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PAZ, DIGNIDADE HUMANA E DESARMAMENTO INTEGRAL: uma compreensão à luz do ensino social católico
Peace, human dignity and integral disarmament: an understanding in the light of the Catholic social teaching
Paz, dignidad humana y desarme integral: un entendimiento a la luz de la doctrina social católica
Interações, vol. 16, núm. 2, pp. 391-425, 2021
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS



Recepción: 30 Diciembre 2019

Aprobación: 06 Febrero 2021

DOI: https://doi.org/10.5752/P.1983-2478.2021v16n2p391-425

Resumo: O presente texto tem como objetivo geral refletir sobre a questão da paz a partir do ensino social católico. Para tal, são levantadas problematizações sobre a conjuntura contemporânea quanto aos esforços de busca pela paz em sua correlação à situação da questão das armas. Busca-se compreender as fundamentações bíblico-teológicas do ensino católico sobre essas questões e conhecer parte do seu desenvolvimento reflexivo antes, durante e a partir do Concílio Vaticano II. Por fim, pretende-se demonstrar que, na perspectiva hermenêutica do pensamento eclesiástico, é fundamental o resgate da dimensão teológica da discussão sobre a temática em questão, pois, sem ele, as soluções construídas podem se voltar contra o próprio homem e, enfim, contra a própria paz.

Palavras-chave: Desarmamento integral, Desenvolvimento integral, Dignidade integral, Ensino social católico, Paz.

Abstract: This text aims to reflect on the issue of peace from Catholic social teaching. Questions arise about the contemporary conjuncture regarding the efforts to search for peace in its correlation with the situation of the arms issue. It seeks to understand the biblical-theological foundations of Catholic teaching on these issues and to know part of their reflective development before, during and after the Second Vatican Council. Finally, it is intended to demonstrate that, in the hermeneutic perspective of ecclesiastical thought, the rescue of the theological dimension of the discussion on the theme in question is fundamental, because without it, the constructed solutions can turn against man himself and, finally, against peace itself.

Keywords: Integral disarmament, Integral development, Integral dignity, Catholic social teaching, Peace.

Resumen: Este texto tiene el objetivo general de reflexionar sobre el tema de la paz desde la doctrina social católica. Para ello, se plantean interrogantes sobre la situación actual de los esfuerzos de búsqueda de la paz en su correlación con la situación del tema de las armas. Se busca comprender los fundamentos bíblico-teológicos de la doctrina católica sobre estos temas y conocer parte de su desarrollo reflexivo antes, durante y después del Concilio Vaticano II. Finalmente, se pretende demostrar que, en la perspectiva hermenéutica del pensamiento eclesiástico, el rescate de la dimensión teológica de la discusión sobre el tema en cuestión es fundamental, porque sin ella, las soluciones construidas pueden volverse contra el hombre mismo y, finalmente, contra la paz misma.

Palabras clave: Desarme integral, Desarrollo integral, Dignidad integral, Educación social católica, Paz.

1 INTRODUÇÃO



“Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Eu não a dou como a dá o mundo”.

Fuente: (Jo 14, 27).

A questão da paz revela-se fundamental na vida humana. Há um “profundo anseio que sabemos ser comum a todos os homens de boa vontade: a consolidação da paz na terra” (JOÃO XXIII, [1963]/2000, PT[1], n. 165); “A paz é um bem precioso, objeto da nossa esperança; por ela aspira toda a humanidade” (FRANCISCO, 2019, s/p., n. 1). O homem anseia por paz.

Entretanto, situações de ameaça à paz mundial continuam sendo frequentes. Pessoas de variadas conjunturas acadêmicas manifestam incômodos diante de situações de barbárie que insistentemente (re)aparecem.[2] Ao mesmo tempo em que a habilidade criativa do ser humano levou a humanidade à criação de artifícios que pretendem prolongar a vida e melhorar a sua qualidade, também são criados elementos, leis e instrumentos que aumentam o clima de ameaça, a sensação de insegurança e a perspicácia no matar. Diversos países seguem investindo na produção de armas químicas e em materiais bélicos de alta performance. Milhões de pessoas seguem morrendo de fome, mesmo vivendo em uma era de altíssima escala de produção e manipulação alimentícia. Segue presente a constante sensação de falta de paz social e pessoal, com a multiplicação intensa de câmeras de segurança, de grades e cercas elétricas, bem como um marcante descaso, despreparo e impotência governamental quanto à questão da segurança pública.[3]

As contradições do desenvolvimentismo tecnológico e racionalista têm demonstrado, há algum tempo, a insuficiência de determinados métodos quando é desconsiderada ou relegada a segundo plano a centralidade da dignidade integral do ser humano. Na perspectiva eclesiástica, entende-se que sem a devida compreensão da condição ontológica do ser humano como realidade oriunda de Deus, de quem ele é imagem (Gn 1, 26), a nossa habilidade de dominar a terra poderá se deslocar de sua verdadeira significação, transformando emancipação em submissão.[4]

Diante desse cenário, não é estranho que essa espécie de sociedade viva submersa em certa cultura do medo (BAUMAN, 2008), geradora da sensação do direito de justificar o uso de tudo quanto é meio para garantir a finalidade da paz; não é estranho que, em uma sociedade tipicamente excitada e sensacionalista (TÜRCKE, 2010), muitos tenham dificuldade de concentração aprofundada (TÜRCKE, 2016; TURCKE, 2018) e de reflexão e de ajuizamentos críticos, seja da realidade sociológica, seja da dimensão antropológica que a envolve.

O papa Francisco, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017 (FRANCISCO, 2017), afirmou que, especialmente nas situações desafiantes de conflito, em que o desespero pode levar a determinadas justificativas pragmáticas, é preciso respeitar a dignidade mais profunda da pessoa humana, isto é, não se deve perder a capacidade de reconhecer a sua imagem e semelhança de Deus (imago Dei). E esse parece ser um ponto antropológico-teológico crucial, a partir do qual não vale qualquer meio para se atingir determinados fins. Disse o papa:

Almejo paz a todo o homem, mulher, menino e menina, e rezo para que a imagem e semelhança de Deus em cada pessoa nos permitam reconhecer-nos mutuamente como dons sagrados com uma dignidade imensa. Sobretudo nas situações de conflito, respeitemos esta “dignidade mais profunda”. [...] Sejam a caridade e a não-violência a guiar o modo como nos tratamos uns aos outros nas relações interpessoais, sociais e internacionais (FRANCISCO, 2017a, n.1.).

Esse desejo de Francisco parece expressar um marcante eco com a antropologia teológica que permeia a moral social católica. Ora, diante do desafio de procurar um agir social que seja coerente com o alto grau de reflexibilidade e (auto)consciência que o ser humano possui – e isso é especialmente exigente quando referido a pessoas que se reconhecem como cristãs –, parece indispensável ter sempre em mente o princípio basilar da Doutrina Social da Igreja, que é o da dignidade integral e inalienável da pessoa humana, de toda pessoa e da pessoa toda (PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”, 2005; CDSI,[5] n. 105-159; PAULO VI, [1967]/1990; PP[6], n. 14), indicando-se que não se deve perder de vista a perspectiva da integralidade da natureza humana e, consequentemente, a inserção da sua ação social concreta e dos critérios que a norteiam nesta perspectiva.

Por isso, parece fundamental, para Francisco e para a Tradição do ensino social católico, que, ao se almejar a paz, se tenha sempre presente o horizonte do amor criador de Deus, que fez a cada um singularmente como realidade sagrada, e que tal sacralidade está intimamente ligada à dimensão integral da dignidade ontológica e teológica do homem. E disso partiria, então, toda a orientação para o agir social, especialmente para o agir social do cristão.

Neste sentido, todas as vezes em que nos deparamos com algum regime político, econômico, social, cultural que desconsidera as variadas dimensões da pessoa humana, é importante atentar-se para o fato de que pode haver nele o risco iminente de uma forte instrumentalização do próprio ser humano e, por consequência, das pretensas soluções sociais que, de algum modo, também almejam bem-estar, segurança, prosperidade e paz a cada pessoa e sociedade.

A realidade social é fortemente imbricada em suas diversas partes, e o desejo de paz que se encontra presente no interior de cada ser humano (PT, n. 165) se vê, por consequência, profundamente apoiado, promovido e/ou afrontado conforme a conjuntura na qual se insere, segundo o todo social. Desse modo, é importante não perder de vista que o interno e o externo da existência são profundamente complementares e reclamam, em grande medida, integralidade, e experimentam, com frequência, contradições, sobretudo porque, nem sempre, um corresponde ao outro, isto é, o dentro e o fora nem sempre coerem.

Diversos pensadores católicos – como Agostinho – têm refletido que o cristão não pode se esquecer que o anseio por paz e plenitude presente em seu cor inquiettum[7] só encontra sentido, em última instância, no próprio Deus que o criou, de tal forma que, enquanto não procurar realizar em sua vida cotidiana a sua imagem e semelhança de Deus, correrá o risco de depositar os seus anseios em falsas esperanças e de adiar a Civilização do Amor.[8]

2 A PROMOÇÃO DA PAZ: FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA

A reflexão católica sobre a questão da paz se vê obrigada a considerar inúmeras variantes ao mesmo tempo independentes e complementares. Somadas às ciências e hermenêuticas atuais, as Escrituras judaico-cristãs, a Tradição católica e as orientações do Magistério apresentariam critérios para a leitura da realidade, vendo a própria realidade sócio-histórica como um locus de interpelação do pensamento e de indicações para a ação (BRIGHENTI, 2013).

Segundo a Doutrina Social da Igreja, a paz que o homem almeja, antes de ser um projeto humano ou mesmo um dom divino à humanidade, é um atributo pertencente à própria essência de Deus: ele é “Iahweh-shalom [Senhor-paz]” (CDSI, n. 488; cf. Jz 6, 24).

A literatura veterotestamentária apresenta Deus como sendo, ele mesmo, a Paz. Esta concepção faz referência ao termo de origem hebraica Shalom, que é marcadamente complexo. Como se afirmou, comumente ele é traduzido pela palavra paz. Entretanto, segundo McKenzie (1983), Shalom “é uma palavra tão amplamente usada e com tão rico conteúdo que nenhum termo português sozinho pode traduzi-lo” (McKENZIE, 1983, p. 704). Considerando suas raízes semânticas e os seus verbos cognatos, seu significado geral se aproxima da ideia de “[...] perfeição, [... de] uma condição à qual não falta nada, [... de um] estado de bem-estar perfeito [e de] completude” (CDSI, n. 491), identificando-se, propriamente, “com a divindade: quando alguém possui paz, está em perfeita e segura comunhão com Iahweh.” (CDSI, n. 491). Deste modo, “a paz está em contraste com a vingança de sangue, que [para a concepção israelita] traz a maldição (1 Rs 2, 33)” (CDSI, n. 491).

Este é, então, um aspecto teológico fundamental da reflexão até aqui esboçada: o próprio Deus é apresentado como natureza de Paz. Ou seja, a paz, a comunhão, o shalom são apresentados como realidade singular pertencente à própria natureza divina. Por consequência, para o ensino social católico, a paz que a humanidade almeja só seria possível se se compreende que ela comporta uma “obediência ao plano de Deus” (CDSI, n. 489), uma inevitável correspondência de nossas atitudes e mentalidades a essa realidade divina, em síntese, uma “perfeita e segura comunhão” (McKENZIE, 1983, p. 704) com o próprio Deus-Shalom.

Deriva-se daí que, para o ensino social católico, lutar pela paz no mundo parece, de algum modo, ser equivalente a lutar pelo reconhecimento do protagonismo de Deus no mundo, por reconhecer sua presença protagonista na história humana (CDSI, n. 21-22.578; RATZINGER, 2006, p. 23), pois o desenrolar histórico do homem não se daria ao largo dos cuidados e da providência de Deus. Ele não seria apenas um coadjuvante na história da humanidade e nem somente um inspirador, mas é compreendido como a aspiração humana, ou seja, Deus seria, em última instância, aquilo ao qual o homem aspira, aquilo mesmo que o homem deseja alcançar. A noção poderia ser traduzida do seguinte modo: Almejamos a paz? Então, almejamos a Deus.

Antes de ser uma tarefa para o homem, a paz é um atributo divino. Quem quiser construir a paz sem Deus, esquece que já não vivemos no paraíso, mas que somos pecadores. O nosso estado sem paz é um sinal de que foi rompida a unidade entre Deus e a humanidade. A história humana está marcada pela violência, pelas divisões e por derramamento de sangue. Os homens anseiam pela paz que pelo pecado perderam; deste modo, silenciosamente, anseiam por Deus (DOCAT,[9] 2016, p. 252, n. 270).

Desse modo, construir a paz no mundo passa por permitir que o próprio Criador tome mãos de sua própria criação: Deus fez a humanidade, mas ela corre o risco de deixá-lo de lado em suas ponderações e de, por consequência, desesperar-se em soluções ineficazes e contraditórias, em soluções de falsa-paz.[10]

A paz é, por assim dizer, o devir histórico da benção de Deus (CDSI, n. 489) e do próprio senhorio de Deus no mundo por ele criado e no qual teríamos sido colocados como especiais administradores (Gn 1, 26-27): “Que o Senhor nos abençoe, volva para nós a Sua face e nos dê a Sua paz” (Nm 6, 26). Assim sendo, segundo essa esteira reflexiva, seria incoerente, especialmente ao cristão, trabalhar pela construção da paz de forma desassociada da compreensão dessa dimensão ontológico-teológica mais profunda. Deus não é um mero detalhe ao cristianismo, e a efetivação de uma realidade social justa pressupõe a plena presença de Deus no mundo.

Compreende-se, nesse sentido, que para o ensino da Igreja o desejo de paz que há no homem é, em última instância, um refletir em nós da própria natureza de Deus da qual seríamos imagem: o Deus Trino é comunidade plena e perfeita em seu próprio seio divinal.[11] E, como tal, nos convida à comunhão com ele (VATICANO II, 2001, DV[12], n. 2) e, por consequência, à comunhão também com toda criação: “O fim último de toda a Economia divina é a entrada das criaturas na unidade perfeita da Santíssima Trindade” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA [CAT],[13] 2000, n. 260). Reconhecer isso parece ser fundamental para a Igreja, pois ela compreende que

A ruptura da relação de comunhão com Deus provoca a ruptura da unidade interior da pessoa humana, da relação de comunhão entre o homem e a mulher e da relação harmoniosa entre os homens e as demais criaturas. É nesta ruptura que se há de buscar a raiz mais profunda de todos os males que insidiam as relações sociais entre as pessoas humanas, de todas as situações que, na vida econômica e política, atentam contra a dignidade da pessoa, contra a justiça e a solidariedade (CDSI, n. 27. Grifo nosso).

Pensar sobre a paz no mundo e refletir sobre a nossa repulsa pela violência pressupõe, então, considerar que há reflexos do Criador presentes na própria condição ontológica do ser humano. O viés antropológico-teológico apresenta-se assim mais uma vez indispensável: “A imagem divina está presente em cada pessoa. Resplandece na comunhão das pessoas, à semelhança da unidade das pessoas divinas entre si” (CAT, n. 1702).

E ensina a Igreja, além disso, que a presença divina no mundo se dá, singularmente e em plenitude, com a encarnação do Verbo (Jo 1), o cumprimento da promessa da era messiânica (CDSI, n. 491). As próprias narrativas da literatura veterotestamentária fazem indicações e referências a uma era messiânica (Is 11, 6-9) que levaria todo o plano de salvação de Deus ao seu pleno grau de perfeição e cumprimento; elas apresentam, inclusive, o Messias prometido como “Príncipe da Paz” (Is 9, 5).

Para o Magistério católico a realização dessas revelações messiânicas encontra-se na pessoa de Jesus Cristo, Verbo encarnado, que, sobretudo quando de sua ressurreição e de suas aparições à comunidade discipular, sempre se manifestava com uma saudação sintomática, “a paz esteja convosco!” (CDSI, n. 491), revelando o Reino de Deus como semente dessa paz nova, de uma nova Terra e de uma nova Jerusalém.

Ora, na ótica cristã católica as Escrituras revelam que este é o plano de Deus para a humanidade, e que nesse plano está comportada uma verdadeira manifestação soteriológica, ou seja, a salvação da criação: “o reino do Messias é precisamente o reino da paz” (CDSI, n. 491). A paz, então, é a finalidade do convívio social (CDSI, n. 490), é o caminho de toda a natureza criada, é o que Deus deseja dar ao Seu povo – “tempos de paz é o que eu desejo para o homem” (Sl 84, 11) – e, como tal, é prometida no Antigo Testamento para a era messiânica (Is 11, 6-9), realizada em Cristo – ele é a “nossa paz” (Ef 2, 14) e nos dá a Sua paz (Jo 4, 27). Assim, um mundo de paz seria o mundo de Deus, um mundo que Deus mesmo visita e faz dele sua morada com os homens, através de Jesus: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Isto é central para o cristianismo: “A Redenção começa com a Encarnação” (CDSI, n. 65).

Segundo Vieira (2013), para a religião cristã, em especial,

Não existe fé sem consciência histórica. O conceito fundamental da fé cristã é o da encarnação. A fé faz-se homem, encarna-se na história. [...] A experiência cristã não se faz ao lado ou acima da história. Os dramas humanos, as angústias e os desafios da humanidade provocam a fé cristã para não fugir do mundo – fuga mundi – e conduzem ao compromisso intra-histórico. Isso ocorre porque o Cristianismo está fundado sobre um acontecimento histórico singular: Jesus Cristo. [...] A Sua presença qualifica todo o ser cristão no mundo (VIEIRA, 2013, p. 7-8).

Ora, uma vez que a presença de Jesus na história “qualifica todo o ser cristão no mundo” (VIEIRA, 2013, p. 8), e o próprio Jesus disse que quem o vê, vê o Pai (Jo 14, 9), cabe questionar: E quem vê a um cristão, vê a quem e o que vê? E os pretensos projetos de paz propostos por cristãos, permitem aos outros verem o quê?

Enfatiza a Igreja que a paz que Jesus dá, e que ele não a dá como o mundo o faz (Jo 14, 27), é ele mesmo, e não se reduz a uma mera ausência de guerra e de conflitos (PP, n. 76).

Muitos dizem que a paz é a ausência de guerra; outros pensam que a paz é um equilíbrio estável entre potências inimigas. Estas definições são, todavia, insuficientes. A paz é estar feliz na boa ordem estabelecida por Deus. Esta espécie de paz é o nosso fim. Encontramo-nos no caminho da paz quando trabalhamos na justiça e no amor por um mundo segundo a ordem estabelecida por Deus. Nisto estamos ao lado de todos os homens que, de todo o coração, procuram honestamente a verdade, que na justiça se preocupam com o bem-estar e com a segurança do próximo e lhe oferecem abnegadamente o amor. E ao mesmo tempo pomos em movimento a obra própria de Deus quando promovemos os direitos de todos os homens e deste modo os defendemos (DOCAT, 2006, p. 255-256, n. 275).

Ora, uma tal compreensão não exime a humanidade de conflitos, especialmente daqueles de ordem interna, nem a permite encerrar-se em soluções rasas e desesperadas. Essa compreensão, que nos remete diretamente ao modo como Jesus viveu sua natureza humana, pode tornar-se uma realidade que interpela e ilumina o homem, especialmente o cristão. Fortalece-se aí uma compreensão marcadamente teológica sobre a paz, pois toma a fé como a forma mais autêntica de interpretação e de acesso à realidade (RATZINGER, 2006), reafirmando-se a inseparabilidade entre a compreensão do mundo pela fé e o compromisso de transformação do mundo por essa mesma fé (JOÃO XXIII, 2000):

É que acima de tudo [...] há de considerar-se a convivência humana como realidade eminentemente espiritual [...] Valores [espirituais] nos quais se vivifica e orienta tudo o que diz respeito à cultura, ao desenvolvimento econômico, às instituições sociais, aos movimentos e regimes políticos, à ordem jurídica e aos demais elementos, através dos quais se articula e se exprime a convivência humana em incessante evolução. A ordem que há de vigorar na sociedade humana é de natureza espiritual (PT, n. 36-37. Grifo nosso).

Sob esse lume, chama a atenção o ensino social católico para que não seja promovido um pragmatismo resolucionista que pode reduzir, mediocremente, a compreensão do todo. “Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, na qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e se degenerando em mesquinhez” (CELAM, 2007, DAp,[14] n. 12).

Para a Igreja, essa compreensão da natureza espiritual e integral da realidade social e da Paz tem força para manifestar e efetivar um profundo processo de reconciliação, tanto do homem com Deus quanto do homem com os homens (CDSI, n. 492). Aqui, mais uma vez, reafirma-se a inseparabilidade entre a compreensão do mundo pela fé e o compromisso de transformação do mundo pela mesma fé, à luz da referência do Deus Trino que, em sua essência, é comunidade, e chama o homem à comunhão reconciliada com Ele e com os irmãos: “A comunhão da Santíssima Trindade é a fonte e o critério da verdade de toda relação” (CAT, n. 2845).

Entende a Igreja que quanto mais se tem consciência disso, melhores elementos, forças e inspirações encontra o ser humano para a construção de uma verdadeira cultura da paz: “Com esta dupla reconciliação, o cristão pode tornar-se artífice da paz e, portanto, partícipe do Reino de Deus, segundo o que o mesmo Jesus proclama: ‘Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus’ (Mt 5, 9)” (CDSI, n. 492). Como uma pequena semente que é germinada e cresce veladamente (Mc 4, 26-29), ou uma moeda perdida que é encontrada (Lc 15, 8-10), ou um filho pródigo que retorna para casa (Lc 15, 11-32), ou seja, com imagens e sinais de fragilidade, a paz pode ir germinando no solo da realidade sócio-histórica.

À luz da compreensão bíblico-teológica da Igreja, a paz encontra plena imagem e radica-se, por fim, no “mistério da cruz” (CDSI, n. 493), entendido como verdadeiro mistério de amor. Sem ingenuidade e romantismo, a Igreja apresenta a construção da paz como uma luta árdua: a linguagem cruz, na dicotomia paradoxal da loucura e da força (1 Cor 1, 18), é, também, a linguagem do amor que se doa. Apresenta-se a caritas como via mestra, “aquela caridade cristã que compendia em si todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século” (LEÃO XIII, 1965, RN,[15] n. 35).

Há quem possa alimentar o desejo de matar para construir a paz, mas o exemplo de Cristo demonstra que uma boa causa sempre dispõe à doação de si mesmo, e não a tirar a vida de outrem. A ação pastoral da Igreja, nesse ínterim, é chamada a olhar com amor singular aos mais fragilizados e marginalizados da sociedade; como afirmou João Paulo II, a opção preferencial pelos pobres é uma “opção de amor” (JOÃO PAULO II, 1999b, EA,[16] n. 58), é uma opção de amar preferencialmente o pobre, que é bem mais que uma categoria sociológica e econômica, mas uma categoria marcadamente teológica (FRANCISCO, 2013, EG,[17] n. 197-198).

Em síntese, compreende a teologia da Igreja que a pessoa encarnada de Jesus é evento eloquente que cancela a divisão, revela o plano de Amor de Deus pela humanidade e o homem ao próprio homem (VATICANO II, 2001, GS[18], n. 22; CAT, n. 1701; CDSI, n. 493). Deste modo, a paz “se funda sobre uma correta concepção de pessoa humana[19] e exige a edificação de uma ordem segundo a justiça[20] e a caridade[21]” (CDSI, n. 494): e “o fruto da justiça será a paz” (Is 32, 17).

3 A REFLEXÃO DA IGREJA CATÓLICA DIANTE DO DESAFIO DA CONSTRUÇÃO/PROMOÇÃO DA PAZ: ANTES, DURANTE E A PARTIR DO CONCÍLIO VATICANO II

No ano de 1976, o papa Paulo VI, na Mensagem para a celebração do 9º Dia Mundial da Paz, fez uma afirmação contundente: “A Paz impõe-se somente com a paz, com aquela paz nunca disjunta dos deveres da justiça, mas alimentada pelo sacrifício de si próprio, pela clemência, pela misericórdia e pela caridade” (PAULO VI, 1976, s/p.).

O tema da paz se faz presente na história do catolicismo e da religião cristã em geral, ainda que paradoxalmente. Envolta a situações de conflito político-religioso desde sua origem, essa religião teve o seu próprio fundador morto em um processo controverso, segundo a ótica católica (BENTO XVI, 2008b, p. 135-141), em um evidente compromisso daqueles que o assassinaram em manter um status quo de poder, exclusão e exploração.[22] Entretanto, assassinar Jesus e ameaçar constantemente os seus discípulos era veiculado, ideologicamente, pelos poderosos daquele tempo como um caminho indispensável para a construção da “paz” social (cf. Jo 19, 12; Lc 23, 2). Segundo elucida Ratzinger/Bento XVI[23],

A acusação de que Jesus Se tinha declarado rei dos judeus era grave. É verdade que Roma podia, efectivamente [sic], reconhecer reis regionais – como Herodes –, mas estes deviam ser legitimados por Roma e obter de Roma a descrição e a delimitação dos seus direitos de soberania. Um rei sem tal legitimação era um rebelde que ameaçava a pax romana e, consequentemente, tornava-se réu de morte (RATZINGER/BENTO XVI, 2011, p. 155-156).

Mesmo alguns dos apóstolos, ainda no tempo do convívio com Jesus, puderam nutrir esperança em um certo tipo de justiça e de paz que tivesse depositado nas armas o caminho para tal.[24] Entretanto, a paz e o reinado que Jesus, pouco a pouco, foi-lhes revelando pareciam ser de ordem superior, não imediatista, não violenta, não desesperada, não conquistada de forma bélica nem triunfalista: “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18, 36); “Jesus disse a Pedro: ‘Põe a espada na bainha’” (Jo 18, 11). Especialmente no que se refere à paz revelada por Jesus, ele enfatizava que ela se trata de uma realidade superior, de uma paz que desarma o coração, que envolve este mundo em todas as suas dimensões, sempre em perspectivas integrais, amplas e transcendentes: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não a dou como o mundo a dá.” (Jo 14, 27).

Fala-se de paz, sobretudo, em tempos de constatação de sua ausência ou mesmo de elementos que a ameaçam de modo singular: guerras, terrorismos, homicídios, roubos, instabilidades gerais no campo da segurança pública etc. O papa João XXIII, por exemplo, foi o responsável pela publicação do primeiro grande documento social da Igreja a tratar especificamente da temática da paz, sobretudo inserindo-a na perspectiva das relações internacionais. Tal documento foi a encíclica Pacem in Terris, publicada em 1963 (JOÃO XXIII, 2000), nos 15 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU e no clima da Guerra Fria. Pouco menos de dois anos antes da publicação deste documento havia sido construído o muro de Berlim, o clima de ameaça de guerra nuclear era grande, e o papa situou todas estas questões à luz do desejo interno que há em todos os homens de paz e de plenitude, um desejo, para ele, universal (PT, n. 165). Segundo o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (n. 95), a Pacem in Terris é a “Encíclica da paz e da dignidade humana”, marcando “a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido também a ‘todas as pessoas de boa vontade’” (PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”, 2005, n. 95), e não somente aos cristãos católicos.

Esta encíclica de João XXIII, entretanto, não surgiu do nada, e é mesmo devedora de uma série de ensinamentos e reflexões que a precederam. Ora, a reflexão da Igreja sobre a paz e as questões sociais perpassa toda a sua história, como já se acenou, remontando à própria vida de Jesus (Mt 25, 34b-36.40b; Lc 10, 30-37; Jo 1, 1-16), dos apóstolos e das primeiras comunidades (At 4, 32-35), bem como envolvendo o pensamento de importantes teólogos e santos e santas.

3.1 Antes do Concílio Vaticano II

Considerando o período anterior ao Concílio Vaticano II – este ocorrido entre os anos de 1962 a 1965 – aqui destacamos, brevemente, o seguinte:

  1. 1. Santo Agostinho (354-430) fala da paz como uma espécie de calmaria decorrente da ordem social, que necessita de constante aperfeiçoamento sobre o pilar da justiça que emana da verdade do Evangelho (Cidade de Deus, em especial o seu livro XIX[25]).

    2. Santo Tomás (1225-1274) trata do tema da universalidade da paz à luz da lei natural e de sua correspondência à lei eterna, aí fundamentando-se o direito positivo, a ação política e também a ação caritativa do cristão, na Suma Teológica.[26] (TOMÁS DE AQUINO, 2010a, 2010b).

    3. A Segunda Escolástica quinhentista (século XVI) encara seriamente o problema da justiça, da relação e da concórdia entre os povos, das contradições da colonização etc. (cf. Francisco Suarez, Juan de Mariana).

    4. Especial destaque, nesse desenrolar histórico, merece o pontificado de Leão XIII que, sobretudo com a encíclica Rerum Novarum (1891), inseriu a temática da paz no âmbito das questões laborais operárias, combatendo a luta de classes proposta pelo socialismo como solução para o já reconhecido desumano problema do desenvolvimento capitalista industrial, com novas formas de colonização, exploração do assalariado, enriquecimento para poucos etc. No lugar da luta de classes, é proposta, por Leão XIII, a concórdia de classes, impondo o dever da justiça entre elas, com um justo salário ao trabalhador, uma recíproca colaboração entre as partes, considerando sempre a grandeza destacada da dignidade humana e a centralidade da caridade social como antídoto ao egoísmo, visto como grande mal de sua época.

    5. Também os papas que exerceram seus pontificados no período das duas guerras mundiais tiveram posicionamentos consideráveis quanto à defesa da paz, ainda que suas orientações não tenham sido tão ecoadas o quanto poderiam ou o foram atrasadamente. Foi o caso da Carta Sobre Paz, de Bento XV, em 1917, destinada às potências beligerantes com o pedido para que colocassem fim à [Primeira] Guerra[27]. Também merecem destaque o alerta do papa Pio XI[28] em relação aos avanços das ideologias totalitaristas no período entre Guerras e o posicionamento do papa Pio XII chamando a humanidade e as nações envolvidas no contexto conturbado da Segunda Guerra Mundial a um desenvolvimento que fosse humano, bem como resgatando a centralidade do princípio da destinação universal dos bens, que se sobrepõe ao direito de propriedade privada. Pio XII é destaque quanto à reflexão de que desenvolvimento econômico desassociado da promoção da dignidade humana e da defesa ao direito da paz é uma contradição inaceitável (CDSI, n 91-93).

3.2 Durante o Concílio

O Concílio Vaticano II, por sua vez, legou importantes reflexões na linha da promoção da paz. A própria dinâmica que moveu João XXIII a convocá-lo deixa entrever certo espírito dialogal e fraterno, na perspectiva da necessidade de um testemunho de unidade e paz entre os homens, crentes ou não, com firmeza doutrinal e profunda mudança de linguagem.[29] Paulo VI (apud CONCÍLIO VATICANO II, 2007), que conduziu o Concílio após a morte de João XXIII, no discurso de abertura da Segunda Sessão do Concílio deu as orientações fundamentais sobre os temas que então seriam tratados, orientando a doutrina à perspectiva pastoral e levando a Igreja a uma autoanálise.[30]

Embora a Constituição Dogmática Lumen Gentium (PAULO VI, 1964) tenha sido o documento que mais especificamente tratou do tema da eclesiologia, foi com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (PAULO VI, 1965a) que a reflexão eclesial conciliar sobre a temática da paz mundial se destacou, especialmente em seu Capítulo 5. Neste documento, a Igreja se colocou diante das expectativas do homem contemporâneo, com quem admite compartilhar a mesma sorte histórica (cf. GS, n. 1), mas consciente de que ela seria um sinal especial da defesa da dignidade integral do homem, de salvaguarda da paz e da construção da Comunidade das Nações. Retomando o que já refletimos na fundamentação bíblico-teológica da paz, o texto da Gaudium et Spes, nos números 77 e 78, afirma que é Cristo o autor e príncipe da paz, de forma a ser essa paz, por consequência, em sua construção histórico-social, fruto da justiça e do amor. Como se vê, uma realidade sempre necessitada de edificação, de vigilância contra abusos de autoridade por conta das inclinações do pecado no ser humano, submetendo tudo à “vontade firme de respeitar a dignidade dos outros homens e povos” (GS, n. 77 e 78), dando a Deus e à criação o que lhes é devido, conforme o respeito à lei natural e eterna.

Merece destaque também, na esteira do Concílio Vaticano II, a Declaração Dignitatis Humanae [DH] (PAULO VI, 1965b), que proclamou o direito à liberdade religiosa e o dever moral de que ele seja sempre sancionado pelo direito civil (que o reconhece, não o concede[31]). Este documento é uma importante voz quanto à dignidade da pessoa humana, em que se radica o direito universal (e não apenas pessoal) à liberdade religiosa; destaca-se, especialmente, sua antropologia ontológica que se encaminha para uma antropologia teológica como paradigma para a contemporaneidade.

3.3 A partir do Concílio

A partir do Concílio, por seu turno, o papa Paulo VI, que assinou os documentos conciliares acima citados, publicou duas encíclicas sociais que também trazem elementos na perspectiva da reflexão sobre a paz. Em 1967 foi publicada a Populorum Progressio (PAULO VI, [1967]/1990), que refletiu sobre a questão do progresso em um contexto de euforia tecnológica e econômica que, segundo o texto, nem sempre é acompanhada de um desenvolvimento integral de cada homem e de um desenvolvimento solidário de toda a humanidade (PP, n. 5). Esta encíclica toma a desigualdade como importante ponto de análise, proclamando que “o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento econômico. [E que] Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo” (PP, n. 14). Neste sentido, Paulo VI relaciona o desenvolvimento integral à justiça e à paz ao dizer, no título que dá início à conclusão da encíclica, no número 76, que “o desenvolvimento é o novo nome da paz” (PP, n. 14).

Parecia evidente para Paulo VI o quanto a questão da desigualdade econômica é instrumento de famigerados conflitos que ameaçam demasiadamente a paz mundial, e que a situação se agrava quando o desenvolvimento é reduzido somente à própria esfera econômica, aumentando o abismo injusto entre ricos e pobres. Por consequência, não é possível, segundo esse papa, verdadeira paz, que não é somente ausência de guerra (PP, n. 76), sem verdadeiro desenvolvimento, isto é, sem o desenvolvimento integral.

É importante ressaltar que o conceito de integralidade, manifesto várias vezes no parágrafo acima e nas reflexões da Igreja em geral destacadas até aqui, especialmente em João XXIII e Paulo VI, insere-se na antropologia cristã e assume uma perspectiva marcadamente teológica, na medida em que parte da compreensão de que o ser humano é imagem e semelhança de Deus (imago Dei) e encontraria aí sua identidade e vocação pessoal e comunitária (CDSI, n. 34-37). Nesse sentido, no contexto da relação entre criação humana e salvação humana, a doutrina social católica utiliza a expressão integral, donde parece emanar o que se quer dizer com integralidade:

A salvação [...] é salvação para todos os homens e do homem todo: é salvação universal e integral. Diz respeito à pessoa humana em todas as suas dimensões: pessoal, espiritual e corpórea, histórica e transcendente. Começa a realizar já na história [...] O seu cumprimento, porém, encontra-se no futuro que Deus nos reserva. (CDSI, n. 38).

Completando a visão geral do envolvimento de Paulo VI na promoção da cultura da paz e da teologia do humanismo integral, destacam-se ainda outros três feitos desse papa: 1) a instituição, ainda em janeiro de 1967, do Pontifício Conselho Justiça e Paz,[32] um organismo da Cúria Romana para a promoção da plena dignidade humana e do despertar da “comunidade dos católicos para que se promovam o progresso das regiões indigentes e a justiça social entre as nações” (CDSI, n. 99); 2) a iniciativa, começada em janeiro de 1968, da celebração do Dia Mundial da Paz, com mensagens anuais dos papas no primeiro dia do ano, “acrescendo assim o ‘corpus’ da doutrina social” (CDSI, n. 99); 3) a publicação da Carta Apostólica Octagesima Adveniens, em 1971, comemorativa dos 80 anos da Rerum Novarum, apresentando orientações sobre o trabalho do Pontifício Conselho Justiça e Paz, à época presidido pelo Cardeal Maurice Roy. Na Carta, englobando reflexões políticas sobre questões internacionais, Paulo VI “reflete sobre a sociedade pós-industrial com todos os seus complexos problemas, salientando a insuficiência das ideologias para responder a tais desafios” (CDSI, n. 100).

O pontificado de João Paulo II, por sua vez, seguiu fortemente a esteira dialogal da Igreja e a sua preocupação com as questões sociais, especialmente com aquelas questões que tendem a desrespeitar a integralidade da dignidade humana por conta de reducionismos materialistas e tendências totalitaristas. Karol Wojtyla foi um papa reconhecido como diplomático, com constantes intervenções sociais de cunho internacional e diversas viagens a todos os continentes do planeta. Suas reflexões foram marcadas por uma noção globalizante e universalista, interligando os fenômenos sociais, sempre preocupadas em demonstrar os nexos causais dos mais variados acontecimentos e campos da vida social: econômico, político, social, cultural, religioso etc.[33] Neste sentido, seu pontificado e seus pronunciamentos foram deixando claro que sem o envolvimento de todas as estruturas sociais e de todas as sociedades na construção de uma realidade mais justa e pacífica para todos não é possível efetivar-se o sonho da paz mundial. Em sua última Mensagem para o Dia Mundial da Paz, em 1º de janeiro de 2005, já em seu primeiro parágrafo João Paulo II, deixando-se inspirar pelo texto de Romanos 12, 21, e aproximando-se da Mensagem de Paulo VI em 1976, refletiu que “o mal não se derrota com o mal: de fato, por aí, em vez de vencermos o mal, somos por ele derrotados. [...] A paz é um bem a ser promovido com o bem”[34] (JOÃO PAULO II, 2005, n. 1).

Bento XVI, hoje papa emérito, em seu pontificado, que se desenrolou de 2005 a 2013, fez intenso uso de inspirações agostinianas em suas reflexões, embasando a primazia do amor e da verdade como elementos indispensáveis para a construção de uma sociedade justa e de um humanismo verdadeiramente integral. Para o papa alemão, conforme já acenado neste texto, todo trabalho social, político e econômico que se prescinde de Deus em seus projetos está fadado ao fracasso ou, ao menos, à limitação perigosa de seus resultados: “só um humanismo aberto ao Absoluto pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida social e civil – no âmbito das estruturas, das instituições, da cultura, do ethos – preservando-nos do risco de cairmos prisioneiros das modas do momento” (BENTO XVI, 2009, CV,[35] n. 78). Entende, esse papa, que o amor (caritas) sem a verdade (veritas) não se realiza por completo e pode ser reduzido a mero caritativismo assistencialista, que termina por utilizar a pessoa do “pobre” como categoria e elemento ideológicos, contraditados por uma realidade social que, mesmo em situação de superdesenvolvimento, pode perpetuar o subdesenvolvimento. Neste sentido, o superdesenvolvido economicamente seguirá sendo, interiormente, um subdesenvolvido moral encerrado no egoísmo (CV, n. 29), na mesma medida em que o mundo globalizado seguirá sendo excludente e fechado ao bem comum, perpetuando o clima de ameaça à paz e o uso irracional/desordenado dos bens da criação.

Por fim, o papa Francisco tem sido uma voz atual no trabalho construtivo da paz mundial. Em seu pontificado, iniciado em 2013 com a renúncia de Bento XVI, também tem trabalhado para demonstrar que as categorias sociológicas da realidade devem ser vistas, em última instância, como categorias teológicas.[36] Desse modo, na sua perspectiva, é Deus quem inspira e sustenta o ser humano na busca efetiva pela paz de todos e em todos os lugares, mesmo para quem não professa uma fé, pois cada pessoa seria capaz de reconhecer a presença de algo sagrado em cada criatura.

A encíclica Laudato si’ [LS] (FRANCISCO, 2015), é sua primeira publicação no histórico das chamadas encíclicas sociais, e se destaca especialmente pelo fato de ser também o primeiro documento papal da história a tratar especificamente do tema da ecologia. O texto enfatiza a necessidade de uma conversão ecológica global (amplitude do conceito de ecologia em perspectiva de ecologia integral), bem como de uma educação do espírito para que não se perca a dimensão integral do sagrado que há em tudo (LS, n. 12.69; CAT, n. 339). Para Francisco, em esteira reflexiva similar à dos papas anteriores, parece não ser possível construir um mundo de paz prescindindo-se desse olhar a tudo quanto existe.

Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas, nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas no poder, que hoje rege as sociedades. O progresso humano autêntico possui um caráter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao mundo natural e ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, em um sistema ordenado (LS, n. 5).

Nessa perspectiva, Francisco também afirma que não é possível haver paz se não houver justiça, sem um trabalho efetivo de reconhecimento da dignidade ontológica de todos, pois, sem isso, encontram maior campo e justificativas formas de agir que perpetuam a desigualdade, a indigência, a exploração e as saídas violentas no campo da segurança pública. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium (FRANCISCO, 2013) ele diz que:

Hoje, em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos, será impossível desarraigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada ação tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas de uma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do chamado “fim da história”, já que as condições dum desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas (EG, n. 59).

E acresce, ainda, de forma contundente:

Os mecanismos da economia atual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos. [...] Isto se torna ainda mais irritante, quando os excluídos veem crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes (EG, n. 60. Grifo nosso).

A boa política, enquanto instrumento imprescindível para a vivência da caridade, é entendida, por Francisco, também como fundamental serviço à paz, pois evidenciaria nossa natureza comunitária/fraterna em suas ações, promovendo de modo mais compromissado o bem comum, vencendo a indiferença e efetivando a não-violência como estilo de vida social e caminho de paz.[37]

Em sua Mensagem para o 51º Dia Mundial da Paz de 2018, Francisco apresentou o desejo e a inclinação universal do ser humano para a paz a partir do exemplo paradigmático dos migrantes e refugiados: segundo revela já o título da Mensagem,[38] eles são homens e mulheres em busca de paz, como o são, em geral, todos os seres humanos. E, mais uma vez, a fraternidade sistêmica é manifestada como elemento indispensável para verdadeiramente se efetivar o respeito pela dignidade integral de todas as pessoas e um mundo pacífico. Diz Francisco, na referida Mensagem de 2018:

Em muitos países de destino, generalizou-se largamente uma retórica que enfatiza os riscos para a segurança nacional ou o peso do acolhimento dos recém-chegados, desprezando assim a dignidade humana que se deve reconhecer a todos, enquanto filhos e filhas de Deus. Quem fomenta o medo contra os migrantes, talvez com fins políticos, em vez de construir a paz, semeia violência, discriminação racial e xenofobia, que são fonte de grande preocupação para quantos têm a peito a tutela de todos os seres humanos. Todos os elementos à disposição da comunidade internacional indicam que as migrações globais continuarão a marcar o nosso futuro. Alguns consideram-nas uma ameaça. Eu, pelo contrário, convido-vos a vê-las com um olhar repleto de confiança, como oportunidade para construir um futuro de paz (FRANCISCO, 2018a, n. 2).

O outro, desse modo, não é ameaça, a não ser que nosso estilo de vida seja, por ele mesmo, ameaçador. Se, como disse João Paulo II no número 42 da encíclica Sollicitudo Rei Socialis [SRS], não compreendermos que “sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social” (JOÃO PAULO II, 1987), possivelmente tudo se nos apresentará como um inimigo a ser combatido, pois, no império do ter, qualquer ser termina limitado ao crivo da ameaça de ser dominado, explorado e/ou eliminado, limitando a vivência social, com todas as suas conquistas e progressos, a um estado constante de guerra, no qual a paz, ainda que almejada, fica sempre para depois.

4 A PROMOÇÃO DA PAZ E A QUESTÃO DAS ARMAS[39]

Diversos países do mundo têm experimentado, ultimamente, uma forte atmosfera de polaridade política e ideológica que tende a encerrar visões de mundo e atitudes ao crivo extremado do que comumente se tem entendido por política de esquerda e/ou de direita.[40] Isso tem poder de ofuscar a interpretação lúcida dos fenômenos, além de estabelecer rótulos e categorizações semânticas dos outros que ameaçam consideravelmente a promoção da cultura da paz e do diálogo.

João Paulo II afirmou que a Doutrina Social da Igreja “não é uma terceira via entre capitalismo e comunismo” (SRS, n. 41), e isso pelo importante fato de que ela não é uma ideologia,[41] mas sim uma Teologia. Ora, enquanto os defensores de uma ou de outra ideologia se entrechocam diante de variadas realidades, a Igreja compreende, pelo viés teológico, e não ideológico, que a perspectiva da integralidade é um princípio basilar para uma interpretação minimamente acurada de qualquer fenômeno social.

Neste sentido, consideramos importante situar a discussão sobre a promoção da paz e a consequente questão das armas na perspectiva da categoria conceitual do desenvolvimento integral. E, a partir desse núcleo conceitual tão caro ao ensino social e moral católico, pode-se, então, chegar a outra categoria conceitual, expressa por João XXIII (2000) no número 113 da Pacem in Terris, que é a ideia de desarmamento integral.

Ora, uma vez reconhecido de que o fundamental a ser alcançado é a “completa eliminação” (PT, n. 113) dos armamentos, mesmo que isso, aparentemente, não seja ainda plenamente possível, a essa discussão temática também deve ser inserida a questão das armas de pequeno porte e de posse individual. Ainda que a discussão feita por João XXIII necessite ser inserida no legítimo campo do direito internacional e das questões das armas nucleares de destruição em massa e afins, posto que suas afirmativas a isso, especialmente, se voltavam na encíclica citada, nossas reflexões no presente tópico deste artigo, tendo em vista o amplexo da reflexão eclesiológica e teológica sobre a questão dos armamentos, situam a discussão também no campo da promoção universal da cultura da paz. Nesse sentido, compreendemos que parece haver, por parte da lógica interna do ensinamento social da Igreja, em última instância, um enfático incentivo à diminuição da cultura armamentista, seja na ótica universal e das armas de destruição em massa, seja também na ótica da “defesa” particular.

Considerando que em diversos países já há legislações que possibilitam a posse e o porte de arma aos seus cidadãos, como também há no Brasil,[42] por exemplo, no que tange à chamada legítima defesa pessoal, e a Igreja não é absolutamente contra essa possibilidade (CAT, n. 2263-2317; CDSI, n. 500-503), não há razões verdadeiramente evangélicas para incentivar a facilitação do acesso às armas, uma vez que o fundamental é que elas sejam eliminadas por completo, ainda que a longo prazo, conforme salientou o papa João XXIII (PT, n. 113). Deste modo, mesmo que a reflexão da Igreja não tenha se postado explicitamente contra a posse e o porte de armas, não há de sua parte um incentivo sequer a políticas que facilitem o seu acesso sob o pretenso argumento de que a cultura da paz seria alcançada com a promoção da cultura das armas, e a coerência interna de seu olhar teológico sobre o mundo e o homem justificam esse não incentivo.[43]

Assim sendo, compreende-se que, cada vez mais, a Igreja reflete na perspectiva do desenvolvimento integral e que, tal reflexão, se encaminha, por coerência, para o reconhecimento e a promoção do desarmamento integral. Fala-se, eclesialmente, de desarmamento não apenas na perspectiva das armas nucleares, ainda que esse seja o núcleo da maioria esmagadora das publicações e reflexões práticas da Igreja sobre o assunto, mas também no sentido do desarmamento do coração, até que se chegue ao desarmamento das armas de pequeno calibre etc. O aprofundamento das reflexões da Igreja sobre estas questões parece ser cada vez mais evidente.

Sobre este último ponto, inclusive, Bento XVI (2008a), na carta dirigida ao Cardeal Martino em 10 de abril de 2008, compreendendo que há uma profunda “relação entre desarmamento e desenvolvimento” e, igualmente, uma “estreita relação entre o desenvolvimento e a paz, num dúplice sentido”, fez questão de enfatizar a importância das categorias conceituais do “desarmamento integral” e da “cultura de paz” (BENTO XVI, 2008a). Segundo Bento XVI (2008a), é fundamental “desarmar o coração” e lutar também “contra a proliferação das armas ligeiras e de pequeno calibre, que alimentam as guerras locais e a violência urbana” (BENTO XVI, 2008a). E a isso acrescentou que:

Será difícil encontrar uma solução para as diversas questões de natureza técnica, sem uma conversão do homem ao bem nos planos cultural, moral e espiritual. Cada homem, em qualquer condição, é chamado a converter-se ao bem e a buscar a paz no próprio coração, com o próximo e no mundo. Neste sentido, permanece sempre válido o magistério do Beato Papa João XXIII, que indicou com clareza o objetivo de um desarmamento integral (BENTO XVI, 2008a, s/p. Grifo do autor).

Francisco, por sua vez, na mesma linha, em 10 de novembro de 2017, em seu Discurso aos participantes no Congresso Internacional com o tema ‘Perspectivas por um mundo livre das armas nucleares e pelo desarmamento integral’, realçou a força das duas categorias conceituais de desenvolvimento integral e de desarmamento integral, iluminadas sob o princípio fundamental da Doutrina Social da Igreja que é o da “dignidade da pessoa humana em sua integralidade”. Disse Francisco (2017b):

Permanece sempre válido o magistério de João XXIII, que indicou com clareza o objetivo de um desarmamento integral afirmando: “nem a renúncia à competição militar, nem a redução dos armamentos, nem a sua completa eliminação, que seria o principal, de modo nenhum se pode levar a efeito... se não se proceder a um desarmamento integral, que atinja o próprio espírito, isto é, se não trabalharem todos em concórdia e sinceridade, para afastar o medo e a psicose de uma possível guerra” (Carta enc. Pacem in terris, 11 de abril de 1963, 113). A Igreja não se cansa de oferecer ao mundo esta sabedoria e as obras que ela inspira, ciente de que o desenvolvimento integral é o caminho do bem que a família humana é chamada a percorrer (FRANCISCO, 2017b, s/p. Grifos nossos).

Além do mais, na esteira da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana e da promoção da cultura da paz, no dia 02 de agosto de 2018, o Vaticano publicou o rescrito do papa Francisco ao número 2267 do Catecismo da Igreja Católica que tornou o recurso à pena de morte inadmissível, num claro esforço de humanização das relações sociais. A nova redação do referido número ficou assim:

Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir. Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que “a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa”, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 2018, s/p).

Ora, na perspectiva da reflexão católica, a fé se sobrepõe ao desespero, sem cair no pacifismo romântico, mas sob a firme convicção de que o homem é imagem de Deus (imago Dei) e que tanto mais se efetivará tal dignidade quanto mais se viver à semelhança de Cristo, a verdadeira imagem do homem redimido e o exemplo a se assemelhar nas ações cotidianas concretas: “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” (GS, n. 22). De modo geral, a conjuntura da reflexão teológica da Igreja deixa entrever que enxergar no armamento, na posse e, posteriormente, no porte de armas um caminho de construção da verdadeira segurança, de combate à violência e de construção da paz contradiz o sentido teológico das ideias de cultura de paz, de desenvolvimento integral, de desarmamento integral, de sociedade do Evangelho, de civilização do Amor e de não violência. Segundo Francisco (2017a),

Sejam a caridade e a não-violência a guiar o modo como nos tratamos uns aos outros nas relações interpessoais, sociais e internacionais. Quando sabem resistir à tentação da vingança, as vítimas da violência podem ser os protagonistas mais credíveis de processos não-violentos de construção da paz. Desde o nível local e diário até ao nível da ordem mundial, possa a não-violência tornar-se o estilo caraterístico das nossas decisões, dos nossos relacionamentos, das nossas ações, da política em todas as suas formas (FRANCISCO, 2017a, s/p, n. 1. Grifo nosso).

E, citando o ensinamento de Bento XVI no Angelus de 18 de fevereiro de 2007, acrescentou Francisco (2017a):

Compreende-se que a não-violência para os cristãos não é um mero comportamento táctico [sic], mas um modo de ser da pessoa, uma atitude de quem está tão convicto do amor de Deus e do seu poder, que não tem medo de enfrentar o mal somente com as armas do amor e da verdade (BENTO XVI, 2007 apud FRANCISCO, 2017a, s/p, n. 3. Grifos nossos).[44]

Esperar que a cultura das armas seja o caminho para a cultura da paz pode ser sinal de desespero e, talvez, até mesmo de perda do sentido de transcendência e da dignidade integral/ontológica/teológica da pessoa humana. Em última instância, é uma escolha que se encaminha para denegrir a imagem daquilo que se pretende defender: a imagem da dignidade humana, sua vida e liberdade (CDSI, n. 496).

Neste sentido, ousado não é possuir e portar arma. Ousado é ainda acreditar e professar fé em um Deus de Paz, reconhecendo todo ser humano como sua imagem e semelhança, e ainda ter a esperança nessa visão teológico-antropológica da pessoa humana. É preciso compreender o espírito da letra dos documentos da Igreja e das Escrituras,[45] a fim de que não caiamos em um rubricismo vazio ou repleto de má-fé. O que está em jogo não é encontrar uma citação ou outra de algum documento eclesial para justificar um posicionamento ou outro, mas compreender o espírito que permeia o todo da reflexão produzida pela Igreja.

Reafirma-se, enfim, a chave-hermenêutica do ensino social católico de que o desenvolvimento humano não pode ser reduzido a um mero viés economicista ou imediatista e desesperançoso (PP, n. 14). A fé, como exortou Ratzinger (2006, p. 39-40), sempre será a forma autêntica e imprescindível de um cristão acessar a realidade, e não um modo a mais de constatação disso ou daquilo. Por isso afirma a Igreja que “também o mundo atual necessita do testemunho dos profetas não armados, infelizmente objeto de escárnio em toda época” (CDSI, n. 496. Grifo nosso), bem como que “o verdadeiro discípulo de Jesus terá sempre no amor, no diálogo e na reconciliação a via eficaz para responder à violência e à falta de segurança, inspirado no mandamento ‘Não matarás’ e não em projetos que flexibilizem a posse e o porte de armas” (CNBB, 2019, s/p. Grifo nosso). O cristão, movido pela força contraditória do Crucificado/Ressuscitado, em sua páscoa pessoal por esse mundo é chamado a não aceitar qualquer vida, a não aceitar qualquer solução, a não aceitar qualquer promessa de felicidade, a não aceitar, enfim, qualquer paz: “a paz que eu vos dou não é a mesma que o mundo vo-la dá” (Jo 14, 27).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reflexão desenvolvida nesse texto procurou demonstrar que, segundo a perspectiva reflexiva e hermenêutica da teologia católica, é indispensável resgatar o sentido da dimensão teológica da discussão sobre a questão da paz: “A vida social deve estar ancorada no desígnio divino: ‘A dimensão teológica revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas atuais da convivência humana’” (CDSI, n. 577; CA, n. 55). Sem esse resgate, as interpretações dos documentos da Igreja sobre a temática podem servir a interesses restritos de grupos eclesiais diversos e serem reduzidas a casuísmo e, sobretudo, entende a Igreja que as soluções sociais construídas tendem a ser violentas e, como tais, possuem o forte potencial de se voltarem contra o próprio homem e, por fim, contra a própria paz almejada (CDSI, n. 496). Como disse Francisco (2019): “A fratura entre os membros duma sociedade, o aumento das desigualdades sociais e a recusa de empregar os meios para um desenvolvimento humano integral colocam em perigo a prossecução do bem comum” (FRANCISCO, 2019, s/p., n. 2).

Deste modo, o ensino social católico, bem como seu amadurecimento hermenêutico e suas construções narrativas, deixam entrever caminhos concretos de superação da violência conforme a perspectiva de um desenvolvimento integral de toda e de cada pessoa humana, compreendida como imago Dei, donde vem, então, seu qualificativo prático-existencial. Impõe-se daí uma compreensão que cada vez mais desautoriza, e mesmo repele, soluções e recursos que apelem para a violência e atos extremos, tais como a pena de morte, a tortura e a proliferação de uma cultura da guerra e das armas, independentemente dos seus alcances e calibres.

O Compêndio da Doutrina Social traz uma síntese dos diversos caminhos para a paz, da qual apresentamos os seguintes tópicos:

  1. 1. Afirma-se categoricamente que “a violência nunca constitui uma resposta justa” (CDSI, n. 496).

    2. Proclama-se o necessário testemunho dos denominados profetas não armados, que renunciam à ação violenta e sangrenta, ainda que isso seja objeto de escárnio até hoje para muitos (CDSI, n. 496; CIC, n. 2306).

    3. Condena-se a desumanidade da guerra, compreendendo-a como a falência da paz, de todo autêntico humanismo e derrota da humanidade (CDSI, n. 497).

    4. Promove-se o autêntico desenvolvimento, pois a violência está sempre marcada por uma velada defesa de si, de amor próprio, de horror à miséria, de busca de dignidade e paz (CDSI, n. 498). “Por isso, o outro nome da paz é o desenvolvimento. Como existe a responsabilidade coletiva de evitar a guerra, do mesmo modo há a responsabilidade coletiva de promover o desenvolvimento” (CA, n. 52; PP, n. 76).

    5. Enfatiza-se a primazia do bem comum, do trabalho sobre o capital, do amor mútuo e da solidariedade recíproca (CDSI, n. 499), dando-se a conhecer os pilares irrenunciáveis da paz entre os povos: verdade, justiça, amor e liberdade (PT, n. 35-36).

    6. Reconhece-se a necessidade de se organizar a legítima defesa, mas sob condições bem delineadas, tendo em vista a dignidade integral e inalienável de todo ser humano (CDSI, n. 500-501).

    7. Defende-se a paz, pressupondo desobedecer a ordens injustas, não violar a consciência e não transferir a responsabilidade do próprio ato a ordens superiores (CDSI, n. 503).

    8. Impõe-se a necessidade de se proteger os inocentes, entendendo que o bem da pessoa humana se sobrepõe a qualquer conflito e suas partes e que os mais frágeis são sempre os primeiros a sofrer; o Compêndio apresenta, inclusive, diversas categorias de vítimas sociais e da guerra (CDSI, n. 504).

    9. Delineia-se compor fortes medidas contra quem ameaça a paz, mas entendendo sempre que as sanções são corretivas e não vingativas, devendo ser periodicamente verificadas, revisadas, humanizadas e serem constituídas em um caminho “para as tratativas e o diálogo” (CDSI, n. 507).

    10. Afirma-se a urgência de se promover o desarmamento (CDSI, n. 508), reconhecendo, ao mesmo tempo, o direito dos Estados possuírem meios adequados à sua defesa legítima (e não para subjugar povos e nações) e que a corrida armamentista não garante a paz.

    11. Reflete-se que as “armas leves e individuais” (CDSI, n. 511) facilitam manifestações de violência, ameaçam a paz, aumentam o risco de conflitos, intensificam os existentes e que, assim sendo, necessitam de forte regulamentação.

    12. Condena-se por completo e veementemente o uso de crianças e adolescentes como soldados (CDSI, n. 512), bem como o recurso ao terrorismo (CDSI, n. 513-515).

    13. Insiste-se na urgência de uma verdadeira educação para a paz, demonstrando a existência de diversas mensagens sobre isso: Educar para a paz (PAULO VI, 1970); Para alcançar a paz, educar para a paz (JOÃO PAULO II, 1979); Mulher, educadora de paz (JOÃO PAULO II, 1995); desenvolver uma sólida cultura de paz.

    14. Proclama-se o Evangelho da Paz, compreendendo que a ação pela paz nunca é dissociada do anúncio do Evangelho, de tal forma que a realidade teológica e da fé não são meras coadjuvantes (CDSI, n. 493).

    15. Move-se pela firme convicção de que a oração e o perdão são forças convincentes da necessidade de um desarmamento integral, fazendo dele um verdadeiro fruto do desarmamento do coração, que vem primeiro (CDSI, n. 517-519; PT, n. 113; CAT, n. 2844).[46]

O ensinamento social católico entende que “a promoção da paz no mundo é parte integrante da missão com que a Igreja continua a obra redentora de Cristo sobre a terra” (CDSI, n. 516), e deseja que todos tomem parte na sua preocupação e no seu empenho pela paz. O viés compreensivo aqui é mais uma vez, e sempre, o da fé, e a sua hermenêutica é, primariamente, teológica. Destaca-se, neste sentido, o último dos quinze pontos acima elencados, pois com ele é enfatizado que se luta pela paz também com a oração, se reconhece que o seu lugar nesse caminho é fundamental: ela abre e desarma o coração, infunde coragem, clareia o verdadeiro sentido da vida e fortalece, de modo genuíno, os laços fraternos, reconhecendo, inclusive, na forma da oração litúrgica[47] uma nascente inesgotável de compromisso pela paz, especialmente para os cristãos (CDSI, 519).

Compreende o Magistério católico, enfim, que,

A promoção da verdadeira paz é uma expressão da fé cristã no amor que Deus nutre por cada ser humano. Da fé libertadora no amor de Deus derivam uma nova visão do mundo e um novo modo de aproximar-se do outro, seja esse outro um indivíduo ou um povo inteiro: é uma fé que muda e renova a vida, inspirada pela paz que Cristo deixou aos Seus discípulos (CDSI, n. 516. Grifo nosso).

Daí que as relações de força devem ser sempre mais substituídas pelas relações de colaboração recíproca para o bem comum, no horizonte da compreensão teológica de mundo: “A paz é, portanto, ‘fruto da ordem que o seu Fundador divino inseriu na sociedade humana’” (CDSI, n. 495; GS, n. 78; DOCAT, n. 275). Permanece, assim, aberto como possibilidade, como ideal alcançável e como esperança indispensável de vivência de paz aquilo que, em meados do século II, disse São Justino de Roma (1995) em seu Diálogo com Trifão:

Nós estávamos antes cheios de guerra, de mortes mútuas e de toda maldade, mas renunciamos em toda a terra aos instrumentos guerreiros e transformamos as espadas em arados e as lanças em instrumentos para cultivar a terra, e cultivamos a piedade, a justiça, a caridade, a fé e a esperança, que nos vêm de Deus Pai por meio do seu Filho crucificado (JUSTINO DE ROMA, 1995, n. 110, 3, p. 177; Is 2, 4-5. Grifo nosso).

Segundo o ensino social da Igreja, então, é preciso e possível dizer como Justino e, mesmo com todos os seus desafios evidentes, esse estado de paz não é uma realidade inalcançável: “a esperança é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis” (FRANCISCO, 2019, s/p, n.1); e é nela que somos salvos (Rm 8, 24).

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Notas

1 PT: Pacem in Terris.
2 Sobre isso é considerável o interesse dos fundadores da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, que, na primeira metade do século XX, se dispuseram a refletir sobre “por que a humanidade, em vez de entrar num estado verdadeiramente humano, está se afundando numa nova espécie de barbárie” (ADORNO; HORKHEIMER, 1988, p. 11). Este anseio foi manifesto na obra Dialética do Esclarecimento, publicada pouco menos de 20 anos antes de João XXIII publicar a já citada Pacem in Terris. O Esclarecimento/Iluminismo moveu-se com a esperança de que se a razão e a ciência guiassem a humanidade, então o progresso inevitavelmente viria. Mas qual tipo de progresso que veio? E a serviço de quem ou do quê? Uma das contribuições fundamentais da reflexão desenvolvida pelos filósofos frankfurtianos está no conceito de razão instrumental, que nos ajuda a entender que a racionalidade está fortemente vinculada ao desejo humano de domínio da natureza, não sendo algo que conduz, por si só, a um desenvolvimento digno de “todos os homens e do homem todo” (Populorum Progressio, n. 14). (JOÃO PAULO II, 1987).
3 Sobre estas constatações e algumas reflexões em perspectiva sociológica, filosófica, histórica e antropológica sobre elas, vale a leitura da obra Medo Líquido, de Zygmunt Bauman (2008).
4 Ainda em diálogo com categorias reflexivas de matriz frankfurtina, ver Leopoldo e Silva (1997).
5 CDSI: Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
6 PP: Populorum progressio.
7 “E quer louvar-te o homem, esta parcela de tua criação; o homem carregado com sua condição mortal, carregado com o testemunho de seu pecado e com o testemunho de que resistes aos soberbos; e mesmo assim, quer louvar-te o homem, esta parcela de tua criação. Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti.” (AGOSTINHO, 2010, p. 19. Grifo nosso).
8 Sobre o termo Civilização do amor, ver Centesimus Annus [CA] (JOÃO PAULO II, 1991), n. 10, e a sua respectiva nota de rodapé.
9 DOCAT: um documento de tradução popular da Doutrina Social da Igreja, em forma de perguntas e respostas, especialmente direcionado aos jovens, tal como ocorreu primeiro com a publicação do YOUCAT, que é o Catecismo da Igreja Católica também em versão popular de perguntas e respostas e direcionado, em especial, à juventude.
10 Em seu discurso na sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, [Documento de Aparecida - DAp] Bento XVI fez uma reflexão importante que pode servir de aprofundamento complementar sobre o que é esboçado neste parágrafo: “[...] uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, mesmo contra os próprios interesses. [...] as estruturas justas hão de ser buscadas e elaboradas à luz dos valores fundamentais, com todo o empenho da razão política, econômica e social. São uma questão de reta razão e não provém de ideologias nem de promessas” (BENTO XVI apud CELAM, 2007, p. 277-278).
11 A teologia católica afirma a natureza una da Trindade, não professando “três deuses, mas um só Deus em três pessoas” (CAT, n. 253 - ver nota 13). Neste sentido, “as pessoas divinas são realmente distintas entre si” (CAT, n. 254), mas “não dividem entre si a única divindade” (CAT, n. 253), de tal forma que “cada uma delas é Deus por inteiro” (CAT, n. 253). A distinção das pessoas trinitárias, assim, se enche de sentido à luz do mistério da comunhão, tendo em vista que o Pai e o Filho e o Espírito são relativos uns aos outros (CAT, n. 255), ou seja, tal distinção só é possível por sua natureza eminentemente relacional, e não oposicional. O Mistério da Trindade, como se pode ver, carrega uma dimensão inquestionavelmente comunitária; em seu próprio seio, o Deus Uno e Trino (Triuno) é comunhão, e essa comunhão gera comunidade. A Trindade transborda relação, não por carência ou falta de algo, mas por doação e interpenetração existencial, entrelaçamento. Sobre isso, vale a leitura complementar de três posicionamentos reflexivos: 1) da explicação feita por Susin (2003) sobre o modelo de vida pericorético da Trindade; 2) das considerações de Rahner (1961) sobre a Trindade econômica/imanente e a tripessoalidade divina em perspectiva interpessoal, que ajuda a compreender o ser-próprio e a correspondência em cada uma das pessoas divinas; 3) das reflexões de Boff (1999) sobre a Trindade como a melhor comunidade.
12 DV: Dei Verbum.
13 CAT: Catecismo da Igreja Católica.
14 DAp: Documento de Aparecida.
15 RN: Rerum Novarum (LEÃO XIII, 1981).
16 EA: Ecclesia in America (JOÃO PAULO II, 1999b).
17 EG: Evangelii gaudium (FRANCISCO, 2013).
18 GS: Gaudium et spes (PAULO VI, 1965a).
19 “E se contemplarmos a dignidade da pessoa humana à luz das verdades reveladas, não poderemos deixar de tê-la em estima incomparavelmente maior” (PT, n. 10).
20 Para aprofundamento da noção da paz como obra da justiça (GS, n. 78), é importante destacar que, conforme a compreensão teológica da Igreja, a justiça é entendida, em sentido amplo, como respeito ao equilíbrio de todas as dimensões da pessoa humana, reconhecendo e dando a Deus e aos homens o que lhes é devido (CIC, n. 1807), pressupondo, inclusive, o respeito aos direitos humanos em Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1999: No respeito dos direitos humanos, o segredo da verdadeira paz (JOÃO PAULO II, 1999a). Importa considerar também a visão de Francisco que vê na desigualdade a raiz dos males sociais (cf. EG, 202). “A justiça é um atributo central de Deus, é um elemento constitutivo da salvação; a justiça inter-humana é a exigência central que Javé inculca e que deve caracterizar essencialmente o seu povo” (AGUIRRE; VITÓRIA, 1994, p. 541).
21 Sobre a dimensão da caridade em relação à paz, vale reafirmar que o amor é a essência de Deus e, uma vez que o homem se funda em Deus – e Deus é Amor, o amor entre os homens faz realizar o plano divino de paz para a humanidade. A primeira carta de João (1 Jo 4, 7—5, 13) faz um importante tratado neste sentido, enfatizando que Deus é amor e que esse amor é um ato concreto: o envio de Jesus na carne, iluminando a ação dos homens na fé. Elucidativa, também, a afirmativa da encíclica Deus caritas est [DCE], de Bento XVI (2006), que diz: “o amor já não é apenas um ‘mandamento’, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro. ‘Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus, e Deus permanece nele’ (1 Jo 4,16). Estas palavras exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho” (BENTO XVI, 2006, DCE, 1).
22 Sobre o proceso de Jesus, Ratzinger/Bento XVI afirma: “Os dois ‘processos’ contra Jesus, perante o Sinédrio e diante do governador romano Pilatos, foram objecto [sic] de largas discussões, até aos seus mínimos pormenores, por historiadores do direito e pela exegese. [...] não conhecemos – como sublinhou Martin Hengel – em pormenor o direito criminal saduceu e não é lícito tirar conclusões do tratado posterior da Mishna, Sanhedrin, e aplica-las ao ordenamento do tempo de Jesus. Hoje, pode-se reter como verossímil que, no caso da sessão contra Jesus diante do Sinédrio, não se tenha tratado de um verdadeiro processo, mas de um interrogatório aprofundado que terminou com a decisão de entregar Jesus ao governador romano para a condenação. [...] A conclusão do interrogatório de Jesus no Sinédrio foi a que Caifás esperava: Jesus foi declarado réu de blasfémia [sic], delito para o qual se previa a pena de morte. Mas, dado que o poder de infligir a pena capital estava reservado aos romanos, o processo tinha de ser transferido para Pilatos para que, deste modo, aparecesse em primeiro plano o aspecto político da sentença de culpabilidade. Jesus tinha-Se declarado Messias e, consequentemente, pretendera para Si a dignidade real, embora de um modo completamente particular. A reivindicação de realeza messiânica era um delito político que devia ser punido pela justiça romana” (RATZINGER/BENTO XVI, 2011, p. 145-146; 151). São consideráveis também, com riqueza de detalhes históricos e notas explicativas, o texto Jesus: aproximação histórica, de Pagola (2014, p. 443-487).
23 O referencial teórico é tratado ora por Ratzinger, ora por Ratzinger/Bento XVI e ora por Bento XVI, a partir dos seguintes critérios: quando se trata de obra escrita pelo autor antes de sua eleição papal, é utilizada a nomenclatura [Ratzinger]; a segunda [Ratzinger/Bento XVI], por sua vez, é utilizada quando se trata de obra teológica escrita após a eleição do autor como papa, mas que expressam o seu pensamento pessoal, e não de sua autoridade pontifical; e quando se trata de documento escrito sob a sua autoridade papal a nomenclatura utilizada é a terceira [Bento XVI].
24 Os zelotas, por exemplo, eram fortemente nacionalistas e defendiam um messianismo de luta armada, “convencidos de que a aceitação de uma dominação estrangeira e o pagamento de tributos a um soberano estrangeiro era uma blasfêmia” (McKENZIE, 1983, p. 978). Sobre a possibilidade controversa de Judas Iscariotes fazer parte de algum grupo de ordem messiânica, Bento XVI questiona: “... por que ele traiu Jesus? A questão é objeto de várias hipóteses. Alguns se referem à sua cobiça de dinheiro; outros defendem uma explicação de ordem messiânica: Judas teria se decepcionado ao ver que Jesus não incluía no seu programa a libertação político-militar do seu próprio país. [...] De todo modo, a traição de Judas permanece um mistério” (BENTO XVI, 2008b, p. 138).
25 Sobre esta noção agostiniana da paz como ordenação, é clássica a reflexão do santo africano, a seguir: “[…] A paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz de casa é a ordenada concórdia ente os que mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade a ordenada concórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranquilidade da ordem” (AGOSTINHO, 2003, p. 402)
26 O Compêndio da Doutrina Social da Igreja traz uma importante afirmação neste sentido, resgatando o pensamento tomásico: “A autoridade deve exarar leis justas, isto é, em conformidade com a dignidade da pessoa humana e com os ditames da razão: ‘A lei humana só tem valor de lei na medida em que é conforme a reta razão: e assim se põe de manifesto que deriva da lei eterna. Na medida em que, pelo contrário, uma lei se afasta da razão, se diz lei iníqua: e assim já não tem valor de lei, e se torna antes um ato de violência’” (CDSI, n. 398).
27 Sobre esta Carta, indicamos o texto de Patrick J. Houlihan, que a comenta. Nele, também o leitor poderá acessar a íntegra da Carta. Ver em HOULIHAN, 2017.
28 Pio XI foi papa entre 1922 e 1939 e legou quatro importantes documentos para o corpus do ensino social católico, conforme o Compêndio da doutrina social da Igreja (2005): 1) a Encíclica Quadragesimo Anno (1931), comemorativa dos 40 anos da Rerum Novarum, que tece uma forte crítica ao regime capitalista e as consequências sociais do seu individualismo e da livre concorrência, reafirmando também a rejeição do socialismo/comunismo como solução; 2) a Encíclica Non abbiamo bisogno (1931), protestando contra a desumanidade do regime fascista; 3) a Encíclica Mit brennender sorge (1937), contra as medidas repressivas do Reich alemão, incentivando e chamando o povo à resistência; 4) a Encíclica Divini Redemptoris (1937), criticando de modo contundente a perversidade do regime comunista. (cf. CDSI, n. 91-92).
29 Nosso dever [...] além de conservar preciosos tesouros do passado, leva-nos, com alegria e coragem, a insistir no que hoje exigem os tempos, continuando a caminhada desses vinte séculos de Igreja. Portanto, o principal objetivo do trabalho conciliar não é o de discutir princípios doutrinais. [...] Hoje é necessário que toda a doutrina cristã, integralmente, sem nenhuma omissão, seja proposta de um modo novo, com serenidade e tranquilidade, em vocabulário adequado e num texto cristalino [...] Uma coisa é o depósito da fé, as verdades que constituem o conteúdo doutrinário propriamente dito. Outra, o modo como são expressas, mantendo-se sempre o mesmo sentido e a mesma verdade. Deve-se dar grande importância a essa maneira de exprimir e buscá-la com toda a paciência necessária [...] especialmente por razões pastorais (JOÃO XXIII apud CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 31-32).
30 “Não há dúvida de que a Igreja deseja e até se reconheça obrigada por necessidade intrínseca e por dever a dizer claramente o que pensa de si mesma. [...] Parece ter chegado o momento de explorar melhor a verdade a respeito da Igreja de Cristo, assimilá-la e exprimi-la, não do ponto de vista dogmático [...] O principal tema desta segunda sessão do Concílio Ecumênico será a Igreja.” (PAULO VI apud CONCÍLIO VATICANO, 2007, p. 50-52).
31 “[...] o direito à liberdade religiosa se baseia na dignidade da pessoa, reconhecida pela razão e manifestada pela palavra de Deus revelada. O direito da pessoa à liberdade religiosa deve ainda ser reconhecido pelo ordenamento jurídico da sociedade, para que se torne um direito civil.” (DH, n. 2).
32 Hoje este Pontifício Conselho está confluído no Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, instituído através da Carta Apostólica em forma de Motu Proprio de 17 de agosto de 2016, entrando em vigor a partir de 1º de janeiro de 2017, por promulgação do Papa Francisco. O seu atual presidente é o Cardeal Peter K. A. Turkson.
33 Dentre os muitos documentos de variado grau publicados por João Paulo II, ele escreveu três importantes encíclicas sociais: 1) a Laborem Exercens (1981), sobre o trabalho como chave de toda a questão social (CDSI, n. 101); 2) a Solicitudo Rei Socialis (1987), sobre a questão do “desenvolvimento”, diferenciando-o do “progresso” (CDSI, n. 102); 3) a Centesimus Annus (1991), comemorativa dos 100 anos da Rerum Novarum, atualizando-a na perspectiva do “reconhecimento de Deus em cada homem” e de “cada homem em Deus” como “condição de um autêntico desenvolvimento humano” (CDSI, n. 103).
34 Destaca-se também a reflexão de João Paulo II que conclui a Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2004: “[...] para a instauração da verdadeira paz no mundo, a justiça deve ser completada pela caridade. O direito é certamente a primeira estrada a seguir para se chegar à paz; e os povos devem ser educados para o respeito do mesmo. Mas, não será possível chegar ao termo do caminho, se a justiça não for integrada pelo amor. Justiça e amor aparecem às vezes como forças antagonistas, quando, na verdade, não passam de duas faces duma mesma realidade, duas dimensões da existência humana que devem completar-se reciprocamente. É a experiência histórica que o confirma, mostrando como frequentemente a justiça não consegue libertar-se do rancor, do ódio e até da crueldade. A justiça, sozinha, não basta; e pode mesmo chegar a negar-se a si própria, se não se abrir àquela força mais profunda que é o amor” (JOÃO PAULO II, 2004, n. 10).
35 CV: Caritas in Veritate.
36 Diz Francisco, por exemplo, em relação aos pobres: “No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo ‘Se fez pobre’ (2 Cor 8, 9). [...] Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus ‘manifesta a sua misericórdia antes de mais’ a eles. Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuírem ‘os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus’ (Fp 2, 5)” (EG, n. 197-198).
37 Estas ideias foram temas específicos, respectivamente, das mensagens de Francisco para o Dia Mundial da Paz desde o início de seu pontificado.
38 O título é Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca da paz (FRANCISCO, 2018a).
39 Uma versão dessa discussão foi publicada, recentemente, em nosso livro O evangelho social: manual básico de Doutrina Social da Igreja. Ver MESSIAS; CRUZ, 2020.
40 O Papa Francisco, inclusive, se referiu a isso no número 101 da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, dizendo que é “nocivo e ideológico [...] o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem” (FRANCISCO, 2018b), situando, mais uma vez, a dignidade da vida humana na perspectiva da integralidade.
41 Sobre o conceito de “ideologia” e suas implicações eclesiais atuais, ver o texto Ideologia como sistema de crenças (BOAS. In: ZACHARIAS; MANZINI, 2018, p. 329-346).
42 Ver Brasil (2013), Estatuto do desarmamento, de 2003. Nesta legislação, especificamente em seu artigo 4º, foram estabelecidas diversas regras para a aquisição de armas por parte dos civis.
43 É ilustrativa sobre isso a afirmativa de Orígenes (2004) para um resgate do sentido do “Evangelho da Paz” (Ef 6, 14), de uma teologia da paz: “Aos que nos perguntam donde viemos e quem é nosso chefe, respondemos: nós viemos, conforme os conselhos de Jesus, quebrar as espadas racionais de nossas contestações e de nossas violências, transformando-as em relhas de arado e forjando as lanças antes usadas na luta em podadeiras. Pois não mais desembainhamos a espada contra qualquer povo nem nos exercitamos nas artes da guerra: nós nos tornamos filhos da paz por Jesus que é nosso chefe, em vez de seguir as tradições que nos tornavam ‘estranhos às alianças’ da promessa (Ef 2,12); recebemos uma lei com que rendemos graças àquele que nos arrancou do erro, dizendo: ‘Quão falsos são os ídolos que nossos pais possuíram, e não existe um só que faça chover!’ (Jr 16,19; 14,22)” (ORÍGENES, 2004, p. 237). Também o papa Francisco fez uma afirmação elucidativa quanto a isso na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2020: “é paradoxal que ‘o nosso mundo viva a dicotomia perversa de querer defender e garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança, que acaba por envenenar as relações entre os povos e impedir a possibilidade de qualquer diálogo’” (FRANCISCO, 2019, s/p, n. 1).
44 Ainda sobre o conceito de não violência e sua abrangência para além do âmbito confessional, é considerável também a seguinte reflexão de Oliveira (2004): “O conceito de violência se refere a toda ação contrária à ordem da natureza. Nessa perspectiva, Aristóteles distinguia dois tipos de movimento: um segundo a natureza e outro por violência, isto é, contrário à ordem da natureza. A renúncia à violência é uma postura ética justamente porque é uma ação favorável à ordem da natureza. Se admitimos a premissa de que ‘todos os homens são iguais por natureza’, devemos também admitir que toda estrutura que favorece a desigualdade, desumaniza e violenta a ordem natural das coisas. [...] Diante de uma estrutura desumanizante, contrária à ordem natural das coisas e, portanto, violenta, o homem consciente de sua natureza e de sua vocação a ‘ser mais’ deve reagir de maneira não violenta. A ‘não violência’ é uma maneira original e ética de assumir o conflito e lutar contra a violência. Lutar aqui significa reagir, no entanto, nem toda reação deve, necessariamente, ser violenta” (OLIVEIRA, 2004, p. 22-24).
45 “A letra mata, o Espírito vivifica” (2 Cor, 3, 6).
46 Sobre isso, inclusive, é lapidar a atitude de Jesus que curou a orelha de um dos servos que estavam no monte da agonia a serviço do sumo sacerdote para acompanhar sua prisão e que foi ferido pela espada de um dos apóstolos (Lc 22, 49-51). Neste relato há uma condenação explícita de Jesus ao uso da violência como meio para se chegar ao objetivo da justiça, bem como a ação profunda de um coração desarmado, sempre capaz de cuidar e amar, mesmo envolto em situação extrema; uma atitude que pode ser chamada de samaritana, ou seja, típica daquele que, mesmo diante das insensibilidades e pragmatismos cotidianos, não se amesquinha (DAp, n. 12) nem perde a capacidade de ver, de sentir compaixão e de cuidar do próximo (Lc 10, 33-34).
47 Toda a celebração eucarística orbita ao redor da temática da paz: ela tem início com a saudação da paz do Cristo; o Glória é uma súplica universal pela paz e pela unidade; as anáforas da Santa Missa apelam ao progresso da paz e unidade; durante o Rito da Comunhão a Igreja clama a Paz que vem do Cristo e é o próprio Cristo e Seu Reino ao mundo; a Igreja pede que o Cordeiro de Deus tenha piedade de nós e nos dê a paz; antes da comunhão sacramental, a assembleia toda saúda-se com a Paz (não basta a paz com Deus sem a paz com os irmãos); em muitas orações a Paz e a Justiça são indissociáveis, como é explícito na oração de abertura do 8º Domingo do Tempo Comum (CDSI, n. 519, nota 1102).


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