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A MÍSTICA DE ETTY HILLESUM: interfaces com a espiritualidade cristã
ETTY HILLESUM’S MYSTICISM: interfaces with the Christian spirituality
Interações, vol. 15, núm. 2, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS



Recepção: 06 Maio 2020

Aprovação: 28 Outubro 2020

Resumo: O artigo situa-se no âmbito dos estudos sobre mística e espiritualidade no contexto pós-moderno. A mística se tornou tema recorrente nas Ciências da Religião e na Teologia, pelas perspectivas que abre tanto para a dimensão existencial da fé como para o diálogo inter-religioso. O presente artigo busca uma interface entre a mística de Etty Hillesum e a espiritualidade cristã. Embora Etty não pertença a nenhuma instituição religiosa, sua experiência de Deus evidencia aspectos cruciais para qualquer tradição religiosa ou espiritual. No que diz respeito aos cristãos, sua mística engendra o resgate de elementos decisivos da experiência cristã: a descoberta de Deus na interioridade como fonte do amor fraterno e universal, apontando caminhos que ajudam na superação de certos traços mágico- supersticiosos que marcam a espiritualidade cristã e a evangelização em tempos pós-modernos.

Palavras-chave: Etty Hillesum, Mística, Espiritualidade Cristã, Pós-modernidade.

Abstract: This article is based on studies on mysticism and spirituality in the postmodern context. Mysticism has been a recurring theme in Religious Studies and Theology, because it opens the perspectives both for the existential dimension of faith and for interreligious dialogue. This article seeks an interface between Etty Hillesum's mysticism and Christian spirituality. Although Etty does not belong to any religious institution, her experience of God highlights essential aspects to any religious or spiritual tradition. For Christians, his mysticism engenders the rescue of decisive elements of the Christian experience: the discovery of God in interiority as the source of fraternal and universal love, indicating paths that help to overcome certain characteristics magical and superstitious who mark Christian spirituality and evangelization in Postmodern Age.

Keywords: Etty Hillesum, Mysticism, Christian Spirituality, Postmodernity.

1 INTRODUÇÃO

Etty Hillesum deixou-nos um fascinante legado. Neste artigo, buscaremos aprofundar sua mística para descobrir sua experiência humana e espiritual. O ponto de partida de nossa reflexão se encontra na inquieta busca de Etty e sua batalha aguerrida para salvar Deus em si mesma e em cada pessoa humana, a partir do mergulho na interioridade. A experiência de Etty oferece luzes ao contexto contemporâneo, marcado por pluralismo epistemológico, religioso e cultural, e pelo retorno de cenários fundamentalistas violentos. A massificação do sujeito, num estilo hegemônico de cultura, centrada em poderes econômicos, como nos tempos atuais, provocou-nos a buscar, em Hillesum, a profundidade de um caminho místico fundado no cultivo da interioridade, em pleno cenário de horror e morte.

Da força interior de Etty nasce uma espécie de transbordamento existencial que ultrapassa as barreiras impostas por um regime impiedoso e cruel. Na vulnerabilidade e, mais profundamente ainda, no sofrimento extremo da Shoah.1 Deus surge como fonte limpa de confiança, no interior de um corpo conflituoso, desejoso do divino. Mistério que, para Etty, vai além de organizações e instituições e suas pretensões de uma palavra absoluta sobre Deus. Sua experiência mística mostra que, quando os ideais culturais culminam em posturas fundamentalistas, o próprio Deus parece, em seu mistério, assanhar os elementos esquecidos, suspeitos, revelando a força transcendente do não todo, à espera de uma acolhida. A vulnerabilidade, nesse caso, mostra-se paradoxal, ou seja, ao mesmo tempo que impõe limites, também convida a desenterrar as sementes divinas que se escondem na frágil carne humana.

A mística de Etty ilumina, assim, todas as tradições religiosas e, para além delas, as vivências autenticamente humanas, ao acenar para elementos essenciais da experiência de Deus. As interfaces de sua experiência com o Cristianismo são bastante claras, embora ela não tenha sido cristã. Sua mística tem potencial para interrogar os cristãos sobre sua experiência de Deus em tempos pós-modernos. Sobre isso inquire esse artigo, a partir de algumas perguntas. Como encontrar em Etty um testemunho de resistência, de alguém que, mesmo sendo vitimada, não aceitou sucumbir-se à banalização das consciências em nome de um poder e de uma raça considerados superiores? De que modo ela fez nascer das cinzas da Shoah uma voz teológica e política, com grandeza universal, para além das religiões, que clamou atenção pelo fato de que nada, nem mesmo o mal mais absurdo da Shoah, pode destruir o sagrado dom da nossa humanidade? Que imagem de Deus emerge da experiência de Etty e como se manifesta na vulnerabilidade, na injustiça, no fracasso e numa situação racionalmente absurda e inaceitável? Como encontrá-lo diante do imponderável, do destino cruel que continua a assolar a vida dos seres humanos? São perguntas que questionam qualquer experiência religiosa. Aqui nos interessa a espiritualidade cristã e seu lugar na evangelização, que, à luz das provocações de Etty, necessita redescobrir, no Evangelho de Jesus Cristo, e em sua rica tradição teológico-espiritual, respostas, ainda que discretas, para essas perguntas. O artigo, após apresentar traços da personalidade de Etty em sua busca por autoconhecimento, se centrará na sua descoberta de Deus na interioridade, nos traços caracterizantes de sua experiência e, finalmente, no aporte que oferece à espiritualidade cristã e à evangelização em tempos de pós-modernidade.

2 UM CORPO VULNERÁVEL EM BUSCA DE LIBERDADE INTERIOR

Esther Etty Hillesum nasceu em 15 de janeiro de 1914, em Middelburg, na Holanda. Seu pai ensinava línguas clássicas, era o último de quatro filhos do comerciante Jacob Samuel Hillesum e de Esther Hillesum-Loeza. Sua mãe era Riva Rebeca Bernstein, de origem russa. Aos dez anos de idade, foi com os pais e dois irmãos viver na cidade holandesa de Deventer. Seus irmãos eram Jaap Hillesum, médico, e Mischa Hillesum, reconhecido pelo talento musical. Sua família era judia. Quando Etty completou 18 anos, os pais enviaram-na para estudar jurisprudência em Amsterdã, onde graduou-se, embora seu interesse maior fosse por línguas eslavas. Em 1941, iniciou sua análise com Julius Spier, psicoquirólogo. Sua análise conjugava a leitura das linhas das mãos, associada com sua experiencia na abordagem junguiana.2 Com ele, Etty construiu uma relação conflituosa com tonalidade erótica, mas graças a Spier, percorreu um rico caminho de descoberta da interioridade e de suas potencialidades. O encontro com Spier foi decisivo para sua descoberta religiosa.

Assim que começou a terapia, incentivada por Spier, iniciou também a escrita de seu diário, que a tornaria conhecida mundialmente, escrito na rua Gabriel Metsustraat, onde vivia com Han Wegerif, viúvo bem mais velho que ela, cuja casa ela administrava, vindo a se tornar sua companheira. Em julho de 1942, começou a trabalhar como datilógrafa no Conselho Hebraico, criado pelos alemães como mediação com a comunidade judaica. Não estando feliz com essa função, tornou-se voluntária no campo de Westerbork, criado em 1939 como acampamento para os refugiados judeus, que, no entanto, se tornou campo de concentração, em 1942, quando os alemães ocuparam o espaço. De Westerbork – onde cuidava dos deportados judeus, mesmo podendo retornar a Amsterdam –, foi levada, com a família, no dia 07 de setembro de 1943, para Auschwitz, na Polônia, onde, em 30 de novembro de 1943, aos 29 anos, morreu numa câmara de gás. Quando foi deportada para Auschwitz, em sua mochila havia uma Bíblia e uma gramática russa (SMELIK, 2012, p. 17- 26).

Seu diário mostra a luta de alguém que buscou encontrar, no fundo da alma, a razão mais profunda para administrar o desamparo pessoal e lidar com os horrores do massacre sofrido pelo povo judeu. Os frutos que colheu dessa aventura foram provenientes de seu encontro com Spier, a quem reconhece como aquele que tomou pela mão alguém que sofria de uma constipação espiritual, com predisposição genética ao caos e ao egocentrismo. Com Spier desenvolveu interesse pela Bíblia e Santo Agostinho. Etty, amante da literatura e da poesia, conhecia Rilke e Dostoiévski, cuja leitura se aprofunda a partir de seu encontro com Spier (SMELIK, 2012, p. 23). Ao mesmo tempo em que se lançava na busca de si, resistia à tentação de se perder no desejo do outro:

Se um homem me causa certa impressão, sou capaz de abandonar-me por dias e noites às minhas fantasias eróticas – não me dou conta de quanta energia eu tenha perdido por isso – mas se então acontece um contato real, é uma grande desilusão. A realidade não pode coincidir com a minha fantasia desenfreada. (HILLESUM, 2012, p. 36, tradução nossa3).4

Etty percorre um largo caminho de autoconhecimento, mostrando-se agudamente consciente de sua vulnerabilidade. Reconhece-se como abismo profundo e confessa seu mal- estar frente à realidade: “A realidade não é totalmente real para mim, e é por isso que não consigo concretizar as coisas, porque me escapam sua importância e sentido.” (HILLESUM, 2012, p. 156).5 Seus estados de ânimo oscilam, causando-lhe não pouco sofrimento. Chega ao extremo de afirmar:

É tão difícil analisar meus estados de ânimo, conhecer suas causas, suas conexões. Não sei por quê. Ontem me sentia tentada a dizer a meus amigos: Escutem, se hoje ou amanhã uma bomba cair sobre mim, não sejam estúpidos, mas consolem-se pensando que estou feliz por ter sido liberta. (HILLESUM, 2012, p. 198, tradução nossa).6

Etty, consciente do caos interior que a angustia, declara que sua única tarefa na vida é pôr ordem e harmonia no seu próprio caos. Iniciativa que deve partir de dentro, uma vez que o mundo exterior se lhe revela como simples “projeção do mundo interior” (HILLESUM, 2012, p. 206).7 A solução para o dilema da existência brota, em última instância, das profundezas do seu próprio ser, como descoberta pessoal que a liberta do seu sofrido dilema: “[...] há momentos em que detestei a vida, não encontrando nenhuma saída, a existência se me apresentava como uma infinita via crucis.” (HILLLESUM, 2012, p. 248).8 Ao decidir-se pelo aborto, confessa que não gostaria de transmitir a ninguém as doenças hereditárias da sua família e se lembra do dia terrível em que viu seu irmão mais jovem, Mischa, ser levado a um hospital psiquiátrico, num estado de total confusão mental. Naquele dia, ela disse a si mesma: “[...] do meu seio jamais nascerá alguém tão infeliz.” (HILLESUM, 2012, p. 260).9 Além disso, tinha lucidez sobre o que sofria seu povo judeu.

Seu combate se deu como resposta às inquietações pessoais, corpóreas, psíquicas e, também, às pressões sofridas nos horrores da guerra. Suas dores de cabeça, indigestões, ciclos menstruais e o doloroso aborto voluntário, compuseram cenas fortes de uma corporeidade feminina inquieta. “O bloco de rocha maior se encontra, em tal caso, precisamente no centro do meu estômago. Eu tenho um estômago autenticamente psicológico.” (HILLESUM, 2012, p. 193).10 Considerava que suas dores, de fato, eram provenientes de uma sobrecarga de coisas que queria agarrar para si. Acreditava que se alguma coisa não andasse bem em sua alma, seu corpo também iria sentir. Somavam-se a isso o impacto de eventos externos. “De novo prisões, terror, campos de concentração, sequestros de pais, irmãs e irmãos. Interroga-se sobre o sentido da vida, pergunta-se se essa teria ainda um sentido.” (HILLESUM, 2012, p. 111).11 Tocada por momentos de depressão e pelas perseguições nazistas, sentia sempre uma inquietude ativa e, ao invés de sucumbir diante das ameaças de fora e de dentro, aventurou-se num caminho de criação, afinal, declarava: “só o artista tem condição de dar conta daquilo que resta de irracional no homem.” (HILLESUM, 2012, p. 119).12

Etty percebe seu desequilíbrio, vive à beira da falência do seu próprio ser, mas empreende uma busca quase desesperada para salvar a si mesma do caos que a consome por dentro e por fora, devido à perseguição perpetrada pelos nazistas aos judeus na Holanda. O encontro com Spier transforma-a. Pouco a pouco ela encontrará o caminho do equilíbrio. “Todos os dias, presto atenção ao que acontece dentro de mim, mesmo quando estou no meio das pessoas, não tenho mais necessidade de me isolar e tiro sempre força das fontes mais escondidas e profundas.” (HILLESUM, 2012, p. 351).13 Ela encontra, afinal, o fio de Ariadne que lhe aponta a saída do tortuoso labirinto interior. “É já muito bom compreender que se é parte de um grande processo de crescimento e se tornar consciente desse processo.” (HILLESUM, 2012, p. 368).14 Uma vez aceitando essa posse fugidia de si mesma, tanto quanto lhe foi possível, percebe-se portadora de uma missão que, um dia, iria se cumprir: “Em qualquer canto do mundo em que me encontrarei, terei alguma coisa para dizer às pessoas, da minha maneira, com modéstia, mas terei alguma coisa a dizer.” (HILLESUM, 2012, p. 384).15 O que terá a dizer, diz respeito à descoberta da sua interioridade. É daí que jorrará todas as riquezas do seu ser.

3 DESCOBERTA DA INTERIORIDADE E DE QUEM A HABITA

O conflito de crescimento que Etty estabelece consigo mesma termina na descoberta da interioridade, de onde consegue encontrar força para lidar com seus conflitos e os da realidade à sua volta: “O meu ‘centro’ está se tornando cada vez mais firme. No passado, apesar das minhas teorias energéticas e bem fundadas, eu era apenas um passarinho flutuante e inseguro. E agora há em mim um centro de força que irradia energia também para o mundo exterior.” (HILLESUM, 2012, p. 66).16 Sua busca nasce do esforço e da disciplina. “Um ser humano é corpo e espírito. E uma meia hora de exercício combinada com uma meia hora de meditação pode criar uma base de serenidade e concentração para todo o dia.” (HILLESUM, 2012, p. 103).17 A meditação emerge como caminho para o encontro de algo divino. Não aquele que paralisa no êxtase, mas que a lança no cotidiano das relações, das escolhas e das decisões. Afirmava que não se deve entregar a ninguém o centro da própria vida e, sim, cultivá-lo como forma de oferecer ao mundo um pouco mais de energia. “Quando se quer tanto a alguém, é necessário estar atentos a não investir sobre ele todas as próprias energias, de modo que não reste nada para os outros.” (HILLESUM, 2012, p. 108).18

Na interioridade se encontra com a verdade última que o ser humano, tantas vezes, busca fora de si. Reconhece que sua paisagem interior é povoada por “[...] grandes, vastas planícies, infinitamente vastas, quase sem horizontes que as limitem, porque uma planície termina em outra”. (HILLESUM, 2012, p. 109).19 Quando mergulha em seu interior, descobre “[...] extensões imaculadas, que causam uma sensação de bem-estar, de infinito, de paz.” (HILLESUM, 2012, p. 109).20 Etty lamenta que a maioria das pessoas ignore o próprio mundo interior, com suas paisagens e contornos próprios, considerando-o como quase irreal. Na verdade, o ser humano se encontra nesse pequeno centro, para o qual convergem dois mundos, o interior e o exterior. Quem privilegia um em detrimento do outro empobrece sua personalidade. O desconhecimento da própria interioridade provoca desequilíbrio e desorganização caótica. O mundo interior, para muitos, não é um lugar real. Etty chega mesmo a se perguntar se sua missão não seria a de ajudar os outros a descobrir este espaço interior, onde residem as maiores riquezas do ser humano. A descoberta de Etty nos remete às conclusões da grande mística cristã Teresa de Ávila, que reconhecendo o déficit de cultivo da interioridade em tantas pessoas que encontrava, afirmou: “Não é pequena lástima e confusão não nos entendermos a nós mesmos, por nossa culpa, nem sabermos quem somos”. (1 M 1, 2).21 Considerando a alma como a dimensão transcendente que nos habita, constatará: “Mas as riquezas que há nesta alma, seu grande valor, quem nela habita – eis o que raras vezes consideramos. O resultado é não fazermos caso de sua beleza, nem procurarmos com todo cuidado conservá-la.” (1 M 1, 2). É dentro da pessoa, continua, “[...] onde se passam as coisas mais secretas entre Deus e a alma.” (1 M 1, 3).

Em sua interioridade, Etty encontra-se com a realidade última que as religiões teístas chamam de Deus: “Dentro de mim há uma fonte muito profunda. E nesta fonte está Deus [...].” (HILLESUM, 2012, p. 153).22 E acrescenta, “[...] certas pessoas rezam com os olhos voltados para o céu, elas buscam Deus fora de si. Outras inclinam a cabeça escondendo-as sobre as mãos, acredito que buscam Deus dentro de si.” (HILLESUM, 2012, p. 153).23 Ao encontrar Deus, Etty descobre um novo saber que lhe traz paz e serenidade. “[...] Senhor, concede-me a sabedoria mais que o saber; ou melhor: somente o saber que conduz à sabedoria torna os homens, pelo menos a mim, felizes e não o saber que é poder.” (HILLESUM, 2012, p. 156).24 Sua luta, no entanto, para se manter imersa no mistério de Deus é árdua: “Às vezes consigo encontrar a fonte, frequentemente está coberta de pedras e areia; Deus, então, está enterrado. Preciso desenterrá-lo de novo.” (HILLESUM, 2012, p. 153).25 Ela quer aprender a se ajoelhar, atitude que, segundo a tradição cristã, o mistério último exige, mas sente dificuldade, e luta com a parte ateia de si mesma:

Não consigo ajoelhar-me bem, há um tipo de embaraço em mim. Por quê? Talvez por causa da parte crítica, racional e ateia que também me pertence. Todavia sinto, de quando em quando, um forte desejo de me ajoelhar, com as mãos sobre o rosto, para encontrar paz e escutar a fonte escondida em mim. (HILLESUM, 2012, p. 168).26

No fogo de sua procura, reconhecia a ansiedade por encontrar o ponto culminante. Aos poucos, assume, no entanto, a impossibilidade de ser toda, abraçando a concretude das pequenas coisas do cotidiano como lugar da experiência da vida em sua totalidade contraditória: “Na realidade estou ainda implicada a catalogar: procuro uma harmonia, uma síntese, mas sei que não há. Quero observar tudo a partir de um único ponto de vista, pensar tudo a partir de uma única ideia, mas o único modo para encontrar a harmonia é aceitar as contradições.” (HILLESUM, 2012, p. 186).27

A construção de sua vida interior parte de certo egocentrismo, que marcava sua personalidade. Combatendo os riscos do egoísmo, tinha consciência de que colocando um pouco de ordem no caos interior, daria forma a alguma coisa boa no mundo e compreenderia mais o outro. Aliás, essa é, para Etty, a única forma de compreensão do outro, através do cultivo de uma vida interior onde se encontra a fonte do divino, a fonte que é Deus mesmo. A ação humana autêntica jorra dessa fonte, por isso ela chega a afirmar: “[...] uma pessoa não tem necessidade de norma externa, somente de si mesma.” (HILLESUM, 2012, p. 206).28 Se vive desde a fonte que brota do mais profundo de si mesmo, o ser humano não necessitará de normas exteriores, emanadas de autoridades civis ou religiosas, pois estará sempre mergulhado nas fontes do ser.

Etty experimenta em si um duplo movimento, marcado pelo desejo de regressar ao seio materno, à escuridão original; e o de se tornar autônoma, dona do seu próprio destino. A descoberta de Deus na interioridade não a aliena das realidades terrenas, uma vez que o caminho para chegar às coisas mais profundas parte sempre do tangível, da realidade ao alcance das mãos. O mais importante para o ser humano é estar pronto para participar de cada minuto desta vida, sem opor-lhe resistência, sem se esquivar dos problemas do mundo. Não importa onde cada um se encontra, pois o decisivo é carregar Deus em si, acolhendo suas inspirações que culminam nos acontecimentos pontuais. A meditação alcança seu auge na recriação das relações humanas a partir do vértice do encontro com Deus nas nascentes profundas do ser; ela serve para “[...] transformar seu espaço interior numa ampla planície vazia, sem toda aquela erva daninha que impede a visão, para que alguma coisa de ‘Deus’ possa nascer em você, assim como há algo de ‘Deus’ na Nona Sinfonia de Beethoven.” (HILLESUM, 2012, p. 104).29 Deus faz irrupção na vida de Etty desde sua interioridade. E pouco a pouco ela se sentirá arrastada para dentro do mistério indizível.

4 DEUS NA MÍSTICA DE ETTY

Aos poucos, os gestos, as relações e decisões de Etty começam a expressar a dimensão mística da sua vida, a radical abertura ao transcendente a partir do reconhecimento da presença de Deus na concretude da vida. O cultivo da interioridade, do seu ponto de vista, não se identifica com a meditação que visa somente o equilíbrio psíquico. O fato de ter aprendido a ajoelhar-se evidencia sua reverência pelo mistério sagrado que a habita, ultrapassando seus desejos e suscitando louvores confiantes. Sua mística se enraíza na intimidade com o dom de Deus que se encontra em cada pessoa humana. A mística de Etty se dá no ordinário da vida, sem êxtases, visões, revelações ou dons extraordinários, como foi o caso de outros místicos. Mas se trata de uma autêntica experiência mística, ou seja, de “[...] uma experiência religiosa particular de unidade-comunhão-presença, onde aquilo que ‘se sabe’ é precisamente a realidade, o dado desta unidade-comunhão-presença e não uma reflexão, conceitualização, racionalização do dado religioso vivido.” (MOIOLI, 1993, p. 770). Etty faz a experiência do encontro imediato com a realidade última, com o inefável, que ultrapassa o pensamento conceitual, por ser mistério indizível, ao qual só resta à razão finita se render. Sente-se transformada desde as entranhas do seu ser, onde Deus reside e opera. Com palavras simples, orações de louvor e súplica, ela narra essa experiência, deixando entrever alguns traços do mistério indecifrável que a envolve.

Nossa mística reconhece em si certa sabedoria, buscando a melhor forma para se expressar e se definindo como “[...] uma menina que aprendeu a se ajoelhar.” (HILLESUM, 2012, p. 231).30 De joelhos, suplica a Deus: “Senhor faz-me viver de um único, grande sentimento, faz que eu cumpra amorosamente todas as mil pequenas ocupações de todos os dias, e ao mesmo tempo reconduz todas estas pequenas ações a um único centro, a um profundo sentimento de disponibilidade e amor.” (HILLESUM, 2012, p. 254).31 Essa experiência se aprofunda e ela sente que Deus vai ocupando um espaço sempre maior no seu interior. Tal presença encontra nela uma resposta de fidelidade. Escuta e atende ao apelo de Deus, fortalecendo seu centro: “Te agradeço, Deus, no meu grande Reino interior agora dominam tranquilidade e paz, graças ao forte poder que Tu exerces. As mais longínquas zonas percebem Teu poder e o Teu amor, e se deixam guiar por Ti.” (HILLESUM, 2012, p. 336).32

O Deus a quem Etty se dirige na oração não coincide com possíveis excessos de seu narcisismo; ao contrário, provoca abertura à realidade, suscitando o despertar de uma nova consciência ética que a compromete com a causa de seus irmãos, sobretudo os mais feridos e injustiçados, vítimas do ódio aos judeus. A leitura do hino ao amor do apóstolo Paulo sobre a caridade (1 Cor 13, 1-13) causa-lhe profunda comoção interior, mormente um dos trechos que ela cita em seu diário: “O amor é magnânimo, é benfazejo, não é invejoso, não é presunçoso, nem arrogante; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não leva em conta o mal sofrido” (1 Cor 13, 4-5):

As palavras pareciam uma vara de condão que golpeava o fundo duro do meu coração, fazendo jorrar, improvisadamente, fontes escondidas. De repente me vi ajoelhada ao lado da mesinha branca e o amor aprisionado fluía de novo dentro de mim, livre do desejo, da inveja, do ódio, etc. (HILLESUM, 2012, p. 381-382).33

Etty conseguirá evitar o ódio aos opressores para não perpetrar a violência, tornando- se instrumento da paz num contexto de dor e sofrimento injusto. “Meu Deus, permite-me não desperdiçar a força, sequer uma migalha de força, com o ódio, inútil ódio contra estes soldados.” (HILLESUM, 2012, p. 487).34 No auge da maturidade espiritual, consciente do horror que crescia ao seu redor, exclamará:

Uma coisa, porém, torna-se cada vez mais evidente para mim, ou seja, que Tu não nos podes ajudar, mas que somos nós que te ajudamos e, desse modo, ajudamos a nós mesmos. A única coisa que podemos salvar destes tempos, e também a única coisa que conta de verdade, é um pequeno pedaço de ti em nós mesmos, meu Deus. (HILLESUM, 2012, p. 713).35

Etty, desde a descoberta de Deus em si, do amor incondicional que envolve cada ser humano, enfrenta o mal, na transparência, serenidade e alegria. Encontra saídas possíveis, na concretude da realidade à sua volta, sem enfrentamento violento, convencida do mistério que envolve o ser humano com amor e benevolência, mesmo que esse outro fosse um soldado alemão. Sabe que o mal não tem coragem de se olhar no espelho e se questionar sobre as razões de sua maldade, porque nesse caso se revelaria toda sua feiura e pobreza de sentido, em contraste com a beleza original do ser humano. O amor, por sua vez, cresce é na liberação das forças ocultas de vida. Nesse sentido, Etty abraça o lado mais fraco, mostrando que a dignidade da pessoa humana merece ser sempre preservada enquanto morada do mistério último.

No campo de concentração de Westerbork, na Holanda, a experiência que Etty faz do mistério de Deus atinge seu vértice, como se deduz de suas cartas. Lugar do contato máximo com a miséria humana: “[...] a miséria que reina aqui é verdadeiramente indescritível. Nas grandes barracas vive-se como ratos em um esgoto.” (HILLESUM, 2013, p. 96, tradução nossa36).37 Ela descreve uma situação humana deplorável. Sua narrativa apresenta cenas de extrema vulnerabilidade, no contexto de um campo que agrega pessoas de toda idade, anciãos, jovens, crianças, grávidas, num clima sinalado pelo cinismo da incerteza. Estima-se que quase 103 mil judeus foram transferidos para Auschwvitz e Sobibor, na Polônia. Voluntária para cuidar dos sofredores, Etty não abandona seu povo. “A grande obra que se desenvolveu sobre minha pessoa: desenterrou Deus de dentro de mim e o conduziu para a vida. E agora serei eu a continuar escavando, à procura de Deus, no coração de todos os homens que encontrarei, em qualquer parte desta terra.” (HILLESUM, 2013, p. 30).38

Em meio à aspereza do sofrimento e da morte, sustenta-se na convicção de que “[...] esta terra poderia se tornar um pouco mais habitável somente graças àquele amor do qual o hebreu Paulo escreveu aos habitantes de Corinto no décimo terceiro capítulo da sua primeira carta.” (HILLESUM, 2013, p. 63).39 É justamente essa conduta, solidamente conduzida pelo amor, que encanta e seduz. A trágica angústia de uma expectativa interminável para a deportação última, dos pais, do irmão e de si, faz Etty arrancar suas últimas forças para manifestar, pelo menos, gestos de amor aos seus. Com ternura e confiança, atravessou seus dias, mesmo prevendo o derradeiro destino: “É assim por toda tarde, com uma certa paz espiritual, eu deponho minhas muitas preocupações terrenas aos pés de Deus mesmo.” (HILLESUM, 2013, p. 116).40

O Deus de Etty se revela frágil hóspede que espera por acolhida e cuidado. Um Deus on(in)potente, porque não resolve, de maneira mágica, a tragédia vivida por seu povo e por ela mesma. Um Deus que parece se calar diante de tanto sofrimento, mas que está vivo dentro de cada pessoa:

A minha vida tornou-se um colóquio ininterrupto contigo, meu Deus, um único e grande colóquio. Às vezes, quando estou em um canto do campo, os meus pés plantados sobre a terra, os olhos revoltos ao teu céu, as lágrimas me escorrem sobre a face, lágrimas que escorrem de uma profunda emoção e reconhecimento, à procura de uma via de saída. (HILLESUM, 2013, p. 129).41

Se Deus não interfere na história da liberdade humana, ele, por outro lado, ajuda o ser humano a se posicionar frente ao imponderável, mantendo viva a chama de seu amor, no interior de cada pessoa. O sentido se configura, assim, como capacidade de enfrentar uma situação concreta, ainda que trágica, engajando-se na transformação da realidade. E caso nem isso seja possível, que se cuide da parte mais sagrada, indestrutível, onde Deus habita, a interioridade:

O valor da minha pessoa será fruto de como saberei me comportar [...]. E se não poderei sobreviver, então se verá quem sou pela maneira como morrerei. Não se trata mais de se manter fora de uma determinada situação, custe o que custar, mas de como se comporta e se continua a viver em qualquer situação. (HILLESUM, 2012, p. 712).42

O sentido e o engajamento de Etty se concentram na missão de salvar aquela semente divina que, na verdade, é o amor que mora em cada ser humano, mas que se vê soterrado pela miséria do ódio e da perseguição. Um amor que vai além dos interesses pessoais e se torna intercomunicação altruísta: “Estou sempre mais convencida que o amor ao próximo, por qualquer criatura à semelhança de Deus, deva ser mais alto que o amor aos pais.” (HILLESUM, 2013, 131).43 Quando ela, seus pais e seu irmão Mischa, em 7 de setembro de 1943, são deportados para Auschwitz, Etty lança para fora do trem um cartão postal para Christine van Nooten, com suas últimas palavras, reveladoras de sua atitude interior face ao absurdo da Shoah:

Christien, abro por acaso a Bíblia e encontro isto: ‘O Senhor é o meu refúgio’. Estou assentada sobre minha mochila no meio do lotado vagão de carga. Papai, mamãe e Mischa estão alguns vagões adiante. A partida chegou bastante inesperada, apesar de tudo... deixamos o campo cantando, papai e mamãe muito fortes e também Mischa [...] (HILLESUM, 2013, p. 155).44

A experiência de Etty ultrapassa qualquer confissão religiosa, permitindo, no entanto, interfaces com outras tradições religiosas, mormente com o cristianismo, como ora propomos.

5 INTERFACES ENTRE A MÍSTICA DE ETTY E A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DE DEUS

Aproximar a mística de Etty da espiritualidade cristã não significa defini-la como cristã anônima, famoso conceito de Rahner que sofre críticas no contexto da teologia das religiões (DUQUOC, 2008, p. 168). No entanto, qualquer religião reconheceria em Etty traços fundamentais de sua própria tradição espiritual. A aproximação que se busca quer apenas mostrar a contribuição de Etty para a espiritualidade cristã nos tempos atuais. Ela mesma, em certo sentido, instaura esse diálogo ao citar tantas vezes a Bíblia, Palavra de Deus para os cristãos. O trecho de 1 Cor 13, 1-13 se torna uma referência para sua experiência de Deus, sem falar das passagens dos Evangelhos citados por ela, como, por exemplo, Mt 5, 23- 24; 6, 33. Confessa-se leitora de Santo Agostinho. Sua aversão ao ódio revela uma vida cheia de amor, como afirma ao amigo Klaas: “Klaas, não vejo alternativas, cada um de nós deve se recolher e destruir em si mesmo aquilo que o leva a querer destruir os outros. E convençamo- nos de que cada átomo de ódio que acrescentamos ao mundo o torna ainda mais inóspito.” (HILLESUM, 2012, p. 770).45 E relata a resposta recebida. “E Klaas, velho e furioso militante de classe, replicou, surpreso e desconcertado: Sim, mas..., mas isso seria Cristianismo, de novo!” (HILLESUM, 2012, p. 770).46 E ela continua. “E eu, já me sentindo divertida, respondi, com muita brandura: Claro, Cristianismo – e por que não?” (HILLESUM, 2012, p. 770).47

A mística de Etty se torna uma referência quando pensamos que conceituar Deus é sempre uma tarefa limitada. Conceitos não abarcam a globalidade da ação do infinito, ainda que eles sejam necessários. Em muitos casos, o místico revela esse transbordamento da presença divina, para além de fórmulas constituídas, como afirma Rahner: “O homem não consegue mais tão facilmente reconhecer na religião constituída concretamente, com suas inúmeras fórmulas, usos, prescrições e regras, a forma concreta e obrigatória de Deus e o caminho necessário para sua salvação.” (RAHNER, 1970, p. 154).

Deus, em seu mistério, se oferece gratuitamente à humanidade como horizonte e futuro absolutos da transcendência. “Este horizonte da transcendência está presente num modo exclusivamente seu, o modo da recusa e da ausência. Ele se dá a nós no modo da renúncia de si mesmo, do silêncio e da distância.” (RAHNER, 1970, p. 181). No Evangelho de João (2018), Jesus amplia as fronteiras da ação do Espírito: “O vento sopra aonde quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3, 8). A ação do Espírito, para os cristãos, é imprevisível, ultrapassa as fronteiras do cristianismo. Nascer do Espírito remete à descoberta do mistério de Deus na existência humana.

Etty testemunha essa proximidade com o mistério para além das palavras, das instituições. Por isso seu testemunho suscita no cristão a pergunta por sua maneira de experimentar e de dizer Deus a partir da revelação cristã. Revelação que aproxima os seres humanos de um mistério insondável, como afirma Paulo: “Segundo o meu evangelho e o anúncio de Jesus Cristo, de acordo com a revelação de mistério mantido em silêncio desde os tempos antigos. Agora, esse mistério foi manifestado” (Rm 16, 25). Etty sugere às tradições religiosas, e aos cristãos, o reencontro com a verdade desse mistério mantido em silêncio que vai além das definições objetivas. A verdade que se revela permanece mistério, de modo que “[...] nenhum conceito, nenhum dogma, nenhum grupo, nenhuma Igreja podem totalizá-la; ela escapa de nosso domínio [...].” (DUQUOC, 2008, p. 154). Nesse ponto, a contribuição de Etty é preciosa para a contemporaneidade, no que diz respeito às experiências do sagrado, de Deus mesmo, mostrando como não aprisionar o mistério em estruturas subjetivas fechadas.

Um dos traços desviantes da pós-modernidade é o excessivo cultivo da subjetividade, apenas pelo investimento em aparências superficiais, sem espaços para um cultivo mais radical das questões da vida. Assim, corre-se o risco do surgimento de uma espécie de sujeito autorreferente, mas que, ao mesmo tempo, não consegue cultivar uma vida interior fecunda. Surge, assim, segundo Hervieu-Léger (2008), a religiosidade peregrina, alicerçada menos nas tradições religiosas e mais nas demandas individuais. Embora seja um fenômeno complexo, com traços positivos, tende, algumas vezes, a favorecer certo individualismo. “A condição peregrina se define essencialmente a partir desse trabalho de construção biográfica – mais ou menos elaborada, mais ou menos sistematizada – efetuado pelo próprio indivíduo.” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 97). O excesso do investimento na subjetividade, quando acontece, desemboca numa espiritualidade narcisista, fundada apenas em emoções, desejos egoístas e avidez do consumo, anulando a contemplação silenciosa como espaço indispensável para cultivar a amizade com Deus.

Esse contexto cria um outro sério problema para o anúncio do Evangelho, que corre o risco de cair – e muitas vezes cai – na lógica da funcionalidade, transformando-se em meio oferecido às pessoas para a realização de seus projetos imanentes de riqueza, saúde, bem- estar e prosperidade. Se, por um lado, a subjetividade emergente enfraquece o cristianismo culturalmente herdado, favorecendo o cristianismo pessoalmente assumido, o que é positivo; por outro lado, fortalece um tipo de espiritualidade sem interlocução, sem diálogo transcendente, reduzida a desejos imediatos. O capitalismo neoliberal, aproveitando disso, faz os princípios do hiperconsumo tocar o interior da experiência religiosa, arrastando-a para a lógica do mercado.

O Papa Francisco, com seu ensinamento espiritual e testemunho convincente, critica uma fé excessivamente subjetiva, pouco atenta à fraternidade e à solidariedade. Chama atenção sua insistência no conceito de mundanismo espiritual, que leva as pessoas “[...] a se esconder por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja; é buscar, ao invés da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal.” (EG 93).48 Francisco denuncia “[...] uma forma de consumismo espiritual à medida do próprio individualismo doentio” (EG 89), o que tem a ver com o narcisismo, em suas dimensões de excesso, projetado na espiritualidade. E o Papa Francisco lamenta: “[...] cresce o apreço por várias formas de espiritualidade do bem-estar sem comunidade, por uma teologia da prosperidade sem compromissos fraternos ou por experiências subjetivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior imanentista.” (EG 90). Infelizmente, a crítica de Francisco a esse modelo imanentista ecoa pouco na Igreja, ao menos no Brasil. Os propagadores que adotam esse paradigma costumam até ser apreciados por autoridades da hierarquia, impressionadas pelo número de fiéis que angariam e, às vezes, pelo que arrecadam. O melhor da espiritualidade e da tradição espiritual da Igreja, que Francisco recomenda, não surte, assim, o efeito desejado. Pelo que ensina a mística de Etty, a experiência de Deus nunca fecha o ser humano, mas o capacita a uma abertura tal que o insere no próprio movimento da oblação divina.

O problema criado por esse modelo mágico-supersticioso de evangelização, que fascina multidões, compromete bastante o significado do anúncio cristão. Os próprios termos Deus e cristão, nessa conjuntura, sofrem inegável extrapolação semântica. São usados abusivamente por pessoas e grupos, para finalidades irreconciliáveis entre si, esvaziando a fé cristã de sua especificidade. Faz todo sentido a pergunta de Michel de Certeau, em seu diálogo com Jean-Marie Omenach: “O cristianismo ainda se mostra capaz de manter sua originalidade própria, ou seja, é capaz de se defender da utilização que dele pode fazer qualquer grupo social”? (CERTEAU; OMENACH, 2010, p. 35, tradução nossa49).50 Não é em nome de Deus que muitas autoridades hoje justificam ideologias opostas ao Evangelho de Jesus, mas aceitas por numerosos cristãos, até mesmo por líderes de muitas igrejas cristãs? Nesse caso, a conclusão de Certeau se impõe: “Se a referência cristã é compatível com qualquer proposta e utilizável por qualquer um, já não diz mais nada de específico. Torna-se insignificante. Cada um encontra nela o que bem desejar, seja lá o que for.” (CERTEAU; OMENACH, 2010, p. 35).51

Assistimos, assim, a uma banalização do discurso sobre o mistério de Deus que, para os cristãos, revelou-se à humanidade em Jesus Cristo. Para seguir a lei do mercado, é mais fácil se tornar profeta da graça barata, os resultados são mais visíveis e bem mais rendosos. Mas a graça barata acaba custando caro. Ela torna o anúncio cristão repetitivo, mimético e estereotipado, porque seu objetivo se distancia do especificamente cristão, pois se preocupa em conquistar fiéis (clientes do mercado religioso) e angariar fundos. Devoções infantis, de conteúdo teológico superficial e duvidoso, de cunho emocional-apelativo são difundidas e repetidas ad nauseam. Outro autor francês, famoso linguista, Roland Barthes, tem uma definição de estereótipo que condiz com certas linguagens atuais sobre Deus:

O estereótipo é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação: palavra sem cerimônia, que pretende a consistência e ignora a sua própria insistência. (BARTHES, 2004, p. 52).

O que Etty diz sobre o ser humano e sobre o mistério de Deus permanece valioso para todos e aponta para os cristãos um rumo para sua experiência de Deus, em Cristo. De alguma maneira, ela inverte o que coloquialmente chamamos de fé, identificada com a expectativa por milagres, pelo amparo de uma força que elimina – como se fosse uma varinha de condão –, os problemas do ser humano, pessoais e sociais. Nossa mística ressalta, antes de tudo, a dignidade da pessoa humana que, em sua interioridade, é envolvida pelo mistério de Deus. Ela diz que, desde o interior, cada um de nós está aberto ao pastoreio de Deus. Em sua oração, não fitava o céu, esperando um milagre que transformasse seu deserto em um oásis, ela olhava para dentro de si, e aí se deparava com a presença de Deus e com toda a humanidade. No espaço sagrado da sua interioridade, recuperava a coragem para enfrentar o absurdo, transformando, desde dentro, seu deserto num oásis às avessas. Não deseja apenas ser ajudada por Deus, mas se dispõe a ajudá-lo, em tempos de tragédia, salvando o que dele restava no meio do sofrimento e no coração das pessoas. Sua linguagem sobre o mistério de Deus é modesta, respeitosa, composta da oração, da poesia, da contemplação, distinta da linguagem estereotipada de quem é adepto do mundanismo espiritual e do discurso agressivo e arrogante dos fundamentalistas religiosos.

A linguagem de Etty se mostra bem mais convincente, por sua simplicidade e beleza. “Devemos esquecer todas as nossas grandes palavras, começando com Deus e terminando com morte, e devemos voltar a ser tão simples quanto a água da fonte.” (HILLESUM, 2012, p. 713).52 A realidade do mistério último é tão imediata a Etty que ela não precisa mais de palavras. Sua vida se confunde com a vida de Deus que a envolve. Ela vive em Deus. “Às vezes acho a palavra Deus tão primitiva: é uma metáfora afinal de contas, uma aproximação à nossa maior e contínua aventura interior, estou segura de não ter nem mesmo necessidade da palavra Deus.” (HILLESUM. 2012, p. 645).53 Deus existe tanto em sua vida que prescinde de definições, palavras finitas, limitadas, insuficientes para dizer o mistério. A palavra Deus exige, antes de tudo, um silêncio, que “[...] permite ao texto espiritual anular o nome próprio dos deuses, dos anjos, dos heróis ou dos homens e tudo o que engloba o discurso devoto [...].” (CERTEAU; OMENACH, 2010, p. 56-57).54 É uma palavra que demanda esvaziamento. “O nome Deus representa, no espaço linguístico, um princípio de esvaziamento.” (CERTEAU; OMENACH, 2010, p. 57).55 O que Etty afirma sobre Deus está impregnado desse silêncio, de simplicidade e modéstia que convencem mais que discursos. “Todos nós esperamos palavras nascidas desta noite, desestruturadas e refeitas por esse silêncio” (CERTEAU; OMENACH, 2010, p. 57).56 Etty nos presenteia com estas palavras, tão necessárias ao homem pós-moderno, sobrecarregado pela faina de dar sentido à sua subjetividade, marcada por um vazio de interioridade.

No campo de batalha da vida cotidiana, Etty sofreu as incongruências de suas pulsões e as imposições de sistemas sociais perversos. Nada disso foi motivo para se anular, pelo contrário, encontrou a motivação mais profunda, capaz de libertá-la da superficialidade, do desespero, da nulidade de si diante das brutalidades do mal. Sua batalha, em última análise, removeu-a de uma existência enclausurada em si mesma para abri-la a Deus e aos outros. Não buscou Deus nos excessos teóricos, em ideias pré-concebidas, em doutrinas e especulações, mas em sua interioridade, sem alimentar demandas egoístas. Seu caminho místico lhe desvendou o horizonte interior, fazendo-a sair da estreiteza do próprio eu até atingir aquela dimensão que sustenta o ser humano na bondade e no amor, tornando-o aberto aos demais. Em tempos de espiritualidades desencarnadas, seu testemunho ecoa como verdadeiro grito: se quisermos ser de Deus, cuidemos da nossa interioridade, onde ele habita, e da humanidade que ele ama e à qual ele se revela. O testemunho de Etty nos cura da mania de grandeza, de pensar que o mundo se transformará apenas com nossas intervenções e com a razão científica. O mundo se transforma a partir da interioridade habitada por Deus. O antídoto para as mazelas da humanidade se encontra na descoberta do amor como fundamento último do real e da transcendência como seu suporte.

A experiência de Etty ajuda o cristão, ainda, a se libertar de uma visão intervencionista de Deus, muito presente na espiritualidade coletiva atual. Ela recusa a imagem de um Deus que interfere na realidade como causa primeira para resolver os problemas humanos. Ao contrário, cabe ao ser humano, criatura livre e responsável, salvar Deus na interioridade e no mundo:

Eu não chamo em causa a Tua responsabilidade, mais tarde tu nos declararás responsáveis. E quase a cada batida do meu coração, cresce a minha certeza: Tu não podes nos ajudar, mas cabe a nós ajudar-Te, defender até o último instante Tua casa em nós. (HILLESUM, 2012, p. 713).57

Essa experiência faz Etty se solidarizar com seu povo no extremo do absurdo da morte em um campo de concentração. Sente-se pão partido no meio da dilaceração da morte, sofrendo com, e pelos, indefesos. Em uma época na qual crescem as ofertas religiosas que propõem espiritualidades mágicas, mesmo que tenham aparência de ortodoxia, Etty salva a alteridade que nos salva. Sua oferta caridosa revela o essencial da experiência mística, para os cristãos e não cristãos: o amor de Deus funda nossa existência para que sejamos um dom de amor para o mundo, em qualquer circunstância, até mesmo no absurdo. Etty testemunha, como afirma Schillebeeckx (2012):

[...] que Deus continua perto de nós também em situações absurdas, não queridas e sequer toleradas por ele. [...]. As pessoas que creem entregam a absurdidade a Deus, que é a fonte de toda positividade e o fundamento transcendente de toda ética, a fonte mística de todo empenho ético, que continua a dar esperança à própria vítima que, fora da perspectiva religiosa, é depreciada. Não que o mártir aja corajosamente para receber recompensa eterna. Mas sua ação histórica é mais forte que a morte. (SCHILLEBEECKX, 2012, p. 130).

Embora Etty não seja cristã, ajuda os cristãos a descobrirem na vida de Jesus as respostas que procuram para o problema do mal. Jesus conheceu a alegria na convivência agradável com seus discípulos e as pessoas que encontrava. Experimentou a paz na intimidade contemplativa com Deus. No entanto, suportou o sofrimento humano numa intensidade inimaginável, pois sua missão fracassou, seus seguidores o abandonaram e a opinião pública desacreditou sua proposta. Ele suportou a ausência de Deus. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”? (Mc 15, 34). O silêncio de Deus e a fuga dos amigos o fazem cair na desventura e a dilacerante tristeza diante da morte. Mas se mantém firme em sua inabalável confiança em Deus e em sua decisão de amar o ser humano até às últimas consequências, sem pagar o ódio com mais ódio, mas amando até mesmo seus inimigos e algozes (DE LA PEÑA, 1988).58 Quem segue Cristo não está livre dos perigos dessa vida, mas se livra do mal que é a ausência de amor.

Jesus acreditou desde um por quê sem respostas práticas ou racionais. Mantendo sua confiança, não apesar do mal, mas desde a experiência do mal, continuou tratando Deus como Pai querido e amoroso - Abbá. Também Etty faz experiência da bondade de Deus no meio dos horrores: “[...] chego sempre à mesma conclusão, a vida é bela. Creio em Deus. E quero estar no meio dos ditos ‘horrores’ e dizer igualmente que a vida é bela.” (HILLESUM, 2012, p. 791).59

Jesus mostrou que é possível crer a partir da experiência do mal e do sofrimento. Jesus revela um Deus capaz de se compadecer e sofrer com os seres humanos. A imagem de um Deus que sofre junto com o ser humano desconstrói a visão intervencionista, mágico-supersticiosa de Deus:

A teologia que exige a intervenção de Deus neste momento para evitar este mal não é teologia cristã, pois ignora que o Deus cristão é um Deus sim-pático, co-sofredor, não apático, e está em cena, não causando ou permitindo o mal, mas sofrendo-o em mim e comigo; nem suprimindo-o, mas mostrando-o assumível, desvendando-me que inclusive nesse mal há sentido, ou melhor, que através dessa noite escura amanhece já a aurora da salvação. (DE LA PEÑA, 1988, p. 170-171).60

O Deus cristão, segundo aspectos que também aparecem em Etty, não é culpado pelo mal e as atrocidades do mundo. “[...] Deus não é responsável em relação a nós pelos absurdos que cometemos. Os responsáveis somos nós mesmos!” (HILLESUM, 2012, p. 667).61 A resposta ao problema do mal adquire, na visão de Etty e na visão cristã, uma dimensão mais prática que teórica. Jesus mostrou que não se resolve a questão do mal a partir de elucubrações. Não é um problema a ser solucionado antes da experiência da fé em Deus. “O mal é a situação em que Deus se nos revelou tal qual é, como aquele que o vence assumindo- o solidariamente e transformando-o em sementes de ressurreição.” (DE LA PEÑA, 1988, p. 173).62

O teólogo cristão Bonhoeffer (2003), também vítima da destruição nazista, corrobora a visão de Etty: “Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele está conosco e nos ajuda. Em Mt 8, 17 está muito claro que Cristo não ajuda em virtude da sua onipotência, mas da sua fraqueza, do seu sofrimento.” (BONHOEFFER, 2003, p. 488). A experiência de Etty desconstrói o deus ex machina que, na arte teatral da antiguidade, surgia com ajuda de dispositivo mecânico para resolver magicamente os problemas humanos. O Deus de Etty é um Deus cuja presença no mundo deve ser garantida pelo ser humano. Aqui se revela sua on(in)potência. Ele quer transformar o mundo, mas só o faz com o ser humano livre e responsável, e jamais sem ele. Foi esta também a lição do mestre de Nazaré. Exatamente do deus ex machina é que a espiritualidade cristã precisa se libertar, para que seja construtora, com Jesus, do Reino de Deus, cuja semente foi amorosamente plantada no coração do mundo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O esquema da racionalidade ocidental está entrando em colapso, o que faz urgir uma outra globalização: de menos consumo e mais densidade mística. Vislumbrando o absoluto no cotidiano da vida, a mística de Etty absorve a relatividade e, ao mesmo tempo, a singularidade de todas as coisas. Mostra que o poder da opressão é idolátrico ao impor ao sujeito a morte de sua singularidade e a exclusão social. Idolatrar preceitos religiosos, sistemas políticos, ideologias, organizações sociais significa viver sob o risco da escravidão. Etty descobriu a quem pertencia, o mistério que a habitava e, a partir daí, orientou sua liberdade para o amor a Deus e a construção de relações fraternas. “A minha entrega não significa resignar-me à morte, mas chegar até onde Deus me manda ajudar como posso – e não a me condoer na minha dor e na minha raiva.” (HILLESUM, 2012, p. 698).63 Ao lançar-se no frágil amor das relações cotidianas, amparando os condenados no campo de concentração, mostrou que mais frágil é o amor divino, tão dependente da resposta humana.

Etty lembra aos cristãos e às outras tradições religiosas que a espiritualidade autêntica rejeita a banalização da existência, remetendo-a ao reencontro com Deus, numa experiência bem mais rica do que o consumo de imagens superficiais do sagrado, oferecidas pelo mercado sem limites em suas ofertas. Em tempos de enfraquecimento do sentimento de pertença das pessoas às grandes instituições, ou da volta de grupos fanáticos e fundamentalistas, a secularidade de Etty mostra que a experiência de Deus ultrapassa a pertença a uma tradição religiosa e convida a todos os religiosos para um diálogo fecundo em busca da fraternidade universal. “[...] quero que haja um pouco de fraternidade entre os ‘inimigos’, onde quer que eu esteja [...]” (HILLESUM, 2012, p. 783).64 Ela nos lembra que Deus é absoluto, não as religiões; ele é por demais rico para ser esgotado em uma tradição. “Há mais verdade (religiosa) em todas as religiões no seu conjunto do que numa única religião.” (SCHILLEBEECKX, 2012, p. 315). Ele, o mistério absoluto, encontra-se nas mais frágeis realidades cotidianas, e o fundo da alma é o lugar sagrado onde se revela, como testemunham místicos das diversas tradições religiosas. As múltiplas possibilidades de sentido que a pós-modernidade oferece demanda do ser humano a redescoberta da interioridade, desde a qual se abre a um significado último, absoluto e transcendente, que se identifica com o amor, amor que “é magnânimo, é benfazejo, não é invejoso, não é presunçoso, nem arrogante; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não leva em conta o mal sofrido; não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade”. (1 Cor 13, 4-5). Esse amor, sempre que acontece, tem como horizonte de sentido o próprio Deus, que o torna possível nas situações concretas da vida. Nesse amor, ele continua revelando-se ao ser humano como fundamento último de sua existência.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003.

CARTA AOS ROMANOS. In: BÍBLIA SAGRADA. Tradução oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.

CERTEAU, Michel de; OMENACH, Jean-Marie. Il cristianesimo in frantumi. Torino: Effatá, 2010.

DE LA PEÑA, Juan L. Ruiz. Teología de la creación. Santander: Sal Terrae, 1988.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium: exortação apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Loyola, 2013.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido. Petrópolis: Vozes, 2008.

HILLESUM, Etty. Lettere. Edizione Integrale. Milano: Adelphi, 2013.

JOÃO. In: BÍBLIA SAGRADA: tradução oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.

MARCOS. In: BÍBLIA SAGRADA: tradução oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.

MATEUS. In: BÍBLIA SAGRADA: tradução oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.

MOIOLI, Giovanni. Mística Cristã. In: FIORES, S. de; GOFFI, T. (org.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993, p. 769-780.

PRIMEIRA CARTA AOS CORÍNTIOS. In: BÍBLIA SAGRADA: Tradução oficial da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.

RANHER, Karl. O dogma repensado. São Paulo: Paulinas, 1970.

SANTA TERESA DE JESUS. Castelo interior ou moradas. São Paulo: Paulus, 1981.

SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 2012.

SMELIK, A. D. Klass. Biografia de Etty Hillesum (1914-1943). In: HILLESUM, Etty. Diario. Edizioni Integrale. Milano: Adelphi, 2012.

DUQUOC, Christian. O único Cristo: a sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008.

HILLESUM, Etty. Diario. Edizione Integrale. Milano: Adelphi, 2012.

Notas

1 Esse termo de origem hebraica é usado em Israel para designar a destruição nazista dos judeus, que foi um genocídio. O termo Shoah significa calamidade ou destruição. O termo Holocausto é evitado por seu significado litúrgico-sacrificial, que se refere, no Antigo Testamento, ao sacrifício (oferta) de vítimas a Deus para a expiação dos pecados e a reconciliação.
2 Julius Spier (1887 - 1942) fundou a Psicoquirologia, unindo sua habilidade de estudo e classificação das linhas das mãos, em conexão com seu posterior aprendizado da psicologia de Carl Gustav Jung, que endossou sua habilidade de ler as mãos como uma pesquisa do caráter humano.
3 Todos os trechos do diário de Etty utilizados neste artigo foram traduzidos do italiano pelos autores. Cf. HILLESUM, 2012.
4 […] se un uomo mi fa una certa impressione, sono capace di abbandonarmi per giorni e notti alle mie fantasie erotiche – non mi sono mai resa conto di quante energie io abbia consumato per questo -, ma se poi si arriva a un contatto reale, è una gran delusione. La realtà non può coincidere con la mia fantasia sfrenata.
5 La realtà non è del tutto reale per me, ed è per questo che non riesco a concretizzare le cose, perché me ne sfuggono sempre l’importanza e il senso.
6 [...] è così difficile analizzare i miei stessi stati d’animo, vederne le cause e le connessioni. Non so perché. Ieri ero tentata di dire ai miei amici: Sentite, se oggi o domani dovesse cadere una bomba su di me, non fate sciocchezze, ma consolatevi con il pensiero che io sono felice di essere libera.
7 […] una proiezione del mondo interiore.
8 […] ci sono stati alcuni momenti in cui ho detestato la vita e non vedevo alcuna via d’uscita, l’esistenza mi si parava davanti come un’infinita via crucis.
9 [...] dal mio grembo non nascerà mai un essere altrettanto infelice.
10 Il blocco di roccia più grande si trova, in tali casi, precisamente al centro del mio stomaco. Io ho uno stomaco autenticamente psicologico.
11 Di nuovo arresti, terrore, campi di concentramento, sequestri di padri, sorelle e fratelli. Ci s’interroga sul senso della vita, ci si domanda se essa abbia ancora un senso [...].
12 [...] solo l’artista è in grado di rendere ciò che resta d’irrazionale nell’uomo.
13 [...] adesso presto ascolto tutto il giorno a ciò che accade dentro di me, anche quando sono in mezzo agli altri; non c’è più bisogno che mi isoli e traggo di continuo forza dalle sorgenti più nascoste e più profonde.
14 É già tanto riuscire a comprendere di esser parte di un grande processo di crescita, divenirne consapevoli.
15 In qualunque angolo del mondo mi troverò, avrò qualcosa da dire alle persone, a modo mio, con modestia, ma avrò qualcosa da dire.
16 Il mio “centro” sta diventando di giorno in giorno sempre più saldo. In passato, nonostante tutte le mie teorie energiche e ben fondate, ero soltanto un uccellino svolazzante e insicuro. E ora c’è in me un centro di forza che irradia energia anche all’esterno [...].
17 Un essere umano è corpo e spirito. E una mezz’ora di esercizi combinata con una mezz’ora di «meditazione» può creare una base di serenità e concentrazione per tutto il giorno.
18 Quando si tiene tanto a qualcuno, bisogna stare attenti a non investire su di lui tutte le proprie energie, altrimenti non resta nulla per gli altri.
19 Il mio paesaggio interiore consiste di grandi, vaste pianure, infinitamente vaste, quasi prive di orizzonte, perché ognuna scompare nell’altra.
20 [...] distese immacolate, e dopo un po’ mi coglie una sensazione di benessere, di infinito e di pace.
21 Por se tratar de um clássico, optamos no texto pela referência internacional própria, (1 M 1). Cf. SANTA TERESA DE JESUS, 1981.
22 Dentro di me c’è una sorgente molto profonda. E in quella sorgente c’è Dio.
23 [...] certe persone preghino con gli occhi rivolti al cielo: esse cercano Dio fuori di sé. Ce ne sono altre che chinano il capo nascondendolo fra le mani, credo che cerchino Dio dentro di sé.
24 [...] Signore, concedimi la saggezza più che il sapere; o meglio: solo il sapere che conduce alla saggezza rende gli uomini, almeno me, felici e non il sapere che è potere.
25 A volte riesco a raggiungerla, più sovente essa è coperta da pietre e sabbia: allora Dio è sepolto. Allora bisogna dissotterrarlo di nuovo.
26 Non riesco proprio a inginocchiarmi bene, c’è una sorta di imbarazzo in me. Perché? Forse a causa della parte critica, razionale e atea che pure mi appartiene. Tuttavia sento, di tanto in tanto, un forte desiderio di inginocchiarmi, con le mani sul viso, per trovare pace e per ascoltare la fonte nascosta in me.
27 In realtà sono ancora impegnata a catalogare: cerco un’armonia, una sintesi, ma so che non c’è. Voglio osservare tutto da un unico punto di vista, pensare tutto a partire da un’unica idea, ma il solo modo per trovare armonia è accettare le contraddizioni.
28 Una persona non ha bisogno di norme esterne, solo di se stessa.
29 […] trasformare il tuo spazio interiore in un’ampia pianura vuota, senza tutta quell’erbaccia che impedisce la vista. Così che qualcosa di “Dio” possa entrare in te, come c’è qualcosa di “Dio” nella Nona di Beethoven.
30 [...] ragazza che imparò a inginocchiarsi.
31 Signore fammi vivere di un unico, grande sentimento – fa’ che io compia amorevolmente le mille piccole azioni di ogni giorno, e insieme riconduci tutte queste piccole azioni a un unico centro, a un profondo sentimento di disponibilità e di amore.
32 Ti ringrazio, Dio, nel mio grande Regno interiore adesso dominano tranquillità e pace, grazie al forte potere centrale che Tu eserciti. Le più lontane zone di confine avvertono il Tuo potere e il Tuo amore, e si lasciano guidare da Te.
33 Le parole hanno operato su di me come una verga da rabdomante che sferzava il fondo duro del mio cuore, facendone improvvisamente scaturire sorgenti nascoste. D’un tratto mi sono ritrovata inginocchiata accanto al tavolino bianco e l’amore sprigionato scorreva di nuovo dentro di me, libero da desiderio, invidia, odiosità, ecc.
34 Dio, lascia che io non disperda la forza, neanche un briciolo di forza, per l’odio, l’inutile odio nei confronti di questi soldati.
35 Una cosa, però, diventa sempre più evidente per me, e cioè che Tu non puoi aiutare noi, ma che siamo noi a dover aiutare Te, e in questo modo aiutiamo noi stessi. L’unica cosa che possiamo salvare di questi tempi, e anche l’unica che veramente conti, è un piccolo pezzo di Te in noi stessi, mio Dio.
36 Os trechos das cartas de Etty utilizados neste artigo foram traduzidos do italiano pelos autores. Cf. HILLESUM, 2013.
37 La miseria che regna qui è davvero indescrivibile. Nelle grandi baracche si vive come topi in uma fogna.
38 La grande opera che ha svolto sulla mia persona: ha dissoterato Dio dentro me e lo ha portato alla vita. E adesso sarò io a continuare, scavando alla ricerca di Dio nel cuore di tutti gli uomini che incontreró, in qualsiasi luogo di questa terra.
39 [...] questa terra potrebbe ridiventare um po’ più abitabile solo grazie a queell’amore di cui l’ebreo Paolo scrisse agli abitanti di Corinto nel tredicesimo capitolo dela sua prima lettera.
40 E così ogni sera, con una certa pace spirituale, io depongo le mie molte preocupazioni terreni ai piedi di Dio stesso.
41 La mia vita è diventata un colloquio ininterrotto con te, mio Dio, un unico grande colloquio. A volte, quando me ne sto in un angolinho del campo, i miei piedi piantati sulla terra, i miei occhi rivolti al tuo cielo, le lacrime mi sgorgano sulla faccia, lacrime che sgorgano da una profonda emozione e riconoscenza, in cerca di una via dia d’uscita.
42 E il valore della mia persona risulterà appunto da come saprò comportarmi [...]. E se non potrò sopravvivere, allora si vedrà chi sono da come morirò. Non si tratta più di tenersi fuori da una determinata situazione, costi quel che costi, ma di come ci si comporta e si continua a vivere in qualunque situazione.
43 Sono sempre più convinta che l’amore per il prossimo , per qualsiasi creatura a somiglianza di Dio, debba satare più in alto dell’amore verso i parenti.
44 Christien, apro a caso la Bibbia e trovo questo: “Il Signore è il alto ricetto”. Sono seduta sul mio zaino nel mezzo di um affollato vagano merci. Papà, la mamma e Mischa sono alcuni vagoni più avanti. La partenza è giunta piuttosto inaspettata, malgrado tutto. [...]. Abbiamo lasciato il campo cantando, papà e mamma forti e calmi, e così Mischa.
45 Klaas, non vedo altre alternative, ognuno di noi deve raccogliersi e distruggere in se stesso ciò per cui ritiene di dover distruggere gli altri. E convinciamoci che ogni atomo di odio che aggiungiamo al mondo lo rende ancora più inospitale.
46 E Klaas, vecchio e arrabbiato militante di classe, ha replicato sorpreso e sconcertato insieme: Sì, ma… ma questo sarebbe di nuovo cristianesimo!
47 E io, divertita da tanto smarrimento, ho risposto con molta flemma: Certo, cristianesimo – e perché poi no?
48 Exortação apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, artigo 93 (FRANCISCO, 2013).
49 Os trechos desse livro, utilizados no artigo, foram traduzidos pelos autores, do italiano. (Cf. CERTEAU; OMENACH, 2010).
50 Il cristianesimo stesso è ancora capace di mantenere un’originalità propira, cioè di difendersi dall’utilizzazione che ne può fare non importa quale grupo sociale?
51 Se il riferimento cristiano è compatibile con non importa cosa e utilizzabile da non importa chi, il cristianesimo non è più nulla di specifico. Diventa insignificamente. Se ne può ricavare quello che si vuole. Non importa cosa.
52 Dobbiamo di nuovo dimenticare tutte le nostre grandi parole, cominciando con Dio e finendo con Morte, e dobbiamo tornare a essere tanto semplici quanto pura acqua di sorgente.
53 A volte trovo la parola “Dio” così primitiva: è solo una metafora dopo tutto, un avvicinamento alla nostra più grande e continua avventura interiore; sono sicura di non aver neppure bisogno della parola “Dio” [...].
54 [...] permette al testo spirituale di anullare i nomi propi degli dei, degli angeli, degli eroi o degli uomini, e tutto ciò che engloba il discorso devoto.
55 [...] il nome comune “Dio” rappresenta nello spazio linguistico un principio di svuotamento.
56 Tutti noi attendiamo parole nate da questa notte, destrutturate e rifatte da questo silenzio.
57 Io non chiamo in causa la Tua responsabilità, più tardi sarai Tu a dichiarare responsabili noi. E quasi a ogni battito del mio cuore, cresce la mia certezza: Tu non puoi aiutarci, ma tocca a noi aiutare Te, difendere fino all’ultimo la Tua casa in noi.
58 Trechos dessa obra foram traduzidos do original espanhol pelos autores. (Cf. DE LA PEÑA, 1988).
59 […] eppure arrivo sempre alla stessa conclusione: la vita è bella. E credo in Dio. E voglio stare proprio in mezzo ai cosiddetti “orrori” e dire ugualmente che la vita è bella.
60 La teologia que exige la intervención de Dios en “este” momento para evitar “este” mal no es teologia Cristiana, pues ignora que el Dios verdadeiro es un Dios sim-pático, co-sufriente, no apático, y ya está en escena, no causando, enviando o permitiendo el mal, sino sufriéndolo en mí y conmigo; tampoco suprimiéndolo, sino mostrándolo asumible, desvelándome que incluso en esse mal hay sentido o, mejor, que a través de esa noche oscura amanece ya la aurora de la salvación.
61 [...] Dio non è nemmeno responsabile verso di noi per le assurdità che noi stessi commettiamo: i responsabili siamo noi!
62 El mal es la situación en que Dios se nos ha revelado tal cual es; como aquel que lo vence asumiéndole solidariamente y transmutándalo en semillas de resurrección.
63 [...] questa resa non si fonda sulla rassegnazione che è morire, ma s’indirizza là dove Dio per avventura mi manda ad aiutare come posso – e non a macerarmi nel mio dolore e nella mia rabbia.
64 […] voglio che ci sia un po’ di fratellanza tra i cosiddetti “nemici” dovunque io mi trovi […].


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