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A MÍSTICA DOS ESTUDOS EM SIMONE WEIL
Marcel Delfino Carvalho de SOUZA; Ceci Maria Costa Baptista MARIANI
Marcel Delfino Carvalho de SOUZA; Ceci Maria Costa Baptista MARIANI
A MÍSTICA DOS ESTUDOS EM SIMONE WEIL
The Mystic of Studies in Simone Weil
La Mística de los Estudios en Simone Weil
Interações, vol. 16, núm. 3, 2021
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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Resumo: Simone Weil (1909-1943) deixou preciosas contribuições para se pensar o desenvolvimento de uma civilização capaz de superar a opressão social e o desenraizamento. Entre elas, um profícuo método de se olhar e agir no mundo. A partir dele, desenvolvemos, neste artigo, algumas reflexões a respeito dos estudos na formação dessa civilização. Partimos, inicialmente, de três comentadores, Alfredo Bosi (1988), Ecléa Bosi (2003) e Maria Clara Bingemer (2011), apresentando as compreensões que nos foram fundamentais para pensar a atividade de estudar em Simone Weil: a atenção, a ação não ativa e a leitura. Com isso, introduzimos o estudo como atividade histórica, inserida na corrente da tradição. Com Santos (2015) e Queiroz (2017; 2018), por conseguinte, desdobramos essa compreensão com o conceito de tradução e, assim, pensamos junto a esses autores nas possibilidades enraizadoras da atividade de estudar, em diálogo com Puente (2013), Alfredo Bosi (2009) e, principalmente, Bingemer (2011), que nos traz o conceito de metáfora real. Por fim, retomamos as reflexões de Simone Weil acerca da inteligência, a fim de pensar a mística dessa atividade de estudar. Seria ela, enquanto mística, além-intelectual?

Palavras-chave:Simone WeilSimone Weil,EstudosEstudos,MísticaMística,AtençãoAtenção.

Abstract: Simone Weil (1909-1943) left us many academic and non-academic contributions to think about the development of a civilization capable of overcome social oppression and uprooting. Among them, a proficient method to look and act into the world. Based on uprooting this method, we developed, in this article, some reflections on studies in the formation of this civilization. We started, initially, with three commentators, Alfredo Bosi (1988), Ecléa Bosi (2003), and Maria Clara Bingemer (2011), presenting some meanings that were fundamental to think about the study activity in Simone Weil: attention, non-active act, and reading. With these conceptions, we introduced study as a historical act or activity, inserted in the current of tradition. With Santos (2015) and Queiroz (2017; 2018), we unfold this idea with the concept of tradition and, consequently, we thought with these authors in the possibilities in rooting of the study activity, in dialogue with Puente (2013), Alfredo Bosi (2009) and, mainly, Bingemer (2011) with the concept of real metaphor. Ultimately, we return to Simone Weil’s reflections on intelligence, to think about the mystique of this activity of studying. Would it be as a mystic beyond-intellectual?

Keywords: Simone Weil, Study, Mystic, Attention.

Resumen: Simone Weil (1909-1943) dejó muchas contribuciones académicas y no académicas para pensar en el desarrollo de una civilización capaz de superar la opresión social y el desarraigo. Entre ellos, un método fructífero de mirar y actuar en el mundo. En base a esto, desarrollamos, en este artículo, algunas reflexiones sobre los estudios en la formación de esta civilización. Partimos de tres comentaristas, Alfredo Bosi (1988), Ecléa Bosi (2003) y Maria Clara Bingemer (2011), presentando los entendimientos que fueron fundamentales para pensar la actividad de estudiar en Simone Weil: atención, acción no activo y lector. Con eso, introdujimos el estudio como actividad histórica, insertada en la corriente de la tradición. Con Santos (2015) y Queiroz (2017; 2018), por tanto, desplegamos este entendimiento con el concepto de traducción y, así, pensamos con estos autores sobre las posibilidades de enraizamiento de la actividad de estudiar, en diálogo con Puente (2013), Alfredo Bosi (2009) y, principalmente, Bingemer (2011) con el concepto de metáfora real. Finalmente, volvemos a las reflexiones de Simone Weil sobre la inteligencia, para reflexionar sobre la mística de esta actividad de estudiar. ¿Estaba él, como místico, más allá de lo intelectual?

Palabras clave: Simone Weil, Estudios, Místico, Atención.

Carátula del artículo

ARTIGOS

A MÍSTICA DOS ESTUDOS EM SIMONE WEIL

The Mystic of Studies in Simone Weil

La Mística de los Estudios en Simone Weil

Marcel Delfino Carvalho de SOUZA
Graduando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas., Brasil
Ceci Maria Costa Baptista MARIANI
Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., Brasil
Interações, vol. 16, núm. 3, 2021
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepção: 07 Agosto 2020

Aprovação: 24 Novembro 2020

1 INTRODUÇÃO

Simone Weil (1909-1943), ainda que não tão reconhecida e lembrada como outras filósofas e filósofos, hoje é recebida por alguns como uma importante pensadora do século XX. É conhecida, de maneira geral, por seus leitores e comentadores como a filósofa da atenção, e uma maneira de falar sobre seus escritos é dizer que, neles, ela deixou um profícuo método de olhar e agir no mundo, um método de receber e transmitir.

É possível compreendê-lo, por sua vez, como um método social de transmissão e recepção; pela concepção de tradição, corrente em que são transmitidas e recebidas as raízes (BINGEMER, 2011); mas também como um método espiritual, “[...] de exercer a inteligência, que consiste em olhar [...]” (WEIL, 1993, p. 131), e “[...] suspender o pensamento, deixá-lo vazio e penetrável ao objeto, […] pronto para receber na sua verdade nua o objeto que vai penetrá-lo.” (WEIL, [1942]/(2019), p. 77).[1]

Transmissão e recepção são operações muito importantes para Simone Weil na produção de suas ideias, no seu trabalho de atenção. Muito rigorosa que era com esse trabalho, ela escreve a uma aluna:

Gostaria também de ver você se interessando pelo seu trabalho de aula. Aí você pode aprender muito mais do que pensa. Primeiro, a trabalhar, enquanto não se tem a capacidade para um trabalho contínuo, a gente não presta pra nada em nenhum setor. Depois, para formar o seu espírito (WEIL, [1934]/(1996a), p. 83).

Simone Weil acreditava em um trabalho necessário da inteligência e do espírito. Nesse sentido, a menção ao trabalho de aula recorda o que ela escreve sobre a necessidade de se erigir uma civilização calcada em uma espiritualidade do trabalho (WEIL, [1943]/(2002)). Para Simone Weil estudar também consistiria em uma forma de trabalho. Esse trabalho de aula seria, ao mesmo tempo, um esforço de atenção formador da inteligência, do espírito e da civilização.

Mas o que seria esse trabalho de atenção especificamente nos estudos? Nessa dualidade de conhecer e formar o espírito, haveria uma experiência além-intelectual, mística, de estudar? Procuramos aqui, nesse sentido, responder a essas perguntas e sistematizar alguns achados de uma investigação que conduzimos, em um ano de iniciação científica,[2] sobre a atividade de estudar, a partir de determinados textos de, e sobre, Simone Weil.

Nossos achados e reflexões baseiam-se, principalmente, no texto da autora intitulado Reflexões sobre o bom uso dos estudos em vista do amor a Deus,[3] no qual ela se detém em pensar – mesmo que estritamente – em uma concepção cristã dos estudos. Abriremos nossas reflexões a partir de três comentadores: Alfredo Bosi (1988), com Fenomenologia do olhar; Ecléa Bosi (2003), com A atenção em Simone Weil; e Maria Clara Bingemer (2011), com Os seis cisnes e a menina: algumas reflexões sobre a salvação segundo Simone Weil. Dessa forma, faremos uma apresentação das compreensões que nos foram fundamentais para pensar a atividade de estudar em Simone Weil: a atenção, a ação não ativa e a leitura. Essas compreensões nos introduzirão, por conseguinte, a perscrutar o estudo como uma atividade histórica, inserida na corrente da tradição, tema que será desdobrado sobretudo com base em Santos (2015) e Queiroz (2017), a partir do conceito de tradução, mas também em diálogo com Puente (2013), Alfredo Bosi (2009) e, principalmente, Bingemer (2011), que nos traz o conceito de metáfora real. Por fim, retomaremos as reflexões de Simone Weil acerca da inteligência e a graça em La pesanteur et la grâce (A gravidade e a graça, WEIL, 1993), a fim de esclarecer o caráter místico da atividade de estudar e se podemos assumi-la ou não como além-intelectual.

2 AS DIMENSÕES DA ATENÇÃO

Alfredo Bosi (1988) apresenta-nos Simone Weil como uma pensadora que se insere na história do olhar fenomenológico com uma importante diferença. Apresentando-a logo em seguida do filósofo fenomenológico Merleau-Ponty (1908-1961), o autor indica que ela, por mais que conceba uma totalidade originária entre corpo, alma e mundo assim como o primeiro, parte de um dualismo clássico e cartesiano, que é exatamente o ponto da crítica de Merleau-Ponty e outros fenomenólogos. Simone Weil é uma cartesiana que admite uma instância própria do filosofar, a mente pura do cogito, mas que não permanece nessa forma de racionalismo clássico. Diferentemente do pensamento por divisões, ela parte do dualismo, mas segue em busca de uma totalidade.

O caráter político da filosofia de Simone Weil é muito valorizado por Alfredo Bosi e Ecléa Bosi. É sob esse viés que o texto mencionado (BOSI, 1988) esclarece essa diferença do pensamento de Simone Weil em relação à tradição fenomenológica do olhar. A unidade entre corpo, alma e mundo para Merleau-Ponty será, em Simone Weil, uma reconquista política, que depende fundamentalmente do exercício livre da inteligência: a atenção.

Em Alfredo Bosi (1988), vemos que a atenção em Simone Weil consiste em um pensamento em situação que é tanto uma atividade superior da mente quanto um princípio estratégico contra a máquina de opressão social. A doutrina da atenção de Simone Weil aparece como uma forma de lutar contra essa opressão social. O autor delineia o discurso da atenção de Simone Weil em quatro dimensões: trabalho, perseverança, contradição e despojamento.[4] Ele apresenta a atenção em Simone Weil com essas dimensões, sob o eixo de duas categorias principais: o olhar e a atenção. Ecléa Bosi (2003), por sua vez, retomará essas dimensões da atenção, e partirá a introduzir uma outra categoria – a de sacrifício.

Primeiramente, dessas dimensões delineadas por Alfredo Bosi, encontramos, na dimensão do trabalho, que a atenção tem um caráter duplo: ela é tanto um trabalho de percepção quanto um trabalho histórico-social. O primeiro está associado diretamente à atenção, pois é um exercício do espírito de perceber aquilo com o que trabalha no trato com a matéria e suas irregularidades; o segundo, por seu turno, justifica-se pelo fato de que estar atento ao tratamento da matéria é também conseguir ver por dentro da vida cotidiana, ver a relação entre os meios e fins que ordenam esse trato, esse trabalho. Daí a importância que Simone Weil dava a se ensinar, nas fábricas, geometria – para se conhecer por dentro as máquinas –, e economia política – a fim de se conhecer por dentro a máquina social. Consciência e democracia exigem-se mutuamente num trabalho intelectual, espiritual e político de atenção. Ecléa Bosi ainda complementa com uma colocação que nos parece fundamental para pensar a dimensão do trabalho na atividade de estudar: Simone Weil “[...] nota que os teóricos da revolução nunca trabalharam numa fábrica.” (BOSI, 2003, p. 15).

Além da dimensão do trabalho, há a da perseverança, que Alfredo e Ecléa Bosi consideram como o esforço em chegar ao extremo do ver, por um olhar que se demora no tempo do objeto. Trata-se de um olhar capaz de vencer a angústia da demora, um olhar paciente, capaz de “[...] deter-se na contemplação desinteressada do objeto.” (BOSI, 2003, p. 15). Essa perseverança consiste num esforço não para ver o objeto, e sim para deixar que o objeto nos faça vê-lo, não se detendo a uma representação fixa, a uma identidade nem a uma classificação que fazemos dele; trata-se de se esforçar para colher diferenças e transformações ao longo de sua contemplação.

Alfredo Bosi (1988) escreve também que a atenção, além de um esforço específico, é uma decisão de ver e saber e, ao mesmo tempo, de preterir recompensas ilusórias. Fixar uma representação do objeto e, assim, acreditar já tê-lo visto é nada menos que uma fuga do exercício necessário para ver de fato – a atenção. Já ter visto é uma classificação do ato de ver, uma limitação a ele e, assim, uma recompensa ilusória. Sobre isso, Ecléa Bosi (2003) afirma que a atenção é um olhar que se opõe a um desejo classificador, e Alfredo Bosi (1988) escreve que a atenção difere de um olhar que não quer nem saber quando tudo sacrifica para ver e saber. Essa escolha, movimento de não classificar e de decidir ver, consiste na dimensão do despojamento.

Por fim, cabe destacar a dimensão da contradição. Esta, mais do que as outras, é fundamental para Simone Weil, pois remete ao limite da aparência, ao não representável, a algo que a sincronia dos elementos da identidade, da representação fixa não contempla. Capaz de colher as transformações da matéria no tempo, a atenção consiste em um olhar que possa diacronizar a aparência sincrônica e, assim, perceber o que se apresenta ao olhar, no desenrolar do tempo, para além do que já é, para além do momento em que se olha para o objeto. Perceber o tempo do objeto significa não o restringir ao momento em que a ele se olha. A contradição é uma tensão irreconciliável pela aparência: ela não cabe no momento imediato do observador e exige essa percepção do tempo do objeto, das transformações que ainda estão latentes na matéria do objeto, as tensões da produção da sua aparência.

Contudo, essas dimensões delineadas por Alfredo Bosi constatam, por um lado, uma função política desse olhar, mas, por outro, pouco evidenciam sua dimensão mística. Por enquanto, a atenção na atividade de estudar nos mostra estar delineada por essas dimensões da atenção, que, em linhas gerais, dependem de um pensamento em situação, fundamentalmente político. Assim, pode-se dizer que Ecléa Bosi (2003) é quem abre, na nossa investigação, o horizonte místico da relação entre atenção e atividade de estudar em Simone Weil.

3 AÇÃO NÃO ATIVA: SACRIFÍCIO E DESAPEGO

É com a apresentação da categoria de sacrifício que Ecléa Bosi (2003) realiza essa abertura, sobretudo com o conceito de ação não atuante ou ação não ativa. Foi dito que a atenção é o olhar que tudo sacrifica para ver e saber. Tudo, nesse caso, inclui o próprio sujeito, o Eu que considera já ter visto. Esse Eu é dotado de uma eficiência quando já viu. Ele já fez, já agiu, já produziu e, pode-se dizer, criou resultados. Ele não permanece a olhar, pois já viu; seu interesse não está na contemplação, mas no resultado dela. E a atenção, como escreve a autora, é um olhar desinteressado. Esse interesse, ao qual a atenção não se apega, corresponde à necessidade de se obter o resultado – não é um interesse apenas por agir, mas por agir em prol de uma meta. Ecléa Bosi cita o Bhagavad Gita: “Age, mas sem te agarrares aos resultados, age como se fosse um sacrifício.” (BHAGAVAD GITA apud BOSI, 2003, p. 16). Esse seria essencialmente um ato de atenção; trata-se da ação não ativa.

Como esclareceu Martins (2011), a ideia de ação não ativa,[5] também decorre de uma apropriação de Simone Weil da filosofia kantiana, da ideia de finalidade sem fim (KANT, 2016). Kant, ao deslocar o centro da existência da beleza dos objetos para os sujeitos, diferencia o belo do agradável. Uma das explicações dessa diferença é pela distinção entre finalidade e fim. O agradável, por um lado, é a satisfação de uma necessidade, um interesse, um fim. O belo, por outro, é a satisfação desprovida desse interesse, “[...] um prazer desinteressado.” (SUASSUNA, 2018, p. 71). Enquanto a satisfação do agradável se liga à utilidade do objeto e suas propriedades, a do belo liga-se ao sentimento de prazer que tem o sujeito, sem tomar o objeto e suas propriedades como fim, mas como finalidade desinteressada, finalidade sem fim.

A ação não ativa para Simone Weil possui essa finalidade sem fim, ela é, como escreve Ecléa Bosi (2003), desapegada dos resultados da ação, ou, em outras palavras, é uma ação que renuncia uma utilidade aparentemente eficiente. Simone Weil, assim, transpõe a satisfação do belo para a motivação da ação não ativa. Enquanto a ação ativa, aparentemente eficiente, seria motivada pela sua utilidade, a não ativa seria motivada pela própria sensação de agir. Nesse sentido, o sacrifício dos resultados da ação, o desapego da aparência de uma eficiência, do prestígio do ato são, em última instância, a renúncia de ser um Eu criador, para se tornar um Eu criatura. A ação não ativa consiste numa ação humilde e aparentemente ordinária:

Gosto de repetir aos meus alunos que a permanência de Simone Weil na fábrica não foi eficaz: nada descobriu que melhorasse a linha de montagem, não renovou a teoria marxista, nem mudou a história das classes trabalhadoras. Mas criou um extraordinário acontecimento ético. (BOSI, 2003, p. 18).

Talvez esse seja um dos motivos das fortes impressões deixadas pela filósofa: ela não tinha interesse em ser reconhecida, não almejava reputação, não desejava prestígio social. Sobre isso, Ecléa Bosi escreve: “[...] aos intelectuais falta coragem para afrontar o prestígio e dirigir o olhar para o que não atrai atenção social.” (BOSI, 2003, p. 17). Uma das fortes asserções de Simone Weil sobre os estudos é de que a substância da atenção seria a mesma da oração (WEIL, 2019). Nessa perspectiva, prestar atenção, esse trabalho de olhar, tem duas dimensões, tal como apontamos em Alfredo Bosi (1988), e olhar para o que não atrai atenção também seria um duplo trabalho – de percepção, espiritual, mas também histórico-social:

Não é apenas o amor a Deus que tem a atenção como substância. O amor ao próximo, que sabemos ser o mesmo amor, é feito da mesma substância. Os infelizes (malheureux)[6] não precisam de outra coisa neste mundo do que de seres humanos capazes de prestar atenção neles (WEIL, 2019, p. 80).

O sacrifício da ação não ativa nos estudos consiste num ato ético-político. O Eu, ao formar-se na cultura concebendo um mundo a partir do que já viu, como que ganha um “[...] ponto de vista.” (BOSI, 2003, p. 18). Aprende-se um mundo, uma totalidade pela educação na cultura, na escola, na universidade, no trabalho aprende-se a participar da cultura agindo, reconhecendo e sendo reconhecido pelos próprios atos. O Eu é constituído por interesses de seus atos e na satisfação desses interesses. A cultura, por sua vez, organiza-se em torno desses interesses, da mesma forma que os sujeitos agem em torno dessa necessidade social.[7] No entanto, existem sujeitos que são compelidos a sofrer brutalmente na execução desses interesses, massacrados pela necessidade, uma vez que, do ponto de vista da totalidade dominante, eles fazem parte da margem, da exceção, são apartados e tidos como fragmentos a serem sacrificados. Esses, enquanto exceção, não têm ponto de vista, diz Simone Weil. Assim, ela escreve que é preciso perder o ponto de vista (BOSI, 2003), sacrificar tudo para ver e saber, o que inclui sacrificar o próprio ponto de vista, o Eu. Esse sacrifício seria, essencialmente, um ato de esquecimento de si, assim como foi o ato criador de Brahma, referência para Simone Weil escrever sobre a ação não ativa.

Portanto, aprender a olhar para o que não concebemos implica desconhecer o mundo tal como o entendemos, suspender sua totalidade, desapegar-se das representações que aprendemos a fazer dele, essas que o organizam tal como o conhecemos. Isto é, sair da posição de criador para a de criatura, de fragmento, que desconhece sua totalidade – um movimento espiritual e político de ser capaz de prestar atenção no que não nos chama a atenção.

Segundo Simone Weil (2019), esse posicionamento, que podemos chamar de amor ao próximo – saber que os oprimidos (malheureux) existem e são seres humanos, criaturas semelhantes aos demais – depende de um movimento específico de esquecimento e lembrança: esquecimento de si, desapego da totalidade apreendida, para lembrar de uma outra totalidade ainda a ser construída. Ainda segundo Simone Weil (2019), acreditar que os valores espirituais sejam indestrutíveis à força brutal humana, como a violência da guerra, é uma forma de negar que as civilizações apagadas ao longo da história pela violência das armas tenham algum dia existido. “[...] Se elas tivessem permanecido, a história seguiria outro curso.” (BOSI, 1982, p. 62). Simone Weil mobiliza, por meio de sua filosofia da atenção, uma forma de esquecimento – o esquecimento de si – para mobilizar uma outra forma de lembrança – a lembrança do mundo que ainda não foi construído que ainda não concebemos – e, com esses, um movimento de transformação social. Trata-se de uma outra forma de ler a história: para usar as palavras de Ecléa Bosi (2003), a partir da razão dos vencidos.

4 LEITURA: A ESCUTA DE OUTRO MUNDO

O esquecimento de si não se trata de um abandono do Eu, “[...] mas de uma participação nas forças cósmicas que o transcendem [...]”, escreve Ecléa Bosi (BOSI, 2003, p. 16). Trata-se de uma forma de esquecimento e de lembrança não apenas histórico-social, mas também mística. Experiências semelhantes são a da leitura e a da escrita, que também consistem em um movimento de esquecimento e lembrança. Não é possível ler ou escrever recordando letra por letra. Nesses processos, de certa forma, é preciso esquecer as letras para poder ver as palavras e as frases (WEIL, 2019), o que não significa abandonar as letras, mas, sim, fazê-las participar das forças que as transcendem. Essa específica capacidade de leitura se deve, em alguma medida, ao fato de a atividade racional humana ser estruturada por uma narratividade imanente. Como escreve Bingemer (2011), para Simone Weil os humanos são dotados de uma razão natural,[8] que é essencialmente narrativa.

Partindo do texto de Weil escrito ainda com 16 anos no Liceu Henri IV, sobre o conto dos irmãos Grimm Os seis cisnes e a menina, Bingemer (2011) desenvolve a compreensão que tem a autora sobre a mitologia e a literatura, as quais dão forma à sua “[...] hermenêutica cultural.” (BINGEMER, 2011, p. 112). Esta, por sua vez, começa a ser formada já desde esse seu primeiro texto, e recebe evidente desenvolvimento nas produções sobre Ilíada e Antígona, publicadas próximo de sua morte. Na análise de Bingemer, podemos ver as formas de esquecimento e recordação que mencionamos anteriormente, mas agora no campo literário, na atividade de leitura.

Os mitos, contos e fábulas, como escreve Bingemer (2011), possuem uma dimensão “[...] iluminadora da memória” (BINGEMER, 2011, p. 103). Em partes, esse é um dos porquês de a leitura dos mitos – Bhagavad Gita, por exemplo – ter um lugar privilegiado nas leituras de Simone Weil. Segundo ela, nesses textos estão conservadas as tradições dos povos, e constituem, assim, tesouros de espiritualidade. Marianelli, a quem Bingemer (2011) retoma em seu texto, entende que eles são, na visão de Simone, lugares de relação; porque, neles, o ser humano se relaciona com o seu passado, na transmissão transgeracional entre sujeitos, mas, também, relaciona-se com uma origem transcendente. Assim como vimos ser duplo o trabalho do pensamento em situação para Alfredo Bosi (1988), aqui vemos uma dupla relação que se estabelece por meio dessa leitura: horizontal, enquanto social; vertical, enquanto espiritual e transcendente.

Esta última acontece numa abertura da razão à intuição, que depende fundamentalmente da atenção. A razão natural, essencialmente narrativa, encontra na narração do mito condições para enunciação de algo que vai além do exprimível, manifestando-se a intuição. É a atenção que, na leitura, é capaz de realizar a abertura de espaços de lampejo (espace d’un éclair) onde “[...] pode manifestar-se o Autor do ‘Verdadeiro Texto’, através de fulgurações, lampejo de luz sobrenatural.” (BINGEMER, 2011, p. 104). Na leitura, assim, criam-se esses espaços, onde há o encontro com “[...] uma forma de conhecimento das mais elevadas que o ser humano pode alcançar.” (BINGEMER, 2011, p. 108), forma essa que foi responsável por iluminar a trajetória humana, através dos milênios, nos mitos, decantados na corrente da tradição.

Isso acontece, sobretudo, porque, pela linguagem do mito, a parábola, pode-se ler o universo como um tecido simbólico. A abertura atenta do intelecto para a intuição acontece estritamente no nível narrativo e pela linguagem, em que se pode tomar tanto a realidade quanto a ficção como meio para exprimir o que se deseja. Trata-se, como explica Bingemer (2011), de uma maneira de ler os mitos no nível simbólico, no qual eles atuam como meio de expressão de verdades ocultas que atravessam gerações e se revivem no presente. Uma metaforização dos símbolos, por assim dizer. Dessa forma, como metáfora, o mito alude, pelo símbolo, a algo além do significado etimológico das palavras, pertencente às forças que o transcendem. Essa leitura metafórica revive a verdade das histórias, dá a elas realidade. Sem ela, a própria história de Cristo perderia sua realidade. É assim que Simone Weil vê Cristo como um símbolo supremo, que para ela pode ser lido até mesmo nas tragédias gregas, como bem assinala Bingemer (2011).

Aqui, não somente a razão natural deve ser entendida como elemento de um universalismo em Simone Weil, mas também as próprias sementes do Verbo: o “[...] papel de Cristo […] pode ser igualmente entendido como uma multiplicidade de figuras míticas que desempenham, como Ele, o papel de intermediários.” (BINGEMER, 2011, p. 107). Para Weil, ler o passado e suas histórias é uma questão de “[...] descobrir a metáfora real.” (BINGEMER, 2011, p. 107).

Esse conceito de metáfora real remete a uma metaforização fundamental para dar realidade à verdade oculta nos mitos. O sofrimento, a força que apaga civilizações na história, o prestígio, a mesquinhez e a coragem para enfrentá-los –, tudo isso está escrito nessas narrativas, e faz parte da gestação de uma transformação histórica, uma leitura capaz de reviver as verdades que elas evocam, transmitidas e recebidas ao longo do tempo.

É importante, contudo, diferenciar a forma de leitura que faz o texto participar nas forças que o transcendem daquela leitura que acredita já ter lido ao meramente falar as palavras que se encontram escritas. O encontro com a verdade oculta no texto depende de um olhar que toma a narrativa não como um objeto de consumo, como se fosse um passo do leitor em direção à verdade. O olhar atento diante dessas obras não dá passo algum, seu movimento não é positivo como uma opinião que afirma ou nega o objeto da obra; seu esforço é, antes, em contemplar esse objeto sem nada falar, criar o espaço onde quem dá o passo é o Outro e não ele, um movimento que não é positivo, mas negativo (WEIL, 1993). De acordo com Bingemer (2011), “[...] só se recebe o bem de fora, do outro [...]” (BINGEMER, 2011, p. 111), e não é o sujeito quem chega à Verdade, mas a Verdade chega ao sujeito.

Não preencher o espaço de entendimento com opiniões também é uma postura que, nos estudos, deve ser tomada. Simone Weil (2019) diz:

Todos os contrassensos nas versões, todos os absurdos na solução dos problemas de geometria, toda a falta de jeito do estilo e todos os defeitos no encadeamento das ideias nos deveres de francês, tudo isso vem do fato de que o pensamento precipitou-se rapidamente sobre alguma coisa, e tendo sido assim prematuramente preenchido, não estava mais disponível para a verdade. (WEIL, 2019, p. 77).

Os contrassensos, as contradições, no plano das opiniões, não nos permitem ver a verdade. Como foi dito por Alfredo Bosi (1988), a imagem imediata e fixa do que já foi visto ou lido não é capaz de contemplar a contradição. Diante dela, é preciso demorar o olhar, persistir na leitura, fazer aquela irresolúvel antinomia pertencer às forças que a transcendem, não resolvendo a contradição, mas criando uma “[...] harmonia impossível [..., uma] aliança misteriosa.” (BINGEMER, 2011, p. 105).

Sobre o plano das opiniões e as contradições, Puente (2013, p. 126) recorda a perspicaz análise psicológica de Simone Weil:

Dois indivíduos em polêmica acerca do certo e do errado em relação a determinado assunto, dificilmente poderão crer que suas respectivas opiniões, aparentemente tão diversas, na verdade estão cegamente submetidas à mesma opinião dominante da sociedade em que vivem. (PUENTE, 2013, p. 126).

As opiniões particulares, os pontos de vista, não compreendem a contradição na sua irrepresentabilidade, na sua tensão, pois, na busca de solucioná-la de alguma forma, preenchem o espaço, afirmando opiniões próprias ou negando as opiniões dos outros, por exemplo, num movimento positivo. E, para ver a opinião dominante da qual fala Puente (2013), é necessário ir além da afirmação e da negação; é preciso abrir espaço para enxergar as alianças misteriosas, um espaço negativo; é preciso demorar o olhar, complexificar a percepção e não reduzi-la a uma forma de representação fixa, pronta: “Em face da estrutura social o militante reconhece, com o passar dos anos, as tensões entre as classes e os grupos de poder que a constituem. O seu olhar perfura a opacidade do grande animal.” (BOSI, 1988, p. 86).

O mesmo olhar atento, na leitura, é capaz de perfurar o grande animal. Ainda sobre uma discussão entre dois sujeitos, Simone Weil, segundo Bingemer (2011), escreve: “Na terra todos conhecem sentimentos como ciúme, amor […] portanto, ocorrendo um litígio entre dois homens, se um reconhece que a ira do outro é semelhante à sua própria, a contenda acabaria. (WEIL apud BINGEMER, 2011, p. 101).

Pelo mito, é possível reconhecer sentimentos entre sujeitos, universalizar dores e alegrias individuais mediante uma referência comum, escreve Bingemer retomando Marianelli. Isso se deve, sobretudo, à ideia de Simone Weil de que a linguagem cria fraternidade entre os seres humanos, e que por ela não só compartilhamos pensamentos, mas também sentimentos (BINGEMER, 2011). As opiniões, formadas por interesses e prestígio social, não veem sua submissão a uma opinião dominante pois não enxergam esse universal.[9]

No horizonte das opiniões, perde-se a possibilidade desse reconhecimento. Perde-se a sociabilidade viabilizada pela linguagem, ainda mais pela linguagem dos mitos, e com ela se vai junto o contato com o passado que é transmitido de sujeito para sujeito. Essa perda horizontal do passado também acontece no nível vertical, com a perda do contato com uma origem humana comum, transcendente. Uma dupla perda, sob a qual se sustenta a perpetuação transgeracional da opressão e que poderíamos considerar como uma dupla perda de memória. Uma negação presente do esquecimento de si, que é ao mesmo tempo a negação da força brutal que já apagou civilizações, as quais poderiam, se houvessem sobrevivido, ter mudado o rumo da história.

A atividade de estudar, assim como esse duplo relacionamento com a história, tem, na leitura, pela mística de ver a significação transcendente, uma função política. Prestar atenção ao que não chama a atenção é um trabalho de perfurar o grande animal com um olhar metafórico. E deve-se entender esse perfurar como um movimento negativo de transformação histórica, principalmente. Porém, sabemos que, quando Simone Weil escreve que o amor ao outro contém a mesma substância que o amor a Deus, isso significa, sobretudo, não adotar uma interpretação providencial da história, como se houvesse uma “[...] intervenção pessoal de Deus em um universo para ajustar certos meios em vista de fins particulares.” (WEIL apud CHENAVIER, 2011, p. 112). Amar é uma prática histórica, que depende de um mesmo exercício humano no presente: prestar atenção. “Os estudantes que amam a Deus não deveriam jamais dizer: ‘Eu amo o francês’, ‘Eu amo grego’. Eles devem aprender a amar tudo isso.” (WEIL, 2019, p. 71). Estudar é também uma atividade histórica, que se insere na corrente da tradição. Nesta, a intervenção mística pelo trabalho humano de ler ou olhar tem na atividade de estudar uma valiosíssima oportunidade.

Para compreender melhor essas perdas de memória e os desafios que, pela oportunidade dos estudos, devemos enfrentar, é necessário compreender como elas se configuram no campo da educação, mais precisamente, no que diz respeito à atividade de estudar. Simone Weil ficou conhecida também por um famoso diagnóstico de que a sociedade moderna descende de um processo nocivo de desenraizamento, e é contra ele que a prática dos estudos deve se orientar. Partiremos, então, agora, em busca de entender como Weil concebe essas noções de desenraizamento e também de enraizamento acerca do que até então concebemos como o olhar atento da atividade de estudar.

5 ESTUDAR: VULGARIZAÇÃO, TRADUÇÃO E TRADIÇÃO[10]

Desenraizamento, seguindo o que até agora foi apresentado, brevemente, pode ser compreendido como o processo que leva à legitimação da compreensão dos estudos como a prática do já ter visto do já ter lido, da formação de uma sociedade em que conhecimento se resume a prestígio social. O desenraizamento se fundamenta em uma leitura da história que vê as construções culturais antes como bens de consumo, sem compreendê-los como sinais de um passado que foram cuidadosamente entregues, transmitidos, e pelos contemporâneos recebidos. No desenraizamento é que se estabelecem as perdas de memória, de relação com o passado. O desenraizamento é o processo que impede a reunião de corpo, alma e mundo, que institucionaliza formas de organização que asseguram essa separação, como a divisão do trabalho taylorista, entre trabalho mecânico e intelectual, entre dirigidos e dirigentes, ou mesmo os mais recentes modelos de trabalho denunciados por Bernardo (2006), que, mesmo em grupo, descoletivizam o sujeito em seu trabalho e exigem dele a constância na produção.

Por outro lado, pode-se dizer que o processo de enraizamento estaria ligado ao que no início do artigo foi mencionado, uma espiritualidade do trabalho. Isto é, um processo de vínculo entre a prática e o pensamento, o espírito e o corpo, o presente na história, na tradição. Esse vínculo deve ser estabelecido pelo trabalho, um trabalho de aula, inclusive, pois o mais alto grau de enraizamento depende da formação de uma sociedade assim, mas como adverte Simone Weil, é preciso que a formação da juventude operária[11] ultrapasse a formação puramente profissional (WEIL apud QUEIROZ; SANTOS, 2018). Isto é, uma vez que “[...] toda nossa civilização está fundada na especialização, a qual implica a escravização dos que executam pelos que coordenam e sobre tal base só se pode organizar e aperfeiçoar a opressão mas não aliviá-la.” (WEIL, [1943]/(1996b), p. 239).

Simone Weil, como escreve Alfredo Bosi (2009), considera o processo histórico da formação das sociedades um processo de complexificação da economia, dos meios de produção e da organização social, de modo a sempre culminar em um sistema funcional de dominação. Com um clássico exemplo da antropologia social, Simone Weil nota que:

A guerra converte em escravos os vencidos, e em senhores os vitoriosos. Os ritos, quando se multiplicam, tornam-se opacos, conferem poder aos sacerdotes e transformam os fiéis em súditos. Nas sociedades modernas o aparelho estatal, o estrato militar, os estamentos judiciário e policial e, mais recentemente, os tecnocratas a serviço das empresas e do estado detém igualmente um poder quase absoluto sobre o trabalhador-cidadão desarmado e leigo em matérias técnicas e científicas. O poder da medicina e, em particular, da psiquiatria poderia ser arrolado entre as formas contemporâneas de privilégio. O poder de denegrir tantas vezes exercido irresponsavelmente pelos meios de comunicação de massa entraria nesse triste elenco. (BOSI, 2009, p. 23).

A opressão, para a filósofa, “[...] cresce como uma sombra à proporção que as sociedades se complicam e a produção se intensifica.” (BOSI, 2009, p. 24). Pode-se compreender esse processo, também, quando Santos (2015) escreve sobre a produção do modelo de instrução educacional que emerge na passagem do Renascimento para a Modernidade. No renascimento, com a crescimento da burguesia, tem-se a expansão hegemônica de um modelo de formação cujos valores estavam pautados em uma cultura aristocrática, que tinha como referência a antiguidade greco-romana. No entanto, ela também se fundava nos pseudovalores da própria burguesia, como nos adverte Alfredo Bosi (2009): “[...] a religião do status, a paixão do dinheiro, a ‘cultura’ desfrutada como posse e consumo de objetos, e não como luz que irradia [...]” (BOSI, 2009, p. 20), somada à competição agressiva pela posse desses ditos bens.

O resultado, portanto, é a criação de uma educação formal na qual a cultura aristocrata renascentista ganha prestígio e seu conhecimento torna-se status social (QUEIROZ; SANTOS, 2018), aos moldes dos pseudovalores burgueses. Com o desenvolvimento tecnológico da reprodutibilidade técnica, é possível divulgar esse conhecimento massivamente. Essa divulgação, porém, estará sob o controle de um número reduzido de indivíduos e instituições e, assim como o funcionamento da dominação na sociedade explicado por Alfredo Bosi (2009), partirá de um meio fechado, indiferente à verdade e centrado na maximização dos lucros com a divulgação da cultura aristocrata greco-romana ali prestigiada. Desse modo, todo ouro puro que ela ainda pudesse conter passados longos anos de transmissão lhe é tirado por uma operação que se chama vulgarização, pela qual se busca “[...] enfornar o resíduo [do que sobrou da verdade] na memória dos infelizes que desejam aprender, como se enfia comida pela goela de pássaros [...]”, fazendo da educação um processo de instrução bancária, em que os exames exercem sobre os alunos “[...] a mesma obsessão que o dinheiro sobre os operários que trabalham por peça.” (WEIL apud QUEIROZ; SANTOS, 2018, p. 6).

Santos (2015) recorda, nesse sentido, o desejo de ganho, uma espécie de veneno de desenraizamento, sobre o qual Simone Weil escreve em L’enracinement. Ele seria composto tanto por essa obsessão ao dinheiro quanto pela capacidade do dinheiro de vencer outros motivos para estudar ao exigir um esforço de atenção muito menor, uma vez que não há “[...] nada mais claro e simples que uma cifra.” (WEIL apud QUEIROZ; SANTOS, 2018, p. 4). Dessa maneira, os autores desenvolvem a ideia weiliana de que o desenraizamento seria uma doença cujo veneno é o desejo de ganhar.

Santos (2015) ainda descreve que o modelo moderno de instrução dos sujeitos, nesse processo de vulgarização, estreita ao mínimo a relação deles com a linguagem, ao impedir a apropriação dos sujeitos tanto da cultura antiga, universal, quanto da tradição popular local. Ele chama isso de duplo desenraizamento, o que nos faz recordar o que foi dito por Bingemer (2011) sobre a perda da dupla relacionalidade das narrativas. Aqui, a perda dessas relações ganha outras nuances:

Em nossos dias, um homem pode pertencer aos meios ditos cultos, por um lado sem ter nenhuma concepção a respeito do destino humano, por outro lado sem saber, por exemplo, que todas as constelações não são visíveis em todas as estações. Acredita-se comumente que um pequeno camponês de hoje, aluno da escola primária, sabe mais do que Pitágoras, porque repete docilmente que a terra gira em torno do sol. Mas de fato ele não olha mais as estrelas. Esse sol de que lhe falam na aula não tem para ele nenhuma relação com aquele que vê (WEIL, 1996b, p. 45).

Para Santos (2015), essa obstrução do acesso às culturas universais e aos referenciais locais se apresenta como um impedimento à duas fontes de sentido: ao Lebenswelt,[12] o mundo pré-reflexivo, que, guardado nas tradições populares transgeracionais, contém um manancial de percepções, afetos, crenças, símbolos e valores; e um impedimento a fonte de sentido clássica universal “[...] decantada por critérios rigorosos por excelência, com seu elevado legado conceitual e artístico que resiste à corrosão do tempo.” (SANTOS, 2015, p. 107).

Nesse duplo desenraizamento, consonante com a dupla perda de relacionalidade com o passado (BINGEMER, 2011), Queiroz e Santos (2018) identificam dois desafios a confrontar. O primeiro consiste na conjugação da educação não meramente instrutiva e o trabalho não submisso a dicotomias opressoras, para a produção de uma cultura popular não vulgarizada nem degradada pela opressão.

Sobre esse primeiro desafio, eles mencionam a já citada ideia de Simone Weil sobre a necessidade de a formação da juventude operária ultrapassar a formação puramente profissional, mas adicionam a ela o posicionamento da filósofa de que essa formação não deve acontecer nas escolas, onde sempre é mal feita, mas sim “[...] mergulhada imediatamente na própria produção.” (WEIL apud QUEIROZ; SANTOS, 2018, p. 7).

Já o segundo desafio consiste na transmissão cultural capaz de superar o citado inerente processo de vulgarização na formação homogeneizadora da sociedade. Em outras palavras, esse processo deve: […] transmitir a cultura intelectual, concebida a partir de uma sensibilidade e linguagem bem diferente das suas. Como vimos, a solução jamais estaria na vulgarização da cultura, o que significaria torná-la acessível ao preço de tirar-lhe a vida (SANTOS, 2015, p. 110).

Esse fragmento é sublinhado por Queiroz e Santos (2018), que buscam apresentar o conceito de tradução, do qual fala Simone Weil: um modo de se apropriar do “[...] sentido ‘em sua nudez’ retirando-lhe o núcleo, para convertê-lo em outra linguagem o que nesta subsiste” (QUEIROZ; SANTOS, 2018, p. 7). Puente (2013) também comenta essa forma de transmissão da qual Simone Weil toma parte, e Queiroz e Santos (2018) não deixam de fazer referência a ele. Puente (2013) considera a tradução uma “[...] ideia de traçar paralelismos entre um episódio do passado grego ou romano e alguns acontecimentos contemporâneos [...]” (PUENTE, 2013, p. 71), uma estratégia comparativista. Ao analisar a trajetória dessa ideia em Simone Weil, destaca-se um trecho de sua carta escrita em 1937:

Eu tenho uma proposta a lhe fazer. Trata-se de uma ideia que me ocorreu outro dia lendo Plutarco. Há na história grega e romana – e também na história de outros períodos – episódios que, desde que se remonte aos textos originais, apresentam relações evidentes com os problemas de uma viva atualidade. Poder-se-ia, talvez, reservar uma rubrica, por exemplo, na página literária, para recontar histórias desse gênero [tiradas de Plutarco, Ilíada etc.] com todas as aproximações que as possam tornar vivas (WEIL apud PUENTE, 2013, p. 71).

Segundo Puente (2013), em 1936 ela já havia demonstrado o interesse pessoal em realizar esse tipo de divulgação e até feito uma proposta a esse respeito na fábrica de Rosières. Na carta, ela escreve seu desejo de “[...] tornar as obras mestras da poesia grega acessíveis às massas populares.” (WEIL apud PUENTE, 2013, p. 72). Esse desejo a acompanha até o final da vida e é retomado em L‘enracinement (Enraizamento, cf. WEIL, 1996b). Puente (2013) escreve que, para Simone Weil, “[...] melhor do que falar em vulgarização da cultura seria falar em ‘tradução’” (PUENTE, 2013, p. 72). Interessante notar, em relação a isso, que no seguinte trecho de uma carta que envia a seu amigo, Robert Guilhéneuf, citada por Bosi (2009), ela relata que sonhava com uma espécie de vulgarização científica:

Eu sonho com uma vulgarização científica que consistiria em conseguir que os homens de cada ofício tomassem consciência dos procedimentos (démarches) que o seu espírito efetua no curso de seu trabalho e, em seguida, fazê-los reencontrar idênticos procedimentos do espírito humano nos diversos domínios do conhecimento científico. Só então a ciência seria um patrimônio comum a todos os homens. […] O leigo pode, se for curioso, conhecer os resultados da atividade científica; o que lhe fica inexoravelmente inacessível são os métodos. Assim a vulgarização, em vez de formar o espírito, engendra a mais cega credulidade (WEIL[13] apud BOSI, 2009, p. 20).

Essa vulgarização da qual ela fala talvez deva ser entendida por esse viés da tradução, isto é, como se a tradução fosse a vulgarização em que a divulgação se concretiza como democratização do conhecimento.

As duas obstruções à transmissão cultural que a tradução é capaz de superar são: a baixeza da cultura moderna, que, por mais letrada que seja, enquanto vulgarizada é incapaz de despertar a inteligência;[14] e a sensibilidade dos sujeitos, a qual se encontra moldada pela condição operária. As condições materiais a que são submetidos os operários implicam uma disposição de sensibilidade diferente da dos não operários:[15] elas devem ser entremeadas pela tradução, a fim de “[...] perfurar a opacidade do moderno Grande animal.” (BOSI, 1988, p. 86).

Ora, isso se deve certamente à função da linguagem de criar fraternidade, a qual vimos Simone Weil mencionar no que Bingemer (2011) escreveu sobre sua concepção de linguagem e literatura. Traçar paralelismos entre episódios gregos passados e outros contemporâneos ou, como escreveu Simone Weil na carta 1937, fazer todas as aproximações que as possam tornar vivas, trata-se, como foi mencionado anteriormente, de estabelecer uma leitura simbólica, em que, com atenção, é possível enxergar a metáfora real, reviver a verdade presente no que nos foi concedido pelos antepassados. A tradução só é capaz de perfurar o grande animal na medida em que ela transmite, compartilha pensamentos e sentimentos; enquanto alguém recebe o que ouve e sensibiliza-se por isso, reconhecendo os próprios sentimentos num referencial comum humano.

Essa seria uma das vias para superar o desenraizamento e conseguir, pela educação popular:

Dar ao trabalho mais dignidade infundindo-lhe pensamento, e não fazer do trabalhador uma coisa compartimentada que ora trabalha ora pensa. Evidentemente, um camponês que semeia deve estar atento a semear o grão como se deve, e não a se lembrar de lições aprendidas na escola (WEIL apud QUEIROZ; SANTOS, 2018, p. 7).

Com esta última citação, podemos recordar o chamado pensamento em situação, também conhecido por exercício livre da inteligência, que perfaz a ponte entre pensamento e ação (BOSI, 1988). Mas, além disso, nessa citação, é possível ver a relação entre a atenção e essa forma de lembrança, a qual deve exercer o camponês estudante. A dupla perda de memória que vimos com Bingemer, aqui compreendida por Santos (2015) e Queiroz (2018) como duplo desenraizamento, leva-nos a considerar que a atividade de estudar apta a enraizar uma civilização seria uma atividade dupla, capaz de se sensibilizar pelo que ouve, pelo que recebe; compartilhar sentimentos e pensamentos pela função da linguagem; e também reconhecer no próprio espírito uma relação transcendente com a matéria. Nessa perspectiva, a metáfora real e a tradução são, por assim dizer, remédios da memória, visto que consistem em uma maneira de voltar-se para o passado sem o resumir a uma forma fixa, traduzindo-o ao que o presente nos apresenta.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Contudo, deve-se perceber, aqui, que a atividade de estudar, esse trabalho de enraizamento, além de espiritual e místico, é radicalmente político e tem como horizonte a transformação histórica. Nesse sentido, importante constatar que a atividade de estudar é uma prática histórica, sobretudo enquanto amor, tanto a Deus quanto ao outro, pois não se trata de algo a-histórico e irreal, quando se fala que ele depende de um exercício transcendente ou metafórico.

Bingemer (2011) escreve que as verdades ocultas nas histórias não excluem a história em si, mas transcendem a sua realidade historicamente comprovável, como uma experiência limítrofe de prova do real. Em consonância, lemos Simone Weil escrever que “[...] o limite é o testemunho de que Deus nos ama.” (WEIL, 1993, p. 114). No entanto, assumir que a leitura ou mesmo o olhar da atenção, inseridos na atividade de estudar, constituem uma experiência além-intelectual, seria, de certa forma, deixar de lado que a “[...] a fé é a experiência de que a inteligência é iluminada pelo amor.” (WEIL, 1993, p. 141, grifo nosso). Dizer além-intelectual, implicaria precisar, assim como fez Bingemer, que o além, aqui, não exclui o intelectual, mesmo que a intuição seja “[...] puramente espiritual.” (BINGEMER, 2011, p. 105). Porém, com isso saberíamos também que inteligência apenas não é capaz de acessar a metáfora real ou a significação transcendente. Para isso, faz-se necessário um exercício, tal como nomeia Alfredo Bosi (2009), exercício livre da inteligência: é preciso um certo trabalho, certa disciplina para experimentar de outro modo aquilo que se nos apresenta. No seguinte trecho, podemos compreender que forma toma a inteligência nesse outro modo:

Quando escutamos Bach ou uma melodia gregoriana, todas as faculdades da alma despertam e se calam, para aprender essa coisa perfeitamente bela, cada uma à sua maneira - a inteligência entre outras: ela nada encontra nisso a afirmar e a negar, mas alimenta-se disso. Não deve a fé ser uma adesão desse tipo? Degradamos os mistérios da fé fazendo deles objetos de afirmação ou de negação, ao passo que devem ser um objeto de contemplação. (WEIL, 1993, p. 142).

Notamos, aqui, que a inteligência, além das operações de afirmação e negação das quais dispõe, tem também no seu horizonte despertar e se calar. Percebe-se essa diferença seguindo o que está escrito na citação, por meio de uma rigorosa distinção: as operações não devem ser uma ao passo que devem ser a outra. Todavia, cabe perguntar: e se esse outro modo não for outra coisa além de afirmar e negar, mas outra coisa enquanto afirmar e negar? Assim, algo seria feito com a afirmação e a negação que não as excluiria enquanto modo de ver, mas, na contradição entre elas, como que as superaria e tomaria de outra forma: elas não mais afirmariam e negariam, mas despertariam e se calariam. Dessa maneira, a pergunta se desdobraria: e se esse outro modo não for algo além da inteligência, mas sim o exercício da inteligência mesma? e se ele não for além-inteligência, mas inteligência-além?

Nesse sentido, a discussão que fizemos a partir de Puente (2013) e Bingemer (2011) sobre o plano das opiniões leva-nos a crer que inteligência-além, a adesão de fé, que não afirma nem nega o que vem do outro, que não dá passo algum em direção a verdade, é uma peça-chave para respondermos às duas perguntas iniciais. O trabalho da atenção nos estudos seria, assim, um esforço para dar um passo de fé, que olha para o vazio das certezas que temos sobre o mundo, sem temer desconhecê-lo; um passo, por conseguinte, negativo. Uma forma de esquecimento de si, criação de um espaço onde é possível mobilizar uma específica forma de lembrança, de um mundo que ainda não foi construído. A inteligência da atenção é, portanto, na atividade de estudar para Simone Weil, além de mística, política – mas, nas palavras de Santos (2015), não menos política que mística; ela mobiliza uma política que só se decifra pela mística, a mística de um olhar atento.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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WEIL, S. The need for roots. London: Routledge Classics, 1943-2002.
Notas
Notas
1 As datas entre colchetes indicam o ano de publicação original da obra, que só serão indicadas na primeira citação das obras no texto. Nas seguintes, serão registradas apenas as datas das edições consultadas pelo autor.
2 Realizada na Pontifícia Universidade Católica de Campinas e elaborada dentro do Grupo de Pesquisa Religião, Linguagem e Cultura. Deixamos aqui nossos agradecimentos à universidade pelo apoio financeiro e ao grupo de pesquisa pelo espaço de reflexão, discussão e aprendizado comum.
3 Texto ao qual faremos menção pelo nome abreviado Reflexões, disponível em Espera de Deus (WEIL, [1942]/(2019)).
4 Essa organização também é usada por Ecléa Bosi em seu texto A atenção em Simone Weil (BOSI, 2003), de que trataremos posteriormente.
5 Deve-se notar que no ensaio de Simone Weil, escrito ainda com 16 anos, analisado por Bingemer (2011), ela já usava a ideia de action non-agissante conectando-a à parte mais profunda do pensamento oriental.
6 Importante assinalar a grande amplitude semântica desse termo, malheur, nos textos de Simone Weil. Martins (2011) faz uma análise detida dele, e indica o opúsculo L’amour de Dieu et le malheur (O amor de Deus e o infortúnio, no livro Espera de Deus, cf. WEIL, 1942-2019) como texto em que Simone Weil distingue sofrimento (souffrance) de malheur, designando ao segundo um estatuto específico.
7 Essa necessidade remete à crucial diferença, para Simone Weil, entre natureza da necessidade e natureza do bem. Essa é uma distinção que aparece no livro VI da República de Platão (2000), no qual Sócrates denuncia o ensino dos sofistas. Ele escreve que, os sofistas, ao dominarem o saber sobre o que é agradável e desagradável à maioria, às multidões, tornam-se, por mais reconhecidos que sejam, incapazes de julgar e ensinar o belo e o justo, de perceber a diferença da qual fala Simone Weil. Sócrates diz que o processo para se tornar mestre nessas “[...] doutrinas da maioria [...]” é o mesmo que o de uma pessoa que deve criar um animal grande e forte. Ao longo da convivência com ele, conhece-se suas fúrias e desejos, aprende-se “[...] com que vozes dos outros se amansa ou se irrita [...]”, aprende-se “[...] cada um dos sons que costuma emitir a propósito de cada coisa [...]”, “[...] quando é mais intratável ou mais meigo [...]” e, inclusive, por que assim o é. Desse modo, aquele que convive com o grande animal compila esses conhecimentos adquiridos e os ensina chamando-os de ciência e verdade. Entretanto, esse que agora é mestre “[...] nada sabe do que, destas doutrinas e desejos, é belo ou feio, bom ou mau, justo ou injusto [...]”, chama por bom aquilo que agrada o grande animal, mal o que o desagrada, “[...] mas sem ter qualquer outra razão para tanto, antes designando por justo e belo o inevitável.” Em suma, este é um mestre que “[...] conhece a fúria e os prazeres da multidão[...]”, domina o juízo da multidão (PLATÃO, 2000, p. 188-189).
8 Destacamos que Simone Weil considera a razão natural uma característica universal dos seres humanos. Mais adiante, quando abordarmos a distinção entre as menções de Simone Weil às ideias de educação operária e educação cristã, essa noção de razão natural universal nos servirá para supor uma impossibilidade de se classificar e diferenciar, na sua base, a atividade de estudar em gêneros específicos.
9 Interessante notar aqui outra ressonância kantiana. Uma outra explicação para a diferença entre o belo e o agradável, para Kant, é que o belo, diferentemente do agradável, tem pretensões universais, e isso ocorre porque a beleza é “[...] resultante de faculdades necessariamente comuns a todo homem.” (KANT, apud SUASSUNA, 2018, p. 70). Assim, quando o sujeito experimenta o prazer do belo, exige para o seu juízo um assentimento geral.
10 Ao longo do processo de pesquisa, encontramos poucas referências de autores e autoras que fizessem a relação entre os escritos de Simone Weil e o estudar tal como foi proposto aqui. Entre elas, estão os textos que usamos nesta seção: dois artigos de Santos (2015), um de Queiroz em coautoria com Santos (2018), e a dissertação de mestrado de Queiroz (2017) orientada por Santos. As referências usadas por esses autores, em consonância com uma revisão na literatura realizada no início deste trabalho, demonstram como ainda é escassa a elaboração do pensamento weiliano na área da educação relacionado ao campo da mística.
11 Destacamos aqui que a ideia de formação usada ao longo dos textos de Santos (2015) e Queiroz (2017) e Queiroz e Santos (2018) é discutida nos termos de juventude operária e educação operária, que se diferencia, ao menos no nome, daquela educação cristã mencionada em Le pesanteur et la grâce de Simone Weil (2019), e também da concepção cristã dos estudos por ela aludida em Reflexões, no livro Espera de Deus (WEIL, 2019). Essa diferença remonta a uma das dúvidas que apareceram ao longo da pesquisa: quem é o estudante? Deve haver um modo de estudar para todos estudantes? O que se percebeu ao longo da investigação foi que a atividade de estudar estaria, antes, ligada a um pensamento universal da razão natural capaz de estudar, a um científico e politicamente rigoroso pensamento em situação, do que a uma atividade restrita a gêneros como estudo do operário ou estudo do camponês. Mas cabe não tomar por contemplada essa diferença, ela pode ser importante e deve servir de interesse em uma possível investigação futura.
12 Santos (2015) faz uma nota sobre esse conceito, esclarecendo sua referência à Husserl. Sobre isso, é interessante lembrar que Simone Weil tinha apreço, ainda que sem conhecer bem, à filosofia de Husserl (MARTINS, 2011).
13 Não foi possível identificar quando a carta foi escrita por não termos acesso ao acervo físico da revista Cahier Simone Weil. No seu acervo on-line, foi possível ter acesso à informação de que a carta foi publicada em 1998 no tomo XXI da revista, número 1-2.
14 É importante, como lembram Puente (2013) e Santos (2015), destacar a ideia de que, diferentemente do que se costuma tomar como verdade – o fato de a cultura universal ser inacessível por ser alta demais –, aqui ela é entendida como insensível aos sujeitos por ser baixa demais.
15 Aqui, parece se estabelecer uma conexão entre a formação operária e outras, talvez a cristã, tal como havia sido notada a diferença na nota nº 11 deste artigo.
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