Resumo: Descrevem-se aqui as teorias tradicionais de verdade, desde aquela por correspondência até a por consenso. O construtivismo é então apresentado como alternativa para as ciências humanas, que apresentam um caráter emancipatório, e isto entra na composição de seu conceito de verdade. No caso da religião, a verdade é mais experiencial, mas a teologia precisa seguir os critérios de verdade das demais ciências. Assim, a crítica dos neo-ateus não se sustenta, pois abordam a religião só em seu conteúdo cognitivo. Eles têm sua razão, no entanto, dada a propensão humana ao engano e ao autoengano (ilusão), os quais, no entanto, se referem a todas as esferas de conhecimento. A teologia também tem de se questionar sobre que tipo de evidências empíricas dispõe para embasar suas afirmações. A pluralidade religiosa (e, portanto, de reivindicações de verdade) surge como problema, mas o entendimento das raízes comuns da religião, fornecido pelas ciências evolutivas, fornece uma base importante para se lidar com o problema. Em resumo, o que se apresenta aqui é um esboço de defesa do realismo em teologia.
Palavras-chave:VerdadeVerdade,Ciências naturaisCiências naturais,Ciências HumanasCiências Humanas,ReligiãoReligião,TeologiaTeologia.
Abstract: Traditional theories of truth are here presented, from the correspondence one to that of consensus. Constructivism is shown as an alternative to the social sciences and humanities, which display emancipatory traits, and this is taken into account in their concept of truth. Regarding religion, truth is more of an experiential type, but theology must follow the criteria of truth common to other sciences. Therefore, criticisms from new atheists do not hold, since they think that religion has only a cognitive science. However, they are right in pointing out human propensity to deception and self-deception (delusion), albeit these are common to all fields of knowledge. Theology has also to question itself about what kind of empirical evidences it has to ground its assertions. Religious pluralism (and therefore different truth claims) is a problem, but understanding the common roots of religion as explained by evolutionary theories gives us a common basis to cope with the problem. In short, what is proposed here is an outline of a sound defense of realism in Theology.
Keywords: Truth, Natural Sciences, Human Sciences, Religion, Theology.
DEBATES E COMUNICAÇÕES
NOTAS SOBRE O CONCEITO DE VERDADE: pistas para a teologia
Recepção: 04 Janeiro 2020
Aprovação: 10 Outubro 2020
O que se pretende oferecer a seguir, é um panorama sintético da noção de verdade que possa servir de subsídio para o estudo da ciência da religião e da teologia. Utilizamos, para tanto, elementos advindos da filosofia da ciência, que refletem a tarefa científica nas ciências naturais, mas também são de interesse para as ciências humanas. Apresentamos aqui pistas de como a noção de verdade é relevante para a religião (e não só a Cristã), e os desafios que a teologia enfrenta para sustentar algum tipo de verdade, como por exemplo, a pluralidade das religiões. Subentende-se uma defesa modesta do realismo em teologia.
Falar sobre a verdade é uma tarefa assustadora, seja porque muito já foi escrito (e disputado) em torno da verdade, ou porque vivemos em uma época em que há sérias dúvidas de que os seres humanos possam alcançar a verdade.
Começarei por recordar os entendimentos tradicionais da verdade, originários de filósofos, e atualmente, praticamente de senso comum. São eles: teorias da verdade1 por correspondência, por coerência, pragmática, por consenso e construtivista. Nenhuma é excluída pelas outras. São como camadas de cebola, e a teoria de correspondência da verdade está no centro. Este é o modo mais antigo e padrão – a indução newtoniana e o positivismo dependiam muito dele, apesar da aversão destes ao realismo2 ingênuo. Quando os cientistas estão em uma atitude de defesa, respondendo a ataques de fora da comunidade científica, geralmente sustentam que a ciência transmite a verdade, pois suas afirmações são confirmadas ou refutadas por dados empíricos.
As visões empiristas, no entanto, foram sendo desafiadas por jovens filósofos especializados, pelo menos a partir dos anos cinquenta do século passado, quando se defendeu que a teoria, e não os dados empíricos, seria o foco da excelência científica. Nesse caso, visões coerentistas da verdade ganharam maior destaque. A consiliência das induções e a consistência teórica entram, então, em nossas considerações. É neste nível que explicações científicas apropriadas são desenvolvidas (tradicionalmente, explicar um fenômeno é remetê-lo a uma lei mais geral). Como há espaço para interpretação (a famosa expressão de que as teorias são subdeterminadas pelos dados), no entanto, outras considerações de ordem mais prática devem ser trazidas à baila.
Abordagens pragmáticas vêm para ajudar: dito de maneira algo simplista, é verdade se funciona. Isso pode ajudar no campo da ciência (por exemplo, as propriedades de uma partícula são confirmadas pelo seu uso bem-sucedido em outros experimentos) ou, no sentido de aplicação tecnológica, que é o que o público em geral mais aprecia. Novamente, é necessário algum grau de decisão humana para avaliar o grau de veracidade de uma proposição.
Visões de consenso da verdade estão sendo empregadas cada vez mais, especialmente quando a ciência Big está envolvida. Por exemplo, para verificar se o Bóson de Higgs (partícula fundamental que é mãe de todas as outras) foi realmente produzido no local de colisões de partículas, houve a necessidade de se usar graus sigma de confiança, e seu emprego passou por um processo de consenso.3 Como costumava dizer o físico John Ziman (1996), a ciência está no seu melhor quando um consenso é alcançado por indivíduos competentes. Ademais, a verdade torna-se mais próxima quando alcançamos um conhecimento que é considerado confiável (ZIMAN, 1996).
Desnecessário dizer que todas essas quatro visões estão ligadas ao que consideramos uma boa explicação, algo que está na própria base da ciência. No que diz respeito a uma visão construtivista da verdade, há vários entendimentos do termo construtivismo4 na Filosofia da Ciência. Em sua forma mais radical, defende que representações da realidade física e biológica, incluindo raça, sexualidade e gênero, são socialmente construídas. No caso das ciências naturais, esse gênero de construtivismo, que lança uma suspeita radical sobre a noção de verdade, não têm encontrado muita guarida.5
Quando nos voltamos para as ciências humanas, tudo isso permanece, mas muitas nuances são adicionadas. Para uma parcela expressiva de pesquisadores, por exemplo, especialmente por influência de autores europeus pós-estruturalistas, a démarche científica tem papel emancipatório. Sua verdade é condicionada pelas críticas apropriadas às condições sociais atuais e pela utilidade de seu conteúdo na promoção de uma agenda política. Algum consenso, quando surge, mimetiza também o da atividade política. Por outro lado, no caso das ciências jurídicas, a verdade deve ser de certa forma declarada. Por exemplo, em um determinado momento, o juiz deve declarar se o réu é culpado ou inocente. Certamente é uma decisão bastante razoável, útil para a sociedade, sentir que a justiça é feita, mas essa verdade está longe de ser absoluta.
Adicionalmente, a verdade deve estar relacionada à valores e virtudes. Além de virtudes epistêmicas (ver CRUZ, 2018) sabemos que alguém transmite a verdade quando sentimos sua confiabilidade, lealdade, honestidade, integridade, etc. Há aqui um nexo com o caso da religião, como veremos a seguir. De qualquer forma, se existe o interesse de promover o diálogo entre as ciências naturais e humanas, as primeiras não devem se apegar estritamente à visão de correspondência da verdade. As mesmas não devem ser muito céticas sobre o conteúdo das ciências humanas, apesar de que muitas afirmações de dúbio valor podem ser encontradas na literatura.
Segundo, levando em conta esses níveis de verdade, devemos concluir que toda ciência é humana, isto é, feita por seres humanos para fins humanos. Existem limites embutidos para os humanos descreverem adequadamente o que é a realidade (lembre-se de outro ditado, o mapa não é o território), como Marcelo Gleiser discute em seu livro, A Ilha do Conhecimento (GLEISER, 2014). Esses limites têm duas consequências: a) os campos do conhecimento nem sempre são compatíveis, e uma tensão constante entre eles deve ser esperada; b) o conhecimento prático, cheio de atalhos e dispositivos heurísticos, é sempre necessário. Esse conhecimento, quer se chame de sabedoria ou não, é crucial para nossas ações e pensamentos cotidianos.
Portanto, nosso conceito de conhecimento deve ser ampliado – o conhecimento não é apenas aquele que é determinado pelas ciências, mas também se refere a outras maneiras de apreender a realidade – e, portanto, de transmitir alguma verdade, como estética, religião, humanidades, experiências de vida, reflexão filosófica e assim por diante.
No entanto, é hora de uma advertência, qual seja, os seres humanos são propensos ao engano e ao autoengano. Por exemplo, um cientista, trabalhando isoladamente, dificilmente consegue alcançar resultados confiáveis. A humanidade em geral, e a comunidade científica em particular, desenvolveram inúmeros freios e contrapesos para evitar enganos, tornando essencial que a aquisição de conhecimento seja feita em uma comunidade de pessoas competentes, com pontos de vista diferentes. Pelo que se vê, o construtivismo não está tão longe assim do horizonte, pois essas pessoas competentes estão ligadas a interesses de ordem ideológica.
É fácil ver, como apontou Marcelo Gleiser, que ainda vivemos na caverna de Platão, por mais rico que seja o nosso conhecimento (GLEISER, 2013). No entanto, não há razão para adotar formas usuais de se sair dessa situação, como negação, desespero ou resignação. De fato, principalmente por tentativa e erro, a humanidade consegue lidar com essa aflição. A religião está entre uma das tentativas bem-sucedidas, e agora devemos discorrer sobre ela.
Antes de tudo, apesar das afirmações em contrário de alguns neo-ateus, a religião tem mais a ver com a experiência do que com conhecimento ou crença. Nesse sentido, difere da teologia, que é, à sua maneira, conhecimento acadêmico. A maneira mais louvável de propagar a religião é testemunhar, ou seja, compartilhar com outras pessoas a experiência de plenitude permitida pelas práticas religiosas. É dessa maneira que podemos entender as palavras de Jesus, que ele é “o caminho, a verdade e a vida” (João 14, 6).6 Isso pode parecer pretensioso para quem não é cristão. No entanto, esse preceito é universalmente válido: se se busca a plenitude da vida, deve-se seguir alguém que lance luz sobre as dúvidas que temos, que tenha palavras de verdade que nos libertem de nossas amarras e, finalmente, mostre o melhor caminho a ser seguido. A propósito, algo semelhante acontece no relacionamento entre orientadores e orientandos no meio acadêmico!
É esse lado da experiência que os que criticam, recentes, da religião não parecem valorizar. Deixe-me citar algo que é facilmente encontrado em blogs que supostamente defendem a ciência contra a religião:
Vou tentar explicar o quanto as religiões fazem sentido: A religião é uma das maiores razões do mundo em que as pessoas ainda estejam atrasadas, acreditando em algo cegamente, enquanto os mais conscientes devem ter pelo menos uma vez lhes dito para fazer o contrário ou questionar tudo sobre religião. Em vez de usar a lógica e a ciência, elas fazem as pessoas inconstantes acreditarem em algo estúpido. Apenas alguém verdadeiramente cego, sem cérebro, acreditaria nessas coisas (KHECHMOUNE, 2013).7
Podemos ver que esse tipo de afirmação desrespeita a experiência religiosa das pessoas, e essa é uma das razões pelas quais os debates na blogosfera e nas redes sociais são tão acirrados.
Por outro lado, as pessoas religiosas devem ser responsáveis pelo que acreditam. Por melhor que seja a experiência, ainda se corre o perigo de se basear em imagens ilusórias. Em outras palavras, a religião deve ser confiável não apenas por promover boas ações, mas também porque tem algo a ver com a verdade.
Com isso, vamos agora passar da experiência para a crença. Desnecessário dizer que a crença é algo característico do ser humano, ligado à impossibilidade de se dispor de todos os dados relevantes para a ação (BROCKMAN, 2008). É assim que a fé (atribuída erroneamente apenas à religião) deve ser entendida: fé é a convicção necessária para a ação, na ausência de evidências suficientes. É assim que entendo o que São Paulo disse há dois mil anos: “Fé [...] é a prova de realidades que não se vêem” (Hb 11: 1).8 Caso contrário, a ciência não progrediria mais, pois sempre depende de lacunas em nosso conhecimento. É assim também que mantemos hipóteses ainda em processo de confirmação.
Mas, por que alguém deveria confiar na fé religiosa? Qual é a diferença entre fé cega e uma fé confiável? É aí que entra a teologia, em diálogo com outras disciplinas. A teologia tem a tarefa de colocar em perspectiva as crenças de senso comum, rejeitando-as, ou melhor, explicando-as. Como algo que pretende ser uma ciência, em que tipos de evidência empírica ela se baseia?
Em poucas palavras, a teologia primeiro baseia-se nos estudos bíblicos, na interpretação do que um texto deveria ser para seus autores. Nessa linha, a exegese é a mais próxima possível de uma ciência empírica. Segundo, depende da história da igreja, suas controvérsias e os textos que foram produzidos. Novamente, asserções teológicas devem dialogar com as evidências empíricas trazidas por este estudo da história. Terceiro, deve prestar atenção à experiência religiosa atual, o senso comum desenvolvido pelos fiéis (ou não muito). Em outras palavras, a teologia não é só interpretativa, também funciona por indução, verificações empíricas e teorização.
Quando os cientistas confrontam afirmações teológicas, devem considerar a teologia naquilo que tem de melhor em termos acadêmicos, e não o lado menos favorável dela. No entanto, a teologia, mesmo no seu melhor, ainda pode ser vista como uma afirmação racional de uma tradição religiosa específica. Se as teologias de diferentes tradições parecem ser incompatíveis, como a teologia ocidental cristã deve ser vista enquanto diz fazer afirmações verdadeiras sobre o mundo? Essa é uma dúvida a ser levada muito a sério, mas não como um impedimento à busca de um terreno comum com a ciência.
De acordo com recentes estudos evolutivos da religião, esse aspecto da experiência humana tem muita probabilidade de aparecer ao longo da história, mesmo que em diferentes trajes culturais. É possível procurar pontos em comum em vez de diferenças entre tradições religiosas. A infinidade de mitos, símbolos e rituais presentes e passados segue alguns padrões, o que o estudioso grego Walter Burkert chamou de trilhas da biologia nas religiões primitivas (BURKERT, 2001). No entanto, as mesmas ciências evolutivas nos levam a reconhecer que comportamento e crenças são igualmente explicados, quer os tomemos como projeções da mente humana (as ilusões de Freud e Richard Dawkins) ou como se referindo a algo lá fora. A teologia positiva, mesmo falando de modo verdadeiro ao dar conta de muitos aspectos da experiência humana, ainda precisa de considerações de cunho mais metafísico – a tarefa da teologia filosófica. Como também é verdade para as ciências naturais, não devemos esperar provas dela. No entanto, é possível se defender a plausibilidade de referentes extranaturais, algo que retrate o universo como um todo e sua origem temporal e espacial.
Nosso argumento até aqui sustentou que a verdade deve ser disposta em uma tela mais ampla, abrangendo mais do que o entendimento comum de proposições sustentadas, ou não, em face de evidências empíricas. A necessidade de negociação e tolerância entre os parceiros, que nem sempre pensam da mesma maneira, é de suma importância. No entanto, os seres humanos buscam a verdade por natureza. No fundo, não ficamos satisfeitos com alguma explicação que pode ou não ser verdadeira. A pergunta cética de Pilatos, o que é verdade?, não convence alguém realmente preocupado com o destino da humanidade. A ciência compartilha esse desejo de verdade e, embora seja uma investigação interminável, não se desespera e não se detém diante das verdades provisórias e elusivas. Esse também é o caso da teologia. A religião também não se compromete com verdades baratas, mesmo que qualquer descrição de um estado de coisas seja simbólica e provisória. A noção de verdade por correspondência permanece com um rio subterrâneo percorrendo todos esses movimentos. Isso significa que se assume que o conhecimento se refere a alguma coisa externa ao nosso pensar, agir e falar e que, apesar de todas as dificuldades de passado, não se pode esmorecer diante da tarefa de estabelecer critérios para tanto. O que se propõe aqui, portanto, é uma adesão ao realismo em termos epistemológicos.
Reconhecemos que as disputas entre alegações de verdade sobre questões de preocupação última não serão resolvidas com facilidade. Podemos apenas esperar que possa haver algum tipo de acordo final, e agir de acordo com essa esperança. É por isso mesmo que a fé e a esperança são virtudes de valor universal.