um gênero completamente diferente (BERGSON, 1972, p. 964).

Não estava na mente de Bergson o monismo. Estava na letra de A evolução criadora? A questão repercute-se sobre todo o bergsonismo, sobre a metafísica empírica e o seu método do conhecimento interior da realidade. Conforme o valor e o alcance objetivo desse instrumento de trabalho se deve avaliar, em grande parte, o valor dessa filosofia. Bergson só queria nos dar conclusões filosoficamente seguras, pelo seu método. Mas bem se sabia já de que direção viria à luz. Nesse sentido, em 1908 Bergson escrevera uma carta, onde a propósito das teorias do seu amigo e discípulo Édouard Le Roy, dizia:

A existência de Deus é dada numa intuição. A inteligência propriamente dita, a inteligência pura, iria parar no ateísmo: tal é o pensamento de Le Roy, se o compreendi bem. É igualmente o meu, porque imagino a inteligência como uma faculdade voltada essencialmente para a matéria, articulada com a matéria (BERGSON, 2002, p. 729).

Negava Bergson com isso todo o valor às provas tradicionais da existência de Deus?

Não quer isto dizer, continuava, que as provas tradicionais da existência de Deus sejam consideradas sem valor; mas tiram o seu valor [de apelarem,] consciente ou inconscientemente, [...] para a intuição, para lá da dialética. [A inteligência deixada a si mesma, bem depressa materializaria o espírito,] porque tende para a geometria e geometriza tudo aquilo em que toca. (BERGSON, 2002, p. 729).

Três anos mais tarde, no final da primeira conferência da Universidade de Oxford, em 1911, põe-se, com toda a nitidez, o problema da intuição mística como instrumento de investigação metafísica, mas não se tenta ainda resolver:

Através da extensão e da revivificação de nossa faculdade de perceber, talvez também (mas por enquanto está fora de questão elevar-se a tais alturas) através de um prolongamento dado à intuição por almas privilegiadas, restabeleceríamos a continuidade no conjunto de nossos conhecimentos – continuidade que já não seria hipotética e construída, mas experimentada e vivida. (BERGSON, 2006, p. 163).

Nessa direção trabalhava Bergson: estabelecer experimentalmente a continuidade da intuição da duração e da intuição de certas almas privilegiadas; provar a unidade de todo o conhecimento metafísico da realidade, dos seres ao Ser.

Numa carta ao filósofo e teólogo dinamarquês Harald Höffding (1843-1931) dizia não ter realmente abordado ainda, nos seus escritos, o problema de Deus. Era uma questão inseparável dos problemas morais, cujo estudo o absorvia há vários anos. As poucas linhas da Evolução criadora, às quais Höffding fazia alusão, tinham sido postas nessa obra como pedra de encaixe (BERGSON, 1972, p. 1147). Já em 1904, quando Bergson escrevia sobre A vida e a obra de Ravaisson, em que apresentava o universo como o aspecto exterior de uma realidade que vista de dentro e atingida em si, nos apareceria como um dom gratuito, como um grande ato de liberdade e de amor, talvez que já então tivesse a intuição confusa do significado da experiência mística (BERGSON, 2006, p. 292).

Cerca de vinte e cinco anos depois de A evolução criadora, apareceu, finalmente, o Deus de Bergson, ou melhor, o que Bergson podia dizer-nos de Deus. Estamos no cume do bergsonismo. Em face de Bergson só se abria o caminho da experiência de Deus. Só assim poderia a sua metafísica estender-se em teodiceia. Só assim o conhecimento metafísico da realidade no seu como, se estenderia a todos os graus do ser. Mas a intuição mística seria, na interpretação bergsoniana, um simples prolongamento da intuição metafísica? Estão bem nessa direção as passagens anteriores às Duas fontes (BERGSON, 1978). O contato interior da realidade nos faz deparar com o princípio mesmo da criação. Uma intuição mais profunda nos fará penetrar até ao princípio mesmo da vida, e por isso do ser em geral. Bergson não definirá de outro modo a intuição mística. Contato puramente humano e vital, tal se insinua, nas obras anteriores às Duas fontes, esse ato, intimamente dependente, ao mesmo tempo, do nosso esforço. E na última obra de Bergson?

No comentário que Bergson fez de uma das obras de William James, chamada Pragmatismo (1979), ele fala das almas soerguidas pelo entusiasmo religioso, a mostrarem, como numa experiência científica, a força que transporta e que soergue (BERGSON, 2006, p. 245). O mesmo diria do misticismo. O conhecimento metafísico bergsoniano é o conhecimento desde o interior da realidade. É, em primeiro lugar, o conhecimento do espírito pelo espírito, mas não se limita ao conhecimento de nós por nós. Poderia estender-se esse conhecimento à origem e ao princípio da vida e do universo? Segundo Bergson, sim, pois aí estão os místicos a afirmá-lo.

A experiência mística é, para Bergson, a continuação, em profundidade, da experiência metafísica. É, portanto, uma experiência metafísica de Deus, uma experiência em que Deus é conhecido interiormente, como nós nos conhecemos a nós, na metafísica bergsoniana.

Nem todos são filósofos. Com mais razão nem todos serão místicos, visto ir o místico muito mais além do que o filósofo, e descer a mística, no contato com a realidade, muito mais fundo do que a filosofia. Mas pode ser, diz Bergson, que em todos dormite um místico, como em todos perpassa, num grau maior ou menor, a mesma vida. Se nem todos podem descer ao contato direto com o princípio criador, todos poderiam entrar em ressonância com as almas privilegiadas, e chegar assim, de algum modo, ao que elas alcançam imediatamente.

2.4. Valor filosófico do misticismo

No bergsonismo, a experiência mística pode ser fonte de conhecimento, para o místico e para os demais. E como se trata de uma experiência metafísica, será origem de conhecimento metafísico. Bergson parte do princípio de que uma existência só pode ser dada numa experiência. Nessa hipótese, o misticismo deve fornecer o meio de abordar de algum modo experimentalmente o problema da existência e da natureza de Deus.

Na já citada carta de 1908 Bergson diz não excluir as provas tradicionais da existência de Deus. Mas, acrescenta, tiram o seu valor do fato de apelarem, consciente ou inconscientemente, para a intuição. Nas Duas fontes não vê como o filósofo abordaria o problema de outra maneira, por um método diferente do método bergsoniano da experiência metafísica. E mais uma vez repete o que tantas vezes disse em outras obras, “que um objeto que existe é um objeto que é percebido ou que poderia sê-lo. Ele é dado, pois, numa experiência, real ou possível” (BERGSON, 1978, p. 198). Dirão talvez, nota Bergson, que a experiência mística é uma experiência individual e excepcional. Também o pode ser, responde, a experiência científica. A verificação é possível, teoricamente, se não praticamente, como no caso da viagem de Livingstone3: “Também o místico, por sua vez, fez uma viagem que outros podem fazer de novo de direito, senão de fato” (BERGSON, 1978, p. 202). Ao ouvir o místico, reverbera na maioria de nós um eco. É que em todos perpassa a mesma vida, e em todos se manifesta, de algum modo, o esforço criador.

Nesse sentido, em que consiste, na interpretação bergsoniana, o valor filosófico do misticismo?4 Em ver nele, como numa experiência científica, a natureza e a existência de Deus, ao mesmo tempo. O acordo profundo dos místicos entre si é a primeira razão experimental da existência de Deus, na teodiceia bergsoniana. Se a concordância exterior dos místicos se pode explicar pela tradição e pelo ensino, “[...] seu acordo profundo é sinal de uma identidade de intuição que se explicaria mais simplesmente pela existência real do Ser com o qual eles se creem em comunicação.” (BERGSON, 1978, p. 204). O argumento aumenta de força, se ao lado do misticismo cristão caminharem, no mesmo sentido, todas as demais correntes místicas: “Que aconteceria se considerarmos que os demais misticismos, antigos ou modernos, vão mais ou menos longe, detendo-se aqui e ali, mas que assinalam todos a mesma direção?” (BERGSON, 1978, p. 204).

O acordo entre os místicos chama a atenção entre os místicos cristãos. Passam, diz Bergson, por uma série de estados, antes de atingir a deificação definitiva. Estes estados podem variar de místico para místico, mas parecem-se muito. Em todo o caso, o caminho é o mesmo, embora de modo diferente o dividam os marcos, e é o mesmo o termo final. Todos vão dar no mesmo ponto. Mas, segundo o bergsonismo, a experiência mística não pode trazer ao filósofo, só por si, a certeza definitiva. Apenas seria completamente convincente, se outras razões tornassem já verossímil a existência dessa experiência privilegiada. É o que sucede. Sobre os dados biológicos foi estabelecido, diz Bergson, o élan vital. De onde vinha, porém, o élan? Os fatos apontados não davam resposta alguma, mas indicavam a direção de onde poderia vir a solução: a auréola de intuição que cercava a inteligência. Se uma primeira intensificação atingia a continuidade da vida interior, talvez uma intensificação superior poderia nos conduzir “[...] até às raízes do nosso ser e, com isso, até ao princípio da vida em geral” (BERGSON, 1978, p. 206).

Os dados da experiência mística deveriam realizar a sugestão de outro gênero de experiências ou de raciocínios baseados sobre a experiência. Se o filósofo “[...] tivesse chegado por outra via, tal como a experiência sensível e o raciocínio calcado nela, para encarar como verossímil a existência de uma experiência privilegiada, pela qual o homem entrasse em comunicação com um princípio transcendente.” (BERGSON, 1978, p. 204), o fato de encontrar depois essa experiência, tal como se esperava, nos místicos, faria que ambas as experiências se confirmassem reciprocamente e conferissem como um reflexo da própria objetividade particular. Como diz Prado Jr.:

O filósofo não pretende, com efeito, substituir o cientista; ele invoca o testemunho do cientista e dele se utiliza em seu nível, isto é, no nível da filosofia. Da mesma maneira, o filósofo pode invocar a experiência mística – sem confundir-se com o místico ou substituí- lo –, e trazê-la para o seu próprio campo, o campo do pensamento preciso (PRADO JR, 1988, p. 214).

É o que acontece, precisamente, segundo as Duas fontes. O aprofundamento de uma certa ordem de problemas, completamente diferentes do problema religioso, teria conduzido o filósofo, por um lado, “[...] a conclusões que tornaram provável a existência de uma experiência singular, privilegiada, tal como a experiência mística.” (BERGSON, 1978, p. 205). Por outro lado, a experiência mística, estudada por si mesma, forneceria indicações capazes de se somarem aos ensinamentos obtidos num domínio completamente diferente, e por um método completamente diverso. Há, portanto, nesse caso, termina Bergson, “[...] reforço e complemento recíprocos.” (BERGSON, 1978, p. 205).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para responder nossa questão principal, isto é, saber como se estabelece, no conjunto da obra de Bergson, a relação entre a experiência mística e a filosofia da duração e do élan vital, organizamos nosso trabalho em três momentos. Na primeira parte, a experiência aparece como ponto de partida, pondo-se em evidência as suas características de experiência metafísica, condição indispensável para a possibilidade de uma metafísica positiva. Depois, consideramos diretamente a problemática metafísica bergsoniana. A duração, na sua gênese e nas suas características é o objetivo da metafísica, ressaltando a sua importância em toda a obra de Bergson e alargando progressivamente o seu âmbito, desde o psíquico ao bio- cósmico, com a descoberta do élan vital. O objetivo foi situar o contexto de emergência da imagem do élan vital para aí descobrir a especificidade do pensamento de Bergson, especificidade que dá unidade à sua filosofia e marca sua contribuição para a história da filosofia.

Para Bergson, a meta da filosofia é fundamentalmente ética, ou seja, ela é uma maneira de viver. Assim como a ciência precisa de cientistas que sejam capazes de conduzir adiante as descobertas científicas e tecnológicas e, desta maneira, contribuir para melhorar a vida das pessoas, ou ainda, como os artistas que nos ajudam a enxergar aquilo que naturalmente não conseguimos perceber, assim também a moral bem como a religião precisa de pessoas que nos façam perceber os caminhos insuspeitos da ação humana, da ação boa.

Daí a última parte do trabalho ter sido consagrado à apresentação de personalidades de exceção, na qual se encontram os místicos, que indicam ao homem seu futuro, na união da contemplação e do agir. Nos místicos, o élan vital, enquanto superação de tudo o que representa o peso da matéria, encontra sua mais bela expressão. O élan vital é fonte de criação. Ele primeiro cria espécies sem história, depois a espécie dos criadores de história: o artista, o herói, o místico. Vimos como a ligação entre élan vital e mística se articula em torno da questão do esforço, esforço da vida “[...] para obter da matéria alguma coisa que a matéria não queria lhe dar.” (BERGSON, 1972, p. 486). Assim compreendida, o conceito de mística parece conter certa nuance de triunfalismo, na medida em que sugere a ideia de um obstáculo a superar ou, antes, de um obstáculo superado. Assim como a alegria, a mística também seria um sinal de que a vida deu certo, que “[...] nossa destinação foi alcançada” (BERGSON, 2009, p. 22). Como a alegria, a mística “anuncia que a vida venceu, que ganhou terreno, que conquistou uma vitória” (BERGSON, 2009, p. 22). Enfim, a mística é aqui compreendida como uma vitória da vida sobre a matéria, ou seja, o fato místico se apresenta na filosofia bergsoniana como o lugar privilegiado do ato criador. Aliás, é assim que Bergson irá definir os místicos: pessoas que “[...] conseguiram, por um esforço individual que se acrescentou ao trabalho geral da vida, quebrar a resistência que o instrumento opunha, triunfar da materialidade, enfim, conseguiram encontrar Deus” (BERGSON, 1978, p. 212).

Romper a resistência que o instrumento opunha, triunfar sobre a matéria, encontrar Deus! Essa tripla ação que assume o formato de um método faz da mística o resultado de um exercício pessoal, de um esforço voluntário. Tudo parece se resumir à ação do indivíduo. Nesse caso, nos deparamos com o problema da iniciativa divina, uma vez que, tradicionalmente, a mística geralmente foi compreendida como a experiência de união da alma com Deus. A vitória que representa a mística não seria da ordem de uma vontade pessoal de superação?

Essa questão, de fato, até poderia ser dirigida a Bergson, se ele não tivesse se antecipado em dizer que somente uma realidade caracteriza a mística: o amor. “Deus é amor, e é objeto de amor: tudo o que o misticismo tem a dizer e a fazer consiste nisso” (BERGSON, 1978, p. 208). O triunfo da vida é, na verdade, o triunfo do amor. Nesse sentido, considerar a mística como um suplemento de vida como faz Bergson significa afirmar que ela representa uma plenitude de ser. O termo suplemento pelo qual podemos caracterizar a mística bergsoniana envolve sem confundir as noções de esforço e de dom. A primeira noção supõe a vontade humana e a segunda depende da iniciativa divina.

De fato, os místicos são unânimes em atestar que Deus precisa de nós, como precisamos de Deus. Porque teria ele necessidade de nós, a não ser para nos amar? Tal será certamente a conclusão do filósofo que se transporte à experiência mística. A Criação lhe aparecerá como um empreendimento de Deus para criar criadores, para associar a si seres dignos de seu amor. (BERGSON, 1978, p. 210).

Com efeito, se a importância que tem a noção de esforço moral e intelectual na filosofia bergsoniana é bastante enfatizada, a importância do dom e da fé no pensamento de Bergson, ao contrário, pode parecer menos precisa. Esta é uma das críticas feitas a ele por alguns pensadores católicos. Mas nosso objetivo não foi tentar verificar a existência ou não de um pensamento propriamente bergsoniano acerca da graça mística, mas procurar compreender os fundamentos e desdobramento do misticismo na obra toda de Bergson.

O problema da mística como tal não pode se manter no pensamento do nosso autor sem uma retomada da experiência metafísica da duração interior e do élan vital. É o que Baruzi vai chamar de “[...] o ponto de encontro de Bergson com a mística.” (BARUZI, 1985, p. 69). Sustentamos que a reflexão sobre o misticismo não acontece de maneira exterior e secundária na filosofia bergsoniana. Sem ser uma consequência imediata, a mística não apenas prolonga a teoria da duração e do élan vital, mas também a ilumina com um novo significado. Na verdade, se a partir da cronologia das obras de Bergson, podemos afirmar que sua filosofia da vida tornou possível sua filosofia mística, por outro lado, poderíamos também dizer que uma mística avant la lettre impregnou toda sua filosofia da vida.

A reflexão sobre o poder criador dos místicos está intimamente relacionada à fonte de onde extraem sua força. Duração interior, élan criador e experiência mística se apresentam como elementos de uma mesma realidade. Nesse sentido, nosso objetivo maior nesse trabalho foi testar a hipótese de que, mais que uma conclusão ou um coroamento, a questão mística é o ponto central da filosofia bergsoniana. Ao passo que aquilo que conclui diz respeito ao fechado, aquilo que é central se abre sempre para novas perspectivas. Considerar assim o fato místico como o centro e não como a conclusão do bergsonismo exige que seja estabelecido, ao mesmo tempo, seu valor crítico, seu alcance metafísico e sua dimensão de práxis.

REFERÊNCIAS

BARUZI, Jean. L’intelligence mystique. Paris: Berg Internacional Editeurs, 1985.

BERGSON, Henri. Mélanges. Textes publiés et annotés par André Robinet. Paris: PUF, 1972.

BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Tradução: Natanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

BERGSON, Henri. Correspondances. Textes publiés et annotés par André Robinet. Paris: PUF, 2002.

BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução: Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Tradução: Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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CHEVALIER, Jacques. Bergson. Paris: Plon, 1926.

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DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução: Luiz B. L. Orlandi. 2. ed. São Paulo: 34, 2012.

INGARDEN, Roman. L’intériorité bergsonienne et le problème de la phénoménologie de la constituition. In: VV. AA. Bergson et nous. Paris: Armand Colin, 1959.

JAMES, William. Pragmatismo e outros textos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

PRADO JR., Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: EDUSP, 1988.

SILVA, Franklin Leopoldo. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.

TROTIGNON, Pierre. L’idée de vie chez Bergson et la critique de la métaphysique. Paris: PUF, 1968.

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WORMS, Frédéric. Bergson ou les deux sens de la vie. Paris: PUF, 2013.

WORMS, Frédéric. A concepção bergsoniana do tempo. Revista Dois Pontos, v. 1, n. 1 (2004), p. 129-149.

WORMS, Frédéric et al. (org.). Annales bergsoniennes IV. Paris: PUF, 2008.

BERGSON, Henri. Oeuvres (Édition du Centenaire). Paris: PUF, 1959.

Notas

1 Com relação ao patrimônio filosófico herdado por Bergson, será conveniente esclarecermos que nosso filósofo considera que o substrato último de uma filosofia, o que ela tem de original, não depende em nada da época em que o seu autor viveu: “Um pensamento que traz algo de novo para o mundo por força há de se manifestar através das ideias já prontas que encontra à sua frente e arrasta em seu movimento; aparece assim como relativo à época em que o filósofo viveu: mas o mais das vezes isso é apenas aparência. O filósofo poderia ter vindo vários séculos antes; teria lidado com uma outra filosofia e uma outra ciência; ter-se-ia posto outros problemas; ter-se-ia expresso por outras fórmulas; nenhum capítulo, talvez, dos livros que escreveu teria sido como é; e no entanto ele teria dito a mesma coisa” (BERGSON, 2006, p. 129). No geral, não podemos deixar de concordar com Bergson. Porém, questionamos se a fronteira entre o que se diz e como é dito é tão facialmente demarcável? Sendo certo que o essencial de uma obra não se reduz ao contexto da época e às contingências materiais da mesma, consideramos que estes aspectos são também fundamentais no processo que conduz o autor a uma determina ideia.
2 De acordo com Bergson (1972), a tradição filosófica foi unânime em declarar essencial a questão do tempo. Contudo, revelou-se pródiga em negligenciar o seu correto enquadramento que, para nosso autor, se situa na abordagem metafísica de uma experiência imediata e interior da duração concreta.
3 David Livingstone (1813-1873) foi um missionário e explorador britânico que se tornou famoso por ter sido um dos primeiros europeus a ter explorado o interior da África. A passagem onde Bergson se refere à Ligingstone é a seguinte: “No tempo em que a África central era uma terra incognita, a geografia baseava-se no relato de um explorador único se este oferecesse garantias suficientes de honestidade e de competência. O traçado das viagens de Livingstone por muito tempo figurou nos mapas de nossos atlas. Replicar-se-á que a verificação era possível de direito, senão de fato, e que outros viajantes eram livres para irem verificar que, de resto, o mapa desenhado com base nas indicações de um viajante único era provisório até que explorações ulteriores o tornassem definitivo. Estou de acordo; mas o místico, por sua vez, fez uma viagem que outros podem fazer de novo de direito, senão de fato” (BERGSON, 1978, p. 202).
4 Muito oportuno a esse respeito a reflexão feita por Silva, ao dizer que “[...] embora a intuição mística seja um caso privilegiado de simpatia com a totalidade e de comunicação com o absoluto, o contexto religioso em que ela se dá autoriza o filósofo a estudá-la como exemplo de intuição e não a identificar a intuição com a experiência mística. O ‘valor filosófico do misticismo’ não consiste em trazer uma certeza definitiva acerca do alcance cognitivo da intuição, mas em fornecer de alguma maneira uma experiência ‘objetiva’ em que este alcance possa ser avaliado. Trata-se de resultado a ser comparado com outros.” (SILVA, 1994, p. 299).


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