Resumo: A proposta deste artigo é analisar excertos extraídos do livro Poesias, de Joaquim José Oliveira Freitas – conhecido simplesmente por Seu Freitas – com enfoque nos aspectos ligados ao seu simbolismo, ressaltando características essenciais para a compreensão da religião como fornecedora de sentidoe, sobretudo, como forma de expressão de uma experiência fundamental – quiçá, a experiência religiosa. Para tanto, procura-se identificar e extrair do conjunto das 208 poesias fragmentos que permitam uma articulação com o aspecto religioso, seja explicitamente posto ou, mesmo, tangencialmente presente. Na primeira parte do texto a discussão sobre o sentido é auxiliada por autores do campo da antropologia da religião e da teologia. Em seguida, após contextualizar autor e obra, as categorias conceituais conquistadas são revisitadas à luz do material de Seu Freitas. Enfim, assumindo uma posição liminar entre discussão científica e tributo, o texto também pretende contribuir na ampliação do alcance do legado de um autor da cultura popular brasileira cuja expressão artística ainda permanece relativamente ignorada.
Palavras-chave:Seu FreitasSeu Freitas,ReligiãoReligião,SentidoSentido,ImaginárioImaginário,SimbólicoSimbólico.
Abstract: The purpose of this article is to analyze extracts from the book Poesias, by Joaquim José Oliveira Freitas – known merely as Seu Freitas – with a focus on aspects related to its symbolism, highlighting essential characteristics for the understanding of religion as a provider of meaning and above all, as a way of expressing a whole experience – perhaps, the religious experience. To this end, we seek to identify and extract from the set of 208 poetry fragments that allow articulation with the religious aspect, whether explicitly placed or even tangentially present. In the first part of the text, the discussion about the meaning is assisted by authors from the anthropology of religion and theology. Then, after putting the author and work in context, the conquered conceptual categories are revisited in the light of the material from Seu Freitas. Finally, assuming a preliminary position between scientific discussion and tribute, the text also intends to contribute to expanding the reach of the legacy of an author of Brazilian popular culture whose artistic expression remains relatively ignored.
Keywords: Seu Freitas, Religion, Meaning, Imaginary, Symbolic.
Resumen: El propósito de este artículo es analizar extractos del libro Poesias, de Joaquim José Oliveira Freitas – conocido simplemente como Seu Freitas – con un enfoque en aspectos relacionados con su simbolismo, destacando características esenciales para la comprensión de la religión como proveedora de significado y sobre todo, como forma de expresar una experiencia fundamental, tal vez la experiencia religiosa. Para ello, buscamos identificar y extraer del conjunto de 208 fragmentos de poesía que permitan una articulación con el aspecto religioso, sea colocado explícitamente o incluso tangencialmente. En la primera parte del texto, la discusión sobre el sentido es asistida por autores del campo de la antropología de la religión y la teología. Luego, después de poner en contexto al autor y la obra, se revisan las categorías conceptuales conquistadas a la luz del material de Seu Freitas. Finalmente, asumiendo una posición preliminar entre la discusión científica y el homenaje, el texto también pretende contribuir a ampliar el alcance del legado de un autor de la cultura popular brasileña cuya expresión artística aún permanece relativamente ignorada.
Palabras clave: Seu Freitas, Religión, Sentido, Imaginario, Simbólico.
ARTIGOS
A RELIGIÃO COMO FONTE DE SENTIDO NAS POESIAS DE "SEU FREITAS"
RELIGION AS A SOURCE OF MEANING IN THE POETRY OF SEU FREITAS
LA RELIGIÓN COMO FUENTE DE SENTIDO EN LA POESÍA DE SEU FREITAS
Recepção: 09 Novembro 2020
Aprovação: 14 Dezembro 2020
Este artigo origina-se de inquietações suscitadas durante a disciplina Matrizes Teóricas da Antropologia da Religião, oferecida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Mediante o contato com as obras de autores como Castor Bartolomé Ruiz (2005), Aldo Natale Terrin (2004) e Clifford Geertz (1989; 2001) – entre outros autores de peso no campo da antropologia e da fenomenologia da religião – procuramos, a partir da dimensão simbólico-imaginária por eles constantemente referida, realizar uma aproximação interpretativa do livro Poesias, de Joaquim José de Oliveira Freitas, popularmente conhecido como Seu Freitas. Através da análise de exemplos extraídos das poesias que compõem o livro, tem-se a intenção de desenvolver a hipótese de que essas podem ser consideradas expressão de uma experiência religiosa profunda, isto é, veículo e conteúdo para a constituição de sentido.
Pensar a religião como forma de imposição de sentido é algo que nos faz remeter às primeiras discussões em nível da antropologia e/ou da sociologia da religião. Sobre isso falou Émile Durkheim (1975), em seu Formas elementares da vida religiosa. Uma questão que também impactou a reflexão de teóricos mais recentes, como é o caso de Peter Berger (1985), em O Dossel sagrado. Tanto para o primeiro, quanto para o segundo, a religião deve ser lida como uma forma social que contribui na passagem de uma realidade anômica e, por isso, sem sentido por si mesma, para o mundo religiosamente ordenado – condição de sanidade e subsistência para o ser humano. Para além de suas correlatas conceituais, contudo, foi no âmbito da fenomenologia da religião que esse assunto se radicalizou.
Aglutinou interesses desde os primeiros movimentos do holandês van der Leeuw (2009), em seu primoroso trabalho A religião em sua essência e suas manifestações, publicado originalmente em 1933, ou, mesmo, chamou a atenção de pesquisadores cuja contribuição em nível internacional têm se mostrado relevante – como é o caso da professora Angela Ales Bello, fundadora do Centro de Italiano de Ricerche Fenomenologiche, com recente publicação no Brasil, em que ensaia uma rigorosa aproximação ao tema1 (BELLO, 2018). Em suma, trata-se de uma constatação sem a qual, segundo julgamos, não é possível uma adequada apropriação da experiência religiosa. Além disso, tomar o sentido como fonte de interpretação da religião pode resultar no que Aldo Terrin (2004) nomeou como “cultura da hospitalidade”, isto é, um pensamento voltado para a alteridade de maneira receptiva, desde o outro imediatamente posto à convivência imediata, até o grande Outro, retratado pela análise fenomenológica da religião como fonte e referência de sentido (OTTO, 1985).
Na esteira dessas discussões dispomos as páginas que seguem, que, em termos estruturais, dividem-se em três seções. Na primeira, é explorada a concepção de religião como fornecedora de sentido. Nessa seção em especial nosso recorte teórico é dirigido pela leitura semiótica oferecida pelo antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1989) – um dos maiores referenciais para a compreensão do fenômeno religioso ainda em nossos dias. Em seguida – e seguindo a inclinação dada pela primeira seção – avançaremos em busca de explicitar o universo religioso como uma realidade simbólico-imagética, a qual é responsável pela passagem do real imediatamente posto para a realidade dotada de sentido instaurada pela experiência religiosa. Ter-se-á como meta entender esse movimento em sua função de sustentação do ser humano em seu projeto de constituição de um mundo pessoal e comum. Enfim, na terceira e última seção o diálogo com as poesias de Seu Freitas ganhará realce, como tentativa de fortalecer a discussão das páginas precedentes. A discussão principiará por uma breve contextualização do autor e de sua obra, seguida da indicação e do comentário de alguns excertos escolhidos.
Em meio ao conjunto de poesias de autoria de Seu Freitas, sobre quem falaremos com mais cuidado um pouco adiante, para início de conversa destacamos o seguinte fragmento do poema O espiritismo é a doutrina de Jesus:
[...] O mundo está cheio de religião
Cada uma se arroga de senhora
Porém Deus está mostrando agora
Os efeitos de sua poderosa mão.
Tudo Deus fez com a mais justa razão
E a razão no caminho nos conduz
Em direção ao sacrifício da cruz
Onde consumou-se a verdade
O espiritismo é a doutrina de Jesus.
Para além do multiforme campo de experiências religiosas empreendido durante sua vida, nos versos acima Seu Freitas explicita a importância do espiritismo para a sua composição simbólica pessoal. Nesse intuito, escolhe a poesia como forma de expressão de sua experiência, ancorada numa perspectiva simbólico-imaginativa. Por isso, antes de nos ocuparmos com a interpretação das poesias a partir de categorias conceituais mais específicas, movemo-nos em direção a uma necessidade precípua: tendo a poesia como veículo de expressão, qual a importância e/ou o significado da religião como fornecedora de sentido? Sobre isso, reportamo-nos às análises do antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006), as quais podem mostrar-se esclarecedoras. Geertz (1989) salienta que a vocação essencial da antropologia não é responder com fórmulas definitivas as questões mais profundas que trazemos, mas, sobretudo, colocar à nossa disposição as tentativas de resolução elaboradas por outros (indivíduos e sociedades humanas), incluindo-as no registro de consultas sobre o que a humanidade elaborou ao longo dos séculos. No rol dessas construções simbólicas e materiais, o autor alerta para o lugar da antropologia na investigação da religião, tomada como objeto específico ou, mesmo, como fonte de acesso a um horizonte cultural.
A senda antropológica que aos poucos se abre obriga-nos a exercitar nosso olhar para as dimensões simbólicas da dinâmica social, tal como está presente nas artes, na ciência ou no senso comum. Não apenas como provocação ao afastamento metodológico inerente a toda e qualquer investigação, mas obrigando-nos ao confronto com os dilemas existenciais da vida vivida, ao mergulho em sua profundidade como vivências efetivas e estruturantes das cosmovisões disponíveis, âmbito em que descobrimos a religião como interface de significado e de sentido. De acordo com Geertz (1989), a religião contém, expressa e alimenta os aspectos do ethos de determinada composição social. Para lidar com o duplo aspecto da religião, tanto como doadora quanto como chave de leitura do sentido, a proposta que ora se coloca exprime-se na atenção dada aos simbolismos e à forma como esses se apresentam: percepções estéticas, morais e suas correspondentes visões de mundo; a busca de seu verdadeiramente real. A religião, dessa forma, embora se componha a partir de uma estruturação distinta de áreas como a ciência, a filosofia e o senso comum, inclui-se junto a essas na medida em que configura a potência humana em sua capacidade de mundanizar-se, quer dizer, constituir a totalidade implícita em sua ordem de mundo. Aqui se põe a dimensão da busca por sentido que preconizamos, já que a religião, nas palavras de Geertz (1989, p. 82),
[...] se move além das realidades da vida cotidiana em direção a outras mais amplas, que as corrigem e completam, e sua preocupação definidora não é a ação sobre essas realidades mais amplas, mas sua aceitação, a fé nelas [...]. Ela difere da perspectiva científica pelo fato de questionar as realidades da vida cotidiana não a partir de um ceticismo institucionalizado que dissolve o “dado” do mundo numa espiral de hipóteses probabilísticas, mas em termos do que é necessário para torná-las verdades mais amplas, não-hipotéticas. Em vez de desligamento, sua palavra de ordem é compromisso, em vez de análise, o encontro. (GEERTZ, 1989, p. 82).
Ao contrário da ciência, por exemplo, cujo critério de aproximação da natureza supõe a divisão metodológica em partes a serem compreendidas, donde podemos supor que a atividade científica tem como marca a cisão do mundo, a religião integra, dispõe ao encontro com a diversidade, com os outros e o grande Outro. Movendo-se para além do imediatamente posto, da normalidade incrustada na aparência, a religião provoca ampliações. Mas isso apenas partindo da cotidianidade, como possibilidade de questionamento; como ultrapassamento que provoca a abertura para as condições mais amplas da existência, para o compromisso com o acontecimento do sentido, haja visto que “ela aprofunda a preocupação com o fato e procura criar uma aura de atualidade real” (GEERTZ, 1989, p. 82). Tal procura reforça sua posição fundamental como fornecedora de sentido que não dissocia a realidade, mas associa, cria vínculos, fornece os elementos de leitura do que está posto ao nosso redor, integra. Na concepção do antropólogo, portanto, é sempre preciso admitir a densidade de significados relativa à religião, que afeta o que crê profundamente, dispondo-o a se reconhecer como sujeito num mundo, configurado como agente de sua cultura. Talvez por isso – mas não somente – a leitura da religião como constituidora de sentido é uma constante nos estudos que envolvem a cultura, já que
[...] os ideais religiosos e as práticas avançam juntos, aos tropeços, à medida que se deslocam pela história, constituindo, a rigor, um processo inseparável, que o “Sentido” começou a ser visto como algo mais, ou como algo diferente de um verniz convencional, aplicado sobre uma realidade estável. (GEERTZ, 2001, p. 153).
Aqui Geertz é claramente tributário da leitura de Max Weber (1999) e de sua proposta de uma “sociologia compreensiva” também no tocante à religião. Seu weberianismo lança ainda mais luz sobre o desdobramento da religião como sentido. Os ideais religiosos e as práticas, por exemplo, sempre avançam, não estando nunca desvinculados de sua relação com a história. Se a perspectiva do sentido deixa de ser vista como verniz e a religião passa a ser enxergada como densa de significados, põe-se em destaque o seu papel como instância fornecedora de sentido. Dito isso, porém, uma questão ainda se mostra relevante para nós: mas o que, fundamentalmente, pode ser compreendido da religião numa perspectiva de constituição de sentido? Recorrendo uma vez mais ao pensamento de Geertz, talvez seja o momento de evocarmos a sua clássica definição da religião como sistema simbólico, presente em sua obra de maior relevância: A interpretação das culturas. Sem maiores delongas, para esse antropólogo, religião é:
[...] (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 1989, p. 67).
Nos termos da vida concreta, como compreender a religião como sistema de símbolos? Como, além disso, perceber a sua importância enquanto fornecedora de sentido? Para Geertz os sistemas de símbolos atuam a fim de garantir a manutenção do mundo dos humanos. Ou seja, trata-se de uma ordenação/orientação, uma comunicação com os aspectos extrínsecos fornecidos pela realidade objetiva, a qual passa a ser vista como um mundo – isto é, uma totalidade ordenada. Noutras palavras, trata-se da atuação do símbolo como fornecedor de significado. A cruz, por exemplo, para algumas religiões e em particular para o cristianismo, retrata essa concepção, ou seja, o papel precípuo dos símbolos como interpretação e comunicação entre o sujeito religioso e sua existência. Dependendo da conotação ritualística fomentada, a ordenação e/ou manutenção do mundo deste crente influi com sua força determinante, preenchendo determinada vivência de sentido, um sentido que posteriormente poderá se articular na composição de um mundo comum, mas que sempre partirá de cada experiência particular. A religião, vista desde essa ótica, é apreendida como fornecedora de e constituidora de sentido. Este ponto é esclarecido por Geertz no seguinte fragmento:
O que qualquer religião particular afirma a respeito da natureza fundamental da realidade pode ser obscuro, superficial ou, o que acontece muitas vezes, perverso; mas ela precisa afirmar alguma coisa, se não quiser consistir apenas em uma coletânea de práticas estabelecidas e sentimentos convencionais aos quais habitualmente nos referimos como moralismo. (GEERTZ,1989, p. 73).
A religião precisa afirmar-se, provocar sentindo, compor um mundo. Dito em poucas palavras: a religião existe para fornecer sentido. Partindo do pressuposto de que o ethos é uma forma fundamental de tal expressão, destaca-se seu papel como um dos principais mecanismos na composição de um sistema de símbolos. É, portanto, um sistema que atua como chave para a leitura do mundo ao redor, como chave para uma leitura social. Assim, ao compreendermos a religião como um sistema simbólico, o conceito de símbolo adquire uma função específica: evocar o significado do que não está disponível no plano da materialidade. A perspectiva da hospitalidade referida anteriormente é outra vez posta em cena, já que o símbolo joga com uma realidade que o ultrapassa; o símbolo refere-se constantemente a outro, mas não como pura remissão à outridade, o outro, nesse caso, é fundamentalmente parte de si. Mas como compreender o simbólico como expressão de sentido e reforço à perspectiva religiosa? E por que o imaginário, enquanto forma criadora, é essencial nesse processo? Embora até aqui tenhamos conquistado alguns dos pressupostos que orientarão nossa leitura das poesias de Seu Freitas, ainda necessitamos de uma breve incursão sobre o campo simbólico-imaginário.
Para tratarmos o tema que segue, gostaríamos de iniciar com uma referência retirada do livro Antropologia e Horizontes do Sagrado, de Aldo Natale Terrin:
[...] a sua nova abertura, concretizada na liberação simbólica de toda espécie de saber e na valorização de toda intuição significativa, na verdade oferece a possibilidade de novamente começarmos a pensar nas nossas simbologias, nos nossos horizontes religiosos com espírito de autenticidade [...]. (TERRIN, 2004, p. 8).
Ao falar de abertura o autor se refere às novas possibilidades inauguradas pela antropologia cultural e, mais que isso, à sua fundamental contribuição para os campos tradicionalmente dedicados ao estudo da religião – como é o caso da teologia2. Na seção anterior averiguamos, a partir do pensamento de Geertz, que a religião é um sistema cultural e que busca justificar-se ou legitimar-se como fornecedora de sentido, valendo-se, para isso, de simbolismos e formas simbólicas específicas. Entendido dessa maneira, o símbolo é a sua forma de expressão. Presente nas diversas culturas sob a face de um deus, de um universo de deuses, de seres sobrenaturais ou de comportamentos orientados por concepções mítico-mágicas, admite-se simbólico e imaginário como componentes essenciais à manifestação religiosa e à sua peculiar maneira de organizar o mundo (o sentido do mundo) (cf. CARPENTER, 1991). Daqui em diante, no entanto, concentrar-nos-emos em averiguar de maneira mais específica o significado do simbólico como expressão de sentido, bem como a importância do imaginário em sua força criadora – fortalecendo o entendimento da religião como fornecedora de sentido. Para tanto, por uma questão de ordem metodológica, nossa discussão se beneficiará do diálogo com autores referência no estudo do tema em âmbito nacional e internacional.
Pelo seu caráter polivalente, ao mesmo tempo em que o simbolismo é uma forma de expressão do sentido, provoca aberturas que trazem novas possiblidades de interpretação, num processo criativo, rico e dinâmico. Entre outras possibilidades de leitura, de acordo com Castor Ruiz (2005), ao mesmo tempo em que a leitura religiosa da realidade está inundada por influências da interpretação mítico-mágica, o modelo religioso presente ao Ocidente – sobretudo após a influência dos grandes sistemas axiomáticos herdados das civilizações grega e romana – também reagiu a esse pressuposto. Assim, também a religião acabou por aderir ao esforço de superar a magnificação, substituindo-a pela lógica argumentativa, pela coerência racional e pelo discurso (cf. BOAS, 2010). Tal implicou no consequente desenvolvimento de “[...] formas de organização mais complexas e estruturadas, criação de instituições, estabelecimento de códigos, universalização das crenças para o grupo e integração das práticas religiosas à estrutura social” (RUIZ, 2005, p. 123). Apesar disso, porém, a presença de simbolismos e o uso de símbolos para retratar uma realidade que ultrapassa o imediatamente presente sempre encontrou espaço na religião – inclusive como forma de extrapolar a rigidez da razão instrumental. Ao apontarmos o ser humano como aquele que tem não apenas a capacidade, mas a necessidade de dar sentido ao que o cerca, uma vez mais evidencia-se a importância da esfera simbólico-imagética. Para Castor Ruiz o ser humano é:
[...] essencialmente um homo symbolicus, ou de modo mais completo, poderíamos dizer que é um homo simbológico. O simbólico reside no modo de ser de todos os humanos, desde os primeiros hominídeos até os tecnocratas atuais, dos portadores de deficiências mentais aos cientistas mais renomados, desde a criança recém-formada ao ancião do leito de morte. O simbólico integra no humano a diversidade racial e a separação temporal, a diferenciação cultural e a dispersão geográfica e impede qualquer legitimação ideológica que pretenda justificar as diversas formas de exclusão social, de exploração humana ou de extermínio étnico. (RUIZ, 2005, p. 147).
Apesar de todo o esforço por racionalização empreendido ao longo dos últimos séculos, persiste à humanidade a necessidade de entender-se a partir de simbologias, de formas estruturais que vão além do domínio de uma capacidade onicompreensiva. O homem é essencialmente simbólico e se manifesta no mundo simbolicamente. Como função integradora e forma de afirmação no mundo, o simbólico além de corresponder à essencialidade humana, permite sua expressão. Diz Castor Ruiz (2005, p. 157): “[...] Sem os sentidos do mundo, isto é, as formas simbólicas, a existência humana se arrastaria como subsistência animal, adaptada aos estímulos funcionais dos instintos predominantes”. Haja vista que o simbolismo implica o ser das coisas, manifestando, desse modo, uma multiplicidade de sentidos possíveis com os quais elas podem se revestir, torna-se justificada a sua presença no âmbito da experiência religiosa e, mesmo, nas formas estruturadas de manifestação do comportamento religioso – o que pode incluir a literatura. Conforme insiste o autor:
É pelo intermédio do simbólico que se pode conotar as indefinidas possibilidades de ser do mundo e aceder metaforicamente ao sem-fundo do mundo humano. O simbolismo desafia a finitude asfixiante do empírico e intui a possibilidade simbológica do valor supremo do ser. Com isso abre o humano para a experiência da eternidade e da plenitude tão longamente almejada. (RUIZ, 2005, p. 149).
Através da dimensão simbólica, o ser humano pode ultrapassar a efemeridade da vida considerada de forma imediata, dispondo-a num horizonte mais amplo. A finitude transmuta-se em eternidade possível. O simbólico como expressão de sentido denota uma função integradora de ligação do homem ao mundo. Pelo intermédio do símbolo, cuja natureza corresponde à capacidade de juntar as partes separadas, conferindo unidade, o ser humano confere sentido às coisas, realiza uma juntura simbólica com o mundo. Tenta, desse modo, a superação de uma fissura interior – talvez a religação (religare) entendida e pretendida da dimensão religiosa. Por isso, como manifestação de sentido e encontrando na religião seu campo de expressão, haveria na dimensão simbólica a possibilidade de fomentar a re-ligação pretendida pela religião? Para Castor Ruiz (2005), justamente nisso reside a função do simbólico no plano religioso. A conexão real possibilitada pela religião ocorre por força do simbolismo, sem que isso implique relativização do ponto de vista da realidade que impõe ao indivíduo. Como diz Ruiz (2005, p. 158 – grifos nossos), o “sentido realiza uma recriação do mundo. Nele as coisas adquirem função, um valor. Por meio do sentido o humano se encharca criativamente no mundo e se mundaniza numa integração transformadora”.
Vemos, com isso, que não existe relação sem re-ligação. Re-ligar-se com a realidade é uma questão de sobrevivência ao ser humano: o mundo forma parte de quem ele é, e ele, em contrapartida, integra-se ao mundo (cf. RUIZ, 2005). Dessa maneira é possível dizer que o ser humano apenas se realiza como abertura e, “[...] por meio da transcendência, se projeta como um eterno peregrino no que busca na re-ligação significativa do mundo em que possa deixar de sofrer o paradoxo que o atravessa” (RUIZ, 2005, p. 159). Nisso está sinalizada uma possibilidade de plenitude que não se atinge simplesmente por esforço no plano da materialidade, donde o simbólico atua como forma de expressão e ponte de sentido; como elemento de ligação e/ou, como é próprio ao entendimento da religião, de re-ligação. Como diz Castor Ruiz:
[...] lançado do paraíso natural para um mundo sempre por conhecer, foi-lhe conferida [ao ser humano] uma nova roupagem para cobrir a nudez da sua finitude; sentido. Foi proclamada uma sentença solene: de agora em diante não serão mais como outros animais, tu serás um animal simbológico. A desligação ocorrida com a fratura humana só pode compensar-se fugazmente pela re-ligação simbólica (RUIZ, 2005, p. 163 – grifos nossos).
A apropriação conceitual, recheada de forte carga simbólica, traduz nosso itinerário reflexivo e nos permite avançar rumo ao que nesta abordagem será objeto de elucidação. O horizonte de sentido implicado à definição do homem como animal simbológico também diz respeito ao ser das coisas. Manifesta, dessa maneira, o universo multiforme e plural em que as vivências humanas galgam uma significação profunda, altamente realista e com impacto duradouro (para novamente remetermos à conceituação de Geertz, apresentada anteriormente). A religião é outra vez compreendida como uma composição densa, como uma realidade saturada de sentido, penetrando e provocando transformações profundas. Nesse projeto, os símbolos têm por função alargar e aprofundar os limites previamente intuídos. Por isso, ao refletir sobre as diversas modalidades através das quais o simbolismo se apresenta, ou, ainda, as aberturas de sentido que ele provoca e que comparecem como forma de apreensão da realidade, devemos considerar que a via do simbolismo, ao evocar determinado prisma interpretativo, traz consigo um amplo espectro de outras possibilidades, que permanecem tangencialmente à leitura, como caminhos viáveis e igualmente possíveis. Isto é, a “[...] abertura que sempre deixa caminho para outros seguirem a infindável tarefa de representar a metamorfose criativa dos sentidos” (RUIZ, 2005, p. 157). Talvez seja justamente o que está em jogo na literatura, como canalização da necessidade humana de um mundo de sentidos – por um lado – e, ao mesmo tempo, como contribuição à formação de novos horizontes de significação – por outro (pensemos na via de mão dupla consolidada pela referência autor-leitor). Eis, portanto, a deixa necessária à particularização de nosso exemplo nesta discussão: o campo simbológico inaugurado pelas poesias de Seu Freitas e sua cooperação na consolidação de sentido de mundo – entre outros, de sentido religioso.
Não tive escola, aprendi tudo com a ventania.3
A transcrição acima descreve, de alguma forma, a figura mobilizadora de nossa discussão: Seu Freitas, um autodidata na composição de seu mundo, um compositor de mundo para o mundo à sua volta. Num primeiro momento, tomaremos o autor no horizonte de sua história de vida, das vivências que nutriram sua capacidade criativa e resultaram na construção de uma literatura peculiar. Posteriormente, com base nalguns excertos retirados do livro Poesias, enfatizaremos como esses contribuem no entendimento do sentido religioso a partir da obra de Seu Freitas.
Joaquim José de Oliveira Freitas (1896-1993), nasceu no município de Várzea Alegre, sertão do Estado do Ceará. Nesse mesmo Estado, na cidade de Parambu, deu-se o início de seu percurso como homem religioso – primeiramente, a partir dos ensinamentos da Igreja Católica. Embora com forte impacto na composição de sua identidade religiosa – e há noções explícitas disso em sua obra literária – não permaneceria por muito tempo católico, migrando, num primeiro movimento, para o presbiterianismo, em que se tornaria pastor. Paralelamente a uma vida bastante ativa religiosamente, atuou em diversas funções: foi ferreiro, lavrador, farmacêutico prático, delegado por nomeação, entre outros afazeres – todos fundamentais para a definição de seu legado. Também foi bastante ativo politicamente, envolvendo-se com as demandas das comunidades em que esteve inserido.
Nascido na passagem dos séculos de XIX para XX, foi contemporâneo de vários personagens históricos importantes para a construção da brasilidade. Conviveu com cangaceiros, escravizados e outros tantos componentes expressivos da cultura nordestina – que sempre seria realçada como um dos pilares a partir dos quais se identificava. Migrou por vários Estados das regiões Norte e Nordeste do Brasil. A sina de retirante também lhe tocou, na tentativa de melhores condições de vida para si e para os seus. Enfim, fez de Araguaína, cidade que naquele tempo pertencia ao Estado de Goiás (hoje Tocantins) sua terra prometida, recanto esperado para florescer em maturidade e deslanchar a família. Ali faleceu, em 1993, na iminência de completar um século, aos 98 anos de vida. Sua existência, porém, chega aos nossos dias, no rastro de seu testemunho escrito, na lembrança daqueles com quem conviveu.
Como retratado pela frase que serviu de epígrafe para essa seção, das várias facetas de Seu Freitas – como era chamado –, destacamos o fato de jamais ter frequentado a escola formal. Sua alfabetização foi realizada por sua mãe, que utilizava gravetos e a terra do quintal para fazer o papel de professora, conforme relato seu e, posteriormente, de seus familiares. Percebendo que sabia ler, já adulto, dedicou-se a obter material para os estudos mais variados: manuais de química, de biologia, de direito constitucional, textos de filosofia e de medicina. Não tardou até que se tornasse uma espécie de sábio em sua região. Por conta de sua condição financeira precária, nem todo material estava ao seu alcance, mas a insistência mostrou resultados, fazendo-o conhecido por expressões como Mestre Joaquim, curandeiro, farmacêutico, feiticeiro e doutor – isso para não dizer da figura do místico que atravessa todas as outras funções socialmente atribuídas. No processo de hibridação das diferentes tradições religiosas, estabeleceu morada num espiritismo pretensamente kardecista (com todos os limites que, como sabemos tal adjetivação pode impor à prática espiritualista que ganhou autonomia pelo interior do Brasil). No espiritismo, além de obter respostas para seus anseios, intensificou a sua necessidade de expor suas experiências, registrando-as em fragmentos textuais. Dessa amálgama de conhecimentos familiares, políticos e sociais, nasceram suas poesias.
Filho da cultura popular do Nordeste, sempre estabeleceu um contato muito estreito com cantadores de repente, cordelistas e vaqueiros, o que está claramente presente nas diversas referências presentes em seus escritos. Além disso, é curioso que parte significativa de suas composições tenham surgido justamente após ter se tornado cego. Para preservá- las, pedia ajuda às pessoas próximas, que registravam em texto o que era proferido oralmente. A maior parte desse material se disseminou entre seus guardados pessoais e textos custodiados a algum parente ou amigo. Alguns datilografados, outros ainda grafados à mão, em letra cursiva, e espalhados num perímetro territorial que vai desde Paraíso do Tocantins até Palmas, atual capital do Estado. O processo de compilação e reunião dos manuscritos iniciou-se em 1992, finalizando-se apenas em 2018, quando do lançamento da obra Poesias, que reúne a maior parte do seu acervo (cerca de 90% da obra deixada). Além de poemas, o trabalho é composto por textos relativos às suas práticas espirituais – chamados Predições – e, ainda, a tentativa de um esboço autobiográfico. Feita, portanto, essa apresentação sumária do autor e da sua obra, daqui em diante retornaremos à discussão empreendida pelas páginas anteriores, a respeito da constituição do sentido religioso, por ora tendo como referência alguns fragmentos colhidos da produção de Seu Freitas.
Embora, como dissemos, a edição dos textos tenha vindo a público apenas em 2018, sua notação remete à década de 1950. As 208 poesias trazem alguns elementos da vida do autor como retirante, contatos familiares, acontecimentos políticos e sentimentos em relação à dificuldade experienciada no semiárido. De modo geral, para a composição deste artigo destacamos alguns trechos que mais diretamente se ligam à formação de uma experiência religiosa, os quais serão contrastados às categorias conceituais evocadas pelas páginas anteriores. A vivência religiosa como possibilidade de constituição de sentido e de abertura a uma “cultura da hospitalidade”, a uma vida aberta e doada ao que está além de si, como propõe Terrin (2004) ao tentar explicitar o que há de fundamental no sentido religioso, pode ser notada como um dos destaques presentes nas poesias de Seu Freitas. Sobre esse aspecto, evocamos uma vez mais o valor da religião como ingrediente na construção de sentido resultante de uma experiência profunda. Eis o que talvez possa ser vislumbrado na poesia intitulada Uma amizade nova e sadia, como segue:
Não faz tempo que alguém me fez ciente
Que eu tinha um amigo dedicado
É Joaquim Calipe, muito bom parente
Tabelião de notas, já aposentado
O meu amigo onde mora é um incenso,
É preservativo e é grande exemplo,
O seu valor é completamente imenso,
Tornando-se da verdade um templo.
Segue de uma maravilhosa trilha,
Dedicando o grande amor sincero,
Aos membros de nossa família.
Joaquim Calipe é dotado de lealdade,
Por esta razão muitos ele tem simpatia,
E entre nós contempla-se uma amizade nova e sadia.
Ao falar sobre a dimensão religiosa, Terrin (2004) salienta a necessidade de se entrar em sintonia com o outro – em última análise, com o totalmente Outro, para também nos valermos de uma referência presente em autores como Rudolf Otto (1985) e Mircea Eliade (1992). No fragmento acima explicitado, a comparação da amizade com o perfume do incenso desvela a figura do outro como norteadora no sentido da própria subjetividade. O outro convoca, atrai, congrega, e o elemento sensorial evocado simbolicamente no enredo é de natureza religiosa: o perfume do incenso. O imaginário manifesto pela conotação poética exposta neste simbolismo recorda a alteridade, a sintonia com o outro, também quando salienta: e entre nós contempla-se uma amizade nova e sadia. Na perspectiva de Terrin (2004) é preciso repensar o religioso de maneira nova e mais criativa vendo o homem, as culturas e as alteridades culturais com espírito de acolhimento. Assim, para esse pensador, o verdadeiro problema tanto da religião, quanto das ciências humanas que se dedicam ao estudo do universo religioso “[...] é como dar ‘hospitalidade’ ao outro, à alteridade. Este é o grande problema dos antropólogos culturais, mas é também o problema de pensadores, filósofos e linguistas do século XX” (TERRIN 2004, p. 4) – que, diríamos nós, atravessaria ainda para o século XXI, quando, uma vez mais, permanecemos carentes em darmo-nos conta de que “[...] no fundo [...] somos sempre outros para os outros” (TERRIN, 2004, p. 9). A abertura à relação com uma alteridade é, por isso, condição fundamental à experiência religiosa, transmutando-se, ulteriormente, na composição de um mundo de sentidos comuns – para dizermos em termos conceituais, num ethos.
Uma das propostas do pensamento de Aldo Terrin é refletir sobre uma antropologia da alteridade como possibilidade de, a partir da averiguação do significado de religião, resgatar a simbologia do outro, pois, “[...] os mundos religiosos, preocupados em proteger suas experiências primárias, reveladas, originárias, nunca deram espaço suficiente para a alteridade como tal” (TERRIN, 2004, p. 5). Nesse sentido, provocar esse aparecimento do outro, parece ser algo sempre presente na poesia de Seu Freitas, enquanto expressão de sentido manifesta através de simbologias. No diálogo com seu primo Raimundo Henrique, essa alteridade ganha concretude, faz-se presente e se mostra. Falamos da poesia intitulada Deus ou Natureza. Nela os dois primos duelam, como faziam os repentistas e cantadores de cordel do sertão agreste, explorando simbolicamente e em forma de poesia a realidade imediatamente vivida, o contato com a natureza, a realidade que os cercava, transformada em mundo comum pela imposição de sentido:
Pergunta de R.H.
Bem quisera compreender a fundo,
Se essa invisível fortaleza,
Representa Deus ou a natureza,
Ou qual dos dois é o senhor do mundo.
Quem é o primeiro ou segundo,
Se vivem em comunhão de vontade,
Ou se são os dois uma divindade,
Ou se o mesmo pai também é o filho,
Porque representam o mesmo brilho,
E vivem a mesma eternidade.
Resposta de J.F.
O poeta abordou um assunto profundo,
Falando de Deus e da natureza,
Confessou a existência de uma fortaleza,
Ignorando o primeiro ou o segundo,
Deus criou aqueles e este mundo,
A natureza para sua execução,
De tal forma nos vem a compreensão,
Que a natureza Deus a criou,
E com a mesma ele executou,
A grande obra de sua criação.
Aqui outra vez reportamos ao que diz Terrin (2004). A experiência religiosa ajuda a dar conteúdo aos próprios sentimentos, remetendo ao além da imediaticidade e habilitando uma nova configuração do nosso olhar sobre o mundo. Exatamente a partir da nossa subjetividade é-nos possível prestar atenção ao novo modo de ver as coisas ao nosso redor, tão variadas, tão difíceis de se decifrar e ao mesmo tempo tão importantes. A religião é janela de mundo. Por meio dela lança-se a interrogação, rompe-se o jugo do aqui e agora, põe-se a pergunta pela origem, uma questão que em nosso exemplo também passa pela delimitação da natureza de Deus (mesmo que aqui ainda em clara alusão à compreensão cristã). Trata- se, pois, da questão do sentido e da maneira como as subjetividades se encontram, ou, pelo menos, a partir da perspectiva simbólico-imaginária, podem ser destacadas. Nessa diretriz de sentido, “[...] o simbólico se apresenta como essencial enquanto interpretação de mundo e expressão necessária do homem. É o modo de nos relacionar com o mundo e a forma com que estruturamos nossa subjetividade” (RUIZ, 2005, p. 391). Ao interpretarmos a realidade, a verdade simbólica nos atravessa, penetra e implica em nosso próprio ser. Molda a maneira pela qual podemos ler o mundo, os que nos cercam e a relação possível com um além de nós. As poesias de Seu Freitas, artesão das palavras e sabedor autodidata, são então janelas pelas quais se pode observar a vida vivida, experimentada desde o chão do qual nutre suas forças e, irreversivelmente, alça-se ao céu.
Mas isso não é tudo. Não somente explicamos o mundo de forma simbólica – remetendo à fonte racionalista como reorientação também para as vias da religião. O simbolismo religioso nos transporta para uma nova possibilidade de criação de mundo. Assim também ocorre nas poesias de Seu Freitas, em que religião e literatura encontram-se como constituidoras de sentido. Nas diferentes passagens e versos, tal propriedade criadora aparece nos questionamentos, dúvidas, angústias, medos e, por que não dizer, numa espécie de filosofia de vida – a ressignificação dos elementos inerentes ao ciclo anódino, transmutados em realidade simbólica e, portanto, extraordinária. Aqui o texto literário é liame de aproximação entre o autor e o seu mundo religiosamente compreendido, um mundo vivo e constantemente a afetá-lo a partir do sentido desvelado. A poesia De onde o mal procedeu ilustra o que acabamos de dizer, numa mescla de questionamento moral e inserção numa leitura de mundo pautada pelo paradigma religioso:
[...] no jardim que Deus criou,
Para o homem tudo tinha,
Mas porém quando ele vinha,
Só dois frutos separou.
Ao homem observou,
Dizendo estes são meus,
O mais aqui tudo é seu,
Tudo era maravilhoso,
Responda religioso,
De onde o mal procedeu?
A árvore que ali estava,
Era a árvore da ciência,
Que Deus na sua potência,
Ali pôs e precisava.
Dela o criador cuidava,
E falava ao homem seu,
Dizendo eu também sou teu,
E de mim ninguém o toma,
Responda ó Papa de Roma,
De onde o mal procedeu? [...]
O poema segue por duas páginas e meia, mantendo a mesma estrutura frasal, embora convocando novas personagens em seu pregão: o vigário, o crente, o pastor, enfim, agentes da religião num mundo carente de compreensão – diríamos: carente de reordenamento, o que pode ser feito por intermédio das formas simbólicas inerentes à crença religiosa. Isso nos leva a compreender a função de equilíbrio antropológico explicitado na produção de Seu Freitas. A perícope citada evidencia como o sentido religioso agrega em sua densidade. Seu Freitas não frequentou escolas, a academia não lhe cativou lugar algum. Seu contato com teologia e ciência moldou-se tendo a experiência como ponto de inflexão. Dela nutriu-se, forjou um mundo de sentido, fez-se sabedor artesão. Disso resulta que a composição simbólica, da qual resulta a estabilização num mundo de sentidos, sempre partirá do que está imediatamente próximo, mesmo que, como dissemos acima, deva afastar-se metodologicamente dele, na tentativa de despertar um interesse mobilizador (isso mais explicitamente no tocante à experiência religiosa). Trata-se de um movimento presente ao poema de uma ponta à outra, numa gradação de intensidade que sempre conduz ao além de si, ao mundo do outro/Outro:
[...]
Depois que tudo criou,
Deus ficou bem satisfeito,
Vendo tudo do seu jeito,
Alegre para tudo olhou.
Achou bom e admirou,
Fruto do trabalho seu,
E a todo vivente deu,
Um saber imaginário,
Me responda seu vigário,
De onde o mal procedeu?
Ao homem Deus falou,
Tudo hás de dominar,
No céu, na terra e no mar,
Como o senhor ordenou,
Vejam como confiou.
Ao representante seu,
Pois a ele concedeu,
Ordem bem superior,
Responda qualquer senhor,
De onde o mal procedeu?
Nesse pondo, pedimos licença para uma inserção à sentença de Castor Ruiz (2005): símbolos e sentidos se tramam nos “porões do sem-fundo”. De acordo com o autor é na indeterminação profunda do sem-fundo que se gesta a força criadora do simbólico- imaginário. De nossa parte, identificamos essa instância fundamental na capacidade de constituir sentido ao mundo, um esforço sobre-humano presente ao homem. Por isso, o simbólico não explica, mas implica. Insere-se de forma implícita nos meandros da vida, latente e provocador de sentido – em nosso exemplo, a partir da literatura poética. Sua expressão vai aos poucos se manifestando no fluxo das vivências, dando cor ao mundo, intensificando-se. Ao falarmos, portanto, do simbolismo religioso e de sua capacidade de imposição de sentido, beneficiamo-nos de uma citação bastante significativa, colhida junto às páginas de Castor Ruiz (2005, p. 177): “[...] o simbólico é a grande mediação que rejunta o diverso. Religa o diferente. Reúne o distante”. Não poderia haver melhor forma de nos referirmos a esse multiforme campo de experiências fundamentais. Diferenças e distanciamentos são aproximadas na imperiosa necessidade de expressão simbólica. Seu Freitas não poderia resistir; foi o que fez por meio da arte poética. Expressar-se, numa abertura indefinida à imposição de sentido ante às investidas caóticas da realidade, justifica, segundo nossa leitura, o papel precípuo da experiência religiosa na vida (e na obra) do autor.
Após termos percorrido alguns dos principais aspectos da religião como fonte de sentido, avançando ao contato com a produção literária de Seu Freitas, consideramos ter sido possível realçar a interconexão entre vida vivida e mundo simbolicamente constituído – um dos resultados possíveis a partir da ótica religiosa. Falar de religião implica dispormo-nos no encalço da necessidade humana e cultural de conhecer a questão do sentido e as várias facetas que ele pode oferecer. A partir das contribuições de Castor Ruiz, de Aldo Terrin e de Clifford Geertz, propusemos neste artigo um breve exercício interpretativo das poesias de Seu Freitas, realçando seu alto potencial como expressão de um mundo de sentidos presente ao autor e aos seus coetâneos. Essencialmente, tivemos em conta realizar aproximações. Aproximar é ir em direção a algo. As poesias expostas e averiguadas a partir das intepretações conceituais dos autores são, por isso, possibilidades de contato com um mundo de vivências, de que a experiência religiosa não é apenas consequente, mas modeladora, isto é, fonte. Esse ir além da realidade na própria realidade está na concepção essencial deste artigo, cumprido como possibilidade de abertura e, ao mesmo tempo, como memória de um legado.