Resumo: Este trabalho objetiva realizar uma análise retórica acerca dos lugares da argumentação que fundamentaram o discurso teológico encontrado no Evangelho Segundo Lucas 19, 1-10. Esse texto bíblico apresenta o encontro entre o orador Jesus Cristo e o publicano Zaqueu. Assim, por Retórica, compreende-se o uso de técnicas argumentativas que visam persuadir; por discurso teológico, entende-se o uso de textos extraídos de livros considerados sagrados que falem sobre Deus. O discurso teológico toma como suporte textual a Bíblia, considerada um livro de expressiva importância para o Cristianismo. Metodologicamente, o trabalho filia-se a uma perspectiva qualitativa de análise retórica e embasa-se em Abreu (2009), Aristóteles (2011), Ferreira (2015), Meyer (2007), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014), Reboul (2004), Rocha (2020a, 2020b), entre outros. A partir da análise retórica, verificou-se que os lugares da argumentação foram decisivos para o ato de persuadir, no texto teológico destacado. Percebeu-se que o orador Jesus Cristo se serviu desses recursos retóricos (lugares argumentativos) para ganhar a confiança e persuadir o publicano Zaqueu.
Palavras-chave:RetóricaRetórica,Discurso teológicoDiscurso teológico,Lugares argumentativosLugares argumentativos,PersuasãoPersuasão.
Abstract: This work aims to carry out a rhetorical analysis about the places of argument that founded the theological discourse in the gospel according to Luke 19: 1-10. This biblical text presents the meeting between the speaker Jesus Christ and the publican Zacchaeus. Thus, Rhetoric is understood as the use of argumentative techniques that aim to persuade; Theological discourse means the use of texts extracted from books considered sacred about God. Theological discourse takes the Bible as a textual support, considered a book of significant importance for Christianity. Methodologically, the work is affiliated to a qualitative perspective of rhetorical analysis and is based on Abreu (2009), Aristóteles (2011), Ferreira (2015), Meyer (2007), Perelman and Olbrechts-Tyteca (2014), Reboul (2004), Rocha (2020a, 2020b) works, among others. From the rhetorical analysis, it was found that the places of argument were decisive for the act of persuading in the highlighted theological text. It was noticed that the speaker Jesus Christ used these rhetorical resources (argumentative places) to gain confidence and persuade the publican Zacchaeus.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo realizar un análisis retórico sobre los lugares de discusión que fundamentaron el discurso teológico que se encuentra en el Evangelio según Lucas 19, 1-10. Este texto bíblico presenta el encuentro entre el orador Jesucristo y el publicano Zaqueo. Así, por Retórica se entiende el uso de técnicas argumentativas que apuntan a persuadir; El discurso teológico significa el uso de textos extraídos de libros considerados sagrados que hablan de Dios. El discurso teológico toma como soporte textual la Biblia, considerada un libro de gran importancia para el cristianismo. Metodológicamente, el trabajo está afiliado a una perspectiva cualitativa de análisis retórico y se basa en Abreu (2009), Aristóteles (2011), Ferreira (2015), Meyer (2007), Perelman y Olbrechts-Tyteca (2014), Reboul (2004), Rocha (2020a, 2020b), entre otros. A partir del análisis retórico, se encontró que los lugares de discusión fueron decisivos para el acto de persuadir, en el texto teológico destacado. Se notó que el orador Jesucristo usó estos recursos retóricos (lugares argumentativos) para ganar confianza y persuadir al publicano Zaqueo.
Palabras clave: Retórica, Discurso teológico, Lugares argumentativos, Persuasión.
ARTIGOS
JESUS E ZAQUEU: um encontro fundamentado nos lugares da argumentação retórica
JESUS AND ZACCHAEUS: a meeting based on places of rhetoric argumentation
JESÚS Y ZAQUEO: un encuentro fundamentado en los lugares del argumento retórico
Recepção: 15 Julho 2020
Aprovação: 05 Novembro 2020
Este artigo, inserido nos estudos retóricos antigos e contemporâneos da linguagem, tem como principal objetivo analisar como os lugares da argumentação fundamentaram o discurso teológico encontrado no Evangelho Segundo Lucas 19, 1-10, acerca do encontro do orador Jesus Cristo com o publicano Zaqueu. Com base nisso, procurou-se responder ao seguinte questionamento norteador: de que maneira os lugares da argumentação estão dispostos no discurso teológico do Evangelho Segundo Lucas 19, 1-10, com vistas a persuadir? A busca constante em responder a essa pergunta é o que justifica a realização deste trabalho.
O material analítico escolhido para este artigo é oriundo do discurso teológico ou bíblico pertencente ao Evangelho Segundo Lucas, no capítulo 19, versículos de 1 a 10. Esse texto foi escolhido pelo fato de ser importante para o cristianismo, pois permite que se compreenda, em termos religiosos, como acontece a conversão de um pecador. Além disso, o texto é dotado de elementos persuasivos, a exemplo dos lugares da argumentação que, no intricado do discurso, engendram maior força persuasiva quando aplicados de forma estratégica pelo orador. Social e historicamente, o texto selecionado é muito importante para os adeptos do cristianismo, pois é possível observar como Jesus conseguiu transformar a vida do então publicano Zaqueu. A amostragem foi retirada da Bíblia Sagrada, que representa o principal livro do Cristianismo Católico Apostólico Romano ou de vertente apenas protestante em suas múltiplas faces.
A Bíblia utilizada é a de Almeida (A BÍBLIA, 1999), publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), revista e atualizada. A escolha se deu pelo fato de João Ferreira de Almeida ter sido o maior tradutor da Bíblia Sagrada para a Língua Portuguesa. Por esses e outros motivos, escolheu-se a referida Bíblia. De acordo com César (2000), João Ferreira de Almeida (1628-1691) era dotado de grande capacidade linguística e, aos 16 anos, traduziu o Novo Testamento para o português. Para tanto, serviu-se da versão latina do Novo Testamento. Em seguida, Almeida também se propôs a traduzir toda a Bíblia a partir dos originais em hebraico e grego, mas morreu antes de terminar essa empreitada.
Mesmo assim, César (2000) frisa que Almeida quase completou as traduções, pois restavam apenas as do livro de Daniel e as dos doze profetas menores. Todo o restante já estava completo, devidamente traduzido. Assim, outros eruditos, a exemplo de Jacobus Akker (1649-1731) complementaram aquilo que Almeida tinha iniciado. A Bíblia de João Ferreira de Almeida é a primeira em português, depois da reforma protestante impetrada por Martinho Lutero. Por isso, justifica-se, neste estudo, a escolha dessa versão bíblica para o estudo retórico dos lugares da argumentação durante o encontro entre o orador Jesus Cristo e o publicano Zaqueu.
Para o estudo retórico do discurso teológico, este trabalho ancorou-se nas concepções de alguns autores com relação à definição de Retórica. Aristóteles (2011) é o principal, pois o filósofo grego foi quem sistematizou os estudos retóricos da antiguidade e contribuiu para o que existe acerca dessa área na contemporaneidade. Para o filósofo grego, “Pode-se definir a retórica como a faculdade de observar, em cada caso, o que este encerra de propósito para criar a persuasão. Nenhuma outra arte possui tal função.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 44). Seguindo essa mesma perspectiva aristotélica, procurou-se analisar como os lugares da argumentação criam e/ou suscitam a persuasão em um discurso específico: o teológico.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014) contribuem com uma definição contemporânea para a Retórica, como “[...] o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 4). Essa definição não contradiz a de Aristóteles (2011), mas a complementa. Assim, por meio da Retórica, é possível estudar as possíveis técnicas argumentativas que suscitam as tentativas de persuadir; e, desse modo, desnudar como se dão as estratégias argumentativas dos discursos que visam à persuasão do auditório social.
Reboul (2004) define a Retórica da seguinte maneira: “Eis, pois, a definição que propomos: retórica é a arte de persuadir pelo discurso.” (REBOUL, 2004, p. XIV). O autor mostra que a Retórica tem elementos ou dispositivos discursivos, oratórios, persuasivos, entre outros, que, conjuntamente, estão à disposição do orador para utilizá-los a seu favor. Cabe a este saber utilizá-los no discurso para lograr a confiança do auditório. Essa definição dada pelo autor está em total consonância com as concepções de Aristóteles (2011). A Retórica é, sim, uma arte, e é por meio do discurso que qualquer orador tenta persuadir a quem deseja.
Numa perspectiva mais atual e seguida por muitos estudiosos da Retórica, tem-se a contribuição de Meyer (2007), em que afirma: “[...] assim sendo, a retórica é a negociação da diferença entre os indivíduos sobre uma questão dada” (MEYER, 2007, p. 25). Em vista disso, se não houver diferença, conflito, não há motivo para proceder à persuasão. Por isso, a Retórica situa-se no lugar da diferença, no mundo das opiniões contrárias, da antifonia. Ratifica-se que, sem esses elementos que caracterizam a Retórica, não haveria, em hipótese alguma, a necessidade de negociar, de argumentar, de convencer e de persuadir o outro sobre determinada questão.
No tocante à argumentação retórica, Brockriede (2009) postula que esta fundamenta-se na dimensão de um problema, de um conflito. Desse modo, se não há tensão ou problema não há razão para se argumentar. Por isso, o pilar da argumentação retórica é a antifonia. Para Fiorin (2014), a antifonia “[...] mostra que toda verdade construída por um discurso pode ser desconstruída por um contradiscurso; uma argumentação pode ser invertida por outra; tudo o que é feito por palavras pode ser desfeito por palavras.” (FIORIN, 2014, p. 62).
A antifonia é a voz contrária, ou seja, aquilo que é construído pelo discurso pode ser destruído pelo discurso contrário. O princípio da argumentação é o da contrariedade, uma vez que esse princípio rege todo o discurso persuasivo. Por exemplo: há um que acusa, outro que defende. Por isso, a antifonia e o contraditório estão na base da Retórica e “[...] a tarefa maior da argumentação é tentar resolver situações a que se aplicam normas provindas de sistemas distintos e conflitantes” (FIORIN, 2014, p. 62).
Com base nos itens elencados, discorre-se, nesse artigo, sobre as características da Retórica, mostrando suas especificidades; a tríade aristotélica (orador, discurso e auditório); o auditório e seus diferentes tipos; o discurso em perspectiva retórica; o discurso teológico e o religioso, pontuando as definições e diferenças; a classificação dos lugares da argumentação; os procedimentos metodológicos e a análise realizada; e finalmente, as considerações finais e as referências utilizadas neste trabalho.
O propósito da argumentação postulada nos estudos da Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014) é mostrar como se dão as técnicas argumentativas empreendidas por oradores que, de forma persuasiva, utilizam no discurso (logos), elementos de natureza retórica. Há, desse modo, uma série de elementos/dispositivos argumentativos que irão fazer com o que o auditório (público-alvo) aceite ou não ser, de fato, convencido e persuadido pelo discurso do orador. Por exemplo, o uso de determinados argumentos é, sem dúvida alguma, um recurso consistente para a estratégia persuasiva.
É por meio do discurso que os dispositivos argumentativos são postos de maneira ordenada com o objetivo de suscitar a adesão do auditório para o que se lhe apresenta como proposição. Assim, qualquer orador busca o convencimento e a persuasão por meio do discurso retórico em detrimento da força, da violência. Somente assim qualquer orador poderá conseguir a confiança do auditório. Como bem lembra Ferreira (2015), a arte de argumentar é o “[...] meio civilizado, educado e potente de constituir um discurso que se insurja contra a força, a violência, o autoritarismo e se prove eficaz (persuasivo e convincente) numa situação de antagonismos declarados” (FERREIRA, 2015, p. 14). O ato de argumentar é vencer junto com o outro e não contra o outro, pois presume-se que existe um acordo argumentativo entre orador e auditório.
Desse modo, compreende-se que a Argumentação se configura como base central do significado e da natureza da Nova Retórica. Concordando com as ideias de Santos (2018), acredita-se que a Argumentação não pode ser dissociada da Retórica. Ambas constituem a dupla face da mesma moeda e uma depende da outra para que se estabeleçam as estratégias persuasivas nos mais diversos discursos, a exemplo do discurso teológico. Todo discurso tem uma intencionalidade, pois não existe discurso neutro, nem inocente. É nesse intricado jogo argumentativo que nasce a persuasão e, naturalmente, a arte Retórica. Logo, depreende-se que a Argumentação e a Retórica são segmentos complementares e indissociáveis, conforme os estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014).
Nas palavras de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2014), “O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 1). Diante disso, tem-se que a Argumentação paira sobre o lugar do preferível, daquilo que é melhor em uma dada situação em que o contraditório acontece. Não se busca a verdade ou o que é bom ou ruim, mas sim o que cada discurso comporta de elementos persuasivos. Por isso, ratifica-se que o discurso retórico não se limita apenas à razão, à racionalidade, à lógica dos fatos, mas refere-se a tudo aquilo que se mostra como verossímil no mundo da doxa, ou seja, das opiniões, que, geralmente, provocam embates e conflitos sociais entre os sujeitos.
O discurso retórico fornece meios para que qualquer orador possa transmitir as várias facetas da língua/linguagem, os vários sentidos que podem ser construídos e reconstruídos durante uma argumentação. No entanto, a argumentação só terá êxito se o orador conhecer previamente a natureza do seu auditório e, por meio de um acordo antecipado, adaptar-se a ele para que seja possível conseguir a adesão pretendida. “Com efeito, a problemática da adesão é sempre correlativa dos critérios dos auditórios e dos efeitos que os discursos têm sobre eles” (GRÁCIO; MOSCA, 2016, p. 32). Assim, cada tipo de auditório pode mostrar-se mais propenso ou não à adesão ao se permitir ser persuadido pelo discurso do orador.
Surgem, dessa maneira, três elementos imprescindíveis da Retórica: ethos, pathos e logos. O primeiro refere-se ao caráter, à imagem que o orador cria diante de um auditório social; o segundo diz respeito ao conjunto de paixões, emoções ou sentimentos que o orador desperta no auditório; o terceiro caracteriza-se pelo discurso retórico propriamente dito. Esse tripé da Retórica é a base de todo discurso retórico-argumentativo e estará mais bem explicado no decorrer deste trabalho (REBOUL, 2004).
Ferreira (2015) afirma que todas as pessoas são seres retóricos, pois têm crenças, convicções, valores, opiniões, ideologias e, além de tudo isso, utilizam a palavra como mecanismo revelador sobre as impressões do mundo, das paixões, das emoções, dos sentimentos. A partir da ideia defendida pelo autor, é possível inferir que todas as pessoas, em certos momentos, ocupam a posição de orador, tendo em vista que pela “[...] palavra, tentamos influenciar as pessoas, orientar-lhes o pensamento, excitar ou acalmar as emoções para, enfim, guiar suas ações, casar interesses e estabelecer acordos que nos permitam conviver em harmonia.” (FERREIRA, 2015, p. 12).
Conforme Ferreira (2015), por meio da palavra, os sujeitos são atores sociais, ou seja, pessoas ativas que, dialogicamente, se relacionam mutuamente. O citado autor garante que é por meio do texto oral e/ou escrito que os sentidos são construídos e interpretados. Dessa maneira, ter-se-á a constituição do discurso por meio da relação dialógica entre eu e tu. Essa relação, em termos retóricos, visa a uma consequência delimitada: conseguir persuadir o outro, visto que “[...] agimos retoricamente quando nos valemos do discurso para descrever, explicar e justificar nossa opinião com o objetivo de levar o outro a aceitar nossa posição.” (FERREIRA, 2015, p. 13).
A posição de orador carrega sobre si o fato de querer influenciar o outro e conseguir persuadi-lo, a fim de mostrar uma nova visão daquilo que se propõe como novo. “Muito comumente, quando precisamos defender uma ideia, valemo-nos da argumentação” (FERREIRA, 2015, p. 14). O orador necessita argumentar para conseguir a adesão do seu auditório social. Nesse ínterim, há que se considerar se o auditório confia no caráter, na imagem do orador, se está disposto a ouvi-lo, se há um acordo prévio para o ato de argumentar (ROCHA, 2020b). Se esses requisitos não estiverem a favor do orador, a argumentação, provavelmente, não terá êxito, pois “argumentar implica demonstrar ideias para clarear no espírito do outro nossa posição diante de um assunto polêmico” (FERREIRA, 2015, p. 14).
Nas palavras de Aristóteles (2011), considerado o pai da Retórica, “a persuasão é obtida graças ao caráter pessoal do orador [ethos], quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 45). Segundo o filósofo grego, o orador é uma projeção de uma imagem criada (ethos), de uma construção de si no momento da argumentação retórica. Essa imagem ou caráter pode ou não ser, de fato, a real face do orador. O que suscita o efeito persuasivo é o discurso, isto é, aquilo que é dito pelo orador. No discurso teológico em estudo, Jesus Cristo ocupa a posição de orador e tenta persuadir o publicano Zaqueu a aceitar os ensinamentos de natureza cristã. Para tanto, Jesus utiliza-se de dispositivos retóricos, a exemplo dos lugares da argumentação. O auditório, neste caso específico, é constituído por Zaqueu, o alvo da argumentação jesuânica.
O auditório é o segundo pilar da argumentação retórica, pois se não houver para quem dirigir a palavra, não haverá discurso retórico, muito menos persuasão (MELO, 2013). Por isso, a função do auditório é essencial como parte integrante da estrutura do discurso argumentativo. O auditório aceita ou não o discurso do orador, verifica se a construção retórica é ou não interessante e agradável para que seja possível aderir a ela (FERREIRA, 2015). Para este artigo, o auditório será considerado apenas pela pessoa de Zaqueu, pois foi a ele que o orador Jesus Cristo se dirigiu argumentativamente.
Reboul (2004) diz que o auditório pode ser composto por multidões, poucas pessoas e até mesmo um único sujeito, a exemplo de Zaqueu. O autor francês chama a atenção para o fato de que “[...] sempre se argumenta diante de alguém, que pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama-se auditório, termo que se aplica até aos leitores [...]” (REBOUL, 2004, p. 92). No excerto selecionado para a análise retórica, será possível comprovar que Zaqueu é o principal alvo do discurso jesuânico. Abreu (2009) define o auditório como “o conjunto de pessoas que queremos convencer e persuadir” (ABREU, 2009, p. 39). O mesmo autor é quem faz uma tipologia consistente do auditório, ao dizer que pode ser classificado em universal e particular.
O primeiro (auditório universal) refere-se a “[..] um conjunto de pessoas sobre cujas variáveis não temos controle. O público que assiste a um programa de televisão configura um auditório universal.” (ABREU, 2009, p. 40). O segundo (auditório particular) diz respeito a “[...] um conjunto de pessoas cujas variáveis controlamos. Uma turma de alunas de uma escola de segundo grau configura um auditório particular” (ABREU, 2009, p. 40). Em se tratando das informações contidas no corpus deste artigo, depreende-se que a argumentação do orador Jesus Cristo, presente no discurso teológico encontrado no Evangelho Segundo Lucas 19, 1-10, se associa ao auditório particular, tendo em vista que Jesus direcionou o discurso para uma pessoa específica: Zaqueu. Nesse sentido, embora existissem outras pessoas presentes no momento da argumentação, foi em direção ao então publicano que Jesus procedeu à argumentação. Zaqueu era de uma mesma comunidade, língua, religião, entre outros aspectos, o que indica que o orador Jesus Cristo estava familiarizado com o espaço social e temporal, pois todos estavam sob o regime judaico da época. Com base nos itens elencados, atesta-se a presença de um auditório particular no objeto em estudo.
Por discurso, toma-se, nesse artigo, a ideia de uma “[...] produção verbal, escrita ou oral que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido.” (REBOUL, 2004, p. XIV). Ressalta-se que nem todo discurso é retórico, mas somente aqueles que visam à persuasão. Esse estudo aborda o discurso teológico, considerado persuasivo porque almeja conquistar a adesão daqueles que frequentam instituições religiosas, que ouvem ou assistem cerimônias sacras. Nesse sentido, “Na construção da retórica do discurso religioso, os argumentos são sustentados por ‘provas’ baseadas, principalmente, em julgamentos de valor.” (HALLIDAY, 1990, p. 20), à exemplo do bem e do mal, do céu e do inferno, de Deus e do diabo, entre outras dissociações.
De acordo com Ferreira (2015), o discurso, em termos retóricos, é simbolizado pelo logos aristotélico, a palavra, a razão. O autor explica que o discurso pode revestir-se de diferentes tipologias, mas todas elas são dotadas de uma questão subjacente ou expressamente colocada, com propósitos ligados à persuasão. Em vista disso, depreende-se que o discurso retórico não acontece no vazio, ou sem intencionalidade, mas sim em condições específicas de produção, pois “[...] o discurso retórico se configura pela intenção de persuadir um auditório que se encontra diante de uma questão.” (FERREIRA, 2015, p. 15).
O discurso retórico se dirige ao homem, por isso a persuasão que é suscitada considera importante as dotações humanas, a exemplo dos sentimentos, paixões, impulsos e, desse modo, busca fundamentar as três ordens de finalidade do discurso, a saber: docere, movere, delectare. A primeira (docere) visa “[...] ensinar, transmitir noções intelectuais, convencer. É o lado argumentativo do discurso” (FERREIRA, 2015, p. 16). Essa ordem é muito comum no discurso teológico, pois o orador Jesus Cristo, nos livros neotestamentários, apresentou uma série de ensinamentos doutrinários com o objetivo de convencer as pessoas que lhe ouviam.
A segunda (movere) busca “[...] comover, atingir os sentimentos. É o lado emotivo do discurso, aquele que movimenta as paixões humanas” (FERREIRA, 2015, p. 16). Essa ordem de finalidade aparece no discurso teológico quando se busca persuadir o outro para que aceite as proposições que lhe são apresentadas. No excerto em tela, será possível constatar que o orador Jesus Cristo busca, a todo instante, fazer com que Zaqueu adira ao discurso e mude de vida. Para tanto, o orador Jesus Cristo utiliza-se de um discurso passional, dotado de elementos retóricos com o intento de persuadir Zaqueu. Nas análises, ter-se-ão mais comentários precisos sobre os dispositivos argumentativos utilizados pelo carpinteiro de Nazaré.
A terceira (delectare) procura “[...] agradar, manter viva a atenção do auditório. É o lado estimulante do discurso, aquele que movimenta o gosto” (FERREIRA, 2015, p. 16). O discurso teológico contempla essa terceira finalidade, na medida em que o orador Jesus Cristo transmite para Zaqueu que houve uma mudança de vida, ou nos termos estritamente religiosos, salvação na casa do até então publicano pecador. Com isso, o orador Jesus Cristo discursa para todos aqueles que estavam presentes na casa de Zaqueu e estabelece sua doutrina que, posteriormente, foi seguida por muitos, tornando-se, atualmente, a maior religião do mundo – o Cristianismo.
O discurso teológico tem, ao longo da história, feito parte da vida de muitas pessoas, quer sejam religiosas, quer sejam ateias. Nesse artigo, toma-se a ideia de que o discurso teológico se fundamenta/materializa no texto bíblico, o qual, por sua vez, constitui o objeto de estudo desse trabalho. Assim, o discurso teológico é considerado uma ação retórica que possibilita agregar cada vez mais adeptos, neste caso específico, para a religião cristã. Nas palavras de Ferreira (2015), “[...] o discurso religioso é repleto de argumentação.” (FERREIRA, 2015, p. 89). Isso atesta a importância de estudá-lo no plano retórico e desvendar as possíveis estratégias retórico-argumentativas utilizadas por oradores para tentar persuadir.
Defende-se, nesse artigo, a ideia de que o discurso teológico e o bíblico são sinônimos. Lima (2010) postula que o discurso bíblico e o teológico, ou vice-versa, dizem respeito a um mesmo tipo de discurso. Assim, ambos buscam mostrar a compreensão sobre Deus e têm como propriedade fundamental os mecanismos indecifráveis da fé. Com isso, o discurso teológico é persuasivo, polissêmico, composto de atos retóricos que podem e precisam ser analisados e explicados cientificamente, já que influenciam de forma acentuada a vida de muitas pessoas. Por isso, o estudo retórico torna-se muito propício “[...] para desvendar as montagens persuasivas do discurso e descobrir novas possibilidades de entendê-lo.” (RIBEIRO, 2010, p. 14).
Há que se fazer uma ressalva importante para melhor se entender o domínio religioso aqui discutido. Mesmo que o discurso teológico se aproxime do discurso religioso em termos institucionais, ideológicos, entre outros, eles não podem ser considerados da mesma maneira, pois diferem em aspectos como: organização retórica, configurações discursivas, relações de produção, leitura, crenças, entre outras características. Apesar dessas diferenças, eles estão associados, porque o discurso religioso se constitui a partir do discurso teológico, caracterizando uma relação interdiscursiva entre ambos. Acerca do discurso religioso, é dito que:
[...] o discurso religioso é caracterizado por ser um discurso assimétrico e por criar a ilusão de reversibilidade, pois em nenhum momento os interlocutores trocam papéis comunicativos. Além disso, o orador é apenas um porta-voz de um discurso de autoridade (o divino) contido e/ou embasado em textos bíblicos. Outras características aparecem no discurso religioso como o uso do imperativo e do vocativo, pois se trata de um discurso autoritário; o uso de argumentos para fazer com que o auditório seja persuadido, entre outras especificidades que caracterizam esse tipo discurso (ROCHA, 2020a, p. 52).
Desse modo, entende-se que o discurso religioso está ligado à instituição, às normas, às convicções, às crenças, às doutrinas postas pelas igrejas enquanto entidades organizacionais e institucionais (ROCHA, 2020a). Em vista disso, o discurso teológico associa-se ao conjunto de pensamentos e escritos que promulgam as leis e os ensinamentos acerca da religiosidade judaico-cristã como um todo. “O discurso religioso constitui um quadro de referência obrigatório aos posicionamentos ideológicos, enquanto o discurso teológico, ao contrário do religioso, encena particularidades enunciativas e funda-se em estruturas míticas de natureza ontológica incontestáveis” (NASCIMENTO, 2020, p. 35).
A Bíblia Sagrada, por exemplo, é considerada, na esfera cristã, um livro, ou melhor, um conjunto de livros, que deve ser seguido por todos aqueles que se dizem ou professam ser cristãos. Dessa maneira, tem-se que “[...] o discurso religioso é, então, o discurso institucional, em que se articula o discurso teológico como estratégia retórica” (LIMA, 2010, p. 16), embora ambos sejam muito diferentes enquanto discursos constituintes. Nesse artigo, apenas o discurso teológico é analisado, tendo em vista que se trata de um discurso considerado inspirado por uma divindade em que o narrador é apenas um porta-voz de um discurso de autoridade.
Os lugares da argumentação são como grandes armazéns (FERREIRA, 2015), em que se agrupam os mais diversos argumentos. São utilizados com o objetivo de estabelecer acordos com o auditório e reforçar o assentimento a determinados propósitos comunicativos. Abreu (2009) afirma que “o nome lugares era utilizado pelos gregos para denominar locais virtuais facilmente acessíveis, onde o orador pudesse ter argumentos à disposição, em momento de necessidade.” (ABREU, 2009, p. 85). Assim sendo, Abreu (2009) dividiu e classificou os lugares da argumentação em seis tipos específicos, a saber: quantidade, qualidade, ordem, essência, pessoa e existente. Embora nem todos os lugares argumentativos apareçam no corpus analisado, ratifica-se a importância de apresentá-los de forma conceitual.
O lugar de quantidade caracteriza-se por utilizar, na maioria das vezes, expressões que denotem formas quantitativas e/ou numéricas positivas ou negativas. É neste lugar onde qualquer coisa vale mais que outra em função de razões quantitativas. De acordo com o lugar de quantidade, “[...] um bem que serve a um número muito grande de pessoas tem mais valor do que um bem que serve apenas a um pequeno grupo. Um bem mais durável é superior a um bem menos durável e assim por diante” (ABREU, 2009, p. 85-6).
O lugar de qualidade não leva em consideração a virtude das razões quantitativas; ao contrário, mostra que uma coisa é melhor do que outra porque possui mais qualidades ao ser comparada com seus semelhantes. Assim, “[...] o lugar de qualidade se contrapõe ao lugar de quantidade, pois contesta a virtude do número. Valoriza o único, o raro.” (ABREU, 2009, p. 88) e aquilo que é único e raro sobrepõe tudo aquilo que é corriqueiro, comum.
O lugar de ordem é o lugar que apresenta a sequência de fatos, isto é, primeiro há uma causa e, em seguida, um efeito produzido por ela. No entanto, é preciso entender que o anterior é mais importante do que o posterior, já que aquele veio primeiro do que este. Diante disso, “[...] o lugar de ordem afirma a superioridade do anterior sobre o posterior, das causas sobre os efeitos, dos princípios sobre as finalidades etc.” (ABREU, 2009, p. 90).
O lugar de essência caracteriza-se por aquilo que encarna melhor um padrão, aquilo que emana das pessoas. Este lugar retórico considera as pessoas que melhor representam a classe à qual são pertencentes. São consideradas modelos de uma determinada essência e por isso ratifica-se que “[...] o lugar de essência valoriza indivíduos como representantes bem caracterizados de uma essência” (ABREU, 2009, p. 93-94).
O lugar de pessoa diz respeito à valorização do ato realizado por uma pessoa ou até mesmo o cuidado pelo ser humano, ou seja, este lugar retórico utiliza-se da iniciativa de indicar melhores condições voltadas ao bem-estar do homem. Por isso, “[...] o lugar de pessoa afirma a superioridade daquilo que está ligado às pessoas. Primeiro as pessoas, depois as coisas! é o slogan que materializa esse lugar” (ABREU, 2009, p. 94).
O lugar do existente fundamenta-se na superioridade do que é real sobre aquilo que pode vir acontecer. É a partir deste lugar retórico que o orador busca falar daquilo que é vivido, experienciado no aqui e no agora. “O lugar do existente dá preferência àquilo que já existe, em detrimento daquilo que não existe.” (ABREU, 2009, p. 95-96).
Todos esses seis lugares da argumentação encontram-se à disposição e são utilizados por qualquer orador para construir os argumentos e, desse modo, aumentar a intensidade da adesão perante um determinado auditório. É no momento de necessidade argumentativa que os oradores recorrem a esse celeiro virtual que agrupa os mais diversos argumentos retóricos.
O orador Jesus Cristo utilizou a maioria desses lugares argumentativos durante a conversa com Zaqueu. Aliás, defende-se nesse trabalho que foram esses lugares que fundamentaram a argumentação jesuânica. Verificar-se-á na análise de que modo o orador Jesus Cristo encadeou retoricamente os lugares argumentativos no discurso teológico, evidenciando as técnicas persuasivas empreendidas pelo precursor da religiosidade cristã.
Metodologicamente, esse artigo segue os caminhos da pesquisa de abordagem qualitativa, com ênfase nos dados de maneira processual e dinâmica. Oliveira (2010) assegura que “Fazer pesquisa qualitativa é analisar e interpretar os dados, refletir e explorar o que eles podem propiciar buscando regularidades para criar um profundo e rico entendimento do contexto pesquisado” (OLIVEIRA, 2010, p. 22). Desse modo, o pesquisador, na abordagem qualitativa, permanece inserido durante todo o processo de interpretação.
A partir dos métodos qualitativos, analisou-se como os lugares da argumentação fundamentaram a conversa entre Jesus e Zaqueu descrita no Evangelho Segundo Lucas 19, 1-10. A análise retórica volta-se às técnicas discursivas da persuasão, isto é, aos dispositivos argumentativos que são utilizados por oradores para tornar o discurso persuasivo e buscar o assentimento do auditório. O diálogo do orador Jesus Cristo com o publicano Zaqueu é pertencente a esse espaço marcadamente retórico. Possui aspectos persuasivos (os lugares da argumentação) que contribuem para as tentativas de persuasão por meio discurso retórico.
No discurso teológico, o texto-fonte é a Bíblia, considerada, na linha cristã, como sendo a Palavra de Deus. Segundo Bezerra (2019), a “[...] Bíblia é antes de tudo um texto, ou melhor, um conjunto deles, escritos em diferentes gêneros [...], em diferentes lugares e épocas, por diferentes autores.” (BEZERRA, 2019, p. 20). O autor afirma que a linguagem em torno do livro sagrado não pode ser desprezada como um recurso para uma compreensão bem embasada dos textos bíblicos e, neste caso, dos procedimentos retóricos empreendidos. Por isso, a Bíblia Sagrada, conforme Bezerra (2019), serve para, além das questões puramente religiosas, estudar a linguagem e os elementos persuasivos que propiciam o ato de argumentar.
Em se tratando do contexto de produção do discurso teológico selecionado para o estudo retórico, tem-se que Jesus estava, como sempre fazia, percorrendo povoados, lugarejos, distritos, e passava por uma cidade por nome Jericó. Durante esse percurso, um homem por nome Zaqueu, de grande prestígio social entre os publicanos e ricos, teve o interesse em conhecer Jesus. No entanto, o mestre nazareno andava acompanhado por muitos seguidores e Zaqueu, por ser de pequena estatura, não conseguia enxergar o profeta da Galileia. Mesmo assim, ocorreu o encontro entre ambos. O teor da conversa e o que eles disseram pode ser verificado no relato bíblico a seguir:
Entrando em Jericó, atravessava Jesus a cidade. 2 Eis que um homem, chamado Zaqueu, maioral dos publicanos e rico, 3 procurava ver quem era Jesus, mas não podia por causa da multidão, por ser ele de pequena estatura. 4 Então, correndo adiante, subiu a um sicômoro, a fim de vê-lo, porque por ali havia de passar. 5 Quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa. 6 Ele desceu a toda a pressa e o recebeu com alegria. 7 Todos os que viram isto murmuravam, dizendo que ele se hospedara com homem pecador. 8 Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. 9 Então, Jesus lhe disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois também este é filho de Abraão. 10 Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido (Lc 19, 1-10).
A narrativa inicia falando da passagem de Jesus pela cidade de Jericó e a tentativa de Zaqueu para encontrar-se com o mestre galileu, como é possível verificar no seguinte trecho destacado: “Entrando em Jericó, atravessava Jesus a cidade. 2 Eis que um homem, chamado Zaqueu, maioral dos publicanos e rico, 3 procurava ver quem era Jesus, mas não podia por causa da multidão, por ser ele de pequena estatura” (Lc 19, 1-3). De início, visualiza-se a presença do lugar argumentativo de essência, visto que Zaqueu ocupava um lugar de destaque, de prestígio social e representava um grupo de coletores de impostos da época, além de ser abastado e possuir muitas riquezas. Além disso, Zaqueu não era um simples coletor, mas sim um maioral dos publicanos e rico. Isso ratifica uma valoração, e o lugar de essência torna-se um elemento argumentativo no texto bíblico porque é dito que Zaqueu tinha, na sociedade da época, um valor superior aos outros indivíduos, razão por que se caracteriza o lugar de essência.
Mesmo Zaqueu sendo um publicano e rico, o texto mostra que ele buscava ter um encontro com Jesus para receber possíveis ensinamentos. O texto teológico ressalta: “4 Então, correndo adiante, subiu a um sicômoro, a fim de vê-lo, porque por ali havia de passar” (Lc 19, 4). Segundo o discurso bíblico, Zaqueu era uma pessoa de pequena estatura e não conseguia ver Jesus porque este tinha uma multidão ao seu redor. Então, Zaqueu sobe em cima de uma árvore na espera de ver/encontrar com o jovem profeta. Evoca-se, neste momento, o lugar argumentativo do existente, pois mesmo existindo o título de um maioral dos publicanos, mesmo sendo rico, mesmo existindo uma vida aparentemente completa, havia algo que não existia em Zaqueu, por isso a busca por Jesus. Talvez, a glória de Jesus (o existente) seja algo melhor porque está acima da glória de Zaqueu (inexistente) naquele momento. Assim, o que existia (riqueza, poder, prestígio) entra em conflito com o que não existia (mudança de vida, transformação, encontro com Jesus) e suscita a busca por uma possível condição de melhoria. Em virtude disso, Zaqueu viu em Jesus um ethos, uma imagem de profeta, de alguém que poderia ajudá-lo.
Em seguida, Jesus passa pelo local e encontra-se com Zaqueu. É o que se pode ver no seguinte momento retórico: “5 Quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em tua casa” (Lc 19, 5). O discurso teológico apresenta a utilização do lugar argumentativo de pessoa, uma vez que ao falar, Jesus não levou em consideração as credenciais, os títulos que Zaqueu possuía, pois o texto bíblico afirma que se tratava de uma pessoa de grande prestígio social. Assim, parece que Jesus considerou apenas a oportunidade de transmitir para Zaqueu alguns ensinamentos necessários para que o coletor de impostos tivesse a oportunidade de proceder a uma mudança radical em suas práticas cotidianas como publicano. O orador Jesus Cristo utiliza-se do discurso passional (pathos) para conversar com Zaqueu, pois, conforme o excerto destacado, é possível notar a presença de uma paixão retórica – a compaixão – suscitada com o objetivo de persuadir Zaqueu.
Após Jesus pedir para Zaqueu descer da árvore, pois iria para a casa do publicano, é dito: “6 Ele desceu a toda a pressa e o recebeu com alegria. 7 Todos os que viram isto murmuravam, dizendo que ele se hospedara com homem pecador” (Lc 19, 6-7). Nota-se que os judeus entendiam que Zaqueu era um pecador e por isso Jesus não poderia se hospedar na casa dele. Mesmo com essa aparente incompatibilidade, constata-se o uso do lugar argumentativo da essência. Isso se deu porque Jesus Cristo representa, na religião cristã, uma característica única, peculiar, sendo capaz de acolher a todos, independentemente de uma pessoa ser ou não pecadora, a exemplo de Zaqueu.
Também é possível constatar o lugar de essência representado pelo então publicano, pois este representava um pecador que possivelmente iria se arrepender de práticas consideradas fraudulentas na sociedade da época. Assim, a atitude de Jesus em ir à residência de Zaqueu e procurar persuadi-lo a deixar a vida pecaminosa, representa a essência do movimento por ele fundado – o Cristianismo. Além disso, o lugar da essência também aparece em Zaqueu, por se apresentar como um pecador, alguém que, conforme o discurso teológico, precisa de cuidados para que se arrependa e mude de vida, razão por que também se imprime o lugar de pessoa.
A seguir, o discurso bíblico afirma: “8 Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais” (Lc 19, 8). Neste momento, observa-se que o encontro de Jesus com Zaqueu provocou uma mudança de postura perante alguns possíveis atos impróprios cometidos por Zaqueu. O lugar argumentativo da quantidade é utilizado no texto quando Zaqueu diz: resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens e se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Nota-se que, por meio de razões quantitativas e por meio do uso de números, é que a argumentação se torna persuasiva nesses fragmentos destacados. O fato de querer restituir quatro vezes mais denota uma ideia de que Zaqueu realmente foi persuadido a reparar os possíveis danos que tivera cometido. Visualiza-se, desse modo, que o ethos positivo do orador Jesus Cristo projetou uma imagem digna de crédito, de confiança, o que fez com que Zaqueu acreditasse nas palavras do camponês de Nazaré e, em seguida, realizasse ações, ou seja, restituísse as pessoas que tivera prejudicado.
Depois que Zaqueu reconheceu que tinha cometido atos indevidos diante das pessoas, resolveu se retratar. Essa atitude lhe trouxe coisas boas, como pode ser visto no seguinte momento: “9 Então, Jesus lhe disse: Hoje, houve salvação nesta casa, pois também este é filho de Abraão” (Lc 19, 9). O orador Jesus recorre ao lugar argumentativo da qualidade, pois mostra que Zaqueu pertence a uma filiação única, rara, ou seja, a Abraão, considerado o pai da fé ou das nações na religião judaico-cristã. Mais uma vez, o uso de um lugar argumentativo engatilha as tentativas de persuasão, neste caso específico, por meio do discurso bíblico. Também é possível identificar a presença do despertar das paixões (pathos), pois realmente o orador Jesus Cristo suscitou a misericórdia, a compaixão para com o então publicano Zaqueu. As paixões, quando suscitadas, percorrem a máquina humana e levam o outro a realizar ações e foi isso que aconteceu com o cobrador de impostos.
No último momento do diálogo entre Jesus e Zaqueu é pronunciada a seguinte assertiva: “10 Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (Lc 19, 10). Nesse momento, identifica-se o lugar argumentativo de pessoa, pois Jesus mostra o zelo, o cuidado pelo aspecto humano, pela vida. Em termos estritamente religiosos, a salvação mencionada é para que nenhuma pessoa seja condenada e sofra consequências desfavoráveis. Assim, evidencia-se a importância das condições humanas em detrimento das coisas sutis e vãs. Portanto, são essas as possíveis estratégias retórico-argumentativas presentes no texto bíblico que engatilham as tentativas de convencimento e de persuasão por meio do discurso retórico, o logos aristotélico.
O grande objetivo desse artigo foi mostrar como o discurso teológico encontrado no Evangelho Segundo Lucas 19, 1-10 está fundamentado nos lugares da argumentação. Percebeu-se, por meio da análise retórica realizada, que o orador Jesus Cristo utilizou lugares argumentativos para tentar persuadir o publicano Zaqueu. O uso dos lugares, no discurso analisado, evidenciou que o orador Jesus Cristo agiu retoricamente e teve, sim, a intenção de persuadir Zaqueu.
Entre os lugares argumentativos utilizados pelo orador Jesus Cristo, bem como expostos no próprio discurso teológico, destacam-se os seguintes: essência, existente, pessoa, quantidade e qualidade. Verificou-se que, dos seis lugares da argumentação agrupados por Abreu (2009), apenas o lugar de ordem não foi contemplado no discurso teológico em análise. Nesse sentido, a partir das tentativas de persuasão suscitadas no discurso em tela, é possível considerar que o publicano Zaqueu foi persuadido por meio do discurso retórico.
A prova de que Zaqueu foi persuadido consta no próprio relato bíblico analisado, visto que, depois da conversa com Jesus, o publicano afirmou: “Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais” (Lc 19, 8). Nesse excerto, percebe-se que Zaqueu se arrepende das coisas que tinha feito e resolve mudar de vida. Por isso, se diz que a argumentação do orador Jesus Cristo, fundamentada nos lugares argumentativos, obteve êxito, pois conseguiu, de fato, persuadir Zaqueu.
Evocando o questionamento norteador: de que maneira os lugares da argumentação estão dispostos no discurso teológico do Evangelho Segundo Lucas 19, 1-10? Notou-se que o uso dos lugares retóricos aconteceu de forma estratégica no discurso bíblico. Além disso, o orador Jesus Cristo mostrou-se ser adepto de técnicas persuasivas e por meio delas procedeu ao ato de persuadir. O êxito da persuasão se deu pelo fato de os lugares argumentativos estarem postos no discurso teológico destacado e pelo fato de Jesus criar uma imagem positiva de si.
Esse trabalho contribui, de algum modo, com os estudos retóricos da linguagem; mais especificamente, numa perspectiva de análise retórica do discurso teológic0, pois mostraram-se as possíveis estratégias persuasivas utilizadas no discurso teológico, pelo orador Jesus Cristo, para persuadir o publicano Zaqueu. Com isso, evidenciou-se que, no material analisado, o discurso teológico apresenta elementos de natureza retórica que estão a serviço da persuasão e que o mestre nazareno utilizou recursos retóricos para proceder à persuasão.
Mesmo analisando apenas um excerto do Evangelho Segundo Lucas, depreende-se que em outros textos teológicos é possível analisar as estratégias retórico-argumentativas do orador Jesus Cristo. Acredita-se que essa antiga assertiva ainda está válida: “Nada há encoberto, que não haja de ser descoberto; nem oculto, que não haja de ser conhecido.” (Lc 12, 2). Isso desperta o interesse para a realização de outros estudos dessa natureza.