ARTIGOS
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DE AGOSTINHO: os diálogos nos jardins e o êxtase de Óstia
Augustine’s religious experience: the dialogues in the gardens and the extasis in Ostia
La experiencia religiosa de San Agustin: los diálogos en los jardines y el éxtasis de Ostia.
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DE AGOSTINHO: os diálogos nos jardins e o êxtase de Óstia
Interações, vol. 16, núm. 2, pp. 252-272, 2021
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Recepción: 11 Diciembre 2019
Aprobación: 06 Febrero 2021
Resumo: Este trabalho pretende analisar o que se poderia chamar de experiência religiosa de Agostinho, tal como nos revelam os Diálogos escritos em Cassicíaco e, ainda, a célebre passagem do livro IX das Confissões (IX, 10, 23-25), no qual é possível encontrar o relato bem conhecido e bastante comentado de O êxtase de Óstia. O itinerário filosófico de Agostinho tem, a montante, uma conversão filosófica e culmina com a experiência de saída de si, no momento extático, quando o coração entra em contato intenso com a Sabedoria eterna. Experiência-limite, vivida no espaço de um instante, mas que se abre à esperança de uma beatitude concebida como eternização da presença.
Palavras-chave: Agostinho, Experiência religiosa, Mística.
Abstract: This work aims to analyze what could be called Augustine's mystical-religious experience described in the Dialogues written in Cassiciacum and in the famous passage from Book IX of the Confessions in which we can find the well-known and commented account of The Rapture of Ostia. The Augustine's philosophical itinerary begins, upstream, in a philosophical conversion and culminates with the experience of leaving oneself in an ecstatic moment, in which the heart comes into intense contact with eternal Wisdom. Limiting experience, lived in the space of an instant, but which opens up to the hope of a beatitude conceived as an eternity of this instant.
Keywords: Augustine, Religious experience, Mystic.
Resumen: Este trabajo busca analizar lo que se podría llamar de “experiencia religiosa” de San Agustin tal como se muestran los Diálogos escritos en Casiciaco y además el celebre pasaje del libro IX, de las Confesiones (IX, 10, 23-25) en el cual es posible encontrar un relato muy conocido y muchas veces comentado de El éxtasis de Ostia. El itinerário filosófico de San Agustin tiene en su conjunto una conversion filosófica que termina con la experiencia de la salida de si mismo en el momento extático, cuando el corazón entra en contacto intenso con la sabiduria eterna. Es una experiencia-limite vivida en el espacio de un instante, pero que se abre a la esperanza de una beatificación concebida como la eternidad de la presencia.
1 INTRODUÇÃO
Agostinho é, sem dúvida, um marco relevante não só no seio do cristianismo, mas na história do pensamento ocidental. De personalidade desconcertante, pela riqueza de suas dimensões, suscitou reações contrastantes e até paradoxais, de sorte que não pode ser entendido, se enclausurado no seio de uma filosofia ou teologia definidas a priori. Ele não faz filosofia, se considerada como metafísica, nem teologia, uma vez que ele não fala meramente de Deus, mas fala com Ele. As Confissões (AGOSTINHO, 1973),[1] sua obra emblemática por excelência, revelam uma densa e apaixonada palavra endereçada a Deus.[2]
Na época, as ideias gnósticas exerciam forte atração. Animado por grande inquietação intelectual, era tomado por intensas dúvidas; interrogações filosóficas e linguísticas se avolumavam em seu espírito, às quais os sábios maniqueus não ofereciam senão respostas insatisfatórias e evanescentes. Agostinho verá germinar, nesse período, uma busca por Deus que irá se consolidando, por meio de leituras filosóficas. Procurou respostas junto à Nova Academia dos platônicos, esperando encontrar argumentos contra o materialismo dos estoicos.
Antes de tornar-se cristão, o que inflama Agostinho é a filosofia, cuja presença foi de importância fundamental, pelo encontro de um ideal filosófico identificado com a filosofia platônica. Um livro foi marca decisiva no desenvolvimento espiritual do jovem estudante de retórica, em Cartago. A leitura de Hortensius, de Cícero,[3] foi uma verdadeira revelação, imprimindo em seu espírito a convicção da necessidade da busca e do amor à sabedoria, inaugurando a longa marcha em direção a Deus.
Na introdução a De beata vita (I, 4) (A vida feliz) (AGOSTINHO, 2010a),[4] ele indica seu itinerário espiritual, iniciando o momento capital na transformação de seu modo de vida. Tal mudança consiste na adesão racional e intelectual ao cristianismo. A obra Contra os acadêmicos (AGOSTINHO, 2012) é esclarecedora, nesse sentido.
Atormentado existencialmente pelo problema do mal, o que perdurará durante toda a sua vida, procurou ajuda na seita dos maniqueus, fundada pelo persa Mani (216-277), na qual permaneceu durante nove anos. Leu Platão (2012), o Timeu em tradução latina, graças a Cícero e Calcidius. Em Milão, junto ao arcebispo Ambrósio, próximo do neoplatônico Marius Victorinus, tradutor de Porfírio e de Plotino, Agostinho tomou conhecimento dos livros platônicos (Platonicorum libri), na realidade, as Enéadas de Plotino (PLOTIN, 2002). Nas Confissões (1973), ele afirma: “Mas depois de ter lido aqueles livros dos platônicos e de ser induzido por eles a buscar a verdade incorpórea, vi que ‘as vossas perfeições invisíveis se percebem por meio das coisas criadas’.” (Conf. VII, 20).
Tentar compreender a dimensão de suas experiências existenciais e religiosas é, talvez, uma escolha ousada. Muitos de seus escritos são profundamente caracterizados por sua relação íntima com Deus. Sem dúvida, suas Confissões são fonte preciosa. Seu pensamento está fortemente vinculado à vida, ao desejo ardente de “experienciar” a verdade em De beata vita (I, 9 e 10) (AGOSTINHO, 2010a).
A pedra angular do pensamento de Agostinho é o amor à Sabedoria, identificada com o Verbo da fé cristã. Ele dedica os esforços da razão à intelecção dessa fé (intellectus fidei). Esse é o significado de seu empreendimento filosófico nascente. Assim, constitui-se o arcabouço determinante para a articulação das relações entre filosofia e a teologia, em sua obra posterior. A marcante presença do pensamento plotiniano (os êxtases plotinianos), nesse momento decisivo de aprofundamento de busca da fé cristã (leitura das cartas de Paulo), permite o empenho de muitos intérpretes de Agostinho a entender, em tais relatos, centelhas de experiências extáticas, tanto intelectuais (nos Diálogos) quanto religiosas (em Óstia, nas Confissões). Nisso, talvez, Agostinho já seja um místico, pois recusa separar o pensamento da vida, o anseio de experienciar a verdade, projetando uma vida feliz.
Tais relatos ensejam a tentativa, à luz de uma perspectiva fenomenológica, de descrever uma autêntica experiência vivida religiosamente no limiar da evolução do pensamento do visionário de Cidade de Deus (AGOSTINHO, 2013). A ousadia dessa mirada filosófica é circunscrita por uma constelação esplêndida de situações existenciais presentes nesse início da caminhada espiritual de Agostinho: a questão dos diversos sentidos de conversão (como metabolé e como metanoia), a experiência filosófica e a experiência mística.
Este trabalho tem pretensão modesta e limitada; seu desenvolvimento procederá mediante a exposição e a análise do itinerário de Agostinho, nos Diálogos e na leitura dos livros VIII e IX das Confissões (Conf. IX, 10, 23-25), nos quais podemos encontrar o relato do episódio do jardim e o bem conhecido e comentado O êxtase de Óstia, respectivamente. Não se trata da questão de se saber se Agostinho era um místico, mesmo se acordando, com os principais especialistas na sua obra, que é difícil dissociar a vida de suas obras, nas quais se encontram numerosos testemunhos, velados ou explícitos, de experiências ontológicas, vividas de relação com seu Deus.
2 EPISÓDIO NOS JARDINS DE TRÉVERIS E DE MILÃO
Para melhor se entender a natureza dessas experiências existenciais de Agostinho, é relevante situá-las no clima do processo de sua conversão. As cenas relatadas nos jardins moldam, de modo paradigmático, o arcabouço e o ponto nodal da busca por Deus e pelo seu amor, na obra de Agostinho, mormente nos dois momentos que serão analisados, pelos Diálogos e pelas Confissões.
As Confissões nos revelam a figura particularmente emblemática dos jardins que servem de cenário para a caminhada de Agostinho, onde se entrelaçam momentos de sua experiência pessoal e a constelação simbólica dos relatos autobiográficos. As etapas da conversão ocorrem em diversos jardins, extravasando sentimentos religiosos e exaltação mística; o final da narrativa é o repouso em Deus, no paraíso eterno, como podemos apreender no livro XIII, 39, 52 e 38, 53.
No Livro VIII das Confissões, Ponticiano narra a Agostinho seu passeio com três amigos em um jardim, na cidade Tréveris (atual Trier, onde se situava o domicílio do imperador Valentiniano II (Conf. VIII, 6, 15). Sobre esse jardim, sabemos pouco: situava-se contíguo às muralhes da cidade. O relato do amigo serviu para Agostinho revelar-se a si mesmo:
Isso me contava Ponticiano. Mas Vós, Senhor, enquanto ele falava fazíeis-me refletir sobre mim mesmo [...] Colocáveis-me perante o meu rosto, para que visse como andava torpe, disforme, sujo, manchado e ulceroso. [...] Colocáveis-me a mim mesmo diante de mim, e arremessáveis-me para a frente de meus olhos, para que, encontrando a minha iniquidade, a odiasse. (Conf. VIII, 7, 16).
Para Agostinho, esse jardim representa o lugar da renúncia das coisas terrenas, o ambiente que o faz descobrir a vergonha de si, de seu estado disforme, manchado. “Via-me e horrorizava-me, mas não tinha por onde fugir.” (Conf. VIII, 7, 16). E prossegue Agostinho: “Veio o dia em que me vi todo nu, sob as repreensões da consciência: ‘Onde está a tua palavra?’.” (Conf. VIII, 7, 18).
Na disposição complexa das Confissões, o episódio no jardim de Milão, descrito no livro VIII, contempla a cena na qual Agostinho tem uma espécie de revelação divina, quando é plausível notar um milagre da graça divina e aproximá-la da experiência de Paulo a caminho de Damasco.
Anteriormente, a leitura de Hortensius, de Cícero, em seus anos de formação, representou a conversão à filosofia; depois de permanecer nove anos como adepto do maniqueísmo, Ambrósio o auxilia a se desligar do erro e a realizar uma conversão intelectual, sedimentada igualmente pela leitura dos livros platônicos.
O contato com os escritos de Plotino (2002) – as Enéadas – deu-se em Milão, onde chegou, vindo de Roma, graças ao apoio dos maniqueus. “Com efeito, era de maneira absolutamente natural que passavam, nesse ambiente, das Enéadas ao Prólogo do Evangelho de João, ou a São Paulo.” (MARROU, [1955]/2003, p. 33).
Sabemos, por diversos comentadores, que o neoplatonismo de Plotino contribuiu muito para o crescimento intelectual de Santo Agostinho, que culminaria com sua conversão à Fé Cristã. Ao que tudo indica, a leitura de Plotino produziu no espírito de Agostinho um impacto imediato e avassalador:
Foi uma fascinação instantânea: a leitura de alguns tratados de Plotino e Porfírio, que lhe eram acessíveis na tradução latina de Mário Victorino, - outro retórico africano e também convertido célebre -, atearam no espírito, conforme escrevia meses mais tarde ao antigo pretor Romano, ‘um incêndio indescritível’. Este acontecimento foi decisivo e serviu para orientar toda a evolução intelectual e espiritual de Agostinho. (MARROU, 2003, p. 33).
O próprio Agostinho, em Contra os Acadêmicos (AGOSTINHO, 2012),[5] ao mencionar a leitura dos livros platônicos, afirma:
Assim, depois de teres incitado nosso ardor, quando partiste, jamais cessamos de suspirar pela filosofia nem sequer por aquela vida que nos agrada e que convém, e em nada pensávamos além disso. [...] E eis que alguns livros plenos. Como disse Celsino, exalaram sobre nós um perfume arábico, instilando algumas pouquíssimas gotas de unguento preciosíssimo sobre aquela chamazinha. E provocaram em mim um incêndio inacreditável. Inacreditável, ó Romaniano, sim... Inacreditável para mim mesmo. (Cont. Acad. 2.5).
O neoplatonismo plotiniano foi, sem dúvida, a ponte que permitiu a Agostinho passar do maniqueísmo/ceticismo ao cristianismo e à filosofia cristã, que ele mesmo ajudaria a forjar, logo após sua conversão. A leitura de Plotino não contribuiu apenas para o crescimento intelectual de Agostinho; os ensinamentos de Plotino colaboraram também para seu crescimento espiritual, como mostra um estudioso contemporâneo, o qual assevera:
Aos poucos, Agostinho foi esmiuçando essas questões e desenvolvendo argumentos contra a posição maniqueísta que ele havia abandonado. Ajudou-o nessa tarefa a leitura, em tradução latina, das obras de Plotino e de seu grande discípulo, Porfírio. ‘Fui advertido pelos livros platônicos’, ele escreveu, ‘a recolher-me a mim mesmo e aos ditames do meu próprio coração’ (VII. 10.16) Um resultado foi o que parece ter sido sua primeira visão mística. (MATTHEWS, 2007, p. 24).
A conversão de Agostinho à fé cristã não é um fato isolado, mas um processo no qual o Episódio do Jardim é apenas um dos eventos que o estruturaram.
Em meio a dúvidas e incertezas, Agostinho procura Simpliciano e ouve dele o relato da conversão de Mario Vitorino (Conf. VIII, 2, 3-5). Fica comovido e quer lhe imitar o exemplo. Contudo, falta-lhe a vontade firme e unificada (Conf. VIII, 5, 10). Em seguida, por meio de Ponticiano, Agostinho toma conhecimento do monge do Egito, Antão, que até àquela altura desconhecia; fica sabendo, também, da existência dos mosteiros – inclusive de um que havia nos arredores de Milão, sob a tutela de Ambrósio (Conf. VIII, 6, 14-15). Uma batalha interior estava sendo travada. Agostinho não conseguia compreender por que não havia tomado, ainda, uma firme resolução em direção à busca da sabedoria. Já tinham decorrido cerca de doze anos, desde que lera o Hortensius.
Porém, segundo suas próprias palavras, certo dia, sua consciência lhe fala, nos seguintes termos:
Onde está a tua palavra? Não dizias que era por causa da incerteza da verdade que não atiravas com o fardo da tua vaidade? Já tens a certeza e ainda o fardo te carrega, quando outros, que não se mataram em procurá-la, nem meditaram dez anos ou mais, em tais assuntos, recebem asas nos seus ombros mais livres. (Conf. VIII, 7, 18).
Na casa onde morava, em Milão, havia um pequeno jardim. Para lá se dirige Agostinho, visivelmente atormentado, aos olhos de Alípio (Conf. VIII, 8, 19). Faltava apenas a decisão final (Conf. VIII, 11, 25). No auge da angústia, Agostinho se afasta de Alípio. O episódio da conversão pode ser resumido do seguinte modo:
Quando, por uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria e a reuni perante a vista do meu coração, levantou-se enorme tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas. [...] Retirei-me, não sei como, para debaixo de uma figueira, e larguei as rédeas ao choro. [...] Eis que, de súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava e repetia frequentes vezes: “Toma e lê; toma e lê”. [...] Abalado, voltei aonde Alípio estava sentado, pois eu tinha aí colocado o livro das Epístolas do Apóstolo, quando de lá me levantei. Agarrei-o, abri-o e li em silêncio o primeiro capítulo em que pus os olhos: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites” (Rom, 13,13). Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram. Então, marcando a passagem com o dedo ou outro sinal qualquer, fechei o livro. [...] Já com o rosto tranquilo, mostrei-o a Alípio. [...] Pediu-me que lhe mostrasse a passagem lida por mim. Indiquei-lhe e ele prosseguiu, ultrapassando o que eu tinha lido. Eu ignorava, porém, o texto seguinte, que era este: “Recebei ao fraco na fé”. (Rom, 14,1). (Conf. VIII, 12, 29).
A experiência intelectual e religiosa agostiniana da conversão, entretanto, pressupõe – é importante ressaltar – duas mudanças fundamentais: uma de natureza afetivo-volitiva, outra de natureza intelectivo-racional. Ou seja, a experiência religiosa agostiniana decorre da perfeita síntese entre fé e razão, e não pode ser concebida, nem pensada, sem essas duas dimensões, as quais concorrem para o perfeito conhecimento da verdade (Deus), na perspectiva agostiniana.
O batismo, como enfatiza Agostinho, nas Confissões (Conf. XI, 6), seria a consequência da conclusão do processo, mas não parte integrante dele.
A conversão poderia ser entendida, então, como um processo, dentro do qual o Episódio do Jardim – decisivo para Agostinho – seria apenas um importante momento. O processo teria sido desencadeado com a leitura de Hortensius e a consequente descoberta do amor à sabedoria. Podemos supor que tenha se consumado com o advento do batismo ou com a visão de Óstia ou, ainda, com seu ingresso oficial na vida eclesiástica. Essa é mais uma conversão moral do que doutrinal.
Gilson comenta que, para Agostinho, a conversão nunca foi um ato instantâneo, todavia, um movimento contínuo. Teria começado com a leitura do Hortensius e culminado com o ato de fé na Igreja do Cristo (GILSON, 2007, p. 442). Esses seriam, portanto, os fatos, ou eventos, que juntos estruturaram o processo, o qual passou a ser denominado a conversão de Agostinho.
Os dois elementos que formam a experiência místico-religiosa do Agostinho de Cassicíaco são fé e razão. Na ausência de qualquer um deles, a experiência religiosa agostiniana sequer pode ser pensada. Isso significa que, quanto mais desenvolvido for o aspecto intelectivo-racional e o volitivo-afetivo, tanto mais profunda e intensa será a experiência mística. Quer dizer, a experiência agostiniana é passível de um aperfeiçoamento contínuo e ininterrupto, isto é, de vivências cada vez mais profundas e significativas, num crescente infinito.
Antes de passar pela experiência religiosa no Jardim de Milão, Agostinho conheceu o amor pela sabedoria, tomou conhecimento da doutrina de Plotino (pôde inclusive compará-la com o Prólogo de João), leu as Epístolas de Paulo, além de aprender, com as pregações de Ambrósio, outra forma de se interpretar as Escrituras Sagradas.
Nesse movimento, a afirmação do aspecto intelectivo-racional, ou seja, da razão, é importante, porém, insuficiente para o conhecimento da Verdade (Deus) – do ponto de vista agostiniano. Seria preciso juntar a este o aspecto volitivo-afetivo, isto é, a fé, sem a qual a experiência religiosa agostiniana não seria possível. O entendimento Agostinho já havia alcançado; seria preciso, agora, dar o assentimento à autoridade do Cristo.
Nas duas partes do Solilóquios, Agostinho (2010b) menciona a visão de Deus, a qual pressupõe duas potências da alma: fé e razão. Novamente estamos diante da relação conjugada entre a fé e a razão, ambas trabalhando conjuntamente para o conhecimento (visão mística) de Deus. Cremos ser relevante anotar que o binômio fé e razão, anunciado por Agostinho, no Contra os acadêmicos, perpassa as três obras. E não é por acaso. É razoável supor que esse binômio é o fundamento da experiência religiosa agostiniana. É na passagem do Contra os acadêmicos que ele aparece, de forma mais explícita.
Agostinho enfatiza, nessa passagem, que quer compreender a verdade não só pela fé, mas, também, pela inteligência. Trata-se, muito provavelmente, da primeira formulação do crede ut intelligam et intellige ut credam. Ou seja, os dois componentes (fé e razão) que estruturam a experiência religiosa agostiniana, a qual se dá no interior do círculo. Logo, as duas marcas não apenas aparecem juntas, como se mostram inseparáveis. E, como a relação entre ambas é dinâmica, a experiência religiosa agostiniana, mesmo se olhada sob esse ponto de vista, é passível de aperfeiçoamento contínuo e ininterrupto. Pelo componente da fé, Agostinho vincula-se à autoridade de Cristo; pelo componente da razão, aos ensinamentos dos platônicos.
O conhecimento da verdade pressupõe, assim, uma dimensão imponderável e outra noética e, por conseguinte, passível de discurso e racionalização.
William James (1995), em sua obra As variedades da experiência religiosa, alude a estados místicos de consciência. De acordo com James (1995), “[...] a experiência religiosa pessoal tem sua raiz e seu centro em estados místicos de consciência.” (JAMES, 1995, p. 237). Com base nessa afirmação, pode-se sustentar que a religião pessoal, para esse autor, se funda na experiência mística, e que, por experiência mística, podemos entender os estados místicos de consciência. Logo, o que determina a religião pessoal são os estados de consciência, uma vez que, para James, os estados místicos são estados de consciência. Assinala o autor:
Os estados místicos rigorosamente falando, nunca são meras interrupções. Subsiste sempre alguma lembrança do seu conteúdo e um sentido profundo de sua importância. Eles modificam a vida interior do sujeito entre os momentos de sua ocorrência. (JAMES, 1995, p. 238)
Assim, o estado místico de consciência que Agostinho alcança no Jardim de Milão, retratado, posteriormente, nos Diálogos de Cassicíaco, aponta para um tipo particular de conhecimento (conhecimento místico), que é, ao mesmo tempo, contemplação e fruição da verdade – que é o próprio Deus.
3 A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DE AGOSTINHO EM CASSICÍACO
É sob essa perspectiva que passaremos, agora, a examinar os Diálogos agostinianos de Cassicíaco. Aqui já não se trata de um jardim, mas Agostinho se retira para o campo, fora da cidade, como os monges dos quais ele tomou conhecimento, em Tréveris e Milão. Nesse retiro sereno e harmonioso, numa comunidade de amigos e parentes estudiosos, longe de sua profissão de professor, Agostinho escreve quatro livros, dentre os quais os Solilóquios, a conversa com sua própria razão, momentos nos quais ele se permite uma pausa para ler Plotino, os Salmos, e compõe uma espécie de exortação filosófica, fortemente impregnada de neoplatonismo, em preparação à fruição de Deus (fruitio Dei) (Conf. IX 4, 7-8).
3.1 Do Contra os acadêmicos
Contra os acadêmicos (Cont. Acad. II, III) discute – em três livros – a relação entre felicidade e conhecimento da verdade (livro I) e a doutrina dos Acadêmicos (livros II e III). O ceticismo dos acadêmicos era um entrave para a busca da verdade (veritas) e, consequentemente, para se atingir a vida feliz (beata vita). Talvez seja por isso que Agostinho tenha dado especial atenção ao problema da certeza, nas primeiras discussões levadas a efeito no isolamento de Cassicíaco. Sem certeza, não há verdade; sem verdade, não há vida feliz.
Por isso, Agostinho teria composto esses livros na esperança de poder refutar a dúvida acadêmica e, concomitantemente, abrir caminho para encontrar a verdade debilitada pelos argumentos dos acadêmicos (CAPANAGA, 1947). Agostinho aborda a relação entre felicidade e conhecimento da verdade e a doutrina dos Acadêmicos; destacamos três passagens: “A meu convite estávamos todos reunidos num lugar apropriado. Assim que pareceu oportuno, comecei: Duvidais de que devemos conhecer a verdade?” (Cont. Acad. I, 2, 5).
Com efeito, disseste de modo não somente conciso, mas também e, sobretudo, religiosamente que só uma divindade pode mostrar ao homem a verdade. Ao longo desta nossa discussão não ouvi nada mais agradável, nem mais profundo e mais provável e, se esta divindade, como espero, nos assiste, nada mais verdadeiro. (Cont. Acad., III, 6, 13).
Todos sabem que somos levados à aprendizagem pelo duplo impulso de autoridade e da razão. Tenho a certeza de absolutamente nunca me separar da autoridade de Cristo, pois não encontro outra mais poderosa. Quanto às coisas cujo estudo exige grande penetração da razão – pois estou em tal condição que desejo impacientemente compreender a verdade não só pela fé, mas também pela inteligência –, confio encontrar por ora entre os platônicos elementos que não contradigam a nossa sagrada doutrina. (Cont. Acad., III, 20, 43, 128).
Ao redigir esse diálogo Agostinho tinha em mente, provavelmente, o Hortêncio de Cícero, obra de cunho propedêutico, uma autêntica exortação à filosofia. Pode-se observar nesse texto o quanto estavam envoltos num clima espiritual. O método de Cícero no Hortêncio foi, segundo Agostinho, ter recomendado aquilo que ele denominou esta sabedoria espiritual. Poderíamos entender que se tratava de exercícios espirituais como hoje se entende a concepção de filosofia, de filosofar, que era própria dos pensadores como Platão, Aristóteles e os helenísticos, Sêneca e Epicuro, dentre outros.
3.2 Do livro A vida feliz
Essa obra trata do tema da felicidade, a qual, segundo se depreende, é o perfeito conhecimento de Deus. Agostinho vai encaminhando a conversa, com muita habilidade, para enfatizar, em seguida, que só podemos ser felizes, se possuirmos um bem que seja permanente, portanto, não perecível, nem passageiro. A felicidade consiste na posse de um bem permanente. Partindo do princípio segundo o qual Deus é eterno e imutável, Agostinho conclui: “Logo, quem possui a Deus é Feliz!” (AGOSTINHO, 2010a, 2, 11). [6]
É interessante observar como as conversas vão sendo encaminhadas pelo gênio de Agostinho, no sentido de estabelecer as bases de sua filosofia e, mais do que isso, de sua religiosidade, pois, para o recém-convertido, fé e razão já caminhavam juntas na quinta de Cassicíaco. A dúvida dos acadêmicos foi eliminada; o caminho para a verdade foi aberto; só é feliz quem possui o que deseja; o sábio deseja encontrar a verdade; o sábio pode encontrar a verdade e, por conseguinte, ser feliz; só a posse do que se deseja garante a felicidade daquele que quer alguma coisa.
Apontamos três momentos: “Por conseguinte, estamos convencidos de que, se alguém quiser ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado em algum revés de sorte. [...] Logo, quem possui a Deus é feliz!” (De b. vita 2, 11). E mais:
Todo o que encontrou a Deus e o tem benévolo é feliz. Todo o que ainda busca a Deus tem-no benévolo, mas ainda não é feliz. E, enfim, todo o que se afasta de Deus, por seus vícios e pecados, não somente não é feliz, mas sequer goza da benevolência de Deus. (De b. vita 3, 21).
Certo impulso interior que nos convida a lembrar-nos de Deus, a buscá-lo, a sentir sede dele, sem nenhum fastio, jorra em nós dessa mesma fonte da Verdade. É luz que esse misterioso sol irradia em nossos olhos interiores. [...] Esse sol revela-se a nós como sendo o próprio Deus, ser perfeito sem nenhuma imperfeição a diminuí-lo. [...] Não presumamos, assim, haver alcançado a nossa medida. Porque, também se certos da ajuda de Deus, ainda não atingimos a Sabedoria, nem, por conseguinte a felicidade. Pois a perfeita plenitude das almas, a qual torna a vida feliz, consiste em conhecer piedosa e perfeitamente: por quem somos guiados até à Verdade (o Pai); de qual Verdade gozamos (o Filho); e por qual vínculo estamos unidos à Suma Medida (o Espírito Santo). (De b. vita 4, 35).
Agostinho não dissocia prazer e pensamento. Ao contrário, o prazer é intrínseco à alma racional na medida em que expressa seu destino inscrito na busca da verdade que é Deus. O prazer é, portanto, dado como elemento central da vida moral e intelectual, por meio do qual o homem pode se aproximar de seu Criador. Seu lugar é na fruição (fruitio), que é realizada na participação na bondade suprema que é Deus. E Deus é a verdade. É, portanto, o espírito dotado de razão, capaz de verdade, que voltará a desfrutar de Deus.
Agostinho não cai em um espiritualismo beato e irrealista; ele reconhece alegrias humanas terrenas que proporcionam alegria ao ser human0. No entanto, ele não assimila tais alegrias à felicidade. Esta, que é a alegria suprema, só é encontrada na relação de amor do crente com o seu Senhor. Muitas coisas podem proporcionar alegria, mas somente o Senhor pode dar a felicidade.
3.3 Do Solilóquios
Solilóquios (AGOSTINHO, 2010b)[7] mostra – em dois livros – Agostinho interrogando sua própria Razão, tendo em vista objetos que quer conhecer mais do que outros. O primeiro livro começa assim: após uma prece inicial, Agostinho resume para a Razão o que deseja conhecer: “Desejo conhecer a Deus e a alma” (Sol. I, 2, 7). O problema, entretanto, passa a ser o que se quer dizer com a expressão “conhecer a Deus”, isto é, o que significa, nesse caso, “conhecer”. Em outras palavras, que tipo de conhecimento se pode ter, quando o objeto a ser conhecido é o próprio Deus. Agostinho, contudo, afirma que não há forma de conhecimento possível, que não seja aquela dada pelo entendimento; pelos sentidos não se pode conhecer coisa alguma (Sol. I, 3, 8). Para Agostinho, conhecer significa, portanto, saber aquilo que o entendimento pode alcançar.
A Razão[8] promete mostrar Deus à mente de Agostinho, do mesmo modo que o sol se mostra aos olhos, porque as faculdades da alma (animae) são concebidas, metaforicamente, como os olhos da mente. A razão (ratio) corresponde, pois, aos olhos com os quais a alma vê a Deus. Mas, no final das contas, é sempre Deus quem ilumina tudo:
Pois não é a mesma coisa ter olhos e olhar, como tampouco olhar e ver. Por isso, a alma precisa de três coisas: ter olhos dos quais possa usar bem, olhar e ver. O olho da alma é a mente isenta de toda mancha do corpo, isto é, já afastada e limpa dos desejos das coisas mortais, o que somente a fé, em primeiro lugar, lhe pode proporcionar. (Sol. I, 6, 12).
Estamos diante dos dois princípios que estruturam a experiência místico-religiosa agostiniana: fé e razão. Aqui, porém, Agostinho vai mais longe. A razão precisa crer que verá e, mesmo assim, pode ocorrer que não consiga ver, porque, a fim de que possa ver, a razão deve estar sã. Nesse caso, mesmo crendo que possa ver e sabendo que, para ver, precisa estar curada, pode acontecer que não tenha esperança de ficar sã. E embora essas duas etapas sejam superadas, ou seja, que a razão creia que possa ver e que espere poder ficar com saúde, pode não desejar a luz (saúde) que lhe é prometida, porque lhe aprazem as trevas (enfermidades) habituais. Nesse caso, falta-lhe o amor. Quer dizer, satisfeitas essas três coisas, a alma torna-se sã e, consequentemente, apta a olhar e ver, isto é, ter entendimento do seu Deus. Assinalamos duas passagens:
Pois não é a mesma coisa ter olhos e olhar, como tampouco olhar e ver. Por isso, a alma precisa de três coisas: ter olhos dos quais possa usar bem, olhar e ver. O olho da alma é a mente isenta de toda mancha do corpo, isto é, já afastada e limpa dos desejos das coisas mortais, o que somente a fé, em primeiro lugar, lhe pode proporcionar. (Sol. I, 6, 12).
[...] o mesmo olhar não pode voltar os olhos, mesmo já sãos para a luz, se não houver essas três coisas: a fé (fides) pela qual, voltando o olhar ao objeto e vendo-o, se torna feliz; a esperança (spes) pela qual, se olhar bem, pressupõe que o verá; e o amor (charitas) pelo qual deseja ver e ter prazer nisso. Já ao olhar segue a própria visão de Deus que é o fim do olhar, não porque já deixe de existir, mas porque já não há nada a aspirar. Esta é verdadeiramente a perfeita virtude, a razão atingindo o seu fim, seguindo-se a vida feliz. A própria visão é o entendimento existente na alma, que consiste no sujeito inteligente e do objeto que se conhece; [...] Faltando um dos dois, não se pode ver. (Sol. I, 6, 12).
Agostinho não havia escrito nada de substancial antes do Episódio do Jardim. No entanto, depois de passar por aquela vivência interior, pôs-se a escrever. Se, por um lado, os Diálogos de Cassicíaco não descrevem em detalhes aquela experiência ou outra qualquer que ele eventualmente tenha tido, em Cassicíaco, por outro, seus escritos revelam a maturidade intelectual e espiritual a que ele chegou até aquele momento.
Os textos filosóficos produzidos em Cassicíaco concluem seu processo de conversão. E, de certo modo, são a materialização de seu pensamento filosófico e religioso, ou seja, refletem suas vivências anteriores e interiores. Por intermédio deles, sabemos como Agostinho vive, pensa e sente.
Tudo nos textos reflete tanto a interioridade quanto a exterioridade do Agostinho de Cassicíaco. Não é correto, pois, segundo nosso entendimento, enxergar neles apenas teoria do conhecimento, teodiceia e ceticismo acadêmico. Os Diálogos de Cassicíaco estão a jusante de experiências místicas anteriores. E é assim que iremos considerá-los. Nas três passagens do Contra os acadêmicos elencadas acima, Agostinho aborda claramente o conhecimento da verdade – sem a qual não se pode chegar à vida feliz. A verdade, para ele, é Deus. Conhecer a verdade é, portanto, conhecer a Deus. Devemos notar que ele assevera (na terceira passagem referida): “Todos sabem que somos levados à aprendizagem pelo duplo impulso de autoridade e da razão.” (Cont. Acad. III, 20, 43).
Em três momentos do livro A vida feliz, Agostinho realça que todo aquele que encontra e possui a Deus é feliz. A beatitude, como vimos, implica o conhecimento da verdade (que já sabemos ser Deus), à qual podemos chegar pelo duplo caminho anunciado no Contra os acadêmicos. Isso, como acabamos de verificar, requer uma componente volitivo-afetiva, a fé, e outra intelectivo-racional, a razão.
Numa passagem do livro De beata vita, Agostinho expõe a Teodoro as etapas de sua navegação na busca da vida feliz. Ele menciona a descoberta do amor pela sabedoria, a partir da leitura de Hortensius de Cícero; salienta sua desilusão com o materialismo dos maniqueístas, seita que frequentou por nove anos; os sermões do bispo Ambrósio, quando aporta em Milão; a descoberta dos livros dos neoplatônicos. A respeito destes, Agostinho escreve o seguinte:
Li entrementes algumas poucas obras de Platão, pelo qual tu te sentes fortemente atraído. Confrontava, quando podia, o valor de tais opiniões, com a autoridade dos livros que nos transmitem os divinos mistérios. Fui abrasado de tal ardor, que se não fosse por consideração a certos amigos teria rompido todas as minhas cadeias. (De b. vita 1, 4).
Na sequência, Agostinho arremata:
Vês assim em que filosofia navego, presentemente, como estando dentro de ancoradouro. Todavia, é tão vasto este porto que sua extensão não exclui de todo alguma possibilidade de extravio, ainda que menos perigosamente. Pois ignoro, até agora, a que porção de terra que sem dúvida será a única ditosa – na qual poderei atracar e desembarcar. Não piso ainda em terra firme. Sinto-me em meio a dúvidas e hesitações sobre a questão da natureza da alma. (De b. vita 1, 5).
O tríptico formado por esses diálogos engloba componentes doutrinários das conversões de Agostinho na chácara de Cassicíaco, a conversão à filosofia e a conversão ao cristianismo. Ancorado na experiência da realidade e dos poderes da alma, simbolizado pela antiga figura do sábio, é ele quem preside a elevação a Deus. Nesses diálogos ele não fala ainda a Deus, embora as preces sejam numerosas e fervorosas. Agostinho dialoga com seus amigos e familiares e logo em seguida redige esses primeiros textos de sua trajetória intelectual; a fé encontrada não é um incômodo para o filosofar. Não se trata, nesses diálogos de praticar a filosofia, mas de buscar e de encontrar a verdade e a felicidade. Tais experiências espirituais, em especial no Solilóquios, prenunciam, de certo modo, o clima e o conjunto da obra emblemática que são as Confissões.
4 O ÊXTASE DE ÓSTIA
Tivemos conhecimento das diferentes experiências extáticas de Agostinho, durante sua estadia em Cassicíaco e, posteriormente, nas suas Confissões. Temos, pois, as do livro VII, 10,16 e 17,23, em Milão, vividas antes da conversão, abordada no livro VIII. Elas foram provocadas pelo entusiasmo proporcionado pela leitura dos livros platônicos, porque foram eles os primeiros a enaltecer a ideia da visão imediata da realidade inteligível com os olhos da alma; lemos isso na República, VII 533d. Esse estágio é o mais sublime que, na vida terrestre, o homem pode atingir. É o que assegura Platão (2018), no Banquete: “E a estrangeira de Mantinéia disse: ‘nesse momento da vida, meu caro Sócrates, - se é que há um momento especial – a vida humana vale pela contemplação do próprio Belo’.” (PLATÃO, 2018, 211d)
As Confissões testemunham, de modo emblemático, o mistério da conversão que Deus operou em Agostinho pela graça. No início do livro X, ele ressalta que confissão é aquilo que ocorre entre Deus e o homem, no silêncio da alma. Na confissão, trata-se de “praticar a verdade” para alcançar a luz (Conf. X, 1, 1). Para tanto, é necessário desapegar-se do gozo das coisas sensíveis que enlaçam o homem exterior, a fim de entrar em si mesmo e elevar-se por um retorno ao homem interior e ascender ao interior da Verdade.
Tomamos conhecimento de um dos mais memoráveis relatos da relação de um cristão com seu Criador. O relato do êxtase sucede o do batismo (Conf. IX, 6,14) e a homenagem feita à sua mãe Mônica (Conf. IX, 8,17 e IX, 9, 22). As visões de Milão foram solitárias, enquanto a experiência em Óstia foi compartilhada com sua mãe. Desse modo, lemos:
Falávamos a sós, muito docemente, “esquecendo o passado e ocupando-nos do futuro.” (Fp 3, 13). Na presença da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna dos santos “que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do homem imaginou.” (1 Cor 2, 9).
Soa paradoxal essa menção a uma realidade que “[...] nem os olhos nunca viram...”, a qual fará que Mônica e Agostinho atinjam a experiência extática, quando uma elevação “[...] dos corpos subia pouco a pouco à alma que sente por meio do corpo, e de lá à sua força interior [...] (Conf. VII, 17, 23). E, mais adiante, acrescenta:
Foi assim que ela atingiu aquele Ser, num abrir e fechar de olhos. [...] Mas não pude fixar a vista, e, ferido pela minha enfermidade, tornei aos vícios habituais. Não conservava comigo senão aquela lembrança amorosa desejando, se assim me posso exprimir, os aromas dos alimentos que ainda não podia comer. (Conf. VII, 17, 23).
E Agostinho expõe, em palavras decisivas, esse momento fugaz: “Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do nosso coração (attingimus eam modice toto ictu cordis). Suspiramos e deixamos lá agarradas ‘as primícias do nosso espírito.’ (Rom 8,23).” (Conf. IX, 10, 24).
A sua prece de início foi ouvida e Deus respondeu ao apelo de Agostinho, apresentando-se em som para ser ouvido. Note-se o uso que Agostinho faz de uma terminologia platônica e a presença de Plotino, cuja riqueza de pensamento ele soube, como poucos, usufruir. Jean Grondin (2008) indaga se tal empréstimo do platonismo não é estranho à experiência cristã da fé. E completa:
Reclamando dele, Agostinho teria desejado, sem dúvida, significar que a experiência cristã da fé não deixa em nada a desejar à experiência “mística” reivindicada pela mais avançada filosofia de seu tempo, a do platonismo. Para Agostinho, a fé, por mais que ela se funde em testemunhos e uma predicação transmitida, ela é mais que simples “crença” que se poderia colocar ao mesmo nível de outras crenças “pagãs”. A fé, para ele, proporciona uma visão direta do divino (ou de sua “luz”), não deixando dúvida alguma sobre sua autenticidade. (GRONDIN, 2008, p. 28).
Para Grondin (2008), as Confissões atestam a real presença Deus, uma vez que Agostinho as dirige diretamente a Deus, o que fica patente em sua primeira proposição de abertura: “Sois grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado.” (Sl 95, 4). Agostinho finaliza esse relato, assinalando:
Se esta contemplação se continuasse e se todas as outras visões de ordem muito inferior cessassem, se unicamente essa arrebatasse a alma e a absorvesse, de tal modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre intuitivo, pelo qual suspiramos: não seria isso a realização do “entra no gozo do teu Senhor”? (Mt 25, 21) (Conf. IX, 10, 25).
A experiência de Óstia é uma atitude de visão imediata revalorizada fortemente em relação aos outros atos de caráter racional e discursivo, isto é, mediados pelo logos e orientados pela perfeição do inteligível. Agostinho, na companhia de sua mãe, conseguiu atingir (attingimus), no élan de seu coração (ictu cordis), o desejado, simbolizado pela sabedoria eterna, fonte da mais intensa felicidade. Sem dúvida, manifesta-se aí o êxtase cristão, no sentido forte. Essa apreensão frutuosa e saborosa de Deus pelo coração, local da interioridade, do amor, da fé, é uma autêntica experiência extática religiosa. Grondin (2008) ressalta que Agostinho talvez tivesse considerado que essas visões seriam apenas uma experiência provisória e fugaz da condição humana de finitude. Afirma ele: “As experiências de êxtase não duram senão um instante (rapida cogitatione), e não propiciam jamais o repouso e a satisfação de uma visão face-a-face. Suas escapadelas de luz não oferecem senão uma ínfima promessa da visão que a vida eterne garante.” (GRONDIN, 2008, p. 28).
Esses momentos focalizados por Agostinho são considerados uma das partes mais estudadas e analisadas na literatura especializada e, para muitos autores, exemplificam profunda experiência mística. P. L. Bouyer (1949), em sua obra Mystique: essai sur l’histoire d’un mot, define a mística “[...] como uma certa maneira de conhecer Deus diretamente e de modo quase experimental.” (BOUYER, 1949, p. 21). Se se entender mística nesse sentido, é plausível considerar que Agostinho conheceu uma relação mística com Deus.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A admirável arquitetura dessa obra de rara beleza literária, escrita entre 397 e 401, apresenta uma estrutura tecida em torno de um ponto axial que rege temas colhidos no platonismo, no neoplatonismo, em especial Plotino, na escola do Pórtico e nas Escrituras. Na verdade, como declara Jerphagon (2010), “[...] os fios do platonismo milanês, da ética estoica e da revelação judaico-cristã se entrelaçam numa tapeçaria de surpreendente extensão.” (JERPHAGON, 2010, p. 353). Pode-se ver, sustentando o edifício todo, uma filosofia da presença. Observa Jerphagon (2010): “Tudo parte da presença de Deus na alma – do cristão, convém enfatizar – que recebeu essa graça. Se o primeiro efeito é certamente a salvação eterna, o segundo é o conhecimento.” (JERPHAGON, 2010, p. 353).
Esse estudo mostra como plausível a indagação: Agostinho é um místico? Trata-se de uma questão amplamente debatida, aliás especialmente controversa, sem que eminentes especialistas tenham chegado a algum consenso. Marrou (2003), em sua obra Saint Augustin et l’augustinisme, defende que a resposta não levanta dúvidas, desde que não se entenda o adjetivo místico no significado atribuído aos santos Teresa d’Avila e João da Cruz. (MARROU, 2003, p. 64). E o mesmo autor acrescenta:
É certo que o impulso que comove a alma agostiniana em direção à contemplação aspira a um conhecimento de Deus que será, de algum modo, uma experiência imediata na qual a alma se regozija como que irradiada de felicidade. No entanto, sem dúvida, esta mística será a mística de um pensador, de um filósofo e teólogo de amar o que deseja conhecer o que ele ama e quais as razões de amar. (MARROU, 2003, p. 65).
É notável o exemplo que se pode extrair das experiências narradas por Agostinho, nos jardins de Tréveris e de Milão, nos diálogos na chácara em Cassicíaco e em Óstia. São momentos emblemáticos do processo de conversão de Agostinho. Chama a atenção o fato de essa conversão iniciar-se por uma experiência mística filosófica e culminar com confissões de momentos extáticos da mais intensa vivência interior. Enquanto a experiência mística filosófica foi fundante para o pensamento de Agostinho, os relatos das Confissões estão sob o signo de calorosos momentos de louvor e orações bíblicas.
Os primeiros relatos nos diálogos deixam transparecer claramente a presença plotiniana e platônica da linguagem e, assim, dão conta de uma experiência mística filosófica alheia, em certo sentido, à revelação bíblica. As narrativas das Confissões, por outro lado, se sucedem em uma linguagem, ao mesmo tempo, de reconhecimento das faltas e de orações bíblicas. Nos diálogos, vemos uma preparação reflexiva para um tipo de experiência para além da reflexão. O momento místico na filosofia representaria o momento culminante da reflexão filosófica, cujo teor é a plenitude intuitiva das atividades abstratas, realizando, desse modo, o círculo entre reflexão e experiência. Razão e fé já iniciavam a fecundação mútua que iria acompanhar Agostinho, durante sua vida e nas redes articulantes de sua obra.
Há, entretanto, um abismo entre o evento racional e o ápice da união extática. Isso lembra Plotino (PLOTIN, 2002), quando destaca: “Após o repouso no divino, desci ao Intelecto, ao raciocínio discursivo, fico embaraçado em saber como essa descida ocorreu!” (PLOTIN, 2002, IV, 8,1). Na verdade, o encontro com os livros platônicos (libri platonici) foi decisivo na conversão de Agostinho. Em Milão, ele encontra a fé; em Cassicíaco, a razão, a sabedoria, e, em Óstia, ocorre o clímax da experiência unitiva do êxtase religioso. A descrição do momento extático é o desfecho exuberante de três encontros espirituais, nos quais estão presentes, além dos pensadores neoplatônicos, em especial Plotino, a mensagem cristã, pela presença marcante de Ambrósio e, sobretudo, os textos de Paulo e de João.
As visões de Agostinho são o cume da curva ascendente delineada pela sua evolução espiritual, de sua longa experiência religiosa e mística. Sua conversão tem dupla face: é ponte de partida e um término; a transformação que enseja vai se aprofundando, durante a estadia de recolhimento em Cassicíaco, que o conduz ao batismo, abrindo- se, então, em plenitude no êxtase que lhe mostra as perspectivas iluminadas da vida eterna. Percebe-se, no relato de Óstia, o cenário literário de Plotino (PLOTIN, 2002), na Enéada I, 6, na qual o filósofo trata do Belo, dos sentimentos da alma, ao encontrá-lo, e da visão venturosa, quando a alma se une ao Belo e ao Bem, quando ela se torna a luz, na unidade extática.
A intenção indicada deste estudo limitava-se a resgatar, de modo sucinto, eventos de sua vida, os quais Agostinho relatou como experiências existenciais, vale dizer, vividas não passivamente, mas nas quais evidenciou com intensidade a afeição – pathos – de sua alma, e o desejo de sua vontade, na busca da Verdade. Revela-se, nesses textos, a vitalidade de seu pensamento como experiência de vida. Busca pela verdade e vida conjuga-se, dialeticamente, à verdade como experiência de vida e à experiência de vida como desejo, busca e descoberta da Verdade, na figura de Cristo.
Servais Pinckaers [9] (2002) pergunta se o êxtase em Óstia poderia ser considerado uma experiência mística, e conclui: “Agostinho atinge, em determinado instante denso de eternidade, a finalidade à qual aspirava, e pode representar para si mesmo a vida eterna como uma extensão desse momento único.” (PINCKAERS, 2002, p. 120). E concebe essa experiência como um modelo para uma oração contemplativa cristã. Observa, igualmente:
Tal graça pode ser considerada extraordinária, na verdade, uma vez que depende inteiramente da generosidade divina; ela se torna, entretanto, para Agostinho o principal motor de sua vida cotidiana, fundada sobre a graça do batismo que ele havia recebido e alimentada pela fé cujo entendimento ele almeja. (PINCKAERS, 2002, p. 125).
E conclui, indicando: “Na intenção de Agostinho a descrição da contemplação de Óstia é um modelo de oração e de itinerário contemplativo destinado a todos os cristãos.” (PINCKAERS, 2002, p. 126). Não seriam exemplo de oração extática estas palavras de Agostinho? “Algumas vezes, submergi-me em devoção interior deveras extraordinária, que me transportava em inexplicável doçura, a qual, se em mim atingisse o fastígio, alcançaria uma nota misteriosa que já não pertence a esta vida.” (Conf. X, 40, 63).
Essas experiências extáticas estão intimamente relacionadas ao caminho agitado por transformações do processo de sua conversão. Foi um verdadeiro itinerário intelectual, existencial e religioso de um homem inflamado pela fé, à busca de seu Deus. Veremos, mais tarde, essa questão numa das principais obras de Boaventura, Itinerarium mentis in Deum (BONAVENTURE, 2002).
A experiência extática de Agostinho difere daquela na qual se inspirou, vale dizer, de Plotino. Enquanto, para esse filósofo, tratava-se de um processo de regressão da alma em direção ao Uno, do qual emanou, até atingir o êxtase unitivo com o Princípio, a mística de Agostinho envolve experiências vivenciadas na visão extática da luz da Sabedoria eterna. A alma pessoal, em diálogo com o Deus pessoal. Se, para Plotino, o processo de retorno da alma ao Uno, por meio do Nous, o Intelecto, é um processo de purificação, de caráter catártico, para Agostinho, o desejo e a aspiração à Verdade são enriquecidos sobretudo pela graça. O itinerário filosófico de Agostinho culmina com a experiência de saída de si, no momento extático, na qual o coração entra em contato intenso com a Sabedoria eterna. Experiência-limite, vivida no espaço de um instante, mas que se abre à esperança de uma beatitude concebida como eternização desse instante.
REFERÊNCIAS
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AGOSTINHO. A vida feliz. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2010a.
AGOSTINHO. Solilóquios. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2010b.
AGOSTINHO. Contra os acadêmicos. São Paulo: Paulus, 2012.
AGOSTINHO. Cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 2013. 2 v.
BONAVENTURE, Cardinal, Saint. Itinerarium mentis in Deum. New York: Franciscan Inst Pubs, 2002.
BOUYER, Louis. Mystique: Essai sur l’histoire d’un mot. In: Supplément de la Vie Spirituelle, n° 9, 1949, p. 3-23.
CAPANAGA, R. Victorino. Obras de San Agustín. Tomos I-III. Madrid: BAC, 1947.
FILIPENSES. In: A BÍBLIA: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
GILSON, Etiènne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Paulus, 2007.
GRONDIN, Jean. Foi et vision mystique dans les Confessions d’Augustin. Théologiques, v. 16, v. 2, p. 15-30, 2008.
JAMES, William. As variedades da experiência religiosa: um estudo sobre a natureza humana. Tradução de Octávio Mendes Cajado, São Paulo: Cultrix, 1995.
JERPHAGON, Lucien. Histoire de la pensée. D’Homère à Jeanne d’Arc. Paris: Arthème Fayard, 2010.
MARROU, Henri-Irénée. Saint Augustin et l´augustinisme (1955). Paris: Seuil, 2003.
MATEUS. In: A BÍBLIA: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
MATTHEWS, G. B. Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo adiante de seu tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
PINCKAERS, Servais Théodore. En Promenade avec saint Augustin: a la découverte de Dieu dans les Confessions. Paris: Parole et Silence, 2002.
PLATÃO. O Banquete. Tradução de Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Lisboa: Edições 70, 2018.
PLATÃO. Timeu - Crítias. São Paulo: Annablume, 2012.
PLOTIN. Ennéades. Traité 6. Tradução de Luc Brisson. Paris: Flamarion, 2002.
SALMOS. In: A BÍBLIA: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002.
Notas