ARTIGOS
Recepción: 11 Febrero 2020
Aprobación: 06 Febrero 2021
DOI: https://doi.org/10.5752/P.1983-2478.2021v16n2p273-293
Resumo: Pensar uma fenomenologia da religião em Heidegger requer, a princípio, uma dupla atenção: primeiro, a experiência fática da vida é o ponto de partida da fenomenologia; segundo, a tal experiência se vincula à vivência do mundo circundante. Por isso, só é possível afirmar uma fenomenologia da religião em Heidegger enquanto fenomenologia da experiência religiosa. Disso decorrem três questões: qual o significado de experiência? Por que e como ela se vincula à vivência? O que vem a ser o religioso que caracteriza a experiência? Ao pôr essa problemática, este trabalho[1] desenvolve a hipótese de que o religioso é compreendido como fenômeno, advindo, assim, como experiência de sentido, ou seja, como sentido de conteúdo, de referência e de realização.
Palavras-chave: Fenomenologia, Indicação formal, Intuição hermenêutica, Situação hermenêutica.
Abstract: In principle, thinking about the phenomenology of religion in Heidegger requires double attention: first, the phatic life experience is the starting point of phenomenology; second, this experience is linked to the lived experience of the surrounding world. Therefore, it is only possible to affirm a phenomenology of religion in Heidegger as a phenomenology of religious experience. This leads to three questions: what is the meaning of experience? Why and how is it linked to the lived experience? What is the religious that characterizes the experience? By addressing this problem, this paper develops the hypothesis that the religious is understood as a phenomenon, thus arising as an experience of meaning, that is, as a sense of content, relation and enactment.
Keywords: Phenomenology, Formal indication, Hermeneutic intuition, Hermeneutic situation.
Resumen: En principio, pensar una fenomenología de la religión en Heidegger requiere una doble atención: en primer lugar, la experiencia fáctica de la vida es el punto de partida de la fenomenología; en segundo lugar, dicha experiencia está vinculada a la experiencia del mundo circundante. Así, sólo es posible afirmar una fenomenología de la religión en Heidegger como una fenomenología de la experiencia religiosa. De ello se desprenden tres preguntas: ¿Cuál es el significado de experiencia? ¿Por qué y cómo ella está vinculada a la vivencia? ¿Qué es lo religioso que caracteriza la experiencia? Al plantear esta problemática, este artículo desarrolla la hipótesis de que lo religioso se entiende como un fenómeno, surgiendo, por lo tanto, como una experiencia de sentido, es decir, como un sentido de contenido, de referencia y de realización.
Palabras clave: Fenomenología, Indicación formal, Intuición hermenéutica, Situación hermenéutica.
1 INTRODUÇÃO
Em O conceito de experiência em Hegel (escrito originalmente em 1942), Heidegger apresenta claramente aquilo que compreende como sendo o significado de experiência (Erfahrung), a partir de sua etimologia:
[Em alemão,] fahren [ir, orientando-se numa determinada direção] integra a palavra erfahren [experienciar], tendo nesta o sentido originário do mover[-se] para. Ao construir uma casa, o carpinteiro leva [fährt mit] a trave numa determinada direção. O ir [guiando] é um estender a mão para [Langen nach]: alguém [estende a mão] para fazer uma festa no rosto de alguém. O ir é um conduzir até chegar a: o pastor vai com o rebanho, conduzindo-o ao monte. O experienciar é o conseguir chegar estendendo-se para e alcançando [auslangenderlangendes Gelanden]. O experienciar é um modo do estar-presente, quer dizer, do ser. (HEIDEGGER, 2002, p. 214-215, grifo do autor).
Esse significado define a experiência do fenômeno religioso? Sim. Pode-se simplesmente transpô-lo para as preleções heideggerianas do período inicial de Friburgo (1919-1923), nas quais aparece o termo experiência religiosa? Não. O que há entre o texto de 1942 e tais preleções é uma proximidade conceitual vista a partir da etimologia da palavra, o que permite ler o conceito de experiência em ambos os casos e alcançar seu significado no pensamento heideggeriano.
Ao dar alguma atenção às preleções, nota-se o uso tanto de experiência (Erfahrung), por exemplo, em experiência fática da vida (faktische Lebenserfahrung), quanto de vivência (Erlebnis), em vivência do mundo circundante (Umwelterlebnis), o que poderia gerar a primeira impressão de uma sinonímia entre ambos os termos. Contudo, afirmar a distinção entre experiência e vivência lançando mão dos binômios sujeito-objeto, subjetividade-objetividade, interioridade-exterioridade não é suficiente, pois, para Heidegger, esses binômios partem de um pressuposto teorético-epistemológico que não alcança a vida em seu acontecer originário: “[...] o sujeito da teoria do conhecimento não explica o significado metafísico do sentido do espírito, muito menos seu pleno conteúdo. […] O espírito vivo [lebendig Geist] como tal é espírito essencialmente histórico no sentido mais amplo da palavra.” (HEIDEGGER, 1978, p. 407, grifo do autor, tradução nossa).[2] Dessa maneira, ao utilizar experiência e vivência, Heidegger não visa a elaboração de uma teoria epistemológica que justifique o uso do binômio sujeito-objeto, mas, ao invés disso, pretende alcançar o acontecer originário da vida como o que se põe de antemão à caracterização subjetiva-objetiva. Aquilo que é experienciado e trazido à palavra não é, a princípio, teoria, pois esta “[...] não é a atitude natural do pensamento, mas uma posição determinada, com implicações implícitas que ela mesma não reconhece.” (RODRÍGUEZ, 2019, p. 101, grifo do autor, tradução nossa).[3] Vida fática e mundo circundante não são correlatos de sujeito, por um lado, e objeto, por outro.
A circunspecção em torno aos termos vivência e experiência, bem como à vida fática e ao mundo circundante se faz aqui necessária não para traçar uma linha divisória entre eles, mas para mostrar, em primeiro lugar, que ambos estão radicalmente vinculados e se implicam necessariamente. Só assim haverá condições de compreender o significado de experiência religiosa, bem como o de uma fenomenologia da religião em Heidegger, que, propondo-se a uma investigação fundamental, mostra que “[...] o que a fenomenologia procura ex-pôr é a experiência original.” (ENES, 1971, p. 15). Em Heidegger, a fenomenologia se configura, em primeiro lugar, como ex-posição, ou seja, como o trazer à vista os fundamentos da possibilidade do acontecer originário da vida, como o “[...] ex-pôr o remanescente em subposição. Ora este fundamento su-posto coincide com o de que é alvo a hermenêutica. Hermeneuein quer dizer a ex-posição do su-porte que sus-tem a fala no seu mostrar-se.” (ENES, 1971, p. 13, grifo do autor). A fenomenologia da religião, ou melhor, da experiência religiosa não pode prescindir, portanto, da hermenêutica, que, de fato, mostra-se como a intencionalidade própria à experiência da vida fática e à vivência do mundo circundante, como veremos adiante.
2 VIVÊNCIA COMO O ACONTECER ORIGINÁRIO DA VIDA
Se o prefixo er-[4], presente tanto em Er-lebnis quanto em Er-fahrung, indica o caráter originário do viver (leben), da vida (Leben) e do ir (fahren), Erlebnis designa, então, aquilo que é originário à vida, logo, esta vive se apropriando daquilo que se lhe origina e, a partir disso, particulariza-se. O viver é o âmbito originário da vida. Só é possível pensar a vivência a partir da vida. Contudo, vivencia-se o quê? Aqui “[...] estamos ante um abismo: ou nos precipitamos no nada, isto é, na objetividade [Sachlichkeit] absoluta, ou conseguimos dar o salto para outro mundo ou, mais exatamente, pela primeira vez no mundo em geral.” (HEIDEGGER, 1999, p. 63, grifo do autor, tradução nossa).[5] Já há aí um apontamento crítico: à questão sobre o que vivenciar, isto é, sobre o conteúdo da vivência, subjaz a afirmação de que se vivencia algo, ou seja, que há algo, donde o risco de, vivendo, a vida se precipitar na objetividade absoluta e, com isso, (re)cair no princípio teorético sujeito-objeto.
A possibilidade de um salto a outro mundo, passa, sobretudo, pela compreensão dos modos de realização da vida, ou seja, pelo como (Wie) da vivência, no sentido de posicioná-la em sua origem, antes do pressuposto teorético mencionado, pois “[...] um conhecimento como forma dessa vivência qua vivência significa uma formação teorética […], uma racionalização do irracional, uma destruição ou paralisação da vida em um esquema de conceitos como meio e resultado da própria forma.” (HEIDEGGER, 1993b, p. 26, tradução nossa).[6] A exposição do como da vivência torna possível acessá-la em sua originariedade, pois o conteúdo da vivência não é assumido na condição de objeto, mas descrito em sua fenomenalidade, como aquilo que mostra-se-a-respeito-de-si-mesmo.
Esse movimento de incursão ao âmbito originário da vivência faz aparecer os seus três momentos fundamentais: (1) a vivência possui uma significação imediata, que, por sua vez, (2) acontece efetivamente porque quem vivencia é um eu-histórico, tornando possível (3) uma apropriação dessa significação (cf. HEIDEGGER, 1999, p. 63-76). Com isso, há uma estrita relação entre a significação e o eu-histórico. O modo de realização da vida, então, faz referência ao aspecto pré-teorético da vivência, logo, ao expor o como da vivência, não se estabelece previamente nenhum sujeito e nenhum objeto:
É verdade que não se trataria de uma coisificação e objetificação da vivência, de uma concepção contrária à vivência, se eu quisesse dizer que ela é algo como um “eu me comporto”. Decisivo, de fato, é que na simples observação não encontro algo assim como um “eu”. O que vejo é vive-se [es lebt], e mais, que se vive direcionado para algo, e este “viver direcionado” é um “viver direcionado para algo interrogativamente”, e esse algo ele mesmo tem o caráter da questionabilidade. (HEIDEGGER, 1999, p. 66, tradução nossa).[7]
Disso decorre a questão há algo? (gibt es etwas?). O que aí importa não é a pergunta em si, mas o que se pretende com ela, ou melhor, a partir dela, a saber: mostrar como a vivência de tal pergunta já parte, necessariamente, de aspectos prévios à própria pergunta e que fazem que ela faça algum sentido. Daí o exemplo da cátedra apresentado por Heidegger (1999, p. 70-73): não se a vê, a princípio, como madeira, caixote, cor e tudo o mais; a cátedra é vista, de chofre, enquanto tal, isto é, em sua significação imediata. O que, então, se extrai da vivência da pergunta há algo? é a constatação de que o mundo circundante, no qual se vive cotidianamente, não oferece objetos pura e simplesmente. Logo, a vivência da pergunta não coincide com a do mundo circundante, que, por sua vez, não apresenta as coisas em seu aspecto objetivo, mas em seu caráter significativo. Heidegger denomina esse dar a ver as coisas em sua significação, ou melhor, em sua significatividade, por meio de um neologismo: o vir-a-ser mundo (welten), ou também fazer-se mundo, noutra tradução possível.
O viver direcionado para algo mostra que a vivência do mundo circundante não é mediada conceitualmente, pois “[...] vivendo em um mundo circundante, encontro-me rodeado sempre e em qualquer lugar por significados, tudo é mundano, ‘faz-se mundo’ [es weltet], o que não coincide com ‘vale’ [es wertet].” (HEIDEGGER, 1999, p. 73, grifo do autor, tradução nossa).[8] Desse modo, o fazer-se mundo diz respeito à vivência da significação de maneira imediata, o que aponta para a intuição hermenêutica enquanto modo fundamental da vivência, afirmando, com isso, a antecedência da situação hermenêutica ao binômio sujeito-objeto. Como há uma intuição hermenêutica, a vivência não pode ser caracterizada como coisa, tampouco como objeto. O que vem à palavra, então, não é, a princípio, o conceito de algo, mas o sentido daquilo que aí se mostrou enquanto tal e foi desse ou daquele modo vivenciado. Como não há um binômio pré definidor e que cinde sujeito cognoscente, por um lado, e objeto conhecido, por outro, pode-se afirmar que há uma identificação entre o quem e o como da vivência, isto é, entre a vida, ou melhor, o viver (leben) e o vir-a-ser mundo (welten). Disso decorre a afirmação de que a vivência, a priori, não determina uma subjetividade, tampouco uma objetualidade.
A Carta aos Gálatas traz um relato interessante a esse respeito. Nela Paulo afirma: “[...] já não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim […]” (Gl 2, 20). O que há aí é justamente a identificação entre o vivenciado – a fé em Cristo, que, nesses termos, faz-se mundo – e quem vivencia – Paulo –, que, vivenciando, não se encontra como sujeito, pois se identifica a Cristo, o sentido do viver. A fé se manifesta aí como fenômeno. Esse é um dos pontos decisivos para a leitura feita por Heidegger a respeito do cristianismo, de modo que “[...] para ser cristão não basta ter uma opinião sobre a vida; [ser cristão] é um modo de se comportar, um tipo de vida fática.” (VEDDER, 2006, p. 53, tradução nossa).[9] Ser cristão, portanto, diz respeito a como (Wie) se vive, o que faz que o discurso paulino não seja uma especulação teórica sobre a fé, da qual ele próprio não faria parte: “[...] o destino de Paulo está unido ao da comunidade. A partir dessa ‘situação’ de solidariedade, ele fala para a comunidade. Seu próprio lugar é parte de sua fala.” (VEDDER, 2006, p. 53, tradução nossa).[10] Como o ponto de partida da vivência é pré-teorético, o vivenciado é fenômeno e o que vem à palavra é o sentido já compreendido desde uma determinada disposição afetiva, conforme descrito posteriormente em Ser e tempo (cf. HEIDEGGER, 1967, p. 134-167). O que a palavra manifesta é o fenômeno em seu mostrar-se-a-respeito-de-si-mesmo.
A vivência também possui caráter histórico, pois é, a cada vez, “[...] minha vivência, isto é, a vivência que se apresenta aqui, em mim, e que eu vivencio agora.” (FERNANDES, 2010, p. 35, grifo do autor). Esse agora não é o das coisas, não diz respeito a uma temporalidade cronológica, mas tão somente ao agora originário, ao agora propício, ao instante (Augenblick) que, enquanto modo da vida fática, “[...] somente poderá ser determinado em seu caráter ontológico quando se tiver feito visível de modo explícito o fenômeno fundamental da facticidade: ‘a temporalidade’ (que não é uma categoria, mas um existencial).” (HEIDEGGER, 2013, p. 39, grifo do autor). Esse caráter originário do agora também está presente nas cartas paulinas: o fenômeno da παρουσία – a segunda vinda de Cristo –, que, enquanto tal, não possui momento determinado para acontecer, podendo, na verdade, acontecer a qualquer momento. Ela, sem dúvida, indica um acontecimento vindouro, mas que não está objetivamente disponível antecipadamente para ser esperado, representado e calculado. Na verdade, trata-se de algo só expectável de acordo com o καιρός que o rege e não propriamente de acordo com a mensurabilidade proporcionada pelo κρόνος. Por não ser mensurável, a παρουσία acontecerá num instante – literalmente, num piscar de olhos (Augenblick) – tal como descrito por Paulo na Primeira Carta aos Tessalonicenses: “[...] no tocante ao tempo e ao prazo, meus irmãos, é escusado escrever-vos, porque vós sabeis, perfeitamente, que o Dia do Senhor virá como ladrão noturno.” (1Ts 5, 1-2). Orientar a vida a partir desse evento futuro, certo, por um lado, e incerto, por outro, significa orientá-la desde uma fragilidade que só pode ser compreendida a partir daquilo que se é, ou seja, sendo aquilo que se é.
Todavia, viver com vistas à παρουσία não é recusar o tempo cronológico. Trata-se, pois, de assumir a condição de que já sempre se é a cada vez desde outra perspectiva, a do ὡς μή: “[...] esse ὡς significa positivamente um novo sentido que vem ao encontro. O μή se refere ao nexo de realização da vida cristã.” (HEIDEGGER, 1995, p. 120, tradução nossa).[11] Em outras palavras, a vida cristã propriamente dita não se deixa guiar pelos conteúdos mais imediatos do mundo circundante, porém, não propõe algo como uma fuga desse mundo no qual se encontra lançada: “[...] mesmo permanecendo totalmente imerso nos conteúdos próprios de sua condição histórica, o cristão permanece na fé, espera pelo retorno do Senhor.” (VATTIMO, 2004, p. 165). O cristão vive o já de sua existência na condição de ainda não: por meio da morte e ressurreição de Cristo, ele já está salvo, mas isso ainda não se realizou em plenitude, pois, ao evento da cruz, deve se suceder a παρουσία, que é, de fato, o que orienta o modo de realização da vida cristã.
Nesse sentido, as cartas paulinas mostram a vida cristã em seu viver mais próprio. Nelas, a fé é o sentido encontrado: “[...] a experiência religiosa da vida me prende no mais íntimo de mim, a experiência aparece na proximidade imediata de meu eu próprio, eu sou, por assim dizer, esta experiência.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 208, grifo do autor, tradução nossa).[12] O aspecto temporal-histórico vincula vivência e facticidade. Por isso, a vivência não é apreendida como um processo (Vorgang), que corresponde “[...] a um procedimento objetivante que contempla as vivências de um modo neutro e distante, isto é, desvinculadas do eu fático que vive, afastadas do eu-histórico que experiencia, separadas artificialmente do eu-histórico.” (ESCUDERO, 2009, p. 188, tradução nossa).[13] Apreendê-la como processo conduz à sua desvivificação (Entlebung). Há a possibilidade de apreendê-la não como processo justamente porque a vida é histórica por excelência, acontecendo tanto em um agora quanto em um aí, que, juntos, dão orientação à vivência, logo, ao sentido por ela encontrado: “[...] a interpretação é o que dá ao ‘aí’ do ser-aí fático o caráter de um estar orientado, o que delimita muito bem seu possível modo de ver e o alcance de sua visão.” (HEIDEGGER, 2013, p. 40).
O viver direcionado para algo, portanto, nunca é isento de pressupostos, nunca neutro. Ele sempre parte de uma situação determinada. Tanto o agora quanto o aí remetem ao âmbito originário da vida e, dessa maneira, rompem com o pressuposto teorético acima mencionado. O aspecto histórico só pode ser concebido desde a temporalidade e diz respeito a um acontecer (geschehen) que dá origem à história (Geschichte), ao “[...] acontecer mesmo da história, ao movimento de gestação histórica ao qual está submetida qualquer parte da existência humana.” (ESCUDERO, 2009, p. 100, tradução nossa).[14] Por isso, a história é um elemento estruturante da vida, fazendo referência à “[...] finitude inigualável de cada eu singular que vive e encarna toda vivência do mundo circundante.” (CÁCERES, 2014, p. 228, tradução nossa).[15]
Antes de ser um processo, a vivência é um acontecimento. O eu-histórico acontece e se apropria do sentido que lhe advém mundanamente. Assim, não há nenhuma imposição de sentido, mas tão somente a sua descoberta, não porque ele seja algo perene e esteja anexado ao fenômeno tal qual um selo, mas porque ele se origina, porque, no limite, faz-se mundo: “[...] a vivência não se dá para mim como uma coisa que eu coloco aí, como objeto, senão que eu mesmo me aproprio [er-eigne] dela, e ela mesma se apropria [es er-eignet sich] segundo sua essência.” (HEIDEGGER, 1999, p. 75, tradução nossa).[16] Atenção seja dada ao prefixo er-, marcado por Heidegger no início do verbo ereignen (apropriar-se), tal como em Er-lebnis e Er-fahrung, indicando o modo originário de um acontecimento (Ereignis)[17]. A apropriação do sentido vincula vida e mundo, de modo que aquela se encontra sempre imersa nas significações advindas mundanamente.
Isso faz perceber o radical vínculo entre os três pontos fundamentais da vivência. O caráter significativo do mundo, ao acontecer, sempre o faz a um eu-histórico que, por sua vez, se apropria dessa significação; “[...] as vivências são acontecimentos [Er-eignisse], na medida em que vivem a partir do que lhes são próprios [Eigenen] e é só assim que a vida vive.” (HEIDEGGER, 1999, p. 75, tradução nossa).[18] Note-se: não é possível desvincular acontecimento e apropriação, o que inviabiliza a apreensão da vivência como processo, tornando-a, de fato, histórica. O que a individualiza é seu caráter histórico, donde a afirmação de um eu-histórico, que como “[...] um ser que se constrói numa situação dada, […] está presente na mais elementar das percepções e para quem as coisas aparecem desta ou daquela maneira.” (RODRÍGUEZ, 2019, p. 37, tradução nossa).[19] A vida, em seu caráter originário, ou seja, em seu viver, é um acontecimento histórico-apropriativo. A singularização da vida é fática, acontecendo, de fato, como o ir orientando-se em uma determinada direção, ou seja, como experiência. Como “[...] a vida se dá, na minha experiência, de modo muito mais imediato, próximo, originário, em todas e em cada uma das vivências” (FERNANDES, 2010, p. 40, grifo do autor), então, a experiência fática da vida (faktische Lebenserfahrung) é um experienciar direcionado a partir da vivência do mundo circundante (Umwelterlebnis), na qual experiência e ser se identificam.
3 AFINAL, POR QUE SE DIZ FÁTICA TAL EXPERIÊNCIA?
Erfahrung não designa a mera experiência: trata-se, antes, de um lançar-se decidido e decisivo ao encontro daquilo que se dá mundanamente em sua originariedade. E mais: trata-se de um lançar-se sobre a própria vida. Assim, “[...] o existir fático determina um modo de compreensão da existência que já se dá no interior e a partir de si mesma, de tal forma que esta nunca pode ser contemplada ‘de fora’, como um objeto perante um sujeito.” (SARAMAGO, 2008, p. 29). Há aqui eminente, embora não evidente, relação entre vivência e experiência: tanto uma quanto outra, justamente por escaparem à distinção sujeito-objeto, mostram que “[...] o que primeiramente deve ser evitado é o esquema: que há sujeitos e objetos.” (HEIDEGGER, 2013, p. 87, grifo do autor). Daí a antecedência do eu-histórico em relação a qualquer subjetividade. Não é possível identificar ser-aí (Dasein) e sujeito. De fato, não se trata somente de uma mudança terminológica, substituindo um pelo outro. Trata-se, pois, de uma mudança principial – e existencial, na verdade –, uma vez que ser-aí abarca a situação hermenêutica em que o eu-histórico se encontra a todo momento, a saber, na posição de compreensão da existência que é a sua, recebendo a orientação, para tanto, senão do mundo, que, enquanto tal, é o horizonte ao qual o ser-aí está direcionado. Portanto, o caráter fático diz respeito a um modo sempre já levado a cabo da experiência do mundo circundante. A experiência da vida só é possível faticamente.
Ser-aí é vida fática. Isso porque esta é o solo mais próprio e originário daquele, de maneira que “[...] o conceito de facticidade: nosso ser-aí próprio em cada caso, em princípio não envolve na determinação de ‘próprio’ [eigen], ‘apropriação’ [Aneignung], ‘apropriado’ [angeeignet] nada em si da ideia de ‘eu’, pessoa, egoidade, centro de atos.” (HEIDEGGER, 2013, p. 37, grifo do autor). Ou seja, ser-aí não é sujeito. E não o é porque indica a facticidade da existência, guardando, pois, uma relação direta com o significado de experiência enquanto um viver direcionado. Numa palavra: ser-aí remete ao ser e ao viver direcionado pelo que mundana e imediatamente advém em sua significação. Logo, ser-aí remete ao vir-a-ser do mundo enquanto tal.
O experienciado na experiência advém ao ser-aí daquilo que ele vivencia, que outra coisa não é senão o mundo enquanto sentido. A experiência fática da vida também tem um aspecto pré-teorético, portanto. O ser-aí que experiencia não deixa de ser histórico em hipótese alguma. Colocar o esquema sujeito-objeto como ponto fundacional do experienciar seria retirar da vida fática todo o caráter de viver orientado: “[...] estar livre de perspectiva = ser sujeito viciado. A configuração da perspectiva é o primeiro no ser.” (HEIDEGGER, 2013, p. 88). A intuição hermenêutica garante, justamente, a existência do ser-aí como fática, logo, como acontecimento mundano, histórico, significativo e apropriativo, donde a conclusão de que a vivência do mundo circundante (Umwelterlebnis) e a experiência fática da vida (faktische Lebenserfahrung) guardam uma relação necessária, implicando-se mutuamente.
O acontecimento do sentido marca a apropriação da vida em sua facticidade, logo, marca a identificação entre ser e experiência. O viver orientado da vida fática requer, então, a apropriação da própria situação hermenêutica:
[...] liberdade de perspectiva, se esta expressão deve significar algo, não é outra coisa que a explícita apropriação da posição do olhar. Esta posição é ela mesma algo histórico, ou seja, inseparável do ser-aí (a responsabilidade com que o ser-aí está consigo mesmo, responde por si mesmo), ninguém é em si quimérico e fora do tempo. (HEIDEGGER, 2013, p. 89, grifo do autor).
Como experiência não significa “[...] ‘tomar conhecimento’, mas o confrontar-se com as formas do que é experienciado, o afirmar-se de tais formas [...]” (HEIDEGGER, 1995, p. 9, tradução nossa),[20] o que é experienciado não funciona tal qual um objeto. Seu caráter fático tampouco é algum pressuposto da teoria do conhecimento: “[...] ele deve ser compreendido apenas através do conceito de ‘histórico’”. (HEIDEGGER, 1995, p. 9, tradução nossa).[21] Se aquilo que é experienciado é a vida, então ela não pode ser um objeto: “[...] denominamos o experienciado – o vivido – como ‘mundo’, não como ‘objeto’. ‘Mundo’ é algo em que se pode viver (em um objeto não é possível viver).” (HEIDEGGER, 1995, p. 11, grifo do autor, tradução nossa).[22] A fundamental relação entre vida fática e mundo se evidencia, pois, a partir da caracterização formal de mundo:
O mundo pode se articular formalmente como mundo circundante [Umwelt] (Milieu), como aquilo que nos vem ao encontro, ao qual não apenas pertencem coisas materiais, mas também objetualidades ideais, ciências, artes, etc. Nesse mundo circundante está também o mundo compartilhado [Mitwelt], isto é, outros homens em uma caracterização fática bem determinada: como estudante, docente, parente, superior, etc. – não como exemplares do gênero homo sapiens das ciências naturais e assim por diante. Finalmente, na experiência fática da vida está também o eu mesmo [Ich-Selbst], o mundo próprio [Selbstwelt]. (HEIDEGGER, 1995, p. 11, grifo do autor, tradução nossa).[23]
A vida se origina mundanamente e, por isso, é fática por excelência: “[...] o fático, assumido pelo conhecimento, não possui objetos, mas apenas caráter de significância que livremente pode tornar-se um conjunto de objetos conformados.” (HEIDEGGER, 1995, p. 14, tradução nossa).[24] Assim, a experiência fática da vida é experiência de sentido, que, por sua vez, não é nada objetivo. Note-se: o aspecto não objetivo da experiência fática da vida coloca-a numa posição anterior à teoria do conhecimento, portanto, antes do binômio sujeito-objeto. O vir-a-ser mundo (welten) nada mais é do que o acontecimento do sentido: “[...] tudo o que é experienciado na experiência fática da vida traz o caráter de significatividade [Bedeutsamkeit].” (HEIDEGGER, 1995, p. 13, grifo do autor, tradução nossa).[25] O sentido de ser do ser-aí, porque fático, está vinculado ao mundo como aquilo para e desde o qual o ser-aí se orienta. Assim, a vivência do mundo circundante só é possível enquanto experiência fática da vida. De fato, o sentido de ser do ser-aí é originário porque fático, ou seja, mundano, histórico, significativo e apropriativo.
Vincular mundo e sentido de ser não é afirmar somente que não existe experiência sem mundo, mas que não existe possibilidade de ser sem mundo:
Eu mesmo, em momento algum, experiencio meu eu separadamente, mas sou e estou sempre preso ao mundo circundante. Esse autoexperienciar-se [Sich-Selbst-Erfahren] não é uma “reflexão” teorética, não é uma “percepção interior” entre outras, mas experiência do mundo próprio, porque o experienciar mesmo tem um caráter mundano, tem uma acentuada significatividade, de modo que, faticamente, a própria experiência do mundo próprio não é mais retirada do mundo circundante. (HEIDEGGER, 1995, p. 13, grifo do autor, tradução nossa).[26]
A experiência fática da vida traz fundamentalmente um direcionamento para o mundo próprio. Como este é co-formado pelo mundo circundante e pelo mundo compartilhado, o direcionamento ao mundo próprio não designa um acontecimento isolado, como algo apartado e, por isso, “[...] a própria experiência do mundo próprio não é mais retirada do mundo circundante.” (HEIDEGGER, 1995, p. 13, tradução nossa).[27] A orientação em direção ao mundo próprio ainda dá à vida fática um caráter autossuficiente, de modo que ela não se orienta única e exclusivamente pelo mundo circundante, mas também desde o mundo compartilhado e de seu mundo próprio[28]. Não se trata, pois, de negar a vivência do mundo circundante, mas tampouco de dar-lhe a primazia. Esse é o ponto marcante da distinção terminológica entre vivência do mundo circundante (Umwelterlebnis) e experiência fática da vida (faktische Lebenserfahrung): esta assume a vivência do mundo circundante desde a perspectiva hermenêutica que lhe é própria, desde a acentuação decisiva ao mundo próprio, bem como da necessária co-manifestação de mundo próprio, compartilhado e circundante, que não são três regiões isoladas, pois cada um desses aspectos é co-formado pelo outro.
Como a experiência fática da vida se orienta pela co-manifestação de mundo próprio, circundante e compartilhado, a vida fática possui um caráter autossuficiente, ou seja, ela “[...] não precisa estruturalmente sair de si mesma (livrar-se de si mesma) para realizar suas genuínas tendências.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 31, grifo do autor, tradução nossa).[29] Em outras palavras: ela não se orienta única e exclusivamente pelo mundo circundante, mas também pelo seu mundo próprio e pelo mundo compartilhado, fazendo com que o sentido de ser seja alcançado a partir dessa co-manifestação. No limite, a vida fática não precisa recorrer a nada que lhe é radicalmente estranho para sustentar o sentido desvelado: “[...] a autossuficiência é uma direção motivacional característica da vida em si, a saber, aquela segundo a qual a vida tem sua motivação a partir de seu próprio transcurso fático.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 31, grifo do autor, tradução nossa).[30] Desse modo, é por meio da experiência fática da vida que se realiza o “[...] salto para outro mundo ou, mais exatamente, pela primeira vez no mundo em geral.” (HEIDEGGER, 1999, p. 63, tradução nossa).[31]
4 A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: UM MODO DE REALIZAÇÃO DA VIDA FÁTICA
Chega-se, assim, a um ponto determinante: a experiência fática da vida exige um viver orientado também em direção a um conteúdo, mas que não o antecipa objetivamente e tampouco o preestabelece conceitualmente. “Toda experiência – como experienciar como o que experiencia – pode ‘ser assumida no fenômeno’.” (HEIDEGGER, 1995, p. 63, grifo do autor, tradução nossa).[32] Fenômeno é o conteúdo não objetivo da experiência, logo, o experienciado também não é apreendido como processo (Vorgang), mas como acontecimento (Ereignis). Com isso, a relação entre ser-aí e mundo evidencia aquela entre experiência e ser. Como o fenômeno não pode ser apreendido como processo e o ser-aí nunca é isento de perspectivas, o viver como o acontecimento da vida torna possível ver a situação hermenêutica própria ao ser-aí, mostrando o fundamento do qual parte toda interpretação:
1) um ponto de vista [Blickstand], que se fixou e apropriou de modo mais ou menos explícito; 2) uma perspectiva [Blickrichtung], que dele parte, e segundo a qual se determina, preconceptualmente, o ser captado do objeto da interpretação “enquanto tal [coisa]” e “em que direção” deverá ser interpretado; 3) um horizonte [Sichtweite], delimitado pelo ponto de vista e pela perspectiva, dentro do qual a exigência de objetividade da interpretação se move. (HEIDEGGER, 2005, p. 346-347, grifo do autor, tradução nossa).[33]
Isso torna o fenômeno questionável não somente no que diz respeito ao seu conteúdo, mas, sobretudo, ao como (Wie) da relação entre ser-aí e mundo, logo, ao como da realização do sentido. Assim, o “[...] ‘viver direcionado para algo interrogativamente’ [...]” (HEIDEGGER, 1999, p. 66, tradução nossa),[34] é sempre um interrogar intencional-hermenêutico. A vivência possui uma intencionalidade que já é hermenêutica e que está manifestada na facticidade do ser-aí. A experiência, portanto, desvela a situação hermenêutica própria ao ser-aí, tornando o fenômeno questionável: “[...] 1) pelo ‘que’ [Was] originário, que é experienciado nele (conteúdo) [Gehalt]; 2) pelo ‘como’ [Wie] originário, em que é experienciado (referência) [Bezug]; 3) pelo ‘como’ [Wie] originário, no qual o sentido referencial é realizado (realização) [Vollzug].” (HEIDEGGER, 1995, p. 63, grifo do autor, tradução nossa).[35] Por isso, o conceito de experiência, em Heidegger, assume os contornos de uma indicação formal (formale Anzeige) e não aqueles próprios de uma teoria do conhecimento.
É a partir disso que se olha para a experiência religiosa: o religioso diz respeito ao fenômeno da experiência. Na condição de fenômeno, a religiosidade, como modo de realização da experiência, manifesta o ser-aí em sua facticidade, logo, em sua situação hermenêutica. Com isso, a fenomenologia da religião em Heidegger, de acordo com Vedder, “[...] formalizou a experiência cristã fundamental da vida. Ele não escolhe uma posição a respeito do conteúdo particular dessa experiência, mas limita-se a investigar as condições de sustentação dessa possibilidade.” (VEDDER, 2006, p. 36, tradução nossa).[36] A indicação formal é o meio necessário para alcançar o significado do que seja experiência religiosa.
O que Heidegger encontra, sobretudo nas cartas paulinas, é uma manifestação originária da vida em sua facticidade. O cristianismo apresentado nas e pelas cartas paulinas dá a ver uma experiência fundamental da vida em seu aspecto fático e, por isso, mundano, histórico, significativo e apropriativo. A fenomenologia da religião desenvolvida a partir da análise das cartas paulinas propõe um retorno ao âmbito originário da vida, donde a atenção ao fenômeno cairológico da παρουσία, que, como visto, não pode ser alcançada através do cálculo e, portanto, não é possível falar dele a partir de um domínio cronológico do tempo, mas tão somente da temporalidade cairológica, que, assim, tem a ver com a experiência pré-teorética, pré subjetivo-objetiva da vida em sua facticidade. Como o conteúdo da experiência nunca pode ser deduzido desde a perspectiva cairológica da παρουσία, a resposta à pergunta pelo quando de sua ocorrência recebe apenas uma indicação, apontando, pois, ao como (Wie) do fenômeno sem objetivá-lo (defini-lo) em um conteúdo, em um que (Was). Por isso, “[...] o decisivo é como eu me comporto com isso na vida autêntica. É disso que surge o sentido do ‘quando?’, o tempo e o instante.” (HEIDEGGER, 1995, p. 99-100, tradução nossa).[37]
A compreensão do que seja a experiência religiosa somente indica um como possível de realização da vida em sua facticidade, logo, da expressão experiência religiosa não se deduz nenhuma objetualidade. Antes, ela deve permitir que tal experiência se torne questionável originariamente em seu conteúdo, referência e realização. A indicação formal, no limite, torna possível a compreensão da religiosidade como fenômeno. O que caracteriza a experiência como religiosa, então, não é uma definição conceitual preestabelecida, mas o sentido de conteúdo (Gehaltssinn), de referência (Bezugssinn) e de realização (Vollzugssinn).
A fenomenologia, como fala do fenômeno (λέγειν τά φαινόμενα), não prejulga nada sobre este. Ao falar de experiência religiosa a partir de Heidegger, então, deve-se ter em conta, por um lado, que ela é um conceito formal indicativo que, com vistas a descrever tal fenômeno, parte do como de sua manifestação; por outro, que o sentido advindo é sempre experienciado-manifestado, ou seja, uma concretização da experiência. Não se alcança, com isso, uma determinação prévia do que seja tal religiosidade, pois, para tanto, é necessário que o sentido de conteúdo, de referência e de realização do fenômeno religioso ocorra, ou seja, é necessário que ele, enquanto fenômeno, se concretize de maneira fática. Portanto, a fenomenologia da religião conduzida por Heidegger não pretende a elaboração de um sistema explicativo, pois ela “[...] se coloca numa atitude de ver o fenômeno no seu mesmo mostrar-se, antes que o pensamento raciocinado avente alguma hipótese explicativa, induza ou deduza alguma explicação causal da sua natureza.” (ENES, 1971, p. 14).
A indicação formal funciona como a chave metodológica para compreender tanto o significado do que seja experiência religiosa em Heidegger quanto o porquê ela possui um aspecto originário. Ao expor o caráter fático da vida, a indicação formal conceitualiza sem determinar:
A indicação deve indicar antecipando a referência do fenômeno – em um sentido negativo, como se fosse uma advertência! Um fenômeno deve ser dado previamente de tal modo que seu sentido de referência fique em suspenso. Deve-se evitar assumir que o sentido de referência seja originariamente teorético. A referência e a realização do fenômeno não são determinadas antecipadamente, mas estão em suspensão. […] A indicação formal é uma defesa [Abwehr], um asseguramento [Sicherung] preventivo, de modo que o caráter de realização [Vollzugscharakter] ainda permaneça livre. (HEIDEGGER, 1995, p. 63-64, grifo do autor, tradução nossa).[38]
A indicação formal inviabiliza a objetivação prévia do fenômeno, deixando-o suspenso no que diz respeito ao seu conteúdo, referência e realização. Os conceitos, compreendidos como indicações formais, “[...] não têm o caráter lógico-formal, nem formal-temático, mas de sinalizações formais. […] O que é formalmente sinalizado não pode ser tematizado como um todo.” (MACHADO, 2006, p. 43-44). Numa palavra: a indicação formal é um guia que oferece um “[...] primeiro vislumbre de um fenômeno particular [...]” (VEDDER, 2006, p. 45, tradução nossa),[39] e, por isso, direciona a necessária ação de atualização da experiência na e a partir da situação hermenêutica. O estar em suspenso da referência e da realização possibilita que o fenômeno seja atualizado justamente por não estar situado objetualmente. Tal suspensão garante a manifestação do fenômeno em sua originariedade, bem como a realização da experiência como experiência de sentido: “[...] as ‘indicações formais’ [sic], portanto, estariam em conexão com uma versão filosófica capaz de recomeçar constantemente, de voltar a situar-se no começo antes de toda essencialização e universalização.” (HEBECHE, 2005, p. 347). Assim, a possibilidade de manifestação originária do fenômeno religioso está mantida. A fenomenologia da religião, tal como a desenvolve Heidegger, não fornece respostas objetivas à pergunta sobre o que seja o fenômeno religioso, assumindo, ao invés disso, a tarefa de manter aberta tal questão: “[...] a indicação formal renuncia à compreensão última, que só pode ser dada na genuína vivência religiosa.” (HEIDEGGER, 1995, p. 67, tradução nossa).[40]
Mesmo sendo compreendida como fenômeno, essa religiosidade não deixa de ser experiência de algo, tampouco uma experiência mundana, pois, por um lado, “[...] a experiência fática da vida se situa totalmente no conteúdo, enquanto o como está implícito nisso [...]” (HEIDEGGER, 1995, p. 12, grifo do autor, tradução nossa),[41] e, por outro, “[...] mundo é a categoria fundamental do sentido de conteúdo no fenômeno da vida.” (HEIDEGGER, 1994, p. 86, tradução nossa).[42] A fenomenologia heideggeriana da religião se interessa pela experiência religiosa porque esta guarda uma vinculação fundamental com a experiência fática da vida, logo, com a vivência do mundo circundante.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alcança-se uma fenomenologia da religião em Heidegger uma vez esclarecido que experiência é uma indicação formal, que religioso é o fenômeno da experiência e que há uma eminente, mas não evidente, vinculação entre vivência (Erlebnis) e experiência (Erfahrung). Como a experiência religiosa é uma possibilidade de realização da experiência, ela diz respeito ao ir orientado para algo desde a situação hermenêutica própria a cada ser-aí na condição que é a sua. Fenomenologia da religião, então, é sinônimo de fenomenologia da experiência religiosa, na e para a qual a vida fática é o âmbito originário por excelência: “[...] ao falar do âmbito originário (Ursprungsgebiet) da vida, Heidegger está afirmando que toda manifestação vital, todo fenômeno, deve ser entendido enquanto provindo desta origem, originando-se de algum modo a partir dela.” (LARA, 2014, p. 68-69, tradução nossa).[43] A fenomenologia da religião se propõe a uma condução, a “[...] um conduzir que, em lugares decisivos e em geral, entrega o compreender vivo ao si mesmo e à autenticidade de sua compreensão da origem.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 150, tradução nossa).[44]
Como visto acima, a indicação formal inibe a fixação prévia do fenômeno enquanto objetualidade, isto é, não o determina em seu sentido de conteúdo, referência e realização. Por ser indicativo formal, a experiência religiosa é assumida desde a situação hermenêutica própria ao ser-aí. Dessa maneira, a fenomenologia da religião, em Heidegger, está necessariamente vinculada à hermenêutica da facticidade, pois, ao notabilizar a experiência como indicação formal e o religioso como um fenômeno, mostrou-se também a situação hermenêutica como ponto de partida da investigação fenomenológica. A hermenêutica da facticidade, assim, é fundamentalmente fenomenológica. No limite, então, a fenomenologia da religião proposta por Heidegger nada determina sobre o conteúdo religioso e, no fundo, “[...] seus cursos sobre mística medieval (1919/1920), fenomenologia da religião (1920/1921) e Agostinho (1921) não tinham o propósito final de oferecer uma interpretação da consciência cristã, mas de alcançar uma compreensão clara da tarefa própria da filosofia.” (ESCUDERO, 2011, p. 160, tradução nossa).[45] Por isso, essa específica fenomenologia da religião diz respeito a uma dúplice tarefa: por um lado, a de compreender a experiência religiosa e, por outro, a de restabelecer ao ser-aí o âmbito da decisão pela religião como um modo possível de realização da vida em sua facticidade.
REFERÊNCIAS
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Notas