Resumo: Diante da compreensão de que há uma forte relação entre cultura, ética e missão cristã, visto tais fatores influenciarem a praxe das igrejas e sua relação com o mundo, o presente estudo busca contribuir com elementos que tragam maior esclarecimento à percepção bíblica do conceito de cultura. Para tanto, uma pesquisa de revisão bibliográfica e análise documental foi aqui efetuada, tomando como base principal o livro de Rute. Mediante leitura dessa amostra, foi possível observar que o conceito de cultura, embora não trabalhado de forma sistematizada, está presente nas Escrituras. Além disso, notou-se que, nas Escrituras, cultura diz respeito à identidade de um povo, sendo essa identidade formada a partir de pressupostos diferentes (como, por exemplo, de ordem religiosa), resultando em diferentes modos de vida. No contexto bíblico, tais pressupostos devem ser avaliados a partir dos dizeres divinos, a fim de que sejam aceitos como válidos ou rejeitados.
Palavras-chave:CulturaCultura,Livro de RuteLivro de Rute,BíbliaBíblia.
Abstract: Established that there is a strong relationship between culture, ethics and Christian mission, since these factors influence the praxis of churches and their relationship with the world, this study seeks to contribute with elements that bring greater clarification to the biblical perception of the concept of culture. To this end, a bibliographic review and a document analysis research was carried out, based on Ruth's book. When reading this sample, it was possible to observe that the concept of culture, although not worked in a systematic way, is present in the Scriptures. In addition, it was observed that, in the Scriptures, culture refers to the identity of a people, this identity being formed from different assumptions (such as, for example, religious), resulting in different ways of life in the biblical contex
Keywords: Culture, Book of Ruth, Bible.
Resumen: Teniendo en cuenta que existe una fuerte relación entre cultura, ética y misión cristiana, ya que estos factores influyen en la praxis de las iglesias y su relación con el mundo, este estudio busca presentar elementos que aporten mayor clarificación a la percepción bíblica del concepto de cultura. Para ello, se llevó a cabo aquí una investigación de revisión bibliográfica y análisis documental, tomando como base principal el libro de Rut. Al leer esta muestra, se pudo observar que el concepto de cultura, aunque no trabajado de manera sistemática, está presente en las Escrituras. Además, se señaló que, en las Escrituras, cultura se refiere a la identidad de un pueblo; esta identidad se forma a partir de diferentes supuestos (como, por ejemplo, religiosos), resultando en diferentes formas de vida. En el contexto bíblico, tales suposiciones deben evaluarse a partir de dichos divinos para que sean aceptadas como válidas o rechazadas.
Palabras clave: Cultura, Libro de Rut, Biblia.
ARTIGOS
RUTE: o conceito de cultura e suas implicações
RUTE: the concept of culture and its implications
RUT: el concepto de cultura y sus implicaciones
Recepção: 10 Junho 2020
Aprovação: 17 Dezembro 2020
A relação entre cultura, teologia e missão cristã é algo de importância evidente. Contudo, conflitos decorrentes do tema são comuns; afinal, a percepção acerca do assunto em questão afeta a praxe da cristandade e sua relação com o mundo como um todo. Com a explosão da missão mundial cristã de evangelização, tais dúvidas são ainda mais recorrentes. Nesse contexto, questões como se a mensagem bíblica deve ser adaptada à cultura de quem a recebe, ou até que ponto isso deve ocorrer, são levantadas constantemente.
Na busca por respostas, alguns questionamentos preliminares devem ser respondidos, tais como: o que de fato é cultura? Como o cristão deve se portar diante desse assunto? Como o texto bíblico aborda o assunto? O objetivo deste estudo é contribuir com elementos que tragam maior esclarecimento a tais perguntas. Dessa forma, busca-se entender – tanto quanto possível – o que as Sagradas Escrituras orientam quanto à compreensão de cultura, em aplicação ao seu contexto.
Para tanto, uma pesquisa de revisão bibliográfica e análise documental foi aqui efetuada, buscando analisar, a partir do Livro de Rute, os modos de compreensão do conceito. O Livro de Rute foi tomado como amostra em razão de sua forte adequação à temática abordada, tendo em vista que o material aborda, em sua totalidade, questões de ordem transcultural, permitindo expandir esses conceitos para o restante das Escrituras, a partir de um pressuposto de unidade. Contudo, se reconhece de antemão as limitações provenientes dessa seleção, especialmente considerando a dinâmica cristã posterior de uma missão centrífuga e não centrípeta. No entanto, considerando a base veterotestamentária do cristianismo, sua análise deve ser validada.
Antes de adentrar a pesquisa, contudo, serão apresentadas conceituações léxico-gramaticais de alguns termos importantes empregados ao longo do trabalho. Segundo Teixeira (2015), “[...] um sistema filosófico se constitui do trinômio - filosofia, cosmovisão e ética.” (TEIXEIRA, 2015, p. 34-35). Nesse sentido, filosofia é a forma de pensar, derivada de pressupostos aceitos; cosmovisão é a forma de enxergar as realidades, e ética são as ações praticadas, sendo que todas as três dimensões “[...] se interagem numa relação de causa e efeito.” (TEIXEIRA, 2015, p. 34-35).
Tal sistema filosófico relaciona diversos outros conceitos, como aquele expressado pelo termo pressuposto. Segundo Ferreira (1986), pressuposto é “[...] uma circunstância ou fato considerado como antecedente necessário de outro.” (FERREIRA, 1986, p. 1389). Em outros termos, pressuposto é tudo aquilo que se admite previamente, usando tal admissão como base para partir de um determinado ponto.
Um segundo termo relevante, próximo ao anterior, é paradigma, que, basicamente, é compreendido como modelo ou padrão (FERREIRA, 1986). Kuhn (2009), tratando acerca das bases para a história e a filosofia da ciência, declara: “Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 2009, p. 13). Uma descrição mais clara do significado desse conceito é apresentada por Mautner (2011), que propõe que o termo representa “[...] um padrão exemplificando, num arranjo convencionalmente fixado, um padrão de pensamento, um conjunto de suposições de fundo dadas como garantidas. São suposições e leis teóricas gerais.” (MAUTNER, 2011, p. 225-229).
Os termos mencionados se correlacionam em forma de fundamento e manifestação. Em outras palavras, são os pressupostos assumidos que, ao serem agrupados, formam um paradigma. A partir desses pressupostos o ser humano chega a estabelecer seu “[...] modelo ou padrão convencionalmente fixado.” (KUHN, 2009, p. 13).
Tendo sido tais conceitos alinhados de forma comum, a atenção pode ser agora conduzida à problemática central do presente estudo: a extração e sistematização da concepção bíblica do conceito cultura e suas implicações.1
Buscando mapear o conceito de cultura a partir das tratativas bíblicas que se aproximam do tema, especialmente do uso feito no livro de Rute, a presente seção registra, em um primeiro momento, uma breve exposição dos usos linguísticos que designam tal fenômeno. A seguir, a atenção é voltada para o livro de Rute e sua contribuição para a compreensão do tema.
O termo cultura é acompanhado de uma variedade de sinônimos, tais como: "[...] refinamento, polimento, edificação, iluminação, sofisticação [...] desenvolvimento, [...] conhecimento [...], e civilização”2 (RODALE; FLUCK, 1978, p. 249, tradução nossa). Tal informação deixa transparecer a grande variedade de possibilidades, no que diz respeito às distintas formas de concretização linguística do fenômeno aos quais tais termos fazem referência.
Tal realidade é evidente no contexto bíblico. O Hebraico Bíblico, por exemplo, não possui uma palavra específica para conceituar cultura. Ainda assim, a preocupação bíblica quanto ao tema ressalta aos olhos por diversas vezes na narrativa geral, onde o conceito surge de forma implícita, muitas vezes sendo traduzido e carregado ao português por intermédio do uso do termo costumes, dentre outros.
O primeiro termo primordialmente carrega o significado geográfico de caminho ou via; mas, como apresentado por Alonso Schökel (1997), “[...] em sentido ético significa a conduta, o proceder, a sorte ou destino [do homem].” (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 161-162). Ou seja, em certos momentos, דרך (dérek) aponta o caminho tomado pelo sujeito - a sua conduta.
Apenas nesse sentido, o termo aparece na Bíblia Hebraica por mais de 50 vezes (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 161-162). Por exemplo, em Gênesis 19:30 e 31 (ARA), em uma descrição narrativa da retirada de Ló perante a destruição da cidade de Sodoma, lê-se o que se segue:
Subiu Ló de Zoar e habitou no monte, ele e suas duas filhas, porque receavam permanecer em Zoar; e habitou numa caverna, e com ele as duas filhas. Então, a primogênita disse à mais moça: Nosso pai está velho, e não há homem na terra que venha unir-se conosco, segundo o costume [דרך ] de toda terra. (Gn, 19:30 e 31).
Nesses versos observa-se o uso de דרך (dérek) como costumes, ou cultura, em seu significado de “[..] conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados [...]” (MAUTNER, 2011, p. 225-229). De forma mais evidente, o texto de Gênesis, descrevendo a fala da filha primogênita de Ló, afirma ser o costume de toda a Terra a união entre homem e mulher, a fim de gerar filhos. Implicitamente, ele ecoa, na fala da moça, a preocupação feminina comum no antigo oriente, quanto a não gerar um primogênito (HEATON, 1965, p. 60-71). Tais sentidos expressam aspectos do conceito geral de cultura.
Por meio desse breve exemplo, nota-se que, embora a Bíblia não busque sistematizar o conceito de cultura, no discorrer das Escrituras há histórias ou momentos onde a ideia ampla é passível de ser encontrada. Em certo sentido, na Bíblia, costumes implica em cultura; em outras palavras – refletindo a percepção mais concreta da realidade hebraica – costumes seria a experiência concreta de cultura.
Um possível exemplo dessa concepção é a prática hebraica de ensino, orientada pela Lei de Moisés em Deuteronômio 6:7; 11:19, 22 e 19:9. Os israelitas deveriam praticar a orientação cultural através da transmissão da Lei de forma prática, em todos os momentos de suas vidas, conforme pode ser notado em Deuteronômio 6:6-7 (ARA): “Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te.” (Dt, 6:6- 7).
Desse modo, considerando a existência de referências a elementos culturais no texto bíblico é possível mapear, através da análise de alguns relatos, como o fenômeno cultura é compreendido comum no antigo oriente, quanto a não gerar um primogênito (HEATON, 1965, p. 60-71). Tais sentidos expressam aspectos do conceito geral de cultura.
Por meio desse breve exemplo, nota-se que, embora a Bíblia não busque sistematizar o conceito de cultura, no discorrer das Escrituras há histórias ou momentos onde a ideia ampla é passível de ser encontrada. Em certo sentido, na Bíblia, costumes implica em cultura; em outras palavras – refletindo a percepção mais concreta da realidade hebraica – costumes seria a experiência concreta de cultura.
Um possível exemplo dessa concepção é a prática hebraica de ensino, orientada pela Lei de Moisés em Deuteronômio 6:7; 11:19, 22 e 19:9. Os israelitas deveriam praticar a orientação cultural através da transmissão da Lei de forma prática, em todos os momentos de suas vidas, conforme pode ser notado em Deuteronômio 6:6-7 (ARA): “Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa e desenvolvido na narrativa, em seus termos amplos.
Talvez a história bíblica que melhor retrate o trato escriturístico quanto à cultura – cultura como “[...] conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados” (MAUTNER, 2011, p. 225-229) – seja a de Rute. Isso porque o livro de Rute, em sua essência, é a história de contatos e relações intraculturais entre personagens polarizados.
Um exemplo que advoga a favor dessa percepção é a compreensão comum de que, ao mencionar o fato de uma moabita pertencer à genealogia de Davi, e, consequentemente, à de Jesus, a Bíblia busca apresentar uma mescla de povos no contexto salvífico (MAUTNER, 2011). Além disso, diversos outros elementos textuais – que serão trabalhados logo abaixo - identificam o foco do texto na questão cultural.
Quanto a esse livro, sabe-se que essa história se dá na época dos juízes (Rute 1:1), mas apresenta um sincero contraste entre sua narrativa e o livro bíblico que retrata esse período. Ao contrário do tempo de guerras e contendas apresentado no primeiro dos livros históricos, o livro de Rute apresenta uma história de pessoas tranquilas e comuns, cuidando de suas próprias vidas (CUNDALL, 1986, p. 213).
O primeiro aspecto que será abordado nessa seção é o aparente interesse do texto quanto à origem e naturalidade dos personagens apresentados na narrativa.
Já no primeiro capítulo, alguns elementos intrigantes surgem. Antes mesmo de apresentar Elimelec, Noemi e seus filhos, o texto fala de um homem de Belém, que vai com sua família para Moab (Rute 1:1). Apenas após ter apresentado a naturalidade do homem e a nação de seu destino é que o texto segue o rumo comum de uma descrição de personagens em uma narrativa, ou seja, a apresentação de seus nomes (Rute 1:2).
É interessante que isso não ocorre unicamente nesse momento inicial, mas durante toda a narrativa. Ao apresentar Rute e Orfa, primeiramente o texto aponta, novamente, a nacionalidade de ambas, identificando-as como moabitas (Rute 1:4). Isso ocorre também com Booz, no capítulo 2, onde, antes de seu nome, é apresentado o fato de possuir a mesma linhagem de Elimelec, ou seja, ser natural de Belém (Rute 2:1). Dessa forma, aparentemente, o texto começa a apontar o seu foco na narrativa.3
Como de costume, nas Escrituras, uma informação não é apresentada como um fim em si mesma. No livro de Rute isso não seria diferente. Ao afirmar ser um personagem de determinado lugar, insistindo nesse modelo de declaração, o texto atribui um significado muito mais amplo a essa declaração do que unicamente a naturalidade ou origem.
Para início de análise desse aspecto, a atenção será voltada para o texto presente em Rute 1:16 (ARA), onde lê-se o que se segue: “Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe e me obrigue a não seguir-te; porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus.” (Rt, 1:16).
O termo עם (‘am), traduzido por povo, é um termo muito comum na Bíblia Hebraica. Segundo Alonso Schökel (1997), trata-se de um termo consideravelmente amplo, significando, de maneira básica “[...] um grupo aparentado, em sentido estrito ou lato.” (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 500-502). Esse termo aparece cerca de 24 vezes no livro de Rute, sendo o verso citado acima o momento exato de duas dessas ocorrências.4
O uso de עם (‘am) em Rute clarifica a importância da origem dos personagens na narrativa em questão. Em primeira estância, ao realizar a análise de Rute 1:16 e dessas ocorrências terminológicas, é possível observar que a expressão עמי עמך (o teu povo é o meu povo) está em paralelo à אלהי ואלהיך (o teu Deus é o meu Deus) (Rute 1:16). Tal paralelo é apresentado pela formação quase idêntica, e idêntica disposição, entre ambas as sentenças, no texto.
A relação entre o conceito de religião e o conceito de povo é uma realidade trabalhada não somente nesse momento da narrativa. É possível tomar o verso anterior ao já mencionado como exemplo ainda mais claro, onde Noemi afirma que Orfa retornou אל־עמה ואל־אלהיה (para o seu povo e para os seus deuses) (Rute 1:15).
Tal relação carrega a impressão de que, na construção de Rute, o fato de alguém pertencer a um povo não conota apenas um significado puro de origem ou naturalidade, mas algo também relacionado a, no mínimo, sua religião de origem.
Rute 2:11 (ARA) enriquece tal ideia: “Ao que lhe respondeu Boaz: Bem se me contou tudo quanto tens feito para com tua sogra depois da morte de teu marido; como deixaste a teu pai e a tua mãe, e a terra onde nasceste, e vieste para um povo que dantes não conhecias” (Rt, 2:11). Na fala de Booz em referência a Rute, as construções: ואמך אביך (teu pai e tua mãe) e מולדתך וארץ (a terra onde nascestes), são apresentadas como elementos distintos que são acrescidos aos itens deixados por Rute em sua vinda à Israel. Dessa forma, a casa de sua mãe retrata algo mais que simplesmente origem (sendo a ideia de origem especificada por a terra onde nascestes).
Surge aqui, também, a expressão ׁשלׁשום תמול לא־ידעת אׁשר אל־עם ותלכי (e vieste para um povo que dantes não conhecestes) encontrada no fim do versículo. Levando em consideração que Moab e Israel eram vizinhos, sendo até mesmo possível que nessa época os moabitas estivessem habitando no próprio território de Israel (HOFF, 2001), e que Rute conhecera Israel ao menos por intermédio da família de seu falecido esposo, obviamente esse conhecer se refere a algo maior que unicamente uma definição de conhecimento informacional (ALONSO SCHÖKEL, 1997).5
Com tudo isso, nota-se que o uso de termos como povo, ou casa de sua mãe, no livro de Rute, devem ser percebidos como algo mais complexo que apenas elementos indicativos de território de origem dos personagens. Tais termos devem ser percebidos como indicadores de elementos culturais, como modos de vida e percepção.
A disposição do livro de Rute deixa claro esse aspecto. Como já discutido, o primeiro capítulo apresenta uma introdução à narrativa, apontando a atenção de maneira evidente para os povos e naturalidade, não apenas vinculado à origem, mas com foco no modo de vida e cultura.
Ao dar sequência à leitura da narrativa, nota-se que os capítulos 2, 3 e 4 apontam, de forma ainda mais evidente, elementos culturais da prática e leis de Israel (CUNDALL, 1986). No capítulo 2 é apresentada uma reflexão da prática das leis da colheita, destinadas aos pobres, em observância a Levítico 23:22 (ARA): “E, quando segardes a sega da vossa terra, não acabarás de segar os cantos do teu campo, nem colherás as espigas caídas da tua sega: para o pobre e para o estrangeiro as deixarás: Eu sou o SENHOR vosso Deus” (Lv, 23:22).
Conforme apresentado na narrativa, tal lei é praticada por Rute (Rute 2:2) e amplamente cumprida por Booz, ao permitir à Rute essa prática e ao ordenar aos seus servos que não a censurasse enquanto recolhia as espigas que haviam sido derrubadas (Rute 2).
Já nos capítulos 3 e 4, há ainda uma expansão desse uso, onde a lei do levirato é posta em prática, em suas mínimas nuances, conforme é prescrita em Deuteronômio 25:5-10 (ARA):
Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem filhos, então, a mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da família; seu cunhado a tomará, e a receberá por mulher, e exercerá para com ela a obrigação de cunhado. O primogênito que ela lhe der será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o nome deste não se apague em Israel. (Dt, 25:5-10).
Buscando cumprir tal lei, que mais bem retrata uma estrutura cultural do povo em questão, Booz decide resgatar as terras de Elimelec e se casar com Rute, sendo a base dessa prática explícita no diálogo entre Booz e o outro possível resgatador, em Rute 4 (HOFF, 2001, p. 98-99).
A intenção do texto em chamar a atenção do leitor às práticas culturais Israelitas fica cada vez mais clara no decorrer da narrativa. É possível ressaltar o uso da palavra גאל (resgatar)6 que, aparece por diversas vezes no livro; sendo que tal uso, em sua correspondência linguística, surge novamente em ocorrências como Jeremias 32:7 e 8, onde a intenção de um chamado à atenção quanto a cultura israelita, a fim de entender a mensagem então proferida pelo profeta, é ainda mais evidente.
Além disso deve-se levar em conta a menção a Tamar no fim do livro; 7 além da afirmação inicial do autor quanto a história de Rute estar ocorrendo no tempo dos Juízes (Rute 1:1), tempo esse que é caracterizado pelo fato de que Israel estava em um caos social, político, religioso e cultural, visto que, “[...] naqueles dias não havia rei em Israel: porém cada um fazia o que parecia reto aos seus olhos” (Juízes 21:25, ARA).
Em suma, nota-se que o livro de Rute busca apresentar, aparentemente de forma irônica, que em um contexto onde ninguém se importava com o “[...] conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados [...]” (MAUTNER, 2011, p. 225-229) – cultura – de Israel, uma moabita (e, portanto, uma estrangeira pertencente a uma nação inimiga de Israel) o realiza em sua vida, vivendo em total inserção nessa cultura. Dessa forma, essa moabita viria a ser reconhecida tal como uma israelita, a tal ponto de fazer parte da ascendência do grande Rei Davi (Rute 4).8
Como exposto nas páginas iniciais dessa breve análise, o conceito de cultura é um conceito primordial na discussão cristã, devido à, dentre outros fatores, sua forte influência na práxis do cristianismo de forma geral. Tendo isso em mente, o presente trabalho objetivou examinar, de forma breve e sucinta, como tal conceito foi trabalhado nas Escrituras Sagradas – inclusive no que se refere à sua formação e possíveis assimilações –, tomando como amostra central o livro de Rute, pelas razões já expostas. Tendo em mente a pesquisa acima apresentada, resultante dessa problemática, é possível argumentar sobre os elementos em torno do conceito de cultura.
O conceito de cultura, embora não trabalhado de forma sistematizada ou conceitual em si, é uma realidade presente nas Escrituras. Exemplo disso é a narrativa de Ló e suas filhas (Gênesis 19:30-31), a ordem de inculturação do povo de Israel (Deuteronômio 6:6-7), a história de Rute, e o combate apostólico no que se refere às “vãs filosofias” (Colossenses 2:8).
Nesse sentido, nota-se que, nas Escrituras, o equivalente ao conceito ocidental de cultura é compreendido como a identidade de um povo, do sujeito, sendo essa identidade formada a partir de pressupostos (como por exemplo, deuses, em Rute 1:15) diferentes, resultando em diferentes modos de vida e costumes.
Além disso, é importante notar que essa compreensão escriturística exige a ideia relacional de que cultura não é algo neutro em sua essência, mas que os pressupostos adotados em sua formulação vão atribuir-lhe valor. Nesse sentido, diferentes culturas podem ser avaliadas como positivas ou negativas na ótica bíblica, que avalia uma cultura como positiva apenas se seus pressupostos são firmados por YHWH (Jeremias 10:23).
Dessa forma, para que alguém de outra cultura fosse inserido na congregação de Israel, este deveria, previamente, abrir mão dos elementos conflitante de sua cultura nativa e abraçar a cultura do deus de Israel, conforme preservado em sua lei. Feito isso, todos seriam aceitos como verdadeiros servos de YHWH.