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O SÚDITO: o antissemitismo na cultura religiosa alemã pré-nazista

The Loyal Subject: antisemitism in pre-nazist german religious culture

El Sujeto: antisemitismo en la cultura religiosa alemana prenazi

Elithan Carvalho LEITE
Mestrando em Teoria Literária. Bacharel em Teologia e Licenciado em Letras – Português. Universidade Estadual de Campinas., Brasil

O SÚDITO: o antissemitismo na cultura religiosa alemã pré-nazista

Interações, vol. 16, núm. 2, pp. 325-335, 2021

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 10 Junio 2020

Aprobación: 03 Julio 2021

Resumo: O Súdito, de Heinrich Mann, enquanto busca tratar acerca das relações da sociedade alemã com o construto imperial, evidenciando por meio da autoridade excessiva e da moralidade seletiva e de aparência uma “representação satírica do poder”, também apresenta em seu percurso literário outros elementos que compõem o conjunto dessa sociedade, como os preceitos culturais e religiosos que a regem. Mediante tal pressuposto, o presente trabalho objetiva explorar a qualidade antissemita enraizada na cultura alemã pré-nazista, tomando como base a sociedade exposta na obra em questão, por meio de análise documental. Para tanto, em um primeiro momento, será feita breve exposição – a partir de revisão bibliográfica – do autor e da obra, dando espaço, finalmente, para uma análise acerca da religiosidade e antissemitismo presente na narrativa. Mediante tal análise, foi possível observar que o antissemitismo é representado na obra como característica cultural da Alemanha pré-nazista e, além disso, como um elemento característico de uma positiva expressão de religiosidade, sendo herança do construto religioso que havia muito se formara.

Palavras-chave: Antissemitismo, Alemanha pré-nazista, Heinrich Mann.

Abstract: “The loyal subject”, by Heinrich Mann, while seeking to deal with the relations of German society with the imperial construct, showing through excessive authority and selective morality and appearance a “satirical representation of power”, also presents in his literary journey other elements that make up this society as a whole, such as the cultural and religious precepts that govern it. Based on this assumption, the present work aims to explore the antisemitic quality rooted in pre-Nazi German culture, based on the society exposed in that book, through documentary analysis. Therefore, at first, a brief exposition - based on a bibliographic review - of the author and the work will be made, finally giving space for an analysis about the religiosity and antisemitism present in the narrative. Through this analysis, it was possible to observe that antisemitism is represented in the book as a cultural characteristic of pre-Nazi Germany and, moreover, as a characteristic element of a positive expression of religiosity, being a legacy of the religious construct that had long been formed.

Keywords: Antisemitism, Pre-Nazi Germany, Heinrich Mann.

Resumen: El Sujeto, de Heinrich Mann, si bien busca abordar las relaciones de la sociedad alemana con el constructo imperial, evidenciando a través de una autoridad excesiva y una moral selectiva y aparentemente una “representación satírica del poder”, también presenta otros elementos en su trayectoria literaria. en elconjunto de esta sociedad, así como los preceptos culturales y religiosos que la rigen. Partiendo de este supuesto, este trabajo tiene como objetivo explorar la cualidad antisemita arraigada en la cultura alemana prenazi, a partir de la sociedad expuesta en la obra en cuestión, a través del análisis documental. Por ello, en un primer momento se realizará una breve exposición -basada en una revisión bibliográfica-del autor y la obra, dando finalmente espacio a un análisis de la religiosidad y el antisemitismo presentes en la narrativa. A través de este análisis, se pudo observar que el antisemitismo se representa en la obra como una característica cultural de la Alemania prenazi y, además, como un elemento característico de una expresión positiva de la religiosidad, siendo un patrimonio del constructo religioso que se había formado durante mucho tiempo.

1 INTRODUÇÃO

A Literatura, como produto cultural, exerce ação proeminente na representação dos valores e costumes de uma determinada sociedade. Nela é observado um panorama daquilo que constitui o status quo que perdura no contexto do autor, a partir do qual a temática escolhida pelo mesmo é desenvolvida. A leitura de obras literárias permite, portanto, uma leitura própria da sociedade operacional utilizada como modelo para o texto desenvolvido – resguardadas as devidas distinções entre o mundo ficcional e o mundo operacional.

O Súdito, de Heinrich Mann, evidencia tal realidade, haja vista que, muito embora a obra busque tratar acerca das relações da sociedade alemã com o construto imperial, evidenciando por meio da autoridade excessiva e da moralidade seletiva e de aparência uma ‘representação satírica do poder’, também apresenta em seu percurso literário outros elementos que compõem o conjunto dessa sociedade (ROSZIK, 2007, p. 15). Nota-se, por exemplo, costumes relativos à herança e às castas, assim como elementos envolvendo relações conjugais, familiares e comunitárias. Heinrich Mann, por meio de um estilo que beira o exagero e promove a repulsa crítica pelas ações das personagens, constrói um cenário cujas ideias vivem livres de sombras, como paráfrases do que de fato rege a sociedade alemã contemporânea a ele.

Nesse contexto emergem, além disso, questões relativas a elementos como o antissemitismo, que ficaria muito evidente poucos anos depois, na Alemanha Nazista. O antissemitismo é representado na obra como característica cultural da Alemanha pré-nazista e, além disso, como um elemento característico de uma positiva expressão de religiosidade, sendo herança do construto religioso que havia muito se formara. Esse trabalho tratará de explorar esses elementos, indicando a validade dessas proposições[1].

2 O SÚDITO DE HEINRICH MANN

Ofuscado pelo sucesso de seu irmão mais novo, o célebre Thomas Mann, Heinrich Mann é, por vezes, esquecido. Em trabalhos biográficos como o texto de Wischmann e Christmann (1975), por exemplo, a história de Heinrich apenas é contada a partir das ações de Thomas, em comparativo secundário com a vida do ganhador do Nobel.

Em todo caso, é-nos informado que Heinrich Mann nasceu em 1871 na atual Alemanha, levando o nome de seu pai. Seu primeiro romance, In Einer Famlie, desenvolvido sob influência direta de sua mãe, foi uma obra imatura, o que fez com que o autor a retirasse da coletânea de suas obras completas. Com o advento da maturidade e o engajamento social e político, seus textos foram se tornando cada vez mais complexos e profundos (MISKOLCI, 2003, p. 170).

No período de supremacia nazista, Heinrich acabou por se dirigir a Paris como refugiado político, chegando na cidade sem uma bagagem sequer. Com a invasão nazista à França em 1940, o alemão necessitou fugir novamente em razão de seu engajamento político, indo a Lisboa, de onde embarcou para os Estados Unidos da América (EUA). No país, Mann viveu uma vida penosa, sendo mantido por trabalhos ocasionais e por meio de eventuais ajudas de seu irmão. Além disso, Heinrich não conseguiu a cidadania americana, especialmente em razão de suas tendências socialistas (WISCHMANN; CHRISTMANN, 1975, p. 97-100).

Após o suicídio de sua segunda mulher, Heinrich Mann viveu seus últimos anos em solidão, falecendo na Califórnia, EUA, em 1950. Sua vida foi marcada pelo engajamento político e social, pela posição contrária à burguesia e sua supremacia no monopólio da arte. Já em suas primeiras obras, o autor demonstrava a importância do engajamento político na vida de um escritor, visto a influência que ele exercia (WISCHMANN; CHRISTMANN, 1975, p. 100-101).

As críticas ao governo imperial que sobressaem em O Súdito deixam clara a percepção de Mann. A obra em análise, publicada em 1914, toma o cenário alemão no período imediatamente anterior à primeira grande guerra e a sociedade que conduz a ela mesma, como plano de fundo para sua obra. O Poder e o Homem, volume posterior, escrito e publicado pelo mesmo autor, serve como um compendio para a primeira obra, oferecendo subsídio contextual para compreendê-la (ROSZIK, 2007, p. 71-72).

O Súdito é reconhecido pela crítica como sendo o herbário do homem da Alemanha do período próximo às grandes guerras. Em seu conteúdo há uma representação completa da sociedade e de seus integrantes, indicando o interesse desmedido por dar ordens e obedecê-las, o fanatismo na adoração prestada ao sucesso, a evidente covardia civil praticada no anonimato e a crueldade e religiosidade que regiam a época (ROSZIK, 2007, p. 71-72).

É nesse contexto que a figura das personagens é apresentada, com atenção especial ao seu protagonista, Diederich Hebling. As qualidades e defeitos dessa personagem refletem os moldes aos quais se adequavam todos, inclusive o Kaiser. O protagonista figura, portanto, como uma encarnação direta da noção de poder que reinava na Alemanha da época, como um reizinho fiel ao paradigma imperial alemão, no qual todos são pequenos monarcas, embora igualmente súditos (ROSZIK, 2007, p. 73).

É mediante essa percepção que a postura pragmática e ideológica de Diederich, e daqueles que o cercam, transpõe o universo ficcional criado pelo autor e representa, em tom satírico e exagerado, a realidade cultural da sociedade alemã da época. Nesse contexto podem ser analisados vários elementos estruturantes da cultura e moralidade vigente; como a relação estabelecida entre a religiosidade alemã e o antissemitismo (ROSZIK, 2007, p. 73-74).

3 RELIGIOSIDADE E ANTISSEMITISMO

O sentimento e a prática antissemita são elementos observados com facilidade em O Súdito. Isso fica evidente mediante a leitura das, aproximadamente, 28 menções aos judeus na obra, todas representando hostilidade direta ou indireta. A hostilidade e postura agressiva diante desse grupo, conforme apresentadas na obra, podem ser exploradas já a partir da análise da primeira menção a um judeu no texto; menção que reúne elementos que constituem todo o trato dado ao tema na obra. Assim, no primeiro capítulo do livro, observa-se o seguinte relato:

Somente uma vez [...] sucedeu que Diederich perdeu todo o escrúpulo, agiu cegamente e chegou a ser o opressor embriagado de triunfo. Como era de costume, costumava zombar do único judeu de sua classe, mas dessa vez agiu de modo a efetuar um ato insólito. Com os pedaços de madeira que serviam para desenhar, construiu uma cruz na mesa do professor e obrigou o judeu a se ajoelhar diante dela. O manteve bem submisso, apesar de toda a resistência. [...] Através dele agia a cristandade de Netzig. Quão bem alguém se sentia com uma responsabilidade compartilhada e uma autoconsciência coletiva![2] (MANN, 2002, p. 9-10, tradução nossa, grifo nosso).

Esse primeiro relato indica algumas características do sentimento antissemita alemão denunciado por Heinrich Mann. Primeiramente, nota-se, na citação acima, a expressão ‘como era de costume’ indicando a zombaria dedicada ao menino judeu como uma prática comum e corriqueira. Fica evidente, além disso, que tal atitude é destinada ao rapaz em razão de sua origem e atrelada religiosidade e nada mais; não havendo motivos outros para tal situação.

O elemento generalizante, também presente nas demais cenas que virão, é aqui introduzido mediante a esquiva por nomear o rapaz. Nota-se, na leitura da obra, que os judeus são normalmente tratados a partir de uma coletividade (extremamente estereotipada, conforme será observado logo adiante), sem qualquer espaço para a subjetividade alheia ao estereótipo estabelecido. Exceção evidente é Jadassohn, cuja nomeação é assegurada e sua herança judaica é tida como evidente em seu aspecto físico, sendo mantida também no nome que leva. Contudo, tal personagem recebe designação apenas para dar continuidade à postura antissemita, já presente nos demais indivíduos.

Isso fica evidente mesmo na introdução do personagem no capítulo três:

A princípio, o outro senhor gerou uma reação muito diferente em Diederich, pois ele tinha uma aparência marcadamente judia. Mas o prefeito o apresentou: Este é o senhor Jadassohn, assessor do Ministério Público. [...] O judeu do Ministério Público tinha olhos, naquele momento, apenas para a empregada. Enquanto ela se movia perto dele com os pratos do desjejum, a mão de Jadassohn desapareceu por debaixo da mesa[3]” (MANN, 2002 p. 80-81, tradução nossa).

Antes da indicação de seu nome, Diederich já o olha com desconfiança, em razão de sua aparência. A primeira ação a ele designada é dotada de características repulsivas e suas falas evidenciam a presença do discurso acerca do verdadeiro alemão, a partir do qual o antissemitismo surge. Nesse contexto, por exemplo, é possível mencionar sua declaração, como crítica ao ‘Gazeta de Netzig’, ao qual atribui a característica de ‘jornal judeu’, visto seu afastamento do espírito alemão (MANN, 2002, p. 80-81, tradução nossa).

A atuação de Jadassohn é típica, visto que o termo ‘judeu’ ou ‘judaico’ surge na obra, na maior parte das vezes, não como substantivo indicador da nacionalidade de alguém. Antes disso, a maior parte das ocorrências aloca o uso como adjetivo, apresentando o termo como representação de algo perverso e desviado de sua boa utilidade.

Tal aspecto pode ser claramente observado na fala de Diederich voltada Wolfgang Buck, filho de mãe judia:

Estes são nossos piores inimigos! Estes que, com sua suposta educação refinada, sujam tudo o que para nós, os alemães, é sagrado! Este delinquente judeu deveria estar feliz porque o toleramos [...] eu cuspo em seus livrecos ingeniosos [4]” (MANN, 2002 p. 80-81, tradução nossa).

O termo ‘judeu’ surge aqui, portanto, como adjetivo que atribui valor pejorativo para o já negativo substantivo “delinquente”. Tal característica, desse modo, faz com que o sujeito que a detenha seja reconhecido como alguém indigno, que deveria alegrar-se pela simples aceitação de sua existência. Logo, ele não merece qualquer consideração de um verdadeiro alemão, pois, em sua existência, ele macula tudo aquilo que é sagrado para esse último.

A identidade judaica, narrada em estereótipos, pode ser lida na obra, portanto, ao menos a partir de alguns elementos. O principal deles, talvez a raiz para todo o mais, pode ser observado a partir do seguinte excerto: “Certamente, o senhor Von Barnim excluía os cidadãos judeus de sua organização do mundo, pois estes eram o princípio da desordem e da dissolução, das revoltas, da perda do respeito – o princípio mesmo do mal” (MANN, 2002, p. 36).

O texto em questão permite notar uma raiz antissemita derivada da compreensão de que os judeus retinham sobre si a essência do mal. Desse modo, tudo aquilo que poderia ser ruim ou perverso provinha deles, ou mesmo poderia receber o adjetivo de ‘judeu’. Em razão disso, os judeus são descritos como indivíduos avarentos, com tendência à conturbação do Estado, sendo felicitada uma movimentação que se dirija à oposição aos mesmos. Os judeus são a essência imediatamente contrária ao ser alemão; uma antítese do que é bom e nobre.

Em meio à prática opressora de Diederich, ainda na cena tomada como ponto de partida dessa análise, os elementos religiosos que a norteiam ficam evidentes, configurando aspecto central dessa leitura. A zombaria dirigida ao rapaz judeu é carregada de simbolismo religioso, visto ser o rapaz obrigado a se ajoelhar diante de uma cruz, símbolo máximo do cristianismo. O narrador deixa ainda mais evidente essa premissa, revelando, por meio de uma reflexão onisciente, que era por meio do pequeno opressor que a cristandade do povoado agia.

Essa expressão, complementada pelas sentenças seguintes, apresenta uma questão importante para a leitura desse elemento constante na obra. Isso porque, a prática antissemita de Diederich é justificada a partir de uma racionalização de que, ao agir assim, o cristianismo era posto em prática. Tal aspecto é ampliado mediante a descrição posterior do narrador onde, de forma paradoxal e irônica, ele descreve o “nobre” sentimento derivado da execução de uma responsabilidade e uma autoconsciência que, em realidade, é coletiva:

Como alguém se sente bem quando tem uma responsabilidade compartilhada e uma autoconsciência coletiva! Depois de que a euforia se dissipou, um breve pânico lhe sobreveio. Contudo, o rosto do primeiro professor com que Diederich se encontrou lhe devolveu todo o seu valor: Ele o olhava com uma perplexa benevolência. Outros lhe mostraram, abertamente, sua aprovação. Diederich sorria para eles com uma humilde cumplicidade. Tudo foi mais fácil para ele desde então[5] (MANN, 2002 p. 10, tradução nossa).

O antissemitismo representado ainda nessa primeira cena é, portanto, já indexado como uma prática coletiva, reconhecida como expressão legítima da religiosidade cristã. Trata-se, portanto, de um aporte cultural que permeia o meio moral compartilhado por aqueles que vivem naquela localidade. Não é sem razão que o antissemitismo registraria tão fácil ascensão e adesão no regime nazista, visto que suas raízes já estavam bem consolidadas, como mínimo, décadas antes.

Desse modo, a fim de que um fosse considerado um bom cristão e, por conseguinte, um bom alemão, o antissemitismo deveria reger suas ações, sempre que o contexto permitisse. Isso pode ser devido ao fato de que o território alemão sempre manteve em seu panorama cultural e religioso uma associação direta entre identidade religiosa e identidade civil. Essa representação inicialmente católica, consolidada por meio do batismo infantil (que indicava o pertencimento à igreja e à sociedade desde o nascimento) não é rompida com o movimento protestante alemão, com principal representação no monge agostiniano Martinho Lutero.

Mesmo posturas antissemitas podem ser observadas por meio da leitura do histórico religioso que conduziu o território alemão desde a Idade Média. Quando pertencente ao Império Romano e, após tornar-se central no Sacro Império Romano-Germânico, as práticas católicas de manutenção do cristianismo por meio do trato agressivo com muçulmanos e judeus já se faziam notar. Exemplos disso são as cruzadas e as práticas de semelhança inquisitória, com constante perseguição e marginalização desses núcleos étnicos.

Vale salientar, contudo, que as ações católicas mais bem representavam uma postura política (mesmo que motivada a partir de compreensões religiosas). É difícil observar, a nível institucional, interesses puramente étnicos de repressão, levados a cabo na perseguição violenta dirigida a esses povos no período mencionado. O interesse, portanto, era político, pois visava manter o poder e a supremacia do cristianismo, conquistados pela unicidade. Assim, diante do fato de que no judaísmo há também uma convergência entre etnia e religião, razão pela qual ter judeus dentro do Império seria um problema para a supremacia marcada na unicidade, nota-se uma confusão do sentimento de repudia destinado a um ou a ambos os elementos identitários desses indivíduos (religião e etnia).

A repudia alocada a questões étnicas, contudo, fica ainda mais evidente com o passar dos séculos, visto que, na atuação de Lutero, esse elemento já é claro (mesmo que ainda regido por questões religiosas). Nos escritos do reformador, desse modo, já é possível notar percepções semelhantes às exploradas por Heinrich Mann em seu livro. Exemplo disso são os seguintes excertos, retirados do famigerado “Dos Judeus e Suas Mentiras”, de autoria de Martinho Lutero:

Os cristãos devem precaver-se para que não sejam seduzidos por este povo maldito e obstinado, que despreza todo o mundo [...] um povo maligno, obcecado, e, como dizem os escritos, não abdicaram do mal nem através dos ensinamentos ou doutrinas dos profetas [...] Digo como os judeus que, vangloriando-se de ser o povo eleito de um Deus que os santificou, por outro lado desafiam suas leis, praticam o orgulho, enchem-se de inveja, aplicam usura, são sovinas e cheios de maldade [...] Na minha opinião, se quisermos ficar livres dos males judaicos, temos que separar-nos deles, temos que mandá-los embora de nossas terras [...] Primeiro devíamos incendiar suas sinagogas (ou escolas), e o que que não queimar, devia ser soterrado definitivamente, para honra de Nosso Senhor e da cristandade (LUTERO, 1993, p. 10-12, 21, 29).

A semelhança dessas declarações com a descrição do pensamento de Diederich, já explorada acima, é evidente. Tal aspecto permite pensar que o antissemitismo, já enraizado em todos os âmbitos culturais no contexto exposto em O Súdito, se desenvolve a partir de fortes influências da religiosidade alemã. Em razão disso, mesmo a prática antissemita na cultura da época era vista como prática efetiva do cristianismo e representação da religiosidade de um, conforme já explorado acima.

Embora a postura “ideológica” de Lutero seja evidente – assim como sua influência na construção da identidade religiosa e cultural alemã –, suas ideias, no tocante às ações que deveriam ser desempenhadas diante dos judeus, são controversas. Em um primeiro momento, Lutero apresenta uma postura que difere em muito das práticas descritas em O Súdito e efetuadas mais ampla e ferozmente no nazismo:

O que nós, cristãos, devíamos fazer com este povo maldito e amaldiçoado? Que fazer, já que os temos entre nós, para não compartilhar com suas mentiras e blasfêmias? Como dizem os profetas, não podemos apagar o eterno fogo da ira divina, nem podemos converter os judeus. Devemos rezar com fervor, praticar a piedade e o bom exemplo, na esperança de converter pelo menos alguns deles. Não devemos nos vingar, porque já vivem a vingança de Deus, que é pior do que seria a nossa (LUTERO, 1993, p. 21).

Contudo, mesmo na sequência desse texto, o alemão interpola proposições que contrariam sua primeira declaração. Não é difícil notar, além disso, a aproximação entre essas orientações e a prática persecutória que seria instaurada contra os judeus:

Vou dar meu conselho. Primeiro devíamos incendiar suas sinagogas (ou escolas), e o que que não queimar, devia ser soterrado definitivamente, para honra de Nosso Senhor e da cristandade, mostrando a Deus que não toleramos ofensas a seu filho, nem a quem o segue [...] Não só as escolas, suas casas também deviam ser destruídas, porque dentro delas praticam a mesma coisa que nas escolas. Os judeus deviam ser reunidos sob um único teto, como numa estrebaria, igual aos ciganos, para que saibam que não são donos da terra, mas prisioneiros, por suas mentiras e blasfêmias. Em seguida, deviam ser confiscados seus livros de orações e o Talmud, pois só ensinam idolatria e mentiras. Depois, proibir por todos os meios, que os rabinos continuem a pregar (LUTERO, 1993, p. 21-22).

Diante dessa leitura, é possível reiterar a percepção da existência de uma forte (e, em alguma medida, evidente) influência exercida pelo histórico religioso na construção dessa característica da sociedade em questão. O antissemitismo é alocado, portanto, como prática essencial para a vida cristã e, em razão da conexão inerente entre religiosidade e naturalidade já indicada, também deveria ser tomado como prática essencial para a vida alemã.

Em sua obra, portanto, Heinrich Mann acaba por atuar como o filósofo platônico que, afastado das sombras e iluminado pela percepção do real, olha de fora a sociedade da época e demonstra, por meio da sátira, sua condição. Sua discordância referente a essas percepções emana de diversos comentários inteligentemente lançados no texto que atestam sua postura crítica, sem aparentes indícios de adesão. Ainda assim, o antissemitismo é mostrado como característica fundamental da sociedade alemã no início do século XX; algo que seria perpetuado, ao menos, até as atrocidades que viriam a ocorrer alguns anos depois.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante os elementos aqui dispostos a partir da análise de O Súdito, é possível defender a tese de que o antissemitismo consta como elemento comum da cultura religiosa alemã, herdado ainda em período pré-nazista. Isso fica evidente ao notar o engajamento ao tema em questão que o movimento nazista presenciou posteriormente, o que atesta a existência de uma bandeira prévia comum à sociedade.

Diante da leitura do livro de Heinrich Mann é possível argumentar, além disso, que o antissemitismo era percebido como uma prática da religiosidade que ali era demonstrada (mesmo considerando o modo ‘exagerado’ de expor o tema e resguardando as devidas proporções entre a ficção e o real). Isso fica evidente pela naturalidade com que o tema é abordado na obra e pelos contextos onde a prática antissemita é registrada, indicando-a como prática de um ‘verdadeiro cristão’.

Tal aspecto é aqui reconhecido como elemento herdado durante séculos pelo povo alemão, cujas raízes remontam, ao menos, ao Sacro Império Romano-Germânico; sendo perpetuado pelas percepções do reformador Martinho Lutero. Essa herança religiosa, muito embora não possa ser reconhecida como único catalizador do sentimento antissemita, pode ser, ao menos, pensada como aspecto estruturante e contribuinte para a manutenção desse cenário.

REFERÊNCIAS

LUTERO, Martinho. Dos Judeus e Suas Mentiras. 1993. Disponível em: https://jesuegraciliano.files.wordpress.com/2017/10/dos_judeus_e_suas_mentiras.pdf. Acesso em: 07 dez. 2019.

MANN, Heinrich. El Súbdito. Madrid: Edaf Antillas, 2002.

MISKOLCI, Richard. Uma brasileira: a outra história de Julia Mann. Cad. Pagu., Campinas, n. 20, p. 157-176, 2003.

ROSZIK, Anderson Augusto. A crítica política e literária de Kurt Tucholsky e o início da República de Weimar (1919-1924). Assis, 2007. 249f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual Paulista.

WISCHMANN, Christine; CHRISTMANN, Karin. Polos opostos: Thomas Mann e Heinrich Mann. Letras, Curitiba, v. 24, p. 97-109, dez. 1975.

Notas

1 É importante esclarecer que não adentramos aqui no mérito da validade dessa associação entre cristianismo e antissemitismo, no que diz respeito aos fundamentos dessa matriz religiosa. Antes disso, o interesse dessa pesquisa se deu na análise da aplicação dessa associação em um locus temporal e espacial específico. Desse modo, não são aqui negadas as associações comuns entre o cristianismo e práticas de tolerância, tão evidentes em seus textos sagrados.
2 “Solo una vez [...], sucedió que Diederich olvidó todo escrúpulo, actuó ciegamente y llegó a ser el opresor ebrio de triunfo. Como era de rigor, solía burlarse del único judío de su clase, pero esta vez procedió a realizar un acto insólito. Con los tacos de madera que servían para dibujar construyó una cruz sobre la mesa del profesor y obligó al judío a arrodillarse ante ella. Lo mantuvo bien sujeto, pese a toda resistencia. [...] A través de él actuaba la cristiandad de Netzig. ¡Qué bien se sentía uno con una responsabilidad compartida y una autoconciencia colectiva!”.
3 “De entrada, el otro señor suscitó en Diederich una actitud muy distante, pues tenía un aspecto marcadamente judío. Pero el alcalde lo presentó: —El señor asesor Jadassohn, de la fiscalía. [...] El judío de la fiscalía solo tenía ojos, por el momento, para la criada. Mientras ella trajinaba junto a él con los platos del desayuno, la mano de Jadassohn desapareció bajo la mesa.”
4 “¡Esos son nuestros peores enemigos! ¡Esos que, con su supuesta educación refinada, ensucian todo lo que para nosotros, los alemanes, es sagrado! Ese granuja judío puede estar contento de que lo toleremos. [...] ¡Yo escupo sobre sus libracos ingeniosos!”
5 “Qué bien se sentía uno con una responsabilidad compartida y una autoconciencia colectiva! Después de que se disipase la euforia se extendió un ligero pánico, pero el rostro del primer profesor con el que se encontró Diederich le devolvió todo su valor: lo miraba con una benevolencia perpleja. Otros le mostraron abiertamente su aprobación. Diederich les sonreía con humilde complicidad. Todo le fue más fácil desde entonces.”
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