EDITORIAL

MAX MÜLLER E A CIÊNCIA DA RELIGIÃO: do passado ao clássico recente

MAX MÜLLER AND THE SCIENCE OF RELIGION: from past to recent classic

MAX MÜLLER Y LA CIENCIA DE LA RELIGIÓN: del pasado al clásico reciente

Adelaide de Faria PIMENTA
Mestra e doutoranda em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Psicóloga e Analista Junguiana., Brasil
Brasil Fernandes de BARROS
Mestre e doutorando em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais., Brasil

MAX MÜLLER E A CIÊNCIA DA RELIGIÃO: do passado ao clássico recente

Interações, vol. 16, núm. 2, pp. 224-229, 2021

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Em novembro de 2020 foi lançada a primeira tradução completa, para o português, de um clássico da disciplina Ciência da Religião: o livro de Max Müller, Introdução à Ciência da Religião (MÜLLER, [1899]/2020). Original de 1873, esta tradução foi feita a partir da segunda edição, de 1899, que havia passado, na época, pela revisão do autor.

Friedrich Max Müller nasceu em Dessau, Alemanha, em 6 de dezembro de 1823, falecendo em Oxford, Inglaterra, em 28 de outubro de 1900. Com estudos iniciais na música e poesia, possuía grande aptidão para línguas clássicas – aprendeu grego, latim, árabe, persa e sânscrito. Indólogo, linguista, foi um dos pioneiros nos estudos das religiões e mitologia comparada, tendo sido sua obra Livros Sagrados do Oriente (1879 a 1910), com 50 volumes, uma importante fonte para a história das religiões. As quatro palestras proferida na Royal Institution, de Londres, em 1870, deram origem ao referido livro Introduction to the Science of Religion, agora traduzido para o português, que serviu de base para a criação da disciplina Ciência da Religião, da qual Müller é considerado o pai.

A obra ora traduzida faz parte da coleção Clássicos em Ciência da Religião, tendo por organizador o Prof. Flavio Senra e a colaboração do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC Minas (PPGCR PUC Minas).

Pretende-se, com a coleção, lançar novas edições de livros da área nos próximos anos, enriquecendo a bibliografia disponível em português.

Em comentário a respeito dessa obra, escrito no site onde o livro é oferecido a preço simbólico, [1] o leitor, Prof. Waldney de Souza Rodrigues Costa, da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN, diz: “É um absurdo a Ciência da Religião estar presente há mais de 50 anos no Brasil e só agora termos a tradução para o português da obra fundadora da área.” (COSTA, 2020). De fato, é de se estranhar que somente após 150 anos as palestras de Max Müller estejam à disposição dos leitores em língua portuguesa.

Por que somente tanto tempo depois se encontram à disposição obras da Ciência da Religião consideradas basilares? Ao se debruçar um pouco mais sobre a história dessa área se pode ver que, na verdade, só muito recentemente esta começou, de fato, a se estruturar.

A Ciência da Religião vem consolidando seu campo de atuação ao longo dos anos, reafirmando, segundo Passos e Usarski (2013), sua legitimidade disciplinar em meio a outras áreas do conhecimento. Os autores apontam a trajetória complexa da disciplina, que se estende desde cerca de 150 anos, em várias partes do mundo, embora desde a Grécia antiga se encontrem estudiosos da religião, como “Heródoto (484-425), com suas descrições sobre os costumes religiosos do Egito, da Babilônia e da Pérsia.” (USARSKI, 2013, p. 53).

Ao longo desses 150 anos, a Ciência da Religião veio se delineando e tomando corpo como disciplina autônoma e distinta na comunidade científica em relação à Teologia. Usarski (2013) chama a atenção para a especificidade da produção de conhecimento da Ciência da Religião – “[...] não fornecido por nenhuma outra disciplina acadêmica.” (PASSOS; USARSKI, 2013, p. 52) – e situa duas tendências principais para sua constituição como disciplina autônoma: a) o aumento de conhecimento de novas culturas e suas expressões religiosas; b) o aumento do estudo científico das religiões, em detrimento de abordagens dogmáticas (PASSOS; USARSKI, 2013).

Ainda nesse panorama de complexidades, se insere a questão da própria denominação da disciplina. Camurça[2] (2008) lembra que “[...] a expressão Ciência da Religião (Religionwissenschaft) foi cunhada na segunda metade do século XIX para destacar a emancipação das Ciências Humanas em relação à Filosofia e à Teologia, até então vozes imperantes – no tratamento dos fenômenos religiosos [...].” (CAMURÇA, 2008, p. 21). O termo foi introduzido por ninguém menos que o referido autor Max Müller. Usarski (2013) reforça que no prefácio do livro de 1867, Chips from a German Workshop, Müller escreveu que “[...] o termo Ciência da Religião devia ser reservado para designar uma disciplina autônoma.” (USARSKI, 2013, p. 56). Três anos após, proferiu as palestras que consolidaram o termo e deram origem ao livro do qual a tradução em português agora é disponibilizada.

No Brasil, no entanto, de forma sistematizada e do ponto de vista metodológico e epistemológico, Valle (apud MARQUES; ROCHA, 2007) situa que por volta de 1934, com a fundação da Universidade de São Paulo – USP, e principalmente com a chegada dos antropólogos Lévi-Strauss (em 1935) e Roger Bastide (em 1938) é que se pôde falar efetivamente em Ciência da Religião.

Quando surgiram os primeiros cursos de pós-graduação da área no Brasil, na década de 1970, na PUC-SP e na UMESP, os cursos ainda eram, epistemologicamente falando, insipientes e com uma forte influência teológica.

O surgimento dos cursos de pós-graduação romperam, contudo, com um tradicional legado de estudos exclusivamente orientados para objetivos eclesiásticos. Como é sabido, sob a influência positivista da separação entre Igreja e Estado e com a instauração da República, o estudo das religiões ficou relegado às instituições religiosas e ligado à Teologia, não participando das universidades. “Tratava-se, portanto, de coisa eclesial e não de coisa pública que devesse ser objeto de ciência legítima.” (PASSOS; USARSKI, 2013, p. 23).

É forçoso compreender que os processos que envolvem o surgimento de algo novo são como que um parto, que se inicia na fecundação de uma pequena semente e somente muito tempo depois, após grande percurso e com a superação de diversos percalços, se consolida. O primeiro fruto de uma árvore, às vezes, leva anos para surgir. E percebe-se que a Ciência da Religião, no Brasil, da mesma forma, entra em uma expressiva fase de amadurecimento. No entanto, foram muito importantes os passos dos precursores.

Os estudos sobre a religião, porém, embora fragmentados em um grande volume de modelos e teorias de estudos, contaram com valorosos estudos de muitos sociólogos, antropólogos, psicólogos e historiadores que aplicaram os seus esforços acadêmicos no estudo desse objeto. A implantação da área no Brasilcolabora com a organização da própria disciplina e com o tratamento de suas investigações.

Os esforços desse processo culminaram em importante conquista no cenário brasileiro, com a efetivação, em 2016, da área de avaliação autônoma de Ciências da Religião e Teologia na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Tal feito reforçou e renovou o esforço da disciplina Ciência da Religião, beneficiando e incentivando novas pesquisas.

A organização das instituições dedicadas à Ciência da Religião foi fundamental, pois segundo Silva (2021), permitiu a “[...] evolução do debate epistemológico-teórico e metodológico” (SILVA, 2021, p. 167) da disciplina. Cita, como exemplo para o que considera um segundo salto epistemológico da área, a publicação, no ano de 2013, do Compêndio de Ciência da Religião, a partir

[...] da iniciativa dos professores da PUC SP, João Décio Passos e Frank Usarski [...], que contou com a colaboração de 52 pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas dos estudos da religião. [...] O Compêndio de Ciência da Religião se consolidou como obra de referência para todos os programas de Ciências da Religião e Teologia, bem como para outras áreas de pesquisa do fenômeno religioso, além de ser leitura obrigatória para qualquer pesquisador que se debruce sobre o tema da religião. Ele foi publicado no ano de 2013 pelas editoras Paulus e Paulinas, e recebeu o Prêmio Jabuti em 2014, com o 3º lugar na categoria Ciências Humanas. Atualmente é considerado um marco nas relações entre as Ciências da Religião e as demais disciplinas de Humanidades. (SILVA, 2021, p. 168).

Na esteira dessa conquista, o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas investiu no projeto de tradução da obra de Max Müller, com a colaboração dos seus discentes e docentes, tendo por objetivo ser um primeiro passo para oferecer aos estudantes da área da Ciência da Religião, bem como ao público interessado, o acesso às obras clássicas da área, fundamentais para o desenvolvimento do pensamento teórico na perspectiva da pesquisa acadêmica.

O público lusófono tem sentido a necessidade de se aproximar dos textos clássicos da fundação da disciplina, a Religionswissenschaft, uma vez que alguns destes se encontram disponíveis apenas em sua língua original, dificultando seu acesso aos vários pesquisadores.

Tendo em vista tal lacuna, a tradução da atual obra se configura em uma grande conquista para a comunidade científica de língua portuguesa. Na sequência, para a coleção proposta pelo Grupo de Pesquisa Religião e Cultura da PUC Minas, pretende-se editar o livro Elementos da Ciência da Religião, de Cornelis Petrus Tiele (1830-1902), alemão, teólogo e estudioso das religiões, considerado tão influente na área quanto Müller. Com isso, busca- se oferecer material de substancial valor para que discentes, docentes e pesquisadores da área possam fazer uma leitura crítica e abalizada da mesma, colaborando com a consolidação das pesquisas na disciplina, ampliando o debate em torno do tema das ciências da religião. Obras como o Compêndio de Ciência da Religião, bem como as da Coleção Clássicos da Ciência da Religião, que estão agora em curso, demonstram o amadurecimento da disciplina, particularmente por reconhecer que a busca de material significativo em suas origens, favorece a sua consolidação.

REFERÊNCIAS

CAMURÇA, Marcelo. Ciências Sociais e Ciências da Religião: polêmicas e interlocuções. São Paulo: Paulinas, 2008. (Coleção Repensando a Religião).

COSTA, Waldney de Souza Rodrigues. Até que enfim. In: AMAZON.COM.BR. Introdução à ciência da religião - eBook Kindle: principais avaliações do Brasil. Avaliado em 11 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Introdu%C3%A7%C3%A3o-ci%C3%AAncia-religi%C3%A3o- Friedrich-M%C3%BCller- ebook/dp/B08MYS3STT/ref=sr_1_1? mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3% 95%C3%91&dchild=1&keywords=introdu%C3%A7%C3%A3o+ci%C3%AAncias+da+religi %C3%A3o+max+m%C3%BCller&qid=1631975970&sr=8-1. Acesso em: 18 set. 2021.

MARQUES, Ângela Cristina Borges; ROCHA, Marcelo. Memórias da fase inicial da Ciência da Religião no Brasil – Entrevistas com Edênio Valle, José J. Queiroz e Antonio Gouvêa Mendonça. REVER – Revista de Estudos da Religião, n. 1, p. 192-204, mar. 2007. Disponível em: http://www.pucsp.br/rever/rv1_2007/t_entrevista.htm. Acesso em: 20 set. 2021.

MÜLLER, Friedrich Max. Introdução à Ciência da Religião. Edição bilingue, Tradutor Brasil Fernandes de Barros. Belo Horizonte: Senso, 2020. (Coleção Clássicos da Ciência da Religião).

PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013.

SILVA, Maurílio Ribeiro da. Ciências da Religião no Brasil: debate epistemológico a partir do estudo religiográfico da produção docente nos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião no Brasil. 2021. Tese. (Doutorado em Ciências da Religião) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.

TIELE, C.P. Elements of the Science of Religion: Part I Morphological. Londres: William Blackwood and Sons, 1897

TIELE, C.P. Elements of the Science of Religion: Part II Ontological. Londres: William Blackwood and Sons, 1899

USARSKI, Frank. História da Ciência da Religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013. p. 51- 61.

Notas

1 Disponível no site da Amazon (MÜLLER, 2020).
2 Marcelo Ayres Camurça: “Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciência da Religião e Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora.” (PASSOS; USARSKI, 2013, p. 12).
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