Resumo: O tema versa sobre a análise da diversidade católica romana no contexto brasileiro com o recurso ao princípio pluralista. Metodologicamente, a pesquisa apresenta bases conceituais do princípio pluralista e as utiliza para melhor compreensão da pluralidade católica. Este princípio, a partir dos estudos culturais decoloniais, prioriza o olhar das realidades socioculturais e religiosas a partir dos entrelugares e fronteiras das culturas, sobretudo de grupos invisibilizados e subalternizados, e não a partir de identidades fixas, formais e institucionalizadas. Entre os resultados da pesquisa estão a descrição, em síntese, da pluralidade multidimensional do Catolicismo romano e da pluralidade interna nos modos de ser católico, de ser Igreja e de ser Igrejano mundo, e com o mundo. O primeiro aspecto é resultante de uma dinâmica de disputas, resistências e negociações que se dá com descontinuidades e continuidades, rupturas e reapropriações que se articulam histórica e sociologicamente. Os demais aspectos revelam o entrecruzamento e a multiplicação de identidades e modos de pertencimento, não isentos de silenciamentos e invisibilizações de diversas práticas, sobretudo as teologias feministas, queer, negras e indígenas, diversas pastorais inseridas ou não na institucionalidade eclesial, como a pastoral afro-brasileira, as Comunidades de Base, Católicas pelo Direito de Decidir e a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT.
Palavras-chave:CatolicismoCatolicismo,Princípio pluralistaPrincípio pluralista,DiversidadeDiversidade,DecolonialidadeDecolonialidade.
Resumen: El tema trata sobre el análisis de la diversidad católica romana en el contexto brasileño utilizando el principio pluralista. Metodológicamente, la investigación presenta bases conceptuales del principio pluralista y las utiliza para comprender mejor la pluralidad católica. Este principio, basado en estudios culturales descoloniales, prioriza la visión de las realidades socioculturales y religiosas desde los inter-lugares y fronteras de las culturas, especialmente desde grupos invisibles y subordinados, y no desde identidades fijas, formales e institucionalizadas. Entre los resultados de la investigación se encuentra la descripción, en síntesis, de la pluralidad multidimensional del catolicismo romano y de la pluralidad interna en las formas de ser católico, ser Iglesia . ser Iglesia en el mundo, y con el mundo. El primer aspecto es el resultado de una dinámica de disputas, resistencias y negociaciones que se da con discontinuidades y continuidades, rupturas y reapropiaciones que se articulan histórica y sociológicamente. Los otros aspectos revelan la intersección y multiplicación de identidades y modos de pertenencia, no exentos de silencios e invisibilidades de diferentes prácticas, especialmente teologías feministas, queer, negras e indígenas, varias pastorales insertas o no en la institucionalidad eclesial, como la pastoral afro-brasileños, Comunidades de Base, Católicos por el Derecho a Decidir y la Red Nacional de Grupos Católicos LGBT.
Palabras clave: Catolicismo, Principio pluralista, Diversidad, Decolonialidad.
Abstract: Analysis of the Catholic diversity in the Brazilian context, using the pluralist principle. Methodologically, the research presents the conceptual bases of the pluralist principle and uses them to better understand Catholic plurality. The pluralist principle examines socio-cultural and religious realities from the in-between and borders of cultures, especially from groups that are often made invisible and subalternate, rather than from fixed, formal, and institutionalized identities. Among the results of the research is the description of the multidimensional plurality of Catholicism and the internal plurality in the ways of being Catholic, being Church and being Church in the world, and with the world. The first aspect is a result of a dynamic of disputes, resistance, and negotiations; it is a complex and permanent process that occurs with discontinuities and continuities, ruptures and reappropriations that are historically and sociologically articulated. The other aspects reveal the intertwining and multiplication of identities and modes of belonging, not exempt from silences and invisibilities of different practices, especially those that highlight issues of gender, sexuality and those surrounding Afro-indigenous cultures, pastorals inserted in the ecclesial institution, such as Afro-Brazilian pastoral care, Base Ecclesial Communities, Catholics for the Choice and the Network of LGBT Catholic Groups.
Keywords: Catholicism, Pluralist principle, Diversity, Decoloniality.
ARTIGOS
O CATOLICISMO BRASILEIRO VISTO SOB A ÓTICA DO PRINCÍPIO PLURALISTA
BRAZILIAN CATHOLICISM SEEN FROM THE VIEWS OF THE PLURALIST PRINCIPLE
EL CATOLICISMO BRASILEÑO VISTO DESDE LA VISTA DEL PRINCIPIO PLURALISTA
Recepção: 02 Junho 2020
Aprovação: 18 Dezembro 2020
O objetivo das reflexões a seguir é analisar o quadro da diversidade católica romana, especialmente no contexto brasileiro. Para isso, faz-se o recurso ao princípio pluralista, instrumental de análise do pluralismo religioso, com a intenção de olhar o referido quadro a partir dos entrelugares e fronteiras das culturas, e não a partir de identidades fixas e institucionalizadas.
A análise será feita baseada na apresentação de quatro aspectos, acompanhados de perspectivas conceituais relativas à temática e de exemplos da pluralidade interna do catolicismo. O primeiro aspecto é a noção de princípio pluralista, que norteia a avaliação da diversidade católica em questão.
O segundo trata da pluralidade multidimensional do catolicismo romano, realçando a sua variação e pluralização como resultado de uma complexa e permanente dinâmica de disputas, resistências e negociações ao longo da história.
O terceiro destaca a pluralidade interna nos modos de ser católico e de ser Igreja, mostrando o entrecruzamento e a multiplicação de identidades e modos de pertencimento, não isentos de silenciamentos e invisibilizações de diversas práticas, sobretudo as que realçam as questões de gênero, de sexualidade e as que estão em torno das culturas afro-indígenas.
O quarto aspecto enfatiza os modos de ser Igreja no mundo, e com o mundo, engendrados a partir do acirramento da histórica tensão entre perspectivas eclesiológicas distintas e concomitantes, que giram em torno dos maiores ou menores enrijecimentos institucionais e da capacidade crítica, criativa e construtiva dos diferentes grupos que a compõem.
As bases do princípio pluralista têm sido apresentadas em duas direções, ambas interdisciplinares. A primeira, com ênfase na análise de dimensões mais descritivas da realidade sociocultural, especialmente a diversidade religiosa, mais bem compreendida com o recurso da noção de entrelugar e de fronteiras, conforme formularam Homi Bhabha (2001) e Boaventura de Souza Santos (2010a), dentro do quadro de proposições dos estudos culturais decoloniais de Walter Mignolo (2007) e outros destacados autores e autoras. A segunda direção, com ênfase mais acentuadamente hermenêutica, olha a realidade em suas possibilidades de alteridade ecumênica, com variados desdobramentos inspirados em diferentes setores das teologias pluralistas, e como espaço do exercício da polidoxia, conforme nos mostra Kwok Pui-Lan (2015). Embora sejam direções indissociáveis, o debate em torno da pluralidade religiosa aqui proposto está mais voltado para a primeira direção, de forte cunho analítico.
Em linhas gerais, entende-se o princípio pluralista como:
[...] um instrumento hermenêutico de mediação teológica e analítica da realidade sociocultural e religiosa que procura dar visibilidade a experiências, grupos e posicionamentos que são gerados nos “entrelugares”, bordas e fronteiras das culturas e das esferas de institucionalidades. Ele possibilita divergências e convergências novas, outros pontos de vistas, perspectivas críticas e autocríticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas e formas de alteridade e de inclusão, considerados e explicitados os diferenciais de poder presentes na sociedade. Nossa pressuposição é que o princípio pluralista, formulado a partir de lógicas ecumênicas e de alteridade, possibilita melhor compreensão da diversidade do quadro religioso e também das ações humanas. Não se trata apenas de uma indicação ética ou “catequética”. Com ele, as análises tornam-se mais consistentes, uma vez que possibilitam melhor identificação do “outro”, especialmente as pessoas e grupos que são invisibilizados dentro da lógica sociológica que Boaventura de Souza Santos chamou de “sociologia das ausências” (RIBEIRO, 2017a, p. 241).
Uma das pressuposições importantes para a análise que ora efetuamos é que o princípio pluralista possui eficaz capacidade de análise da realidade, na medida em que olha para ela a partir de diferentes planos e distinções críticas, não se reduzindo a perspectivas dualistas, institucionalizadas e formais. Ao mesmo tempo, o princípio pluralista realça certa sensibilidade com as distintas expressões culturais ou religiosas, majoritárias ou minoritárias, fronteiriças ou não; e contribui para uma sociologia das emergências de novos rostos, variados perfis religiosos, multiplicidades de olhares, perspectivas e formas plurais de atuação. Com essa perspectiva policromática, os esforços de análise podem encontrar maior êxito e consistência.
Estas possibilidades são, em nossa perspectiva, decorrentes das indicações dos estudos decoloniais, uma vez que eles possuem um sentido estratégico que revela interpelações políticas e epistemológicas de reconstrução de culturas, instituições e relações sociais, tendo em perspectiva o empoderamento de grupos subalternos e construções críticas alternativas e plurais.
O princípio pluralista segue a concepção de entrelugar, como trabalho fronteiriço da cultura, conforme nos indica Homi Bhabha em sua obra O local da cultura (2001), que requer um encontro com o novo que não seja mera reprodução ou continuidade de passado e presente. O princípio pluralista renova e reinterpreta o passado, refigurando- o como um entrelugar contingente, que inova, interrompe e interpela a atuação do presente. Ele está em sintonia com o horizonte hermenêutico e de intervenção social, configurado por Bhabha, a partir da possibilidade de negociação da cultura ao invés de sua negação, comum nas posições dicotômicas e bipolares, tanto no campo político como nas análises científicas. Trata-se de uma temporalidade forjada nos entrelugares e posicionada no além, que permite conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios e tornar possível novas realidades – ainda que sejam híbridas, sem forte coerência racional interna, mas nem por isso desprovidas de potencial transformador e utópico.
Dentro deste quadro de perspectivas é que temos avaliado que as identidades culturais são forjadas nas fronteiras – e tal perspectiva se tornará bastante nítida no decorrer desta análise sobre o Catolicismo. Boaventura de Souza Santos afirma que as identidades culturais:
[...] não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso (SANTOS, 2010b, p. 135).
Daí a importância de interpretações conjuntivas da cultura, que reúnam e articulem as contradições presentes na globalidade, mas, sobretudo, que não desconsiderem as particularidades, as singularidades e a concretude das vivências. Isso é inovador e politicamente importante, pois é nestes terrenos que ocorrem as novas estratégias de construção de identidades. É daí que brotam os novos signos que colaborarão e contestarão as definições e ideias sobre as sociedades: “O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”. (BHABHA, 2001, p. 20).
Além deste novo conceito, Bhabha afirma que é nestes entrelugares que ocorrem as negociações, outro conceito importante do autor. Ou seja, é no limite, nas fronteiras, que os sujeitos negociam suas convicções e posturas, dando origem a novas culturas híbridas. O pluralismo religioso que se intensifica em nossos dias está cada vez mais marcado pelas formas de hibridismos culturais.
O local da cultura [para usar o sugestivo título da obra já referida] é fundamental no processo de se estabelecer mediações socioanalíticas para as interpretações teológicas e, também, para as análises científicas da religião em geral. O conceito de entrelugar está relacionado à visão e ao modo como grupos subalternos se posicionam frente ao poder e como realizam estratégias de empoderamento. Tais posicionamentos geram entrelugares em que aparecem com maior nitidez questões de âmbito comunitário, social e político.
O entrelugar busca ultrapassar as lógicas da negação, as posições estáticas, as singularidades e caminha para a mescla e para um hibridismo cultural por meio da tradução/negociação criando, assim, o terceiro espaço. Neste além, significados e símbolos culturais são reapropriados, traduzidos, re-historicizados, ressignificados e utilizados de outra maneira (BHABHA, 2001). As análises sobre o pluralismo religioso, se atentas a esta perspectiva teórica, podem se tornar mais precisas e substanciais, na medida em que poderão captar mais adequadamente as nuances da complexidade cultural e religiosa.
O pensamento complexo é essencialmente aquele “[...] que trata com a incerteza e que é capaz de conceber a organização. É o pensamento capaz de reunir (complexus: aquilo que é tecido conjuntivamente), de contextualizar, de globalizar, mas, ao mesmo tempo, capaz de reconhecer o singular, o individual, o concreto.” (MORIN, 2000, p. 207). O pensamento complexo busca questionar e expandir de maneira crítica os pensamentos simplificadores, partindo da não completude do conhecimento e da aceitação da diversidade dos saberes e percepções acerca do mundo e da vida. A realidade é vista como um tecido de múltiplos fios interligados e em permanente processo de construção e reconstrução.
O pensamento complexo critica os três pilares da ciência moderna, sem, contudo, negar a eficácia deles: a ordem, a separabilidade e as lógicas indutiva e dedutiva. Como para ele tudo está em intrínseca relação, assim, teríamos a relativização das concepções simplificadoras, dando lugar a concepções complexas e pluridimensionais da realidade. Daí a proposta da transdisciplinaridade, que parte de uma revisão crítica da fragmentação das ciências com seus efeitos diversos e propõe uma visão global da realidade capaz de resgatar a totalidade dela e ser ao mesmo tempo integradora e crítica (MORIN, 2010).
Isso nos leva a fazer um percurso que vai da dimensão transdisciplinar à perspectiva transreligiosa. A formulação do princípio pluralista bebeu das fontes deste caminho:
A transdisciplinaridade engendra, pois, uma atitude trans-cultural e trans-religiosa. A atitude trans-cultural designa a abertura de todas as culturas para aquilo que as atravessa e ultrapassa, indicando que nenhuma cultura se constitui em um lugar privilegiado a partir do qual podemos julgar universalmente as outras culturas, como nenhuma religião pode ser a única verdadeira e universal (ARAGÃO, 2008, p. 142-143).
Somada a estas perspectivas, realçamos, para melhor compreensão tanto do quadro de pluralismo religioso (interno e externo a cada tradição) quanto das possibilidades de diálogo inter-religioso, o que Boaventura de Souza Santos chamou de hermenêutica diatópica. Ela leva em conta os lugares comuns retóricos mais abrangentes ou universos de sentido de determinada cultura ou religião, os topoi.
A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto à própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, na outra. Nisto reside o seu caráter dia-tópico (SANTOS, 2010a, p. 448).
A posição de fronteira, portanto, permite maior visibilidade das estruturas de poder e de saber, o que pode ajudar na apreensão das subjetividades de povos subalternos. A tarefa decolonial está associada a posturas e atitudes permanentes de transgressão e de intervenção no campo político e cultural, na incidência das culturas subalternizadas e invisibilizadas, nas quais se pode identificar, visibilizar e incentivar lugares de exterioridade e de construções críticas alternativas e plurais. “O paradigma decolonial luta por fomentar a divulgação de outra interpretação que põe em evidência uma visão silenciada dos acontecimentos [...]” e, ao mesmo tempo, revela “[...] os limites de uma ideologia imperial que se apresenta como a verdadeira e única interpretação.” (MIGNOLO, 2007, p. 457, tradução nossa).1 As proposições conceituais dos estudos culturais decoloniais visam realçar a decolonialidade do poder, do saber e do ser (MIGNOLO, 2008).
Com as perspectivas advindas da visão decolonial, as aproximações religiosas e a valorização do pluralismo podem não somente ser percebidas e ter suas tendências identificadas nas análises, mas podem, sobretudo, ser construídas (MIGNOLO, 2008). Neste sentido, apresentamos aspectos da diversidade católica, em especial: a pluralidade multidimensional do Catolicismo romano, a pluralidade dos modelos de ser católico e de ser Igreja e os modos de ser Igreja no mundo, e com o mundo.
A longa tradição de pluralidade do catolicismo romano se expressa em uma variedade de dimensões: na diversidade litúrgica; na multiplicidade de espiritualidades; em sua amplitude geográfica e diversidade cultural; na diversidade de compreensões acerca da moralidade, nas transformações de toda ordem (doutrinárias e litúrgicas inclusive, mas não só) que se dão ao longo do tempo. A própria experiência individual e coletiva do catolicismo se modifica e diversifica à medida em que ele se insere e se enraíza em distintos contextos culturais e meios sociais, articulando-se a diferentes modos de vida e entrecruzando-se com múltiplos interesses políticos, que se alteram e se atualizam ao longo do tempo (SANCHIS, 1992).
Emerge daí uma multiplicidade de modos de ser católico, individualmente e em comunidade, que se reflete na escolha de variados recortes e ênfases na apresentação da mensagem cristã; em formas diversas de organizar o culto; em maneiras e medidas distintas de distribuição do poder e participação no processo decisório em todos os níveis da hierarquia; em formações sincréticas que absorvem, incorporam, adaptam, reinterpretam e articulam elementos, valores, linguagens, estéticas, tradições e símbolos, quer sejam externos ou internos aos cristianismos, estritamente religiosos ou mesmo seculares. Uma polifonia que se evidencia, por exemplo, na diversidade de carismas e estilos de vida de ordens e congregações religiosas, surgidas nos mais variados contextos e em resposta às mais diversas situações, e cuja fundação, muitas vezes, remonta aos primeiros séculos do cristianismo.
A polifonia é explicitada também pelas heresias e heterodoxias diversas que foram sendo combatidas, reprimidas, eliminadas ou absorvidas ao longo da trajetória da Igreja. Ou, ainda, nas diferentes maneiras de regulação do corpo, que abrangem desde tradições doloristas, demonizadoras do corpo e da sexualidade; passam por estratégias de contenção e ascese que acarretam uma corporeidade cerebral e rígida (SERRA, 2019a); e chegam a experiências místicas, individuais e coletivas, marcadas por êxtases, arroubos de espontaneidade corporal e emoção religiosa – caso do pentecostalismo da Renovação Carismática, por exemplo.
Pierre Sanchis assim sintetiza o desafio político interno da Igreja em termos institucionais, face à necessidade de gerenciar a multiplicidade de formas assumidas pelo catolicismo: “[...] há religiões demais nesta religião [...]” (1992, p. 33). Tamanha versatilidade contrasta com os apelos a uma tradição supostamente uniforme e monocromática. Contradiz também as eventuais narrativas que atribuem ao Cristianismo católico romano uma suposta univocidade, que seria decorrente da adesão ideal e obediência estrita, por parte dos fiéis, a uma ortodoxia católica.
Entretanto, essa homogeneidade hipotética esbarra, já de partida, em um paradoxo: o que se pretende ortodoxo precisa legitimar a própria autoridade revestindo- se de um caráter (pretensamente) imutável e sempiterno. Por mais que se apresentem como definitivas e absolutas, porém, determinações de hierarcas serão sempre frutos de negociações e disputas localizadas e em processo – e, portanto, situadas histórica e culturalmente. No Brasil, as oscilações ocorridas nas últimas décadas entre as ênfases pastorais na condução do trabalho do Conferência Nacional de Bispos do Brasil, a CNBB, por exemplo, é sinal inconteste desse processo. Ora se dão perspectivas mais associadas à dimensão crítico-profética do envolvimento político-social da Igreja, ora posturas de corte mais moderado e até mesmo de manutenção do status quo.
Como em qualquer organização social, a tentativa de invisibilizar divergências e encobrir as tensões, disputas e contradições que inevitavelmente permeiam todos os âmbitos do catolicismo, é uma estratégia para concentrar o poder eclesiástico nos níveis superiores da estrutura clerical, referendando-a como fonte inequívoca de autoridade. Uma vez que toda história depende de quem a conta – isto é, de quem tem o poder e os meios não só para contá-la, mas também para estabelecer sua versão como autorizada e a única narração possível –, formações marginais ou politicamente inconvenientes tendem a ser apagadas. Pessoas ou grupos inteiros podem ser desqualificados, reprimidos, perseguidos e interditados de diferentes maneiras e em diversos graus; no limite, podem ser condenados como heréticos ou tornar-se alvos de excomunhão.
De maneira menos explícita, mas igualmente eficiente, sua existência pode ser (ou parecer ser) ignorada; sua presença histórica, eliminada dos registros; suas vozes, silenciadas – ou, simplesmente, não ouvidas – até que caiam no esquecimento. A valorização da ortodoxia mais ou menos estrita e o foco nas formações eruditas da elite dominante da Igreja tendem a eclipsar, por exemplo, manifestações e tradições populares e periféricas, de transmissão predominantemente oral. A visão mágica do mundo, as rezadeiras, as pajelanças, os santos e encantados, as romarias, as procissões, os votos e o pagamento de promessas, as festas e celebrações populares, as velas acesas em casa e as fitas coloridas amarradas no pulso, os altares domésticos, as novenas e terços, as aparições marianas e outras devoções não só apontam para a absorção e desenvolvimento de repertórios simbólicos e práticas mais ou menos estranhos à ortodoxia como também demonstram a flexibilidade, o trânsito e a agência de católicos dos mais diversos estratos sociais em relação à autoridade eclesiástica constituída (SILVEIRA, 2004). Por outro lado, a hierarquia, pelos mais variados motivos, com frequência tolera manifestações diversas de heterodoxia. Ou, ainda, se dispõe a dialogar com elas e reconhecer-lhes a legitimidade em alguma medida, seja extraoficialmente e apenas em nível local, seja mesmo chegando a autorizá-las e incorporá-las com estatuto oficial – o que também não significa que não haverá resistências e rejeições, por setores da Igreja, a essa incorporação.
Desse modo, ao subverter o status quo e alimentar o catolicismo com elementos mais ou menos heterodoxos, crenças e práticas mais ou menos marginais dão sua contribuição criativa para a contínua (re)configuração do tecido eclesial. Por aí se vislumbra como a variação e a pluralização do catolicismo romano resultam de uma dinâmica complexa de disputas, resistências e negociações permanentes, em que descontinuidades e continuidades, rupturas e reapropriações se articulam histórica e sociologicamente (SERRA, 2019a).
A diversidade de inserções e pertenças das pessoas nas várias dimensões de suas vidas individuais e sociais – bem como sua adesão, em maior ou menor grau, a diferentes sistemas de valores e referenciais éticos (o que inclui, também, a possiblidade da múltipla pertença religiosa) – implica em um atravessamento e uma multiplicação de identidades e modos de pertencimento também dentro do catolicismo romano (DUARTE, 2005).
Em contraposição a uma suposta identidade católica definida, acabada e estanque, a pluralidade de modos de ser católico se reflete em diversos aspectos. Em termos da centralidade e do espaço dedicados à vivência pessoal e coletiva da fé e da religião na vida de cada um, por exemplo. Ou nos diferentes graus de participação nos ambientes eclesiásticos, em termos tanto da integração à sociabilidade eclesial quanto da assiduidade nos espaços religiosos – frequência a missas e ritos, participação em festividades e celebrações, envolvimento na vida paroquial, engajamento em atividades pastorais. Contribui também para tal multiplicidade o fato fundamental de que a pertença religiosa não corresponde a uma adesão automática e integral à normatividade da instituição eclesial. À atribuição de um valor objetivo e transcendente aos enunciados eclesiásticos opõe-se sua avaliação, por parte dos fiéis, conforme critérios subjetivos e imanentes. Na medida em que tais enunciados são questionáveis (e questionados), a crença se desinstitucionaliza, e os termos do próprio ser católico são negociados subjetivamente (PORTIER, 2010; DUARTE, 2005; SERRA, 2019c).
Em contraste com uma concepção do fiel como receptáculo passivo das determinações magisteriais, o catolicismo é impregnado de agência e inventividade pessoais. E, no entanto, a autonomia dos fiéis permaneceu hegemonicamente ignorada pela hierarquia católica até o Concílio Vaticano II (1962-1965) (PORTIER, 2010). Só então foi admitida oficialmente, mediante o reconhecimento da liberdade de consciência em textos cruciais como a constituição pastoral Gaudium et Spes, por exemplo, ou o postulado da hierarquia de verdades no decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio.
A diversidade de modos de ser católico abrange, pois, diferentes graus de transigência e intransigência (1) na adesão a uma identidade católica; (2) no significado e nas implicações dessa identidade; e (3) na exigência de adesão a essa identidade católica por parte de outros, para que sejam reconhecidos como correligionários, portadores de uma identidade compartilhada. Entretanto, qualquer imagem mais ou menos universal do que seja um católico tenderá a encobrir especificidades de gênero, sexualidade e raça que atravessam e impregnam a experiência comunitária e religiosa.
O resultado é uma invisibilização que reproduz e reforça modelos (homogeneizadores) do que seja o católico normal. Tais modelos criam, reproduzem e reforçam hierarquias e desigualdades que as teologias contextuais e iniciativas pastorais específicas procuram, em parte, denunciar e sanar – inclusive por meio de diversos graus de adaptação (aculturação) e mesmo inculturação de ritos e elementos litúrgicos (a chamada missa afro, é um exemplo). Entre as primeiras figuram as teologias feministas, queer, negras e indígenas. As segundas incluem a pastoral afro-brasileira, inserida na institucionalidade eclesial, e organizações paraeclesiais como Católicas pelo Direito de Decidir e os coletivos de católicos LGBTI+ organizados em todo o mundo (dois exemplos: no Brasil, há a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT; em nível mundial, a Global Network of Rainbow Catholics).2
O ambiente eclesial que emerge dessas negociações e articulações identitárias é, portanto, cambiante e heterogêneo, atravessado pelos tensionamentos entre mutabilidade e fixidez, pureza e impureza, observância e inobservância. Nele, a infidelidade ao que signifique ser católico acaba sendo menos exceção do que regra (LIMA, 2010).
Uma vez que a identidade católica romana, como quer que se defina, implica em alguma noção de pertença eclesial, toda construção do ser católico tende a dar-se em relação a (e em tensão com) alguma concepção de ser Igreja. Ser Igreja, decerto, nem sempre implica em ser comunidade; e, quando sim, tanto o entendimento de comunidade quanto a participação de cada um na mesma podem assumir formas distintas (SANCHIS, 1992). De todo modo, as relações com o repertório simbólico cristão e com a própria instituição eclesial afetam não só as trocas materiais e simbólicas cotidianas dos fiéis como a própria noção de identidade católica, já atravessada pelas tensões e negociações (1) entre autodeterminação e autoridade magisterial e (2) entre diferenciação autonômica e integração à coletividade.
Do plano pessoal ao institucional, passando pelo comunitário, operam no catolicismo romano lógicas que ao mesmo tempo se contrapõem e se complementam, sem excluir-se, permanecendo em tensão contínua e articulando-se de maneira dialética – descritas esquematicamente por Portier (2010) em termos de tendências centrípetas e centrífugas.
Às forças centrípetas corresponde, num extremo, uma maneira globalizante de entender o catolicismo como um sistema homogêneo e inegociável de convicções e atitudes, que organizaria as existências individuais e coletivas integralmente e em sua totalidade. A regulação moral, como mecanismo de controle, tende a ganhar destaque, mediante o acionamento de noções de pecado, culpa e punição/condenação – elementos centrais no lema Por hoje não vou mais pecar, da comunidade carismática brasileira Canção Nova, por exemplo (SILVEIRA, 2004).
Esse paradigma de unidade enfatiza o caráter unitário e indivisível, quase monádico, do catolicismo – o qual se identifica com a Igreja e esta, por sua vez, com uma autoridade magisterial concebida como impositiva e inquestionável, equiparada (ou quase) à própria lei divina. O efeito, em termos de organização e distribuição do poder institucional, tende a ser de verticalização e rigidez hierárquica. São exemplos grupos e movimentos restitucionistas (PORTIER, 2010), que pendem para o rigorismo moral (podendo beirar o jansenismo), a exaltação triunfalista da Igreja e o anátema de quem divergir de suas concepções – caso da Opus Dei; dos Legionários de Cristo; dos Arautos do Evangelho; dos seguidores do Monsenhor Lefebvre; do Movimento Comunhão e Libertação; do Neocatecumenato e seus ritos secretos.
No outro polo, às forças centrífugas corresponde o reconhecimento da indeterminação decorrente da singularidade dos fiéis; e também da autonomia destes perante a permeabilidade, o entrecruzamento e a interpenetração de identidades e valores (PORTIER, 2010). Por conseguinte, enfatiza-se o pluralismo decorrente da multiplicidade de pontos de vista. Florescem aí os diálogos ecumênicos e inter-religiosos, podendo chegar à polidoxia ou a alguma superação da antinomia ortodoxia/heresia (RIBEIRO, 2017b). A partir dessa perspectiva, em consonância com as intuições democráticas do Concílio Vaticano II, desenvolvem-se práticas relacionais centradas na negociação, na conciliação, na solidariedade, na alteridade, contribuindo para relações eclesiais mais horizontalizadas.
Na articulação dialética dessas duas tendências, modulam-se diferentes concepções tanto do ser católico quanto do ser Igreja. Entre essas concepções multifacetadas, leigos e religiosos, comunidades e hierarquia transitam; combinam e descombinam, conciliam e incompatibilizam posições, ideias, valores, condutas, elementos rituais e litúrgicos, com diferentes graus de rigor e flexibilidade; convivem, rompem, tecem continuidades e descontinuidades entre pertenças, identificações e identidades, numa polifonia que impregna o catolicismo romano em todos os âmbitos.
No pontificado de Francisco, as críticas insistentes do papa ao clericalismo; sua persistente defesa de uma Igreja de portas abertas, que não seja uma alfândega moral, e sua ênfase no acolhimento pastoral e no diálogo, em vez de na disciplina litúrgica e eclesiástica, levaram a um acirramento da tensão entre perspectivas eclesiológicas distintas e concomitantes (SERRA, 2019c).
Uma delas remete à eclesiologia hegemônica estabelecida pelo Concílio de Trento (1545-1563), no contexto da contrarreforma. Nessa concepção, centrada na hierarquia, ao magistério eclesial cabe guardar a ortodoxia da fé e da moral e ao ministério ordenado, o poder sacramental. A teologia dominante se caracteriza por um dogmatismo essencialista, propenso a dissociar-se da perspectiva histórica e da experiência humana concreta. A salvação seria encontrada exclusivamente na realidade sobrenatural (LIBÂNIO, 2005). Já a partir do século XIX, porém, não obstante a evidente resistência ao ideário moderno, irrompeu nos ambientes católicos romanos – em diferentes níveis da hierarquia e no seio de organizações eclesiais e paraeclesiais, entre religiosos e leigos, uma série de demandas propriamente modernas por cientificidade e historicidade, levando em consideração a subjetividade e a experiência humanas.
As movimentações que emergiram a partir daí desembocariam no Concílio Vaticano II, com (1) sua proposta de aggiornamento, confrontando o antimodernismo vigente; (2) seu apelo por sinodalidade e valorização do laicato, em contraposição ao clericalismo, ao antipluralismo e à verticalização das estruturas de poder; (3) sua valorização menos da Igreja-hierarquia e mais da Igreja-Povo de Deus (LIBÂNIO, 2005).
Já vinham surgindo associações leigas nos tempos pré-conciliares (como o Apostolado da Oração, as Filhas de Maria, os vicentinos, os Missionários do Sagrado Coração, a Ação Católica); o estabelecimento dos institutos seculares data de 1947. Contudo, no rastro do Vaticano II – primeiro concílio da Igreja romana a tratar da teologia do laicato – multiplicaram-se as oficinas de oração, os grupos de reflexão bíblica, as comunidades laicas de vida e aliança, os conselhos diocesanos de leigos, entre tantas modalidades de organismos laicos (SILVA, 2012; SILVEIRA, 2004).
Sob muitos aspectos, o Concílio veio inaugurar uma nova visão da inserção e da participação do catolicismo romano no mundo (DILLON, 2018). Deslocou-se o foco da oposição mais ou menos rígida entre mundo e Igreja, ligada à multissecular tese isolacionista de que o afastamento ou retirada do mundo seriam ao mesmo tempo condições para a salvação e marcas que distinguem os eleitos. Em contrapartida a essa ética de pureza e enclausuramento, o Concílio apontou para uma ética de solidariedade com o mundo e participação nele (LIBÂNIO, 2005).
Essa ética – que inspira a trabalhar pela transformação da realidade social, pela reparação de desigualdades e violências, pela promoção da justiça – se reflete e se materializa em movimentos e iniciativas diversos; apresenta-se, igualmente, não sem tensões e disputas, no ambiente das universidades e colégios católicos, cuja rede nos diferentes estados do país e no mundo é ampla, com certo poder de articulação e presença pública. Para citar alguns exemplos práticos desta interpretação conciliar, quase todos articulados com a Teologia Latino-Americana da Libertação, é possível lembrar: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com sua metodologia de leitura popular da Bíblia e suas articulações regionais e nacional; as reuniões dos bispos latino-americanos realizadas em Medellín (1968) e Puebla (1979), com seu testemunho da opção preferencial pelos pobres; a Ação Católica especializada, baseada no protagonismo laico e no método Ver-Julgar-Agir; o Conselho Indigenista Missionário (CIMI); pastorais sociais como a pastoral operária, a pastoral da terra, a pastoral do menor, a pastoral do povo de rua, a pastoral carcerária, a pastoral da juventude em suas várias frentes de atuação – a pastoral da juventude estudantil, a do meio popular, a pastoral da juventude rural.
Nessas vertentes do catolicismo romano, o ser católico e o ser Igreja se realizam pela via das lutas populares, dos movimentos sociais, da defesa dos direitos humanos. Sua mística e sua estética ecoam, por exemplo, nas recomendações do Papa Francisco no sentido de que os pastores católicos tenham cheiro de ovelha (FRANCISCO, 2013) ou que os cristãos não tenham medo “[...] de sujar as mãos, as vestes, quando se fazem próximos do outro.” (FRANCISCO, 2018). Inspiram e conferem uma identidade católica romana a uma multiplicidade de movimentos e organizações eclesiais e apostólicos, comunidades, redes, mobilizações em torno de causas ou campanha, ONGs e toda sorte de formações paraeclesiais (AQUINO JÚNIOR, 2012).
No caso específico da Teologia da Libertação, há de se destacar os enormes desafios que emergem do contexto atual. Não obstante a muitas e diversificadas análises, reconhecemos que não é tarefa simples indicar tais desafios. Há, no entanto, três aspectos que têm mobilizado a atenção de teólogos, teólogas e cientistas da religião. O primeiro deles é a tarefa de alargamento metodológico e de atualização nas formas de compreensão da realidade, pressuposto sempre presente nas teologias de caráter social e político. No caso latino-americano, trata-se de avaliar o peso dos esquemas reducionistas que utilizaram em demasia a bipolaridade dominantes x dominados devido à influência de certas formas de marxismo nas análises sociais, ocultando por vezes a complexidade social. Nesse sentido, seguindo as teorias de complexidade, defendemos uma lógica plural para o conhecimento das situações em que vivemos.
Um segundo desafio está em torno das questões relativas à emergência das subjetividades na atualidade. Esta dimensão se conecta com a espiritualidade. Não foram poucas as vezes em que a Teologia da Libertação foi acusada de não ter espiritualidade. É fato que as dimensões racionais presentes no método teológico latino-americano, como as mediações socioanalíticas para a compreensão da realidade, o rigor nas exegeses bíblicas e nas avaliações históricas, e as formas articuladas de ação eclesial e política, marcam uma ambientação de racionalidade que talvez possam inibir formas mais subjetivas de espiritualidade. No entanto, a mística evangélica é parte constitutiva da participação cristã nos processos de libertação social. O martírio de pessoas ligadas à Teologia da Libertação, por exemplo, seria impensável sem uma profunda mística e espiritualidade. Daí a emergência de grandes desafios teológicos e pastorais, em geral requerendo uma abertura a visões que valorizem a subjetividade e formas mais autênticas e plurais de espiritualidade.
Um terceiro desafio reside em torno dos encontros e desencontros da teologia com a pluralidade. A teologia latino-americana priorizou o dado político para suas interpretações e nem sempre esteve atenta às diferenças culturais, que, no caso de nosso continente, são fortemente híbridas e entrelaçadas com a diversidade das expressões religiosas. Também pouco esteve atenta para as demandas da vida que surgem com as dimensões do cotidiano e com os aspectos fundamentais da vida humana como a corporeidade e a sexualidade. Portanto, diante da teologia latino-americana está a tarefa de aprofundar os seus esforços, mesmo com limitações e ambiguidades, e, guiada pelo princípio pluralista, refletir sobre as demandas que a sociedade apresenta e que recaem sobre o quadro de pluralismo, seja o que está em torno das questões do método teológico, do quadro religioso ou de questões de natureza antropológica. Estas últimas podem ser exemplificadas na capacidade de alteridade ecumênica, nas formas autênticas de espiritualidades integradoras, inclusivas e ecológicas, e no valor da corporeidade, da sexualidade e da dimensão lúdica tanto na reflexão teológica quanto nas ações concretas de afirmação da vida (RIBEIRO, 2016).
No entanto, outras éticas, místicas e estéticas inspiram outras estratégias de incidência no mundo. É o caso de setores eclesiais ligados a associações e grupos dedicados ao que chamam de proteção da vida e defesa da família e/ou ao combate à chamada ideologia de gênero – que, por exemplo, se posicionam contrariamente à expansão e garantia de direitos sexuais e reprodutivos, principalmente de mulheres e pessoas LGBTI+ (SERRA, 2019b). Veem-se assim as adesões religiosas prolongando-se, fora dos ambientes eclesiais, no âmbito tanto da esquerda quanto da direita políticas; em ambos os casos, desenvolvem-se estratégias diversas para assegurar o reconhecimento da presença e a legitimação da palavra católica romana também na esfera pública (PORTIER, 2010).
Assim, na articulação dialética entre o fechamento centrípeto e a abertura centrífuga, as fronteiras que separam o espaço intra-eclesial do extra-eclesial e definem a ambos se revelam porosas, flexíveis, voláteis. Há, como já descrito, diferentes práticas inspiradas no princípio pluralista que penetram e atravessam tais fronteiras, mesmo onde prevalece a narrativa de que a meta é a impermeabilidade, e de que o que se pretende é estabelecer limites estanques e estáticos entre a Igreja e o mundo. É preciso que ajustemos o olhar!
Analisamos o quadro da diversidade católica romana no contexto brasileiro com o recurso ao princípio pluralista. Ele, como visto, é um instrumental de análise do pluralismo religioso que, a partir dos estudos culturais decoloniais, prioriza o olhar das realidades socioculturais e religiosas a partir dos entrelugares e fronteiras das culturas, sobretudo de grupos invisibilizados e subalternizados, e não a partir de identidades fixas, formais e institucionalizadas.
Enfatizamos a pluralidade multidimensional do catolicismo romano, cuja variação e pluralização interna é o resultado de uma dinâmica de disputas, resistências e negociações. Esse processo é complexo e permanente e se dá com descontinuidades e continuidades, rupturas e reapropriações que se articulam histórica e sociologicamente, por vezes com certo ineditismo.
Destacamos a pluralidade interna nos modos de ser católico e de ser Igreja, mostrando o entrecruzamento e a multiplicação de identidades e modos de pertencimento, não isentos de silenciamentos e invisibilizações de diversas práticas, sobretudo as que realçam as questões de gênero, da sexualidade e as que estão em torno das culturas afro-indígenas. Essa dinâmica pode ser ilustrada pela chamada missa afro, pelas teologias feministas, queer, negras e indígenas, atividades pastorais inseridas na institucionalidade eclesial, como a pastoral afro-brasileira e o acompanhamento das Comunidades Eclesiais de Base, e organizações paraeclesiais como Católicas pelo Direito de Decidir e a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT.
Por fim, identificamos, com variados exemplos, os modos de ser Igreja no mundo, e com o mundo, engendrados a partir da tensão entre perspectivas eclesiológicas distintas e concomitantes, que se fortalecem e se confrontam em torno dos enrijecimentos institucionais, por um lado, e, por outro, da capacidade crítica, criativa e construtiva dos diferentes grupos que a compõem.