ARTIGOS
Recepção: 20 Fevereiro 2020
Aprovação: 02 Dezembro 2020
Resumo: O presente artigo parte da perspectiva de que a arte é um dos fenômenos especificamente humanos, a qual confere um sentido para a existência. Teve por objetivo apreender a visão de Viktor Frankl sobre a espiritualidade e a arte. Para atingir esse escopo, inicialmente discorreu-se sobre a relação entre a busca de sentido e a arte na perspectiva da Logoterapia e Análise Existencial e, em seguida, debruçou-se sobre onze obras artísticas que retratavam o livro Em busca de sentido. Pôde-se constatar, por meio de pinturas sobre o campo de concentração nazista, a presença do posicionamento espiritual dos prisioneiros. Concluiu-se que a arte seria uma via para reumanizar e transformar o mundo.
Palavras-chave: Arte, Sentido, Espiritualidade.
Abstract: The present article assumes that art is one of the specifically human phenomena which confers a meaning to existence. It aimed to capture Viktor Frankl’s view of spirituality and art. To achieve this goal, it began with a discussion about the relationship between the search for meaning and the art from the perspective of the Logotherapy and Existential Analysis. In addition, it analyzed eleven artistic works which portrayed the book Man’s Search for Meaning. Through the analysis of some pictures of Nazi concentration camps it was possible to capture the spiritual positioning of their prisoners. It concluded that art would be a way of rehumanizing and transforming the world.
Keywords: Art, Meaning, Spirituality.
Resumen: Este artículo parte de la perspectiva de que el arte es uno de los fenómenos específicamente humanos, lo que da sentido a la existencia. Su objetivo fue comprender la visión de Viktor Frankl sobre la espiritualidad y el arte. Para lograr este alcance, inicialmente se discutió la relación entre la búsqueda de sentido y el arte en la perspectiva de la Logoterapia y el Análisis Existencial, y luego se analizaron once obras artísticas que retrataron el libro En busca de sentido. Se pudo comprobar, a través de pinturas sobre el campo de concentración nazi, la presencia del posicionamento espiritual de los prisioneros. Se concluyó que el arte sería una forma de rehumanizar y transformar el mundo.
Palabras clave: Arte, Sentido, Espiritualidad.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é apreender a visão de Viktor Frankl (1905-1997) sobre a espiritualidade e a arte. Para tanto, analisou-se um conjunto de onze pinturas a óleo que foram inspiradas no livro Em busca de sentido (FRANKL, 2010). Pautou-se, assim, no seguinte questionamento: a arte, como uma forma de conhecimento, poderia ajudar na compreensão do posicionamento espiritual do prisioneiro em campos de concentração?
A obra Em busca de sentido descreve as reações dos prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial. O autor, embora médico psiquiatra e neurologista, fundador de uma escola de psicoterapia denominada Logoterapia e Análise Existencial, foi apenas um prisioneiro comum, sob o número 119.104. Ao descrever a sua experiência, destacou três fases distintas: O choque de entrada, a vida cotidiana e a libertação. Encontrou a arte como um movimento de resistência do espírito, como uma forma de expressão dos fenômenos humanos. Ademais, Frankl (2010) constatou a presença da religiosidade no campo de concentração, como orações em um barracão escuro; prisioneiros que rezavam o Pai Nosso ou a Shemá Israelense enquanto eram encaminhados para a câmara de gás, ou aqueles que salmodiaram no dia de sua libertação.
Nessa perspectiva, torna-se necessário fazer a distinção entre espiritualidade e religiosidade na ótica do autor em tela. Na religiosidade, o movimento do espírito se dirige além de si mesmo para um Tu transcendente ou um ser supramundano; na espiritualidade, por sua vez, esse movimento é também transcendente, mas permanece no nível mundano, pois direciona-se para a realização de valores e sentidos no mundo. O que há em comum entre ambas? Tanto a religiosidade quanto a espiritualidade são compreendidas como fenômenos humanos que representam uma busca de sentido (FRANKL, 2011).
A espiritualidade nesse olhar seria uma qualidade ontológica do ser em que se originam os fenômenos humanos primários, tais como: liberdade, responsabilidade, vontade, intencionalidade, interesses artísticos, criativos e valorativos (LUKAS, 1989). Assim, a espiritualidade transcende para a horizontalidade do ser, enquanto a religiosidade aponta para a sua verticalidade, em direção a um supra-Ser.
Segundo pensa Frankl (2010), o homem é um ser em busca de sentido, seja por meio do amor e da vivência do belo (valor vivencial), seja criando algo (valor criativo) ou se posicionando interiormente perante um destino inevitável (valor atitudinal). O sentido, por sua vez, deve ser descoberto no mundo, posto que se encontra latente em cada situação e sempre se modifica de pessoa para pessoa e de situação para situação. Nas palavras de Frankl (1989), “[...] é a própria vida que faz a pergunta ao homem. O que o homem tem que fazer não é interrogar, mas ser interrogado pela vida e à vida responder” (FRANKL, 1989, p. 96). Destarte, o ser humano encontra sentidos ao ser confrontado com valores na própria existência, desta feita, a fonte do sentido é a própria vida (FRANKL, 1978).
Dessa forma, sua principal característica é a preocupação com valores e sentidos em sua vida finita. Essa busca profunda emana do movimento do espírito ou da pessoa espiritual profunda. O espiritual, nessa perspectiva, se constitui por meio de atos criativos, posicionamentos internos ou por meio de atos intencionais dirigidos para algo ou alguém: “O homem é mais do que o organismo psicofísico: é pessoa espiritual. Nessa qualidade, é livre e responsável, livre ‘do’ psicofísico e ‘para’ a realização de valores e o preenchimento do sentido de sua existência.” (FRANKL, 1978, p. 177).
O autor evita propositalmente o substantivo espírito; para não dar uma conotação de substância ou uma realidade ôntica, prefere usar o termo espiritual como sinônimo de puro movimento, como uma entidade ontológica (FRANKL, 1978). Como movimento no ser, a pessoa, segundo a análise existencial frankliana, constitui a sua própria essência na medida em que converte as possibilidades de ser (potência) em realidades sedimentadas no passado. Pode-se afirmar, então, que: “O homem jamais ‘é’, ‘sempre chegará a ser’. Nunca alguém poderá dizer de si mesmo ‘sou aquele que sou’, apenas ‘sou aquele que chegarei a ser’, ou ‘serei o que sou’ – ‘serei actu’, segundo a realidade, o que sou potentia, segundo a possibilidade.” (FRANKL, 1978, p. 231-232).
A arte também pode ser compreendida por esse movimento de extrair um ser a partir das possibilidades (potentia), assim como a existência pode ser comparada a uma obra, pois “[...] cada ato é o seu próprio monumento.” (FRANKL, 1978, p. 150). Nessa perspectiva, o autor em análise aventou que “[...] o homem, efetivamente, assemelha-se a um escultor que trabalha com cinzel e martelo e pedra informe, de modo que a faz adquirir forma pouco a pouco.” (FRANKL, 1989, p. 110).
A artista plástica argentina, Patricia Tobaldo (2017), desenvolve o seguinte conceito de artes plásticas:
É uma forma de expressão que utiliza imagens através da criação. Para criar, utilizamos nosso acervo cultural interior, composto de experiências de vida, dor, frustração; uma espécie de reservatório artístico que se deve cuidar e retroalimentar continuamente. E a partir dessa busca ativa de imagens em nosso interior, nasce a arte (TOBALDO, 2017, p. 67, tradução nossa).1
Segundo a autora citada, a arte desvela a natureza essencial do ser, exercendo uma função ontológica. Por outro lado, a arte seria o alimento espiritual do ente, posto que se trata de um valor estético (TOBALDO, 2017).
Outrossim, conforme expressou o pensador vienense: “A arte foi uma vez definida como unidade na pluralidade. Analogamente, penso eu, pode-se definir o homem como multiplicidade na unidade.” (FRANKL, 1989, p. 4). Essa unidade abarca tanto o psicofísico quanto o espiritual/noológico. Esta última dimensão envolve as demais, constituindo a totalidade do ser humano.
Para o autor, a arte tem a sua origem na profundidade intuitiva do inconsciente espiritual, ou seja, em um inconsciente estético. Destarte, a raiz da criatividade possui sua raiz na profundidade emocional pré-reflexiva, posto que essa instância não é passível de autocontemplação, constituindo-se em um ponto cego. Em suas palavras, assevera que:
No artista, a inspiração corresponde à intuição, em si irracional, da consciência e, portanto, não de todo racionalizável e até tem suas raízes numa esfera de espiritualidade inconsciente. A partir dela, o artista cria; por conseguinte, as fontes a partir das quais ele cria encontram- se e permanecem numa obscuridade que nunca pode ser iluminada completamente com a consciência (FRANKL, 1985, p. 81).
Utilizando-se da arte como uma metáfora, Frankl (1978) compreendeu o psicofísico como um instrumento para expressão do espiritual, assim como é a relação entre o piano e o pianista. Assim sendo, conclui que: “[...] o afinador de piano tem a oportunidade de admirar como o virtuoso consegue tocar melhor, talvez, num piano desafinado do que um mau executante num piano afinado.” (FRANKL, 1978, p. 121)
Outra metáfora utilizada pelo autor em baila foi quando comparou o sentido de cada ser humano em sua comunidade com a arte do mosaico. Segundo o seu pensamento, por um lado, cada pedra do mosaico, assim como o ser humano, seria imperfeita e apenas se complementaria no todo; por outro lado, cada pedra teria o seu valor e não poderia ser substituída (FRANKL, 1989). Dessa forma, compreende-se que o ser humano seria um ente de abertura para a sua comunidade, o que o caracterizaria como um ser de transcendência. Por conseguinte, o homem e o mundo se constituiriam em uma unidade na qual se estabeleceria o campo de atuação do ser, onde o ente encontraria sentidos e valores existenciais.
Portanto, a característica fundante do ser é a autotranscedência, considerando que “[...] o homem transcende não só o meio ambiente em direção a um mundo, ao mundo, mas também o seu ser em direção a um dever.” (FRANKL, 1991, p. 62). Nesse movimento de autotranscedência, Viktor Frankl também compôs um tango e sua respectiva letra, após a Segunda Guerra, para a sua primeira esposa, que faleceu no campo de Bergen-Belsen:
Que eu sempre em você Tenha que pensar,
Isso me faz triste:
Eu penso o dia inteiro,
A noite inteira
Somente em você.
Porém que eu sempre
Consiga sonhar com você,
Isso me faz feliz:
Feliz – todas as noites
Nas quais você
Aparece
No entanto, quando se faz manhã,
E se acorda,
Então aguardo impacientemente
Que se faça noite
Pois – Que eu sempre em você
Tenha que pensar (FRANKL apud AQUINO, 2017, p. 52).
Sobre a relação entre arte e o pensamento de Viktor Frankl, Aquino e Tobaldo (2017) trabalharam em conjunto unindo a visão antropológica por meio de poemas, no caso do primeiro autor, e imagens, no caso do segundo; e apresentando conceitos ontológicos, como o leitor poderá observar no poema a seguir:
A vida é uma arte
Pois como o artista
Compõe sua obra
Criativamente,
Construímos também nosso ser
Existencialmente
(AQUINO; TOBALDO, 2017, p. 83, tradução nossa).2
Outra perspectiva de unir a arte com o pensamento de Viktor Frankl foi a tentativa de trabalhar para a construção de uma cultura de paz, como se pode constatar no trabalho de Cruz e Aquino (2019). Os autores descrevem uma experiência em sala de aula por meio da construção de uma materialidade estética a partir do livro Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração (FRANKL, 2010). Após a leitura e debate desse livro, os educandos produziram criativamente uma releitura por meio das artes plásticas e da construção de poemas. No seguimento, discutir-se-á a arte como uma condição necessária para despertar a humanidade do ser humano.
2 A ARTE SALVARÁ A HUMANIDADE
Em uma peça de teatro, escrita por Viktor Frankl após a Segunda Guerra Mundial, Sincrinización en Birkenwald (FRANKL, 2006), retrata a situação da humanidade naquele momento, com ausência de fé e crença em si mesmo ou em uma ideia. Dessa forma, apresenta um diálogo entre os grandes filósofos sobre o mundo contemporâneo:
[...] Sócrates: Estou preocupado com a humanidade
Kant: Está bem..., admito que tenhas motivos muito puros.
Sócrates: Atualmente, não encontro uma saída.
Spinoza: Sim... e isto é?
Sócrates: Não rias. Eu falei com contemporâneos...
Kant: Contemporâneos? Ah, queres dizer compatriotas...
Sócrates: Sim.
Kant: Bem... e?
Sócrates: Eles são antigos gregos escritores de tragédias.
Kant: Sim, e...?
Sócrates: Eles dizem que há uma única saída.
Kant: Qual?
Spinoza: Vamos, diz-nos, qual é?
Sócrates: (enfaticamente) As artes. Eles dizem que somente as artes podem influir sobre a humanidade.
Kant: Hum... Não é uma má ideia.
Sócrates: (animado) Francamente, eu não pensava assim. Mas, não há outra saída. Agora estou convencido disso.
Spinoza: As artes oferecem fantasias, mitos, ficção, mas não verdade. Devemos sustentar essa classe de coisas?
Kant: Spinoza, isso é ridículo, desculpe-me por ser tão rude. Mas... as artes representam irrealidades mais próximas à verdade que aquelas que o homem chama realidades.
Spinoza: Tens razão... Mas com as artes abrimos comportas [...]. (FRANKL, 2006, p. 20-21, tradução nossa).3
Como dito anteriormente, a arte pode ser compreendida como uma forma de realizar sentidos na vida na medida em que se constitui como um fenômeno originariamente humano. Assim, não se pode reduzir a arte com a energia que alimenta a vida cultural. Quando está sob a perspectiva da infraestrutura de uma cidade, apenas se percebe canos de água, gás e eletricidade, que alimentam as universidades, museus e igrejas. Entretanto, a vida espiritual/cultural não se compõe apenas desses elementos (FRANKL, 1978).
Como um fenômeno originário, pode-se compreender que a arte no campo de concentração foi possível entre os prisioneiros, na medida em que expressavam um fenômeno humano interpretando peças de teatro improvisadas ou tocando um tango em uma noite em Auschwitz. Além disso, a própria natureza resplandece uma manifestação artística, quando o sol poente, entre os pinheiros da floresta bávara, lembrava uma pintura em aquarela de Albrecht Dürer (1471-1528), pintor renascentista nórdico (FRANKL, 2010). Assim foi descrita por Frankl (2010) a pintura nos céus da Polônia durante a Segunda Guerra:
Vimos então o ocaso incandescente e tenebroso, com todo o horizonte tomado de nuvens multiformes e em constante transfiguração, de fantásticos perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até o escarlate sangue, contrastando pouco mais abaixo com os deslocados barracos cinzentos do campo de concentração e a lamacenta área onde é feita a chamada dos prisioneiros, em cujas poças ainda se refletia o céu incandescente (FRANKL, 2010, p. 58).
Durante a contemplação estética do pôr do sol, o pensador faz a seguinte reflexão ética: “[...] o mundo poderia ser tão belo!” (FRANKL, 2010, p. 58). Aqui, o autor desvela o contraste entre o que o mundo é (barracos cinzentos) e o que poderia ser (um céu multicolorido), possibilitando demonstrar que a estética pode ser uma via régia para despertar o ético no espírito humano.
A arte manifesta o humano no ser humano, dessa forma, a arte poderia ser uma via de acesso à dimensão espiritual. Tobaldo (2017) relatou que, ao ler o livro de Viktor Frankl Em busca de sentido, teve uma sensação de que se tratava de um tratado sobre a luz, e que essa luz se direcionava para o mundo interior. Em suas palavras, relatou:
Uma vez lida a última linha senti que essa luz me estava indicando um novo caminho, e em algum ponto de minha concepção artística experimentei uma espécie de ressignificação do conceito de pintura; percebi que os valores compositivos da forma, cores ou materialidade passavam a um segundo plano, e sabia que a pergunta “Por que pintar?” Não lhe cabia nenhuma resposta, que apenas era uma maneira de auto transcender, como em qualquer outra atividade ou plano da vida (TOBALDO, 2017, p. 27, tradução nossa).4
Nessa capacidade de proporcionar autodistanciamento, a arte poderia salvar a humanidade? Como seria efetivamente a prática dessa ideia? É inimaginável ver os tanques de guerra serem detidos pela arte, a fome e a miséria serem aplacadas por ela, o mal da indiferença ser tratado por meio da arte, ou mesmo as fronteiras serem derrubadas em nome da estética. Mas, sendo a arte incapaz de salvar a humanidade, ao menos poderia salvar a própria humanidade do ser humano? A arte não salvará a humanidade, mas salva a humanidade do ser humano; o ser humano, por sua vez, salvará a humanidade.
Nas palavras de Tobaldo (2017), “[...] a arte aponta, assim, para a transformação do mundo.” (TOBALDO, 2017, p. 76, tradução nossa).5 Nessa direção, o próximo tópico apresenta algumas obras artísticas inspiradas no livro Em busca de sentido.
3 REPRESENTAÇÃO ESTÉTICA DO LIVRO EM BUSCA DE SENTIDO
O livro Em busca de sentido apresenta a descrição, as vivências e posicionamentos espirituais dos prisioneiros nos campos de concentração nazistas. Tobaldo expressou em seu livro Encuentro de Viktor Frankl a través del arte (TOBALDO, 2015), por meio de sua pintura, as suas impressões sobre aquele livro. Mas seria possível retratar esse momento trágico dos porões da humanidade e ainda denominar arte? A esta pergunta, Frankl responde:
Se a arte há de ser verdadeira não cabe exigir que seja ao mesmo tempo bela. Isso seria confundir estética com cosmético e fazer do artista o membro de uma associação de embelezamento da sociedade. Assim como o homem não é um turista solto no mundo, tampouco a arte é uma associação destinada a enfeitar o real (FRANKL, 1978, p. 228).
O próprio Viktor Frankl possuía um quadro pintado pelo artista plástico Otto Ungar, que era seu primo. A tela representava um lugar próximo ao gueto de Theresienstadt onde eram sepultados os mortos, o mesmo lugar no qual ele teria sepultado seu pai (FRANKL, 2000). Nessa mesma direção, o autor desse artigo produziu um conjunto de obras artísticas com a intenção de expressar e tornar visível aquilo que é invisível, com o intuito de se aproximar de uma compreensão ontológica da vivência do campo de concentração a partir da pintura.
As obras aqui apresentadas foram inspiradas na perseguição aos judeus; de forma mais específica, no relato do sobrevivente 119.104, o que de fato mostra que há uma intenção para um determinado grupo, tendo em conta que existiam outras categorias de prisioneiros. “Mas de si mesma, a arte sempre é tendenciosa, porque tende para a humanidade.” (FRANKL, 1978, p. 227).
Na descrição de Frankl (2010), o homem é um ser que decide. Nesse instante emerge o espiritual que se encontra latente no invólucro do psicofísico. Quais foram os indicativos desse movimento de resistência do espírito em uma condição subumana? Nas representações plásticas do livro Em busca de sentido, encontra-se esse movimento de transcendência do espírito humano. A obra representada na Figura 1 recorre à Estrela de Davi, que foi a identificação imposta pelo sistema nazista para os judeus.

Nesta obra, encontra-se uma cerca de arame farpado, sugerindo o aprisionamento do espírito humano. Não obstante, a estrela de cor amarela parece protestar, pois não é possível aprisionar a dimensão espiritual. A perspectiva de figura e fundo sugerem que é possível ainda se posicionar, sobretudo quando o ser humano se encontra cerceado em sua liberdade de ir e vir. Ao fundo, encontra-se a parte escura, o que bem pode representar o temor dos prisioneiros, sobretudo o de não ser digno do seu destino sofrido.
Para muitos, o destino final foram as câmaras de gás, conforme retrata a Figura 2. Não se sabe para onde estão sendo encaminhados, pois andam na escuridão dos corredores de arame. Ao fundo da névoa, aparece a chaminé do forno crematório, fluindo uma fumaça escura. A dúvida e o temor em decidir levam o prisioneiro a perder a sua principal característica como ser humano: tomar decisões.

Viktor Frankl foi um dos selecionados para o trabalho forçado; era um jovem médico que tinha um futuro brilhante e que fora interrompido pela Segunda Guerra Mundial. Agora, em vez de usar uma bata branca, recebe uma roupa de listras azuis. A Figura 3 demonstra o início de sua estada, entre os fios de alta tensão e o forno crematório.

Nesta condição, em campos de concentração, Frankl questiona-se acerca do sentido do sofrimento, da dor e da morte. Daquele dia em diante ele teria apenas 5% de chances de sair vivo. Sua posição espiritual foi fazer um pacto consigo mesmo, por esse motivo, apertou as suas mãos e prometeu que nunca iria se jogar ao fio.
A sensação espiritual do prisioneiro era a de ser um cadáver vivo, pois apenas possuía passado, mas nenhum futuro se vislumbrava de forma imediata. A pergunta inquietante era: para onde foram os outros prisioneiros? A preocupação do médico Frankl era salvar o seu manuscrito, que se tratava de uma obra científica; e com o seu amigo, que perdera de vista:
Ele foi mandado para o outro lado? – sim – respondi. – então, podes vê-lo ali, disseram. – Onde? Uma mão aponta para uma chaminé distante algumas centenas de metros, da qual sobe assustadora e alta labareda pelo imenso e cinzento céu polonês, para se extinguir em tenebrosa nuvem de fumaça (FRANKL, 2010, p. 27).
A representação dessa imagem se encontra na Figura 4: nela, pode-se observar o imenso complexo que era constituído por câmara de gás e forno crematório. O autor relata que muitos caminhavam ao encontro de sua própria morte de cabeça erguida, cantando uma canção ou orando um Pai Nosso, ou uma prece em hebraico.

Uma das primeiras reações dos prisioneiros foi a apatia ou mortificação dos sentimentos, que exercia uma função de proteção do prisioneiro. A Figura 5 representa essa reação psicológica de se tornar insensível. Não obstante, a humanidade ainda resiste a todas as condições externas e internas, pois ainda há “[...] revolta pela injustiça ante a falta de qualquer reação.” (FRANKL, 2010, p. 39):

A liberdade espiritual pode ser retratada na Figura 6. A pessoa espiritual pode, por fim, agir de forma distinta do seu psicofísico. São possíveis, ainda, gestos humanos e solidários, como dar um pedaço de pão para alguém mais faminto, dar uma palavra para elevar o ânimo, ou dar a sua própria vida para ganhar um sentido existencial. A tela em questão apresenta um prisioneiro que transcende os condicionamentos e eleva-se na sua verticalidade interior:

Os arames farpados representam os condicionamentos biopsicossociais que caracterizam o destino imutável. Mas o prisioneiro ainda é capaz de dar um salto para a sua liberdade e se tornar ontologicamente mais que o seu sofrimento, tornando-se alguém, e não apenas um objeto ou um mero joguete das forças ambientais.
Ainda é possível a sensação de ser pessoa por meio da contemplação do pôr do sol em um campo de trabalho forçado, conforme demonstra a Figura 7. Na cancela, encontra-se escrito Halt, ou seja, Pare. Seria um aviso para as duas árvores secas que se encontram ao fundo? Pare! O sol ainda continua a brilhar, mesmo com a indiferença das casas sem janelas ou portas que não deixam transpassar os raios da estrela maior, que representa a indiferença perante o sofrimento.

Outro elemento que chama atenção é a cor da terra, com tonalidades escuras que se espalham por todo o espaço livre, que deveria ser o caminho dos cativos para o trabalho, a única condição que os preservava distante das câmaras de gás. Frankl (2010) assim expressa: “Quem não vivenciou pessoalmente a situação reinante num campo de concentração não faz a menor ideia da radical insignificância a que se reduz o valor da vida do indivíduo ali internado.” (FRANKL, 2010, p. 20).
Há momentos em que a luz resplandece nas trevas dos campos – et lux in tenebris lucet. Ocasiões em que os sentidos e os valores iluminam a existência. São situações de orações, contemplações, diálogo com o ser amado ou vislumbres de um valor a ser ainda realizado em um futuro próximo ou distante. Esta condição humana se encontra representada na Figura 8 por meio de uma vela que cintila no escuro da noite. A vela pode ser um símbolo da vida, mas o homem é mais do que o seu processo de combustão que se esvai com um vento, pois é um ser de transcendência:

Já a Figura 9 representa o violino de Auschwitz, que fez presente o ser amado por meio de um tango que transpassa a madrugada. A liberdade interior é representada pela ausência de arames farpados. O violino flutua no ar e atravessa o portal em que está escrito: o trabalho liberta. Mas a liberdade interior e o poder de contemplar alguém têm a força de libertar o espírito das amarras do psicofísico. Nota-se também que uma composição está inscrita nos céus, representando a musicalidade ou as marcas da existência da pessoa amada. O ter sido, ou a historicidade do ser humano, demarca um fenômeno atemporal, como uma partitura que pode ser tocada e interpretada a qualquer momento, independente da época e do lugar, resguardado da transitoriedade da existência:

O dia da libertação é representado por meio da Figura 10. O ser humano volta a ser humano na medida em que é um ser que decide e se guia por sua dimensão espiritual. Isso pode ser apreendido por meio de suas pegadas na terra. O ex-prisioneiro se ajoelha perante o sol que resplandece no horizonte. Agora, o manuscrito da sua existência está no passado, mas a vida se vive de forma prospectiva, esperando novas marcas para reconstruí-la. Na folha de papel perdida na terra está escrito: trotzdem Ja zum Leben sagen (FRANKL, 1977), ou seja, dizer sim à vida apesar de tudo, uma condição necessária para continuar o seu caminhar no mundo sem perder a esperança no Logos incondicional da existência, representado aqui por meio do sol.
Não há alegria no coração do libertado, mesmo nesse dia tão esperado e sonhado por eles. Frankl (2010) foi libertado no dia 27 de abril de 1945, e relata que a sua vivência pode ser comparada com um pesadelo “[...] porém, é coroada pelo maravilhoso sentimento de que nada mais precisa temer neste mundo depois de tudo que sofreu – a não ser seu Deus.” (FRANKL, 2010, p. 119).

Por fim, a Figura 11 retrata o próprio Viktor Frankl de forma introspectiva. O portal de Auschwitz está no passado, enquanto seu olhar está confiante no futuro. O que representa o movimento da espiritualidade que ocorre no espaço e na temporalidade do ser-no-mundo.
Por meio do sofrimento, Frankl (2010), conheceu o ser humano de uma forma realista, e, após a sua experiência como prisioneiro, chegou a concluir que o Homem é tanto o ser que inventou a câmara de gás quanto o que caminhou para ela com uma postura interior em seus últimos momentos de vida. Assim, por meio de um posicionamento espiritual, pode-se conferir um sentido tanto ao seu sofrimento quanto à sua morte.

Ao que tudo indica, Viktor Frankl, construiu a sua teoria por meio de sua inspiração da mesma forma que um artista compõe a sua obra. O autor ensinou também a redescobrir a arte de viver, assim como o poder da arte em conferir sentido à vida. Por esse motivo, tornou-se necessário compreender a sua perspectiva sobre o ser humano por meio da sensibilidade artística e intuitiva.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Arte, na perspectiva de Frankl (1978), encontra-se em duas categorias valorativas: nos valores criativos, quando se cria uma obra artística; e nos valores vivenciais, quando se contempla o fenômeno da arte. Além disso, considera-se que, quando o ser humano expressa o seu sofrimento inevitável por meio de uma obra criativa, pode-se concebê-la em uma terceira categoria: os valores atitudinais. De forma geral, o espiritual na arte pode ser compreendido como a adesão aos valores transcendentes.
No caso do presente artigo, seu objetivo não foi abarcar o fenômeno da arte em sua totalidade, mas tão somente apreender a visão de Viktor Frankl sobre a espiritualidade e a arte; para tanto, utilizou-se da pintura a óleo para compreender o posicionamento espiritual dos prisioneiros. Entretanto, como admite o autor em foco, “[...] toda e qualquer sinfonia, como qualquer outra obra de arte, é sempre algo de imperfeito.” (FRANKL, 1989, p. 334). Da mesma forma, as telas aqui retratadas não expressam a totalidade do fenômeno espiritual tão bem descrito pelo sobrevivente de Auschwitz.
Desta feita, a releitura do livro Em busca de sentido possibilitou dar formas e imagens aos relatos e às reflexões do prisioneiro 119.104. Ademais, a pintura a óleo clarificou algumas vivências dos internos nos campos de concentração, sobretudo seus posicionamentos espirituais, exercidos facultativamente, conforme relatou Viktor Frankl. De forma geral, constatou-se que a estética pode ser uma via régia para a apreensão do ethos compreendido como uma morada melhor ou um mundo possível. Oxalá, que a contemplação da arte possa despertar a dimensão da espiritualidade, tornando a humanidade mais humana.
REFERÊNCIAS
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Notas