EDITORIAL
SEM RELIGIÃO: um tema para investigação
RELIGIOUSLY UNAFFILIATED: a topic for research
SÍN RELIGIÓN: un tema para investigación
SEM RELIGIÃO: um tema para investigação
Interações, vol. 17, núm. 1, pp. 8-14, 2022
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
O descritor religião está no centro dos nossos interesses como cientistas da religião. Como parte do nosso trabalho acadêmico, identificamos esse descritor como um termo que não parece exclusivo dos ambientes institucionalizados das crenças e tradições identificadas como religiosas. Mais recentemente, ao menos desde a segunda metade do século XX, temos acompanhado o aumento da incidência de pessoas que não se sentem ligadas a alguma instituição, doutrina ou tradição de sabedoria. Teístas, ateístas, deístas, agnósticos, sem religião com crença ou sem crença, o espectro do que sejam essas pessoas desinstitucionalizadas vem se tornando também interesse das pesquisas em nossa disciplina Ciência da Religião e de outras disciplinas afins. Também fora do meio acadêmico, o fenômeno sem-religião não parece ser um tema que passe desapercebido do interesse comum.
Essa discussão nos leva ao debate aberto sobre o que se pretende nomear como religião. Quanto ao termo religião, que hoje vemos aplicado de maneira pretensamente universal, temos sua origem na língua latina (religio) e sua expansão pelas culturas foi possível pelo processo colonizador. Esse contexto jamais deve deixar de ser reconhecido. Trata-se de um termo circunscrito a uma dada cultura, um termo que traz consigo todas as marcas de uma delimitação cultural. Quanto ao que seja propriamente religião, em especial quanto às religiões concretas sobre as quais nos dedicamos como cientistas da religião é preciso identificar com a maior precisão possível acerca de qual perspectiva teórico metodológica, política e cultural se assume para referir-se a esse objeto. Tal posição se faz necessária, seja pelo viés do reconhecimento das diferentes culturas seja pela consideração fornecida pelas distintas perspectivas das disciplinas que estudam o assunto. E, ainda, destaque-se que uma definição precisa do termo em abstrato não faz sentido nem para as abordagens mais teóricas. Seja como for, será sempre necessário, para tematizar o assunto, reconhecer uma perspectiva, um lugar a partir do qual se observa o fenômeno.
Os estudos sobre o perfil das pessoas sem religião avançam em diferentes frentes tanto no Brasil quanto no exterior. Clóvis Ecco, da PUC Goiás; Alfredo Teixeira, da Universidade Católica de Lisboa; Néstor da Costa, da Universidade Católica do Uruguay; Lori G. Beaman, da Universidade de Ottawa, e toda equipe de investigadoras e de investigadores associados ao projeto The Nonreligion in a Complex Future; além de Marià Corbí, Marta Granés, Teresa Guardans e Queralt Prat-i-Pubill e toda equipe do Centro de Estudos de Tradições de Sabedoria, de Barcelona, esses são alguns dos nomes de pesquisadoras e pesquisadores com interesse nesse tema, por citar apenas alguns nomes de nossa rede de contato acadêmico nesse tema. Particularmente, em nosso caso, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, através do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura, ressalvadas todas as limitações dessa complexa aproximação, e orientados pelo que nos propõe o campo, optamos por delimitar a religião ao aspecto institucional relativo à pertença, membresia, vida comunitária, também quanto à adesão à doutrina, bem como ao vínculo ao sistema de culto.
Nesse editorial, compartilho um pouco da experiência de pesquisa que vem sendo construída em nosso grupo, que tenho a satisfação de liderar em conjunto com o Prof. Fabiano Victor de Oliveira Campos. Como parte dos interesses desse grupo de pesquisa, temos nos dedicado ao estudo sobre pessoas que se autodeclaram sem-religião. É verdade que a maior parte das pessoas sem religião mantém crença ou fé no que reconhecem como Deus, é comum que junto dessa autodeclaração venha a noção de desafiliação ou não pertencimento.
Temos organizado, através de várias pesquisas de mestrado e de doutorado, uma base de dados que sustenta nossa hipótese, qual seja, a de que pessoas sem religião veem a religião como instituição, como doutrina e como adesão ao sistema de culto.
Considerando que a pesquisa em Ciência da Religião se constrói entre as abordagens empírica, sistemática e aplicada, vejamos três aspectos do problema a partir das pesquisas que temos orientado.
Em princípio, em perspectiva empírica, estamos interessados em saber como uma pessoa construiu a sua trajetória, desde e quando não tenha nascido como sem-religião. Nesse processo temos encontrado no campo muitas histórias de pessoas concretas marcadas por aquilo que o sociólogo da religião Pedro Ribeiro chamou de desafeição religiosa. Esse processo parece ser responsável, em parte, por levar as pessoas sem religião à desinstitucionalização e a um cultivo da vida de fé em perspectiva individual, ou seja, ocorre nesse caso uma individualização da crença. Do ponto de vista mais amplo, os dados têm nos levado a assumir como hipótese da compreensão empírica desse fenômeno a tríade desafeição-desinstitucionalização-individualização. Tal processo seria consequência do fenômeno da secularização?
Em sociedades secularizadas, aquelas em que o religioso deixa de ocupar a centralidade da gestão de todos os sentidos e esferas da vida, em sentido weberiano, a religião não desaparece propriamente, ela tem modificado profundamente o seu papel. Em ambientes secularizados, indivíduos sentem-se autônomos para a gestão do cultivo da sua fé ou da sua não fé, rompem com o processo de submissão em relação às orientações doutrinárias de uma comunidade, a instituição religião. Antes de chamarmos atenção para alguns dos dados que temos coletado, vejamos uma história muito particular que poderia acontecer com qualquer um de nós pelos grandes centros urbanos do país.
Como já recordava o teólogo católico e pesquisador Alberto Antoniazzi, que por ocasião do Censo do IBGE de 2000 publicou uma análise daquele cenário intitulada Por que o panorama religioso no Brasil mudou tanto?, os sem-religião estão, em boa parte, dentre os que ocupam a base da pirâmide social. José Álvaro Campos Vieira, em sua pesquisa doutoral investigou algumas dessas pessoas na periferia de Belo Horizonte, tendo escolhido uma área em que a média de pessoas sem religião chegava a quase o dobro da média nacional e local, tomando como referência o Censo do IBGE publicado em 2012. José Álvaro colheu vários dados através de questionários estruturados, confirmando o processo de desafeição com relação às instituições religiosas. Em outra pesquisa doutoral, dessa vez concentrada no ambiente universitário, dentre pessoas sem religião, como lembra a pesquisadora Claudia Ritz, inspirada em Danièle Hervieu-Léger, pode ter havido uma grave falha no processo de transmissão da memória religiosa – fato observável na história do cristianismo no Brasil e acentuado, dentre outros aspectos, pelo processo de urbanização, destaca Claudia Ritz na pesquisa atualmente em curso.
Nessas e em outras pesquisas de campo, temos nos deparado com um perfil de pessoa sem religião: jovem, sem memória religiosa, crítica da instituição, crítica do papel dos líderes religiosos, expressa desafeição religiosa, é crente ao seu modo e de uma forma que não lhe parece vinculada a alguma doutrina, sem participação regular em cultos. Essa descrição, certamente, não é tudo o que pode caracterizar uma pessoa sem religião, pois o fenômeno é muito mais complexo, concordaria a pesquisadora e colunista da revista Senso, Beatriz de Oliveira Pinheiro.
Como dissemos acima, do ponto de vista dos estudos empíricos, um dos nossos interesses é saber como se constitui a trajetória que leva uma pessoa a se reconhecer como sem-religião. Mas, além disso, queremos saber algo mais, ou seja, se existe algo que possa ser identificado como uma espiritualidade sem religião. É o que tentamos fazer na perspectiva de uma abordagem sistemática.
Antes, porém, advertimos que, ao falarmos em espiritualidade sem religião, não estamos a defender alguma atitude de crítica ou de recusa do legado das instituições ou das tradições religiosas constituídas. Não compartilhamos de nenhum interesse apologético que se dedique a defender essa prática em detrimento de outras. Tampouco há de nossa parte algum juízo de valor a respeito dessa experiência. Além de tudo isso, reforçamos que o interesse é fundamentalmente baseado em dados empíricos, ou seja, estamos a refletir a partir da escuta de experiências vividas, de relatos e de compreensões de pessoas concretas que se identificam como sem-religião.
Com essa expressão, procuramos identificar, em pessoas que se reconhecem como sem-religião ou como não afiliadas, as características da experiência de fé e de crenças que se mantém, e que poderiam ser reconhecidas como religiosas ou espirituais em sentido comum. Contudo, devido à autodeclaração de não afiliação, nomeamos a esse tipo de experiência como espiritualidade sem religião.
Com essa expressão estamos nos referindo a um aspecto muito delimitado e circunscrito de um fenômeno bastante diverso e complexo. A rigor, mesmo considerando elementos de desafeição, desinstitucionalização e individualização da crença, não temos encontrado no campo um comportamento que possamos identificar como padrão e regular. Há muitas nuances e variações, razão pela qual estamos procurando ampliar o mapeamento de diferentes grupos: roqueiros/as sem religião, com Flávio Lages Rodrigues; mulheres trabalhadoras do sexo sem religião, com Beatriz Pinheiro de Oliveira; mulheres feministas sem religião, com Renata Maia de Andrade; homens gays sem religião, com Sandson Rotterdan; judeus gays não afiliados, com José Flávio Nogueira Guimarães; pessoas sem religião com enfermidade em processo terminal, com Fabiana de Faria; adolescentes sem religião no ambiente escolar, com Paulo Vinícius Faria Pereira; ou mesmo Yoga como espiritualidade sem religião, com Rudra Das. O fenômeno multifacetado e espectral permite apenas aproximações, como essas que acabo de citar, pois é composto por indivíduos e não por instituições, organizações ou grupos organizados. Nesse sentido, para garantir certa perspectiva de leitura, temos delimitado o fenômeno dos sem-religião e da espiritualidade sem religião como fruto do processo de secularização, identificando traços de desafeição religiosa, desinstitucionalização e individualização das crenças.
Não apenas a situação de pessoas sem religião é multifacetada e complexa. A própria categoria espiritualidade é de fato polissêmica. Muitos são os estudos que se referem à espiritualidade e os conceitos nem sempre estão bem determinados. Mary Rute Gomes Esperandio, pesquisadora da PUC PR e fundadora do Instituto de Espiritualidade e Saúde, vem contribuindo com exaustivos trabalhos de investigação sobre o sentido do termo espiritualidade, incluindo vários trabalhos de revisão de literatura. Um enorme grau de imprecisão vem sendo encontrado e discutido pela pesquisadora e compartilhado com os demais centros de pesquisa na área. Há uma certa tendência para se compreender a espiritualidade “para se referir à dimensão do ser humano que envolve a busca de sentido e propósito na vida, busca de autointegração e de auto realização; busca de relações humanas satisfatórias e de senso de conexão consigo e com os outros, com o universo e com a transcendência (que pode ser um Ser Superior ou força na qual a pessoa acredita). Trata-se, portanto, daquela dimensão humana que se preocupa com as questões mais profundas da existencialidade e da realidade última”, afirmou a pesquisadora em artigo publicado na revista Horizonte – Revista de Estudos em Teologia e Ciências da Religião.
Há, na perspectiva de Mary Esperandio, relativa independência entre a compreensão de espiritualidade e o seu vínculo com uma tradição religiosa. Porém, dado nosso enfoque no uso da expressão espiritualidade sem religião nossa pesquisa pretende “enfatizar a natureza da espiritualidade enquanto vivência fora da instituição religião”, destaca Beatriz de Oliveira Pinheiro. Portanto, não bastará identificar um modo de viver a espiritualidade fora da instituição sem problematizarmos suficientemente os vínculos que o termo guarda com pressupostos filosóficos e teológicos ou religiosos, em uma visão pós-metafísica, como pretende Sandson Rotterdan.
Marià Corbí, fundador do Centro de Estudos de Tradição de Sabedoria, CETR, com sede em Barcelona, contribui para essa problematização ao questionar os vínculos que o termo espiritualidade guarda com uma antropologia dual (corpo/espírito), com uma teologia sobre a natureza humana dada por um Deus, assim como com o vínculo entre espiritualidade e ascetismo extramundano, digo em minhas palavras. Em síntese, essas questões tornam bastante comprometido o uso do termo espiritualidade quando vinculado a certa noção de espírito. Dentre as principais consequências dessa redução temos que, para o autor, tal compreensão redunda em uma visão estática, seja do próprio espírito, seja da natureza humana. A antropologia dualista tende a sobrepor hierarquicamente o espírito ao corpo. Essa visão redunda em inúmeras outras consequências que marcam a sobreposição do espiritual aos âmbitos corpóreo, histórico e político do animal humano que é concebido como animal que fala. Com Marià Corbí, aprendemos que a tal dimensão humana não é mais do que o resultado de uma condição, a condição de animais predadores e incompletos que, através da fala, encontram o meio para sobreviver e atender às suas necessidades. É a fala, para Corbí, que permite reconhecer que o único real se acessa de maneira dupla, como dimensão relativa às nossas necessidades (DR) e como dimensão não relativa às nossas necessidades, a dimensão absoluta (DA). É nesse horizonte que o dado antropológico se impõe. Desse ponto de inflexão procuramos superar quaisquer especulações de natureza filosófica ou teológica sobre a espiritualidade como cultivo da qualidade humana e da qualidade humana profunda. Infelizmente, tais aspectos não poderemos aprofundar aqui, mas temos tratado sobre o tema em parceria com Jonathan Félix de Souza, em artigo já publicado sobre o tema na revista Theológica Xaveriana, de Bogotá, e através da sua pesquisa sobre a espiritualidade sem religião nas organizações, com base na proposta corbiana. Também Milene Costa dos Santos, Thaís Fernandes do Amaral e Fabiana de Faria têm se dedicado a compreender o papel da espiritualidade como cultivo da qualidade humana e da qualidade humana profunda, através de estudos sobre a literatura bíblica em perspectiva não-mítica, da prática cinéfila e da saúde, respectivamente.
O desafio que se apresenta, por fim, diz respeito a como colaborar, do ponto de vista de nossa disciplina, a Ciência da Religião. Considerando uma abordagem aplicada, é possível à disciplina oferecer elementos para o cultivo da espiritualidade como cultivo qualidade humana, em particular entre pessoas marcadas pelas características do processo de secularização, atravessadas pela desafeição religiosa, pela desinstitucionalização e pela individualização no seu modo de crer? Nossa disciplina não tem um perfil normativo, pelo que não poderá oferecer conteúdo para o cultivo de um tipo de espiritualidade. Tais conteúdos poderão ainda ser oferecidos pelas tradições de sabedoria, suas narrativas e seus textos. Como acessá-los de uma forma a não exigir algum tipo de submissão, crença ou adesão ao modo de doutrinas, crenças e culto? A partir das pesquisas e da compreensão do fenômeno, nossa disciplina poderá oferecer, contudo, alguns elementos formais para a consideração do cultivo de espiritualidade sem religião. A partir da proposta de Marià Corbí, podemos levantar alguns elementos. Não são os únicos, certamente, pois há outras correntes que têm proposto o cultivo da espiritualidade sem religião através de outras perspectivas, como espiritualidade laica ou mesmo como espiritualidade ateia, o que encontramos em trabalhos como os de Andrés Comte-Sponville ou de Luc Ferry, dentre outros. O cultivo da qualidade humana e da qualidade humana profunda proposto por Corbí parte do princípio de que não é por algum elemento externo que os animais humanos procuraram cultivar a dimensão absoluta do real. Esse cultivo é fruto de uma característica biológica do animal humano que fala, o que torna possível tal cultivo. Como alimentar o cultivo sem o referencial que a instituição religião oferece, sem o parâmetro das doutrinas e o amparo que o culto confere à vivência comunitária da fé? Tal cultivo é proposto como interesse incondicional pela realidade, distanciamento e silenciamento (IDS), vividos como indagação livre, comunicação e serviço mútuo (ICS). IDS/ICS é cultivo da qualidade humana e da qualidade humana profunda, não necessariamente de forma religiosa-institucional. Ainda não encontramos evidências de que esteja em curso o cultivo de IDS/ICS entre pessoas sem religião pesquisadas. No entanto, do ponto de vista da proposta corbiana, essa é uma alternativa para o cultivo da qualidade humana e da qualidade humana profunda em perspectiva laica ou não religiosa.
Consideremos, por fim, que temos uma realidade complexa a ser investigada e um amplo espectro de possibilidades a serem consideradas, sendo o cenário aberto por uma espiritualidade sem religião, marcado pelo controle dos indivíduos e não das instituições, que será desinstitucionalizada e que não acatará nenhum princípio de natureza dogmática ou predefinida doutrinariamente sobre a ideia de Deus. Parafraseando um velho filósofo alemão, temos um mar aberto à nossa frente e talvez nunca tenha havido mar tão aberto.