Resumo: O extraordinário Sl 24 é um dos mais belos textos bíblicos da liturgia judaico-cristã, e alvo de escrutínio dos estudiosos desde a Antiguidade. Não obstante, este salmo apresenta desafios a serem enfrentados: é difícil determinar sua organização literária como um todo, pois as partes componentes aparentam possuir diversidade na forma e conteúdo. Um quadro desconcertante, onde a Crítica Textual aponta para problemas de transmissão textual e de tradução, enquanto a Crítica da Constituição do Texto aponta para uma possível combinação de composições anteriormente dissociadas. Este estudo, portanto, propõe uma solução exegética pela Análise Retórica Bíblica Semítica para estes problemas, mas principalmente para determinar sua coesão, seu tema unificador – a integração entre adorador e adorado, numa possibilidade de que a geração de Jacó seja o próprio Templo no qual o Rei da Glória é convidado para tomar posse.
Palavras-chave:SalmoSalmo,YHWHYHWH,ExegeseExegese,Análise Retórica Bíblica SemíticaAnálise Retórica Bíblica Semítica.
Abstract: The extraordinary Ps 24 is one of the most beautiful biblical texts of the Judeo-Christian liturgy, and it’s aim of scrutiny of scholars since antiquity. Albeit this psalm exhibits challenges to be envisaged: it’s difficult to determinate its literary organization as a whole, for the component parts seem to possess diversity in form and content. A baffling frame, where the Textual Criticism points to problems of textual transmission and of tradition, while the Textual Constitution Criticism points to a possible combination of previously dissociated compositions. Therefore, this essay proposes an exegetical solution by the Semitic Biblical Rhetoric Analysis to these problems, but mainly to determinate its cohesion, its unifying theme – the integration between worshiper and worshiped, in a possibility that the Generation of Jacob be the Temple itself in which the King of Glory is invited to take possession.
Keywords: Psalm, YHWH, Exegesis, Semitic Biblical Rhetoric Analysis.
ARTIGOS
SALMO 24: proposta de solução exegética através da Análise Retórica Bíblica Semítica
SALM 24: proposal of Exegetical Solution by the Semitic Biblical Rhetoric Analysis
Recepção: 24 Maio 2019
Aprovação: 28 Maio 2020
O extraordinário Sl 241, com sua firme chamada à santidade (DUKE, 2011, p. 228), é um dos mais belos textos bíblicos da liturgia cristã – descrito por Schwantes (1982, p. 283) como uma liturgia singular: um salmo apropriado para o uso dominical, no Advento e na consagração de igrejas (LANGE, 2008, p. 185), visto que o mesmo conta com uma abrangência em relação a indicar o que a Igreja tem que fazer para caminhar em sua santidade (AGOSTINHO, 1997, p. 219). E além da liturgia: desde os primórdios, vários intérpretes cristãos relacionam este salmo com a ascensão de Cristo aos céus, como Justino Mártir, Irineu, Tertuliano, Atanásio, Dídimo o Cego, Gregório de Nissa, Gregório Nazianzeno, Ambrósio e Augusto, apenas para citar alguns (WILLIS, 2016, p. 1), este salmo foi ainda utilizado por Basílio para responder ao Imperador Valente quando ameaçado de banimento (LANGE, 2008, p. 187).
Não é menos importante para o judaísmo: depois que os sacrifícios foram suspensos com a destruição do Templo pelos romanos, este salmo foi incorporado às orações diárias, sendo então indicado para a leitura no primeiro dia da semana, ou seja, no domingo (APPLE, 2014, p. 114). Aliás, os Padres da Igreja, seguindo a tradução da LXX, interpretaram o Sl 24 como afirmação do Dia do Senhor Ressuscitado (ODEN, 2017, p. 262). Lido desde então como uma celebração da criação junto a um grupo de salmos conhecidos como Tamid, no moderno serviço sinagogal é recitado no Shabath enquanto o rolo da Torah é devolvido à Arca – o que encontra paralelos na tradição reformada, onde os vv. 7-10 são recitados ao serem trazidos os elementos da Eucaristia à mesa (DE CLAISSE-WALFORD, 2005, p. 150).
Não obstante, este salmo apresenta quebra-cabeças (GOULDER, 2006, p. 469), desafios a serem enfrentados, formando um salmo desconcertante (SUMPTER, 2014, p. 31). Este quadro desconcertante é amplificado pelo fato deste salmo apresentar problemas de transmissão textual: portanto, logo após a tradução, no início do trabalho, para embasar o que vem em seguida (LIMA, 2014, p. 80), é imprescindível ter um tópico de crítica textual, analisando as variantes não apenas como simples erros, ou até mesmo erros grosseiros, mas reflexo de uma história interpretativa, uma tendência moderna para elucidar tanto a tradução do texto quanto sua interpretação (JOOSTEN, 2010, p. 15-16). E, devido aos problemas levantados acerca da constituição deste salmo, será colocado em seguida um tópico relacionado à Crítica da Constituição do Texto, a qual procura “[...] analisar se uma dada unidade textual foi composta de uma só vez ou resultou de intervenções redacionais” (LIMA, 2014, p. 85, 102).
Esses passos, pertencentes ao Método Histórico-Crítico, embora necessários, não são suficientes (LIMA, 2014, p. 71). Não conseguem responder a perguntas que naturalmente surgem: existe uma unidade rítmica, estrófica e teológica que ligue esses elementos aparentemente desconexos? Se pertencem a diferentes fontes autônomas, o que teria levado um editor a juntá-los num único salmo (TERRIEN, 2003, p. 246)? Ao comentar sobre as tentativas de Clines para encontrar uma relevância deste salmo para os nossos dias, Landy (2003, p. 278) parece perder a paciência ao considerar este salmo um pouco tolo. Portanto, este labirinto exegético formado deve ser enfrentado por um método que pressuponha ser este texto não tolo, mas bem construído e coerente – ao contrário do que supõem leitores apressados –, e habilmente composto com suas próprias regras: a Retórica Bíblica Semítica (MEYNET, 1998, p. 176). A Análise Retórica Bíblica Semítica2, então, é utilizada neste trabalho como uma proposta de solução exegética para este salmo desconcertante, determinando seu ponto focal, em torno do qual encontra a sua coesão. Seu emprego para a análise deste salmo, sem ignorar o valor do Método Histórico-Crítico, justifica-se pelo fato de que a Análise Retórica Bíblica Semítica, a partir de uma visão sincrônica, realiza uma complementação adequada e ajuda a perceber os diversos níveis retóricos de composição de um texto e igualmente pelos frutos da aplicação do mesmo em cada um dos níveis de uma passagem ou livro bíblico, assim resumidos: a) níveis ou figuras de composição de um texto: 1) membro 2) segmento; 3) trecho; 4) parte; 5) perícope ou passagem; 6) sequência; 7) seção; 8) livro; b) frutos da aplicação da Análise Retórica: 1) delimitar as unidades literárias e textuais; 2) auxiliar na interpretação; 3) ler junto as diversas perícopes; 4) auxiliar na tradução do texto; 5) ajudar na critica textus; 6) fornecer procedimentos e critérios científicos – de tipo linguístico – para a delimitação das unidades literárias aos diversos níveis da organização do texto (MEYNET, 2008, 132-209)..



No primeiro versículo do Sl 24, a Septuaginta acrescenta ao título τῆς μιᾶς σαββάτων, ton, refletindo o uso litúrgico posterior deste salmo; e tanto a Septuaginta quanto a Peshitta acrescentaram o correspondente do hebraico כֺּל ao termo וְיֹשְׁבֵי, implicando na leitura todos os que habitam. Entretanto este acréscimo tanto é carente de suporte dos manuscritos hebraicos – como mostram os fragmentos de Naḥal Ḥever (2010), por exemplo – quanto é desnecessário, como atesta a mesma expressão em Sl 98,7 (CRAIGIE, 2004, p. 210). Possivelmente os tradutores desejaram enfatizar o domínio universal exclusivo de YHWH, sem compartilhá-lo com nenhum outro poder, num protesto contra qualquer forma cultual que se opusesse a uma compreensão purista do monoteísmo – como o dualismo persa e o trinitarianismo cristão (APPLE, 2014, p. 116).
No v. 2 a Septuaginta, juntamente com as recensões de Símaco e Teodocião, omitem o correspondente grego da partícula introdutória כִּי. Entretanto a Peshitta, a Vulgata e os fragmentos de Naḥal Ḥever atestam esta partícula. Ainda neste versículo a Biblia Hebraica Stuttgartensia sugere a variante no qatal no lugar do yiqtol יְכוֹנְנֶהָ. Craigie (2004, p. 210) argumenta que esta variante seria preferível, em virtude do uso do qatal na linha paralela precedente. Mas a alternância entre o qatal e o yiqtol serve justamente como recurso estilístico para adicionar profundidade ao evento apresentado (NICCACCI, 2006, p. 259).
No v. 4 observa-se o primeiro grande desafio de transmissão textual deste salmo. No códice Leningradense há a presença do qere נַפְשִׁי, em contraposição ao ketib נַפְשׁוֹ. Há apoio maciço à última leitura: a maioria dos manuscritos hebraicos, incluindo da genizah do Cairo e de Naḥal Ḥever, além da Septuaginta, Vulgata e Peshitta. Isto harmoniza com o restante do salmo, que segue sempre na terceira pessoa. Entretanto os comentaristas rabínicos preferiram a leitura do qere, na qual o salmista transfere a Deus sua questão, como faz Rashi ao traduzir meu nome ao invés de minha alma (BAKON, 2012, p. 63-64). Isto poderia refletir uma referência ao Decálogo, e o uso indevido do Tetragrama Sagrado, onde Deus advertiria para não levantar minha alma ao engano, com o substantivo נֶפֶשׁ substituindo שֵׁם (BOTHA, 2009, p. 537). Talvez seja melhor entender o sufixo yod não como primeira pessoa do singular, e sim resquício de uma antiga forma da terceira, conforme atestado no fenício (DAHOOD, 2008, p. 151). Para destacar o substantivo נֶפֶשׁ, convém traduzir que não levanta à falsidade sua vida.
Ainda no final do v. 4 a Septuaginta acrescenta τῷ πλησίον αὐτοῦ, o que se coaduna com qualificações ético-morais do pretendente a subir ao monte de YHWH, tema este vinculado ao empenho moral que o salmista precisa ter ao desejar subir o monte e estar na presença de YHWH (RAVASI, 1997, p. 449). A questão na verdade envolve o ato de adoração: levantar sua alma para a falsidade (שָׁוְא) pode ser melhor entendido como referência à idolatria (BOTHA, 2009, p. 539) tanto quanto o abstrato מִרְמָה (fraude), pois a mesma sequência de ideias adorar ∕ fazer juramento encontra-se em Sl 16, 4 (DAHOOD, 2008, p. 151; SPANGENBERG, 2011, p. 751). Segundo Corbajosa, שָׁוְא realmente fica melhor traduzido por “[...] falsidade ou vaidade, pois identifica com frequência os ídolos” (2018, p. 151). A ênfase recai então não em confiar em deuses falsos e nulos, e sim naquilo que é substancial, como em Sl 25, 1 (DUKE, 2011, p. 220). Por isso, a tradução adequada, que propomos aqui, é “aquele que não levanta à falsidade sua vida e nem jura ao engano”, ou seja, aquele que é incapaz de causar dolo algum a seu irmão (AGOSTINHO, 1997, p. 220). Para Ravasi, faz-se a passagem da dimensão vertical, toda voltada para Deus, para entrar na dimensão horizontal, voltada para o próximo, de tal forma que o Sl 24 “[...] revela uma síntese essencial de moral religiosa e de moral social” (1997, p. 459-460).
No v. 5, a Septuaginta acrescenta no início οὗτος, possibilitando a tradução ele ∕ este receberá... A Vulgata (menos no Saltério Galicano) e a Peshitta igualmente acrescentaram um pronome para obter a mesma tradução, e desde então sistematicamente as versões nas mais diversas línguas têm adotado essa leitura. Isto exigiria no hebraico a presença de הוּא, o que não encontra respaldo em nenhum manuscrito hebraico. Seria uma forma de enunciar a certeza da recompensa para o adorador qualificado no versículo anterior. Porém, há aqui um segmento com yiqtol inicial, o que segundo Niccacci (2002, p. 88) aponta para uma função volitiva, e não indicativa. Se inicialmente restringia essa observação à prosa (NICCACCI, 2002, p. 174), posteriormente mudou de opinião e compreendeu que as funções das formas verbais na poesia são basicamente as mesmas da prosa. Mais especificamente, a posição inicial do yiqtol por si só define seu caráter jussivo, mesmo que sua vocalização não seja distintamente jussiva (NICCACCI, 2006, p. 247-252). Um argumento adicional: a tradução celebrizada pela tradição implicaria numa subordinação entre os vv. 4-5, o que contraria o caráter segmental da poesia hebraica, onde segmentos de informação são dispostos em linhas paralelas mais do que pedaços de informação conectados numa sequência linear (NICCACCI, 2006, p. 266). Consequentemente, há uma mudança radical de tradução, que se levante uma bênção..., e de interpretação: não se exprime uma certeza, e sim um desejo que uma bênção se levante – o que parece aludir à impetração da bênção sacerdotal como encontramos em Nm 6, 24.
No v. 6 encontra-se o segundo grande desafio de crítica textual deste salmo. O ketib do manuscrito Leningradense traz דֹּרְשָׁו, enquanto o qere traz דֹּרְשָׁיו. O ketib, desconsiderando a vocalização, implica no imperativo, enquanto o qere implica no particípio sufixado (DAHOOD, 2008, p. 152). Preferível entender o ketib como singular coletivo – o que explicaria o qere – ou ainda uma escrita defectiva (ALONSO-SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 389). Mas é na expressão מְבַקְשֵׁי פָנֶיךָ יַעֲקֹב. o grande debate: parece ser entendida como os que buscam a tua face, Jacó!. Entendendo buscar a face como ato de adoração (cf. 1 Cr 16, 11; 2 Cr 7, 14; Sl 27, 8; 105, 4), dois manuscritos hebraicos, as versões a Septuaginta, a Vulgata (com exceção do Saltério Galicano) e a Peshitta corrigem para a face do Deus de Jacó, para se conformar à construção mais típica Deus de Jacó em Gn 49, 24; Ex 3, 6 (DUKE, 2011, p. 221; CORBAJOSA, 2018, p. 151). Kraus (1993, p. 477) segue as versões, corrigindo o texto massorético; porém é mais adequado ler Jacó como vocativo explicando quem é a geração dos que buscam e פָנֶיךָ como reportando-se à face de YHWH, alvo da adoração (BOTHA, 2009, p. 539): “[...] esta é a geração do que buscam a tua face: Jacó!”
No v. 9, poucos manuscritos leem וְֽ֭הִנָּשְׂאוּ, harmonizando com o v. 7. Mas o uso incomum de duas conjugações distintas da mesma raiz num mesmo versículo – ou versículos próximos, como nesta passagem – visa uma variação puramente estilística, presente igualmente em Sl 29, 5; 38, 3 (ALONSO-SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 390; DAHOOD, 2008, p. 152). Entretanto, é preferível manter traduções distintas – sejam levantadas para o nifal do v. 7 e levantem-se para o qal dos vv. 7 e 9 – a fim de realçar essa opção do hagiógrafo.
Existem as mais variadas opiniões acerca da composição deste salmo: é difícil determinar sua organização literária como um todo, pois as partes componentes aparentam possuir diversidade na forma e conteúdo (CRAIGIE, 2004, p. 211). Uma diversidade que apontaria, segundo não poucos estudiosos, na combinação de três composições anteriormente dissociadas (BOICE, 2005, p. 216; WEISER, 1994, 167), numa justaposição de temas díspares (criação, vv. 1-2; Torah e santuário, vv. 3-6; guerreiro divino e santuário, vv. 7-10) formando um salmo desconcertante (SUMPTER, 2014, p. 31).
Insistindo na unicidade, Willis (2016, p. 2) ainda defende uma autoria autenticamente davídica, tendo como ocasião algum evento da vida do grande rei: sua unção real, ou a captura de Jerusalém, quando um poeta da corte – ou até mesmo o próprio rei, segundo Goulder (2006, p. 473) – teria composto para uma espécie de procissão. No outro extremo, Treves (1960, p. 428) analisa que somente a entrada de YHWH na sua morada, ou seja, uma dedicação do Templo, poderia ser a ocasião para este salmo, o que ocorreu em três situações: em 963 a.C., pelo rei Salomão; em 516 a.C., pelo rei Dario; e em 164 a.C., por Judas Macabeu. Defendendo essa última data, torna-se então a data mais tardia atribuída a esse salmo.
O uso litúrgico para recitação em um dia específico no serviço sinagogal aponta para um estabelecimento no período do Segundo Templo, segundo Apple (2014, p. 114). Ainda que seja pós-exílico, há uma ligação com um evento alicerçado na tradição judaica, como a ocasião na qual Davi trouxe a Arca para seu repouso temporário na casa de Obed-Edom de Gat, como relatado em 2 Sm 6 (BOICE, 2005, p. 214). Reforçando a identificação com o período pós-exílico, Botha (2009, p. 550) observa que existem significativos pontos de contato com as instruções dadas por Davi aos levitas no dia em que a Arca foi trazida à Jerusalém (cf. 1 Cr 16, 7-36).
Entretanto, existe uma insistência em se analisar não como salmo único, mas três: vv. 1-2, vv. 3-6, vv. 7-10 (MEYNET, 2018, p. 300; RAVASI, 1997, p. 450, 454-455). Segundo Gerstenberger (1988, p. 117), o v. 1 seria uma afirmação militante em defesa da soberania universal de YHWH em conformidade com outros salmos, a saber 81, 93, 96; e isto refletiria uma teologia cósmica tardia, com referências à criação do v. 2 (cf. Sl 78, 69; 89, 12; 102, 26; Is 48, 13). Entretanto, este salmo contém uma visão da origem do mundo a qual seria claramente diferente dos grandes textos da criação como Gn 1, 1 – 2, 3 devido à maneira pela qual Deus age: o estabelecimento de um disco no oceano primevo, o qual se torna a habitação para animais e homens. Uma montanha se eleva no centro, com o Templo – uma visão de mundo culto-cêntrica (SCHÜLE, 2017, p. 261). Seria, portanto, um dos primeiros salmos da criação, antecedendo os textos dêutero-isaianos, a história da criação em Gn 1, 1 – 2, 3, o Sl 104 e a teologia da criação exposta em Jó 38 – 41 (SCHÜLE, 2017, p. 263-274), o que colocaria os vv. 1-2 entre o período exílico e o início do pós-exílico.
Já o conjunto dos vv. 3-6 é compreendido como uma Instrução da Torah, cujos elementos de similaridade com Sl 15 e Is 33, 14-16 baseiam-se na estrutura pergunta –resposta – confirmação, numa aparente organização confessional da comunidade em estágio avançado que apontaria para uma data igualmente tardia, excluindo consequentemente o período pré-exílico e uma procissão da Arca (GERSTENBERGER, 1988, p. 117-119). Neste sentido, Weiser afirma que enquanto muitos interpretam como “[...] retorno da guerra com a arca sagrada [...]”, ele defende que seja “[...]mais provável tratar-se aqui da representação cúltico-dramática da epifania do Templo” (1994, p. 169). O v. 6 seria uma inserção ainda mais tardia, numa apropriação editorial – por parte daqueles que se consideravam pobres e humildes –, da bênção pronunciada no v. 5 (BOTHA, 2009, p. 536).
Mas o quadro torna-se mais complexo na análise do conjunto dos vv. 7-10, o mais estudado: Kraus (1993, p. 478) considera importante o Sitz im Leben do Sl 24 começando por estes versículos; este mesmo valor é dado por Ravasi aos vv. 7-10 (1997, p. 452-454). Cross (1973, p. 91) atribui estes versículos a um fragmento litúrgico do século X a.C., enquanto Seybold (1990, p. 102, 132) os considera a mais antiga parte do Sl 24, mas em conexão com os vv. 1-2 – e com o Templo e a arca. Colocou-se a possibilidade de constituir uma festa da entronização, a qual ocorreria anualmente, carecendo, entretanto, de sólidos elementos comprobatórios (KRAUS, 1993, p. 479). Tornou-se então comum classificar como “[...] liturgia de entrada [...]” (DUKE, 2011, p. 216), podendo tanto ser um ritual celebrado no Segundo Templo comemorando o retorno de YHWH ao santuário (cf. Ez 43 – 44), ou mesmo um ritual num ambiente sinagogal desprovido de Templo (GERSTENBERGER, 1988, p. 119). Ravasi afirma tratar-se de “[...] uma possível festa pós-exílica que exaltava o retorno da Glória de Deus” (1997, p. 451) e Corbajosa diz que “[...] tudo parece indicar que por trás deste salmo se encontra uma liturgia que acontece no Templo” (2018, p. 152).
São propostas ainda outras teorias para o conjunto dos vv. 7-10. Havendo conotações mitológicas, ou até mesmo à procissão da Arca carregada em batalha (cf. Nm 10, 33-36), poderia ser entendido como a marcha honrando o criador primordial; a procissão da Arca entrando triunfantemente na Terra Prometida; ou uma liturgia de entrada de YHWH no Templo (MEYNET, 2018, p. 305; RAVASI, 1997, p. 451), comemorando vitórias tanto históricas quanto cósmicas (BERGANT, 2007, p. 72). Poderia refletir a atividade de reconstrução dos muros de grupos em torno de Neemias (SULZBACH, 2012, p. 281), podendo até mesmo espelhar a tensão teológica e histórico-social entre davidismo dominante e campesinato dominado (SCHWANTES, 1982, p 302). Se Dahood (2008, p. 151) insiste numa liturgia conectada com a procissão da arca, Botha (2009, p. 549) considera não como uma liturgia, mas um poema meditativo do período pós-exílico, enquanto Craigie (2004, p. 212) o associa a um hino celebrando a realeza de YHWH, como temos em outros salmos do inteiro Saltério, que exaltam e louvam “[...] ao Criador e Senhor de tudo” (GONZAGA, 2018, p. 168). Aliás, o Sl 24, desde seus inícios, defende que “[...] tudo surgiu da mão criadora de Deus” (WEISER, 1994, p. 168).
Em resumo, a ocasião para este salmo poderia ser um evento comemorativo ou histórico ocorrido na época de Davi, Salomão, Zorobabel, os Macabeus, ou após uma batalha não especificada (BOTHA, 2009, p. 537). Mas, ainda que o denominador comum seja algum tipo de liturgia processional (DUKE, 2011, p. 217), é difícil estabelecer se este salmo foi composto para ser usado numa festa específica, ou meramente reflete alguns elementos dessa suposta procissão (SPANGENBERG, 2011, p. 758), provavelmente numa festa cúltica do período de outono (WEISER, 1994, p. 167). Poderia até mesmo ser composto no exílio por aqueles que esperavam a culminação da história, no final dos tempos, numa conotação escatológica (TERRIEN, 2003, p. 249). Se de fato trata-se de uma liturgia de entrada, seria a entrada de quem? Dos peregrinos, onde os vv. 1-2 serviriam como um mero intróito hínico (SCHWANTES, 1982, p. 288), com os vv. 3-6 reproduzindo o discurso dos sacerdotes à porta do Templo acerca dos requisitos de admissão, e os vv. 7-10 refletindo a reivindicação da entrada da Arca no Templo acompanhada por estes mesmos peregrinos (BOTHA, 2009, p. 536; WEISER, 1994, p. 168)? Ou a entrada de YHWH, com os vv. 1-2 e 7-10 pertencendo ao mesmo ritual e deixando os vv. 3-6 a um outro contexto (SEYBOLD, 1990, p. 102; SUMPTER, 2014, p. 36)? Neste caso, contrariamente a uma ênfase antropológica nos vv. 3- 6, haveria como tema central o reinado de YHWH (BOTHA, 2009, p. 549), com sua insistência na figura do Deus Guerreiro que emerge vitorioso após uma batalha cósmica (BERGANT, 2007, p. 68; CROSS, 1973, p. 99)? Ou seria ainda para uma liturgia de entrada para a acolhida de visitantes no Templo? (WEISER, 1994, p. 167).
A Análise Retórica Bíblica Semítica, com suas figuras de linguagem e seus frutos metodológicos (GONZAGA, 2018, p. 159-162), diferentemente da Clássica Greco-Romana, é mais concreta que abstrata, descrevendo a realidade através de exemplos que levam o leitor a concluir; usa parataxe mais do que sintaxe, ou seja, justapõe e coordena mais do que subordina; e compõe numa disposição paralela, e acima de tudo, concêntrica – em detrimento de um arranjo linear. Esta organização ao redor de um centro é o ponto focal, a pedra angular, em torno do qual todo o restante encontra sua coesão (MEYNET, 1998, p. 173-175).
Um dos frutos deste método consiste justamente na identificação da estrutura retórica com suas simetrias, oposições e identidades, cujas relações entre seus diversos elementos auxiliam numa melhor compreensão da passagem (MEYNET, 1998, p. 327). Esta estrutura inicia-se com o membro, unidade mínima da organização retórica; depois o segmento, unidade imediatamente superior composta de um a três membros; depois o trecho, formado de um a três segmentos; e a parte, formada de um a três trechos (MEYNET, 1998, p. 201-258). Chega-se finalmente à primeira unidade separável e autônoma, chamada de passagem, composta de várias partes (MEYNET, 1998, p. 259).
Um salmo possui a vantagem de ser uma passagem bem delineada, definida pela tradição, a qual não necessita de justificação de seus limites, contrariamente às passagens de todos os outros livros da Bíblia (MEYNET, 1998, p. 200). A Análise Retórica Bíblica Semítica do Sl 24 apresentará todos seus membros, segmentos, trechos e partes que o constituem, bem como seu ponto focal.
Embora tenha sido observado acima que muitos comentaristas analisam esse salmo em três partes como vv. 1-2, vv. 3-6 e vv. 7-10, esta divisão não reflete a estrutura do ponto de vista retórico como defende Duke (2011, p. 216), e sim v. 1a, vv. 1b-6 e vv. 7-10. O termo סֶלָה, segundo a tradição judaica, marcava uma separação sensível do salmo dentro da liturgia no Templo (CANDIARD, 2014, p. 233), e a presença no final do salmo também serve para marcar inequivocamente as duas partes do mesmo salmo (CANDIARD, 2014, p. 242). Neste sentido, Corbajosa recorda que “[...] o termo hebraico selāh é uma indicação técnica, não faz parte de conteúdo do salmo. Segundo uma intepretação muito comum, é traduzido por pausa” (2018, p. 152). Ele recorda ainda, que “[...] o nome selāh aparece 66 vezes nos primeiros 89 salmos e apenas 4 vezes até o final (140, 4.6.9.; 143, 6), indicando claramente um termo técnico e não algo que faça parte do conteúdo do salmo” (CORBAJOSA, 2018, p. XXVII). Isso faz muito sentido, pelo fato de que existe uma pausa divisória que demarca os vv.1-6 e 7-10, e que o termo nada acrescenta ao conteúdo a não ser um dado técnico de leitura, que pode ser em vista do ritmo litúrgico do canto, da oração ou da meditação. Além da demarcação sinalizada pelo uso do סֶלָה, ao final dos vv. 6 e 10, em v.1a há um segmento de membro único formando o título, na segunda parte há somente segmentos bimembros, enquanto na terceira parte todos os segmentos são trimembros. Serão analisados primeiramente os vv. 1-6 e 7-10 separadamente, e então será efetuada uma análise em conjunto para determinar sua unidade e tema.
Enfim, os Salmos 23 e 24 têm unidade e composição que revelam uma sequência temática e de vocabulário, além de que eles são precedidos pelos Salmos 20 e 21 que também compõem uma unidade literária muito grande (MEYNET, 2018, p. 306-3013). Aliás, são duas as grandes coleções davídicas, onde encontramos Salmos atribuídos a Davi: a primeira é exatamente dos Salmos 3–31, onde se encontra o nosso Sl 24, e a segunda dos Salmos 51– 72 (CORBAJOSA, 2018, p. 151).
Se não poucos comentaristas destacam o conjunto dos vv. 1-2, do ponto de vista retórico há um título formado por um segmento de membro único e dois pares de segmentos bimembros, cada par em paralelismo:

No início do v.1 a ordem mais comum seria Salmo de Davi; a disposição de duas únicas palavras como título na ordem De Davi. Salmo é incomum, aparecendo desta forma também em Sl 101, 1; 110, 1 (GERSTENBERGER, 1988, p. 117). A expressão De Davi. Salmo aparece ainda junto ao termo לַמְנַצֵּחַ no início de outros 4 salmos da Bíblia Hebraica (KITTEL,1997): 40, 1; 68, 1; 109, 1; e 139, 1. Então é preciso rever esta afirmação ou pelo menos justificar como aparece. Já na forma inversa: Salmo. De Davi, aparece 28 vezes no início de salmos na Bíblia Hebraica, como temos no Sl 23 e outros antes e após, enquanto que a expressão Salmo. De Davi é encontrada no início dos Salmos 19 a 23, que antecedem o Sl 24. De Davi faz paralelo com De YHWH mediante a preposição ל, ligando o título ao restante do salmo. Não somente אֶרֶץ está em paralelo com תֵּבֵל, e מְלוֹא. em paralelo com :וְיֹשְׁבֵיבָהּ: a palavra תֵּבֵל, especialmente na literatura sapiencial, implica na totalidade da humanidade (TERRIEN, 2003, p. 246), permitindo que os segmentos dos vv. 1b-2b formem um paralelismo perfeito, ao esclarecer que são os habitantes da terra, a plenitude do mundo, que constitui alvo das atenções de YHWH, ou seja, das bênçãos do Senhor (MEYNET, 2018, p. 304).
No v. 2 הוּא faz paralelo com o Tetragrama Sagrado, esclarecendo quem é o sujeito em ambos os segmentos deste versículo. Existe um empréstimo claro da linguagem mitológica, uma vez que o paralelo entre יָם e נָהָר aponta para o oceano primevo na literatura ugarítica, sobre os quais estão estabelecidos ∕ firmados os pilares da terra (DAHOOD, 2008, p. 151). Mais importante, o uso de estabelecer, fundar e habitar comunica estabilidade, produzindo um efeito retórico surpreendente, pelo fato de que as águas comunicam fluidez e não solidez (LANDY, 2003, p. 281). Os dois segmentos bimembros de 1b-2b formam uma estrutura idêntica, mantendo uma rima em torno do sufixo ה (BOTHA, 2009, p. 540) e constituindo um trecho retórico.
O esquema pergunta – resposta determinará o próximo trecho ao ser analisado, formado por três segmentos bimembros: vv. 3-4.

A pergunta determinante usa o pronome ymi, acerca de quem estaria qualificado para subir ao monte de YHWH. Este não é outro lugar senão seu Santo Lugar, pelo qual o ato de subir envolve na verdade permanecer. Esta identificação ainda é garantida estilisticamente pela aliteração produzida entre יָקוּם e מָקוֹם (BOTHA, 2009, p. 541). Uma estrutura diferenciada encontra-se no v. 4: ressalta-se o caráter desejado daquele que se candidata a estar no Templo em termos do que uma pessoa deve ser positivamente tanto quanto o que ela não pode ser, criando um quadro completo, um merismo (DUKE, 2011, p. 224). Este merismo evidencia-se por uma estrutura quiástica, com dados positivos e negativos, dados internos e externos. Assim, a total pureza do adorador é expressa em quatro características: positiva externa (4a); positiva interna (4b); negativa interna (4c); e negativa externa (4d) (DUKE, 2011, p. 225-226).
É uma chamada incondicional à santidade, reconhecendo que os aspectos internos e externos da vida estão intrinsecamente unidos, um coração puro e um correto relacionamento para com Deus (DUKE, 2011, p. 228), distanciando-se das coisas vãs (AGOSTINHO, 1997, p. 219). Segundo Ravasi, os termos mãos e coração representam justamente a ação e a intenção do ser humano no caminho orientado a Deus (1997, p. 459). Para Weiser, ter um coração puro significa ter um coração livre do mal, sendo que esta atitude “[...] não se baseia mais na simples participação externa, e sim na mais íntima união espiritual” (1994, p. 168). Este trecho estrutura-se em torno da presença rítmica do vav conjuntivo.
O súbito surgimento do yiqtol volitivo no v. 5 determina um novo trecho formado por dois segmentos bimembros:

A expressão dos que o buscam é uma bem conhecida autodesignação dos editores do Saltério, tornando as questões postas nos vv. 3-4 uma confirmação do papel da comunidade como os verdadeiros adoradores que receberão a bênção de YHWH (BOTHA, 2009, p. 546-547; AGOSTINHO, 1997, p. 221), que “[...] nos vem graças à misericórdia de Deus” (ODEN, 2017, p. 262). O v. 6 está disposto quiasticamente, de tal forma que geração está em paralelo com Jacó, sublinhado ainda pela ênfase posta no pronome demonstrativo זֶה: “[...] esta é a geração, Jacó, e nenhuma outra” (SUMPTER, 2014, p. 37-38). Não indiscriminadamente todo o Israel, mas Jacó, no qual buscar é o oposto da autoconfiança (DUKE, 2011, p. 231). Há uma aliteração entre דׇרַשׁ e דּוֹר (BOTHA, 2009, p. 541). Assim, a referência a Jacó funciona como um rito de passagem: a entrada no Templo assemelha-se à passagem de Jacó pelo Jaboc, lembrando o episódio narrado em Gn 32, 23-33 onde a reentrada de Jacó na Terra da Promessa estaria condicionada à demonstração de sua integridade (SPANGENBERG, 2011, p. 752). Por isso o uso do yiqtol volitivo: o desejo que se levante essa geração de Jacó, cumprindo as expectativas de Gn 12, 3 de que todos os clãs da terra tornar-se-iam nessa raça (TERRIEN, 2003, p. 248) e ecoando Noé, o único de sua geração visto justo (cf. Gn 7, 1) e que corporifica e antecipa a geração justa que está por aparecer (HUNTER, 2007, p. 200-201). Mais do que uma geração a ser abençoada, pela disposição retórica ela é a própria bênção que deve ser levantada da parte de YHWH, a justiça do Deus Salvador, ecoando Gn 15, 6. E aqui vale a pena ressaltar que o verbo “levantar” domina o cenário do Sl 24, 4b.5a.7ab.9ab (MEYNET, 2018, p. 302).
Esta parte do salmo é facilmente identificável pela presença do título Rei da Glória, e por ser formada pelos únicos segmentos trimembros da passagem. Com o refrão dos vv. 7 e 9 e a presença de perguntas similares nos vv. 8 e 10, a princípio serão analisados esses dois pares separadamente.

A frase Rei da Glória, que identifica “[...] um personagem misterioso que aparece diante da porta” (RAVASI, 1997, p. 462), é exclusiva deste salmo, formando um sintagma idêntico que aparece cinco vezes e apenas aqui: vv.7c.8b; 9c.10b.10c (MEYNET, 2018, p. 302). O tradicional deus jebusita é conhecido como Melek, o Rei do Subterrâneo, suplantado por YHWH, o Deus que habita em glória (cf. Is 6, 3), presente na arca (cf. 1Sm 4, 21) e que agora vem pessoalmente tomar posse do Templo (GOULDER, 2006, p. 471-472). Este é YHWH, como bem mostra o paralelo. Na frase interrogativa מִי זֶה, o pronome זה é unido encliticamente como um advérbio para comunicar franqueza e força, a exemplo do que também se atesta em Sl 25, 12 (DAHOOD, 2008, p. 153). A duplicação da última consoante de עִזּוּז produz não somente aliteração, como também amplifica o adjetivo עַז, permitindo uma associação inequívoca com o poder divino (LANDY, 2003, p. 278). Isto faz com que עִזּוּז se aproxime do clássico termo herói (LANGE, 2008, p. 187). Desta forma, YHWH é descrito pelo tom belicista como o guerreiro que derrotou seus inimigos, digno de louvor maior do que o tributado aos portões da cidade e às largas portas do Templo (BOTHA, 2009, p. 548; GONZAGA, 2018, p. 158). Esta é a sua glória, amplificada pelos títulos dispostos quiasticamente: Poderoso e Valente / Valente de Guerra.

No refrão, além do uso adverbial do pronome demonstrativo זה, é acrescentado em relação ao v. 8 o pronome הוּא, que aponta para a referência já mencionada e enfatiza ainda mais fortemente o sujeito (LANGE, 2008, p. 187). Hunter (2007, p. 190) ainda chama a atenção para o fato da posição do demonstrativo זה antes de um substantivo ser exclusiva deste salmo. O título YHWH dos Exércitos está associado aos atos salvíficos no passado, muito comum na literatura profética (RAVASI, 1997, p. 463), embora no Saltério expresse às vezes o desejo de YHWH mais uma vez salvar Israel de seus inimigos (BOTHA, 2009, p. 548). A linguagem da guerra, já presente no v. 8, repete-se aqui ancorada na história cúltica de Israel (CROSS, 1973, p. 99). Os títulos YHWH dos Exércitos e Rei da Glória estão em paralelismo, insistindo na total identificação entre ambos, lembrando o Deus que age em todas as épocas de Israel, onde se vê uma caminhada pavimentada pela graça divina na redenção do Egito (vv. 1-2), a exortação pela contínua obediência de Israel (vv. 3-6) e sua sujeição ao julgamento purificador de Deus (vv. 7-10), consumando um ciclo iniciado na Criação (SUMPTER, 2014, p. 51-53). É uma interpretação escatológica, que reconhece a íntima conexão da linguagem e dos temas dos salmos com os oráculos isaianos (TERRIEN, 2003, p. 250).
Se a parte relativa aos vv. 1b-6 tem uma estrutura bem delineada em torno de três trechos, como visto acima, precisa-se recorrer à análise do conjunto para identificar os trechos da parte dos vv. 7-10, visto o valor desta terça parte para a interpretação do inteiro Sl 24 (RAVASI, 1997, p. 452). O uso de זה e הוּא nos vv. 8 e 10 estabelece uma conexão de volta aos vv. 2 e 6, fazendo com que estes dois pronomes exerçam um papel retórico preponderante (BOTHA, 2009, p. 542). Embora repita-se a pergunta com מִי do v. 3 nos vv. 8 e 10, no v. 10 está associado com o pronome הוּא, tendo a frase הוּא כִּי do v. 2 ecoando sonoramente מִי הוּא do v. 10, de tal forma que exista uma clara ênfase na identificação de quem YHWH é no v. 10 e de quem é seu povo no v. 6 (BOTHA, 2009, p. 544), ou ainda de quem adora e de quem é adorado. Se מִי nos vv. 3-4 mostra as qualificações do adorador, no v. 8 mostra as qualificações do adorado. A repetição do refrão do v. 9 com o weyitol faz paralelo com o yiqtol volitivo do v. 5, ligando os vv. 9 e 10 da mesma forma que os vv. 5 e 6. Portanto, há também três trechos: v. 7, v. 8 e vv. 9-10.
Assim, com exceção do v. 1a formando o título, este salmo está estruturado em duas partes (vv. 1b-6 e vv. 7-10), que são facilmente indicadas pela presença da anotação técnica da pausa pelo selāh (CORBAJOSA, 2018, p. 153), com três trechos cada (vv. 1b-2.3-4.5-6 no primeiro; e vv. 7.8.9-10 no segundo), dispostos em paralelismo A-B-C ∕ A’-B’-C’:



Como a terra é um macrocosmo, do qual o Templo é um microcosmo (SUMPTER, 2014, p. 46), nos vv. 1-2 o tema gira em torno da possessão da terra por YHWH, enquanto o convite para abrir os portões no v. 7 assegura que o Templo pertence ao Soberano Universal. Segundo Weiser, o convite para que sejam abertos os portões se dá pelo fato de que eles não são abertos para todos, justificando que que a pergunta venha do lado de dentro e a resposta surja do lado de fora (1994, p. 169).
Fica claro que o nome divino YHWH, em conjunto com o título Rei da Glória, 5 vezes cada, constitui o elemento estruturante por excelência do salmo (BOTHA, 2009, p. 543). Aliás, o nome divino YHWH domina os extremos do Sl 24, com três ocorrências em cada extremidade: vv. 1b.3a.5a.; 8cd.10c. Por outro lado, encontra-se concomitantemente uma palavra-tema: os portões do Templo, uma espécie de Leitworter para todo o salmo (SEYBOLD, 1990, p. 63), algo determinado pela recorrência da raiz (נשׂא) 6 - vezes ao todo. O salmista sabe que a terra constitui um estágio para o Soberano transcendente, que está distante mas ao mesmo perto, que abraça os homens de todas as raças e nacionalidades (TERRIEN, 2003, p. 246): a ligação com Jacó distingue YHWH não em termos exclusivistas, mas como o criador universal, o que confere importância cósmica à fé e à história de Israel (RAVASI, 1997, p. 457).
Pelos padrões dos mitos da criação do Antigo Oriente, após a batalha ser ganha e o universo reordenado, uma habitação celestial é construída para o guerreiro triunfante; os devotos do herói conquistador vêm a seu lugar majestoso a fim de receber adoração. Essa é a ideia por trás das referências à montanha de YHWH e do lugar sagrado (BERGANT, 2007, p. 70-71). Segundo Corbajosa, a teologia da criação que está por detrás dos relatos de Gn 1 e 2 é a mesma que encontramos presente no Sl 24, ou ainda em Is 44, 24 e Jó 38, 4-7 (2018, p. 154).
A junção de מִי e הוּא no v. 10 serve para especificar onde se encontra o centro retórico desse salmo: assim como o nome Jacó constitui o clímax nos vv. 1b-6, assim o título YHWH dos Exércitos constitui o clímax dos vv. 7-10 (SUMPTER, 2014, p. 38; WEISER, 1994, p. 169; RAVASI, 1997, p. 462). Isto é reiterado pelo uso no final de cada parte do termo סֶלָה: comparando com o salmo 3 conclui-se ser uma espécie de nota exegética (CANDIARD, 2014, p. 244), uma forma de enfatizar coisas por vir, numa leitura espiritualizada da parte de um editor (CANDIARD, 2014, p. 248). A questão, de fato, não envolve o caráter aparentemente teocêntrico dos vv. 1-2 e 7-10 e o antropocêntrico dos vv. 3-6, e sim sua integração: Sumpter (2014, p. 49-50) analisa a possibilidade de que o v. 3 tenha uma leitura teocêntrica, e de que Jacó do v. 6 esteja por trás da voz de comando dos vv. 7-10, onde o antropomorfismo de portas personificadas leva os ouvintes a refletirem na razão da ordem dada aos portões (BOTHA, 2009, p. 547), ou, ainda, naquilo que indica a simbologia da personificação “[...] do inteiro setor sagrado em sua inacessibilidade [...]” que se encontra diante do ser humano (RAVASI, 1997, p. 455). Por isso a reincidência da raiz נשׂא: a geração de Jacó que deve se levantar não se ergue diante de outros deuses, e sim unicamente a YHWH – consequentemente, este Jacó é a porta eterna, as cabeças dos portões que permitem a entrada do Rei da Glória. Esta dupla identificação transcende os limites de um Templo material, quase insinuando que este Jacó é o verdadeiro Templo construído para YHWH! Por estas portas, que são abertas, todos deverão passar, desde os mais antigos até os atuais (ODEN, 2017, p. 268).
Nos níveis retóricos superiores, este salmo pertence à seção correspondente ao Livro I dos Salmos (1–41); mas a qual sequência pertenceria? Se tradicionalmente os Salmos 15 e 24 são considerados como os pilares de uma composição concêntrica tendo o salmo 19 como epicentro (BOTHA, 2009, p. 550), o tom de lamento inicial do Livro I é interrompido no salmo 18 e retorna apenas com o salmo 25 (DE CLAISSE-WALFORD, 2005, p. 141). De Claisse-Walford (2005, p. 147) identifica uma sequência envolvendo os salmos 22, 23 e 24:
Lamento (Sl 22, 1-2)
Confiança (Sl 22, 3-5)
Lamento (Sl 22, 6-8)
Confiança (Sl 22, 9-10)
Petição (Sl 22, 11)
Lamento (Sl 22, 12-18)
Petição (Sl 22, 19-21)
Louvor (Sl 22, 22-31)
Confiança (Sl 23)
Louvor (Sl 24)
Sem excluir os outros métodos, este artigo mostrou como a Análise Retórica Bíblica Semítica serve como uma proposta de solução exegética para este salmo desconcertante. Confirmou opções levantadas pela Crítica Textual; confirmou uma opção de tradução no v. 5, dando-lhe argumentação não somente sintática como também retórica; e apontou para o tema unificador – a integração entre adorador e adorado, numa possibilidade de que a geração de Jacó seja o próprio Templo no qual o Rei da Glória é convidado para tomar posse. Uma antecipação de uma temática que somente voltaria a ser abordada no período neotestamentário, a partir, inclusive, dos diversos salmos que exaltam o poder de Deus, como os salmos 2; 8; 21; 24, 110 e 118, que se encontram entre os salmos mais citados no NT (PARAMO, 1963 p. 231). Aliás, o NT conta com amplo uso de salmos régios, aplicados a Cristo, como sendo: Filho Amado, Filho Do Homem, Filho de Deus, Messias etc. Por exemplo, no ingresso a Jerusalém, em Lc 19,38, citando o Sl 118,26, Cristo é acolhido como Rei da Glória, (MONTI, 2018, p. 316); no batismo, onde Lc 3,22 cita o Sl 2,7, Cristo recebe o título de filho amado. Aliás, o NT indica ser o próprio Cristo, em seu corpo, o Templo, conforme lemos em Jo 2,13-22, citando o Sl 69,10, ao falar do zelo pela casa do Senhor.
O Sl 24 faz parte da antiga tradição litúrgica de Israel, com uma fé já monoteísta, que se reunia aos sábados no Templo para celebrar a sua piedade toda voltada para a manifestação ou epifania de Deus no Templo no Jerusalém, com toda a sua profissão de fé no Deus Criador e Senhor de tudo, vencedor de muitas batalhas e guerras. Era exatamente ali que o povo de Israel não tinha dúvida de entoar este majestoso hino a YHWH, ao aproximar-se dizendo: “Elevai a porta, alargai os portões [...]”, expressando realmente “[...]a fé no Deus que foi, que é e que virá” (WEISER, 1994, p. 170).
Enfim, a beleza litúrgica do Sl 24 sempre foi levada em consideração na tradição da Igreja que, desde seus primórdios, sempre o usou em suas celebrações como se fosse uma oração de grande valor e os Padres da Igreja o aplicaram à ascensão ou à ressurreição de Cristo. Além disso, este salmo esteve presente em muitos debates teológicos ao longo dos séculos de história do cristianismo (RAVASI, 1997, p. 449). Assim como este salmo conduziu os filhos de Israel para a liturgia da porta, agora ele conduz os filhos da Igreja para a mesma liturgia, sendo que porta ou portão quer sempre evocar o lugar da epifania de Deus, como temos em Jo 10, Cristo a porta das ovelhas, ou na inteira Sagrada Escritura que fala da porta da esperança (Os 2, 17) e da porta da justiça (Sl 118, 19), sendo sempre possível passar por ela (RAVASI, 1997, p. 461).










