Resumo: Desde o século XV, o racismo anti-negro segue se projetando violentamente sobre o corpo negro. Razão pela qual, a questão do perdão, do ressentimento, da reconciliação são pontos nevrálgicos para o pensamento negro. Em geral a razão branca e eurocentrada fala do perdão e da reconciliação em termos de ajustamento, sem levar em consideração o colonialismo como principal fratura histórica na intersubjetividade que expulsou o negro da relação dialética em vista da dominação política-econômica. Entretanto, sabemos que o advento da nova humanidade, isto é, o estágio harmonioso do mútuo reconhecimento, não pode chegar se não por meio da superação do ódio, do ressentimento e do perdão. Um engano, contudo, é pensar que esse estágio pode advir sem a justiça para as vítimas e o arrependimento dos verdugos, que para o negro implica a desalienação, a modo fanoniano, que restaure às condições em que o amor possa emergir. Neste horizonte, nos propomos a seguir pensando o perdão, não nos moldes dogmáticos e intimista, mas como um estágio da subjetividade radicalmente aberta a outrem e na gratuidade, para além da dialética, a saber: per-dón. Pretende-se, pois, seguir pensando na ontologia relacional como única saída possível para a nossa comum humanização.
Palavras-chave: Frantz Fanon, Racismo, Perdão, Ontologia Relacional, Cristianismo Decolonial.
Abstract: Since the 15th century, anti-black racism continues to violently project itself onto the black body. For this reason, the question of forgiveness, resentment, and reconciliation are neuralgic points for Black thought. In general, white and Eurocentered reasoning speaks of forgiveness and reconciliation in terms of adjustment, without taking into consideration colonialism as the main historical fracture in intersubjectivity that expelled Black people from the dialectical relationship in view of political-economic domination. However, we know that the advent of the new humanity, that is, the harmonious stage of mutual recognition, cannot arrive if not through the overcoming of hatred, resentment, and forgiveness. A mistake, however, is to think that this stage can come about without justice for the victims and repentance for the executioners, which for the black man implies Fanonian disalienation that restores the conditions under which love can emerge. In this horizon, we propose to continue thinking about forgiveness, not in a dogmatic and intimate way, but as a stage of subjectivity radically open to others and in gratuity, beyond the dialectic, namely: per-don. It is intended, therefore, to continue thinking of relational ontology as the only possible way out for our common humanization.
Keywords: Frantz Fanon, Racism, Forgiveness, Relational Ontology, Decolonial Christianity.
ARTIGOS
TEOLOGIA NEGRA E CRISTIANISMO DECOLONIAL
BLACK THEOLOGY AND DECOLONIAL CHRISTIANITY
LA TEOLOGÍA NEGRA Y EL CRISTIANISMO DECOLONIAL
Recepción: 25 Junio 2021
Aprobación: 02 Diciembre 2021
Em África, antes de atravessar o Atlântico como escravizados, nossos ancestrais africanos tiveram de passar pelo ritual do esquecimento, dando voltas em torno da Árvore do Esquecimento, para depois embarcarem em Ouidah, no Benin. Esse ritual seria responsável pelo esfacelamento da memória, como num tipo de apagador capaz de anular as lembranças, suas origens e sua identidade cultural, e torná-las suscetíveis ao trabalho escravo sem oferecer nenhuma resistência. Não apenas isso, mas com esse ritual e a escravidão dá-se para os povos colonizados e escravizados uma espécie “sepultamento de sua originalidade cultural” e simbólica. Os registros históricos apontam que o maior contingente de africanos escravizados fora trazido para trabalhar na construção da nação brasileira, agora homogeneizados sob a categoria negro, foram negados o acesso à cidadania. Um certo cinismo perdura em nosso contexto em relação ao racismo estrutural, sob a retórica falaciosa de que vivemos em uma democracia racial; que dificulta a instauração de processos que conduzam à superação das relações hierarquizadas e, então, engendre processos de nossa comum humanização.
Na África do sul, por exemplo, após o fim do apartheid houve a instalação das Comissões da Verdade e Reconciliação, que colocavam frente a frente os verdurgos e agentes da repressão do regime do apartheid e suas vítimas. O processo de reconexão da humanidade de ambas as partes implicava a admissão e o reconhecimento do que foi feito por parte do verdurgo diante de sua vítima. No Brasil, um processo semelhante ao que aconteceu na África do sul parece cada vez mais distante, pois ainda lutamos para o reconhecimento da existência do racismo estrutural. Racismo esse que vem sendo escamoteado pela retórica do mito da democracia racial, que mantém as desigualdades sociais sacralizadas e impede o país de chegar a igualdade racial de fato. Neste sentido, o pensamento negro crítico parece ser fundamental para adentrarmos na experiência vivida do negro, como impossibilidade de ser para si mesmo e de ser para outrem e, sobretudo, nas implicações para que a teologia possa superar o eurocentrismo e fomentar um pensamento e prática capaz de conduzir todos ao horizonte da reconciliação; já que esta é, por excelência, a tarefa do quefazer teológico, a saber, anunciar a reconciliação da humanidade única com Deus. E, como iremos ver abaixo, o racismo por meio do colonialismo representa a mais alta degradação da humanidade que se tem registro histórico.
Considerando o histórico de colonização, séculos de escravidão negra e racismo estrutural e estruturante da sociedade brasileira, fica difícil a teologia acessar o real sem entrar em diálogo com o pensamento negro crítico. Cabe ressaltar que o cristianismo invocado nesta interlocução não pode ser confundido com a cristandade, a saber, o cristianismo monocultural e imperial que em uma operação histórica e teórica, ao longo dos séculos, se tornou a “coluna vertebral” do eurocentrismo, como demonstrou Henrique Dussel (2013, p. 19-30). Estamos partindo de um cristianismo desconstruído em direção a um cristianismo decolonial que, inserido em sua própria declosão, recuperou a sua essência kenótica (esvaziamento) e apareceu como um movimento antissistémico por antonomásia, como era o messianismo jesuânico e o cristianismo primitivo (CALDEIRA, 2018). É este cristianismo que está aberto à crítica decolonial e se permite se descolonizar e, assim, – superando a roupagem eurocêntrica –, pode fomentar autênticos processos de humanização. Neste horizonte de um cristianismo decolonial, a construção do sentido e da verdade capaz de nos redimir se faz em uma interlocução interdisciplinar e, especialmente, em interlocução com a longa tradição do pensamento negro crítico que tem sido invisibilizada pela academia brasileira e latino-americana.
Na vasta galeria do pensamento negro crítico, destacamos neste momento as percepções do filósofo, psiquiatra humanista e revolucionário Frantz Fanon acerca do colonialismo e do racismo e suas incidências no sujeito colonizado[1]. Colocar Fanon em diálogo com a razão teológica é importante porque os diagnóticos e prognóticos fanonianos acerca da sociedade contemporânea pode ajudar a teologia a pensar os caminhos do perdão e da reconciliação possíveis em vista do advento da nova humanidade sem cair no “esquecimento da colonialidade”, isto é, sem ignorar a Exterioridade constitutiva da modernidade (cf. MALDONADO-TORRES, 2008).
Frantz Omar Fanon (1925-1961), nasceu no seio de uma família de classe média em Fort-de-France, capital administrativa da Martinica, colônia francesa do Caribe. Ele serviu o exército francês durante a II Guerra na luta contra o nazismo e lutou pela libertação da Argélia. Para Achille Mbembe será essas duas provações – o nazismo e o colonialismo –, acrescentada pelo encontro amargo com a França metropolitana e os primeiros clarões das independências africanas, as experiências fundadoras e chaves de leitura de toda a sua vida, do seu trabalho e da sua linguagem. Mbembe recorda-nos que é nessas “três clínicas do real” que nasce, cresce e se esgota o nome Fanon. E mais. Nestas três cenas que “se deve o essencial da sua palavra, semelhante, na sua beleza dramática, na sua fulgurância e no seu brilho luminoso, ao verbo em cruz do homem-deus ameaçado de loucura e de morte” (MBEMBE, 2012). Em face de ameaças semelhantes que se apresentam na presente hora cuja realidade se revela em suas dimensões coloniais atualizadas, reler Fanon torna-se importante porque, assim como ele o fez, necessitamos “tomar a seu cargo o sofrimento do homem que luta, descrever esse sofrimento e compreendê-lo de maneira que desse saber e dessa luta brote um homem novo” (MBEMBE, 2012).
Não é justamente tarefa da teologia responder com esperança de redenção os dramas históricos da humanidade? Não é justamente a metáfora do clamor dos oprimidos que sobe ao céus, registrada no livro de Êxodos 3. 7-8, que funda as diversas teologias da libertação? Não é tarefa da teologia escutar o gemido do mundo, que se debate entre rivalidade e doação desde a fundação dos tempos, como regista a narrativa do primeiro homicídio (cf. Gn 4. 1- 16), e anunciar o advento de uma humanidade única e reconciliada?
Há uma multiplicidade de usos de Fanon em diversas áreas do conhecimento das ciências humanas e inúmeras pessoas e coletivos de intelectuais foram e são influenciadas por Fanon[2]. Com efeito, tão diversos quanto os intelectuais em suas proposições são, também, os pressupostos teóricos/epistemológicos que sustentam suas posições. Por isso, se fala em “múltiplos fanonismos” (FAUSTINO, 2020, p. 77-110).
Entretanto, percebe-se que nesta multiplicidade de fanonismos não figura entre eles nenhum que se inscreva na tradição da teologia da libertação, embora Henrique Dussel e Paulo Freire - que têm uma estreita relação com a teologia da libertação – figurem nesta honrosa lista. Essa ausência de interlocução da teologia com Fanon e mesmo com o pensamento negro crítico, pode ser já algo sintomático, um limite da teologia em assumir o racismo como algo estrutural e estruturante do pensamento e da ação. Com efeito, foi esse diagnóstico que levou um grupo de padres e bispos negros católicos a tecer severas críticas à teologia da libertação em sua “opção preferencial pelos pobres” e, assim, lançar as bases para uma teologia afro-brasileira, isto é, uma teologia da libertação que assuma que há uma intrínseca relação entre ser pobre e ser negro.
Por isso, é importante a interlocução entre teologia e pensamento negro crítico, mais especificamente com Fanon, pois, além de acessar o real, ele pode, também, contribuir com a descolonização do cristianismo até que ele recupere a sua essência crítica, antissistêmica, revolucionária, comunitária e transformadora; visto que, ao ser colonizado pelo eurocentrismo, o cristianismo se tornou a “coluna vertebral” do mesmo e, assim, afastou-se de sua essência e tem servido como instrumento de massa de manobra para manter o status quo de uma sociedade maniqueísta, supremacista branca e injusta.
Está é uma aproximação inicial a proposta fanoniana e não tem o objetivo fazer uma exegese de Fanon. Há diversos intelectuais que têm se dedicado ao estudo de Fanon propriamente dito, aos quais invocaremos sempre que possível para nos ajudar na compreensão do sentido possível do pensamento do mesmo. Dentre esses intelectuais destacamos Deivison Mendes Faustino que é reconhecidamente um especialista em Fanon, que tem prestado um grande serviço à comunidade acadêmica ao socializar suas pesquisas por meio de minicursos e publicações[3]. Por outro lado, mesmo sendo uma interlocução inicial, reconhecemos que ler Fanon não pode ser reduzido a selecionar alguns aspectos de seus escritos, mas sim um compromisso com o conjunto de sua reflexão e sua biografia, pois não é possível dissociar vida e obra do autor, como vimos acima com Mbembe. Neste sentido, a interlocução proposta aqui é ainda seminal, na qual a autora está comprometida em ir aprofundando essa intuição e, sobretudo, no entendimento dos escritos de Fanon.
E em sintonia com os fundadores da teologia afro-brasileira, ressaltamos que a teologia aqui defendida se inscreve na corrente da Teologia da Libertação latino-americana e não tanto na corrente norte-americana de James Cone; reconhecemos que ambas têm muitas convergências, mas também divergências, sobretudo, em questões de método teológico. Isso não significa de Fanon não possa ser interlocutor da Teologia Negra norte-americana e, tampouco, negar as influencias desta corrente teológica no nosso quefazer teológico. Apenas consideramos importante demarcar o nosso lugar de fala e situar o leitor em nossa opção metodológica que busca desenvolver o Teoquilombismo como um quefazer teológico aberto à interculturalidade e à intersubjetivação[4] (CALDEIRA, 2021, p. 137-159).
Uma das questões fundamentais em Fanon é suas análises dialética - já presente em seu primeiro escrito, Pele negra, máscaras brancas, mas que vai atravessar todo o seu pensamento- sobre o fato de que “o colonialismo abrange tanto o impacto do mundo social sobre a emergência dos sentidos e identidades humanas quanto às situações individuais e coletivas de ressignificação histórica do mundo.” (FAUSTINO, 2018a, p. 148). Sendo tarefa da teologia enquanto uma ciência hermenêutica compreender o real, ela necessita de mediações sócio analíticas para acessar a realidade. Não apenas compreender o real, mas também transformá-la e, sobretudo, encontrar um sentido em meio ao sem-sentido da violência racial, do genocídio da população negra, do genocídio da população indígena etc. Daí a importância do pensamento negro crítico, de modo geral, e Fanon, em particular; caso a teologia queira mesmo renunciar o seu posto de coluna vertebral do eurocentrismo.
Essa leitura dialética que Fanon propõe parece importante para que a teologia repense a sua escatologia que se tornou coisa dos fundamentalistas e foi reduzida a uma questão para além-mundo, para depois da morte; fazendo com que a reconciliação seja algo impensável no plano do humano. Não iremos entrar explicitamente na discussão da escatologia, mas evidentemente ela está implícita. O que significa que Fanon nos ajuda a recuperar ainda mais o aspecto escatológico da fé cristã, no sentido já sinalizado pela teologia da libertação pós-moderna, de irrupção histórica da temporalidade kaiológica e messiânica por meio dos processos de subjetivação das vítimas (cf. CALDEIRA, 2019, p. 1- 25).
Com a mediação do pensamento negro crítico torna-se possível seguir pensando no processo do perdão, do ressentimento e da reconciliação para além da mera interioridade e na possibilidade histórica de vislumbrar a irrupção do novo mundo, da nova humanidade. Cabe ainda ressaltar que James Cone se debruçou bastante sobre o tema da reconciliação e que em outro momento esta autora invocará as contribuições do mesmo para o debate. Neste momento, o nosso interesse é seguir pensando na perspectiva inaugurada pela teologia da libertação pós-moderna em direção a um cristianismo decolonial. Esses temas tão cruciais para a teologia são, também, temas que, a nosso ver, atravessam o pensamento crítico de Fanon, nem sempre explicitados em categorias teológicas. E a maneira como ele os abordou pode nos ajudar a remover o véu que cobre as nossas consciências, tanto do negro aprisionado pelo olhar racista do branco quanto do branco preso em sua brancura; visto que o colonialismo, por meio do racismo, representa justamente uma fratura tal na humanidade jamais vista na história, que alterou a nossa concepção de humano, confundido-a com branquitude. O que impossibilita o reconhecimento de si e do outro.
Sabemos o quanto Hegel é importante para pensar o tema do reconhecimento e, também, o quanto ele foi importante para a fixação da estrutura racista do Ocidente, assim como toda a tradição filosófica moderna, fixando o real racista como racional, expulsando o negro da relação dialética. Hegel, por exemplo, dizia que os negros eram “estátua sem linguagem nem consciência de si; entes humanos incapazes de se despir de uma vez por todas da figura animal com a qual se confundiam.” (HEGEL apud MBEMBE, 2018, p. 30).
A liberdade requer um mundo de outros. Mas o que acontece quando os outros não nos oferecem reconhecimento? [...]. Na maioria das discussões sobre o racismo e colonialismo, há uma crítica da alteridade, da possibilidade de tornar-se o Outro. Fanon, entretanto, argumenta que o racismo força um grupo de pessoas a sair da relação dialética entre o Eu e o Outro, uma relação que é a base da vida ética [...]. A luta contra o racismo anti-negro não é, portanto, contra ser o Outro. É uma luta para entrar na dialética do Eu e do Outro (GORDON, 2008, p. 16).
Essa citação do filósofo jamaicano Lewis Gordon, ao fazer a introdução de Pele Negra, máscaras brancas, fala exatamente do diagnóstico fanoniano sobre a interdição da dialética no mundo colonial. Ao criar uma cisão no mundo, o racismo separa a humanidade entre humanos e sub-humanos, de maneira que fica impossibilitada a reciprocidade fundamental que pressupões a dialética para o reconhecimento de si e do outro como sujeito de igual dignidade.
É, mais especificamente, no último capítulo de Pele negra, máscaras brancas intitulado “O preto e o reconhecimento”, que Fanon vai discorrer na parte “B” sobre “O preto e Hegel”, onde começa cintando a Fenomenologia do Espírito de Hegel: “A consciência de si é em si e para si quando e porque ela é um si e para si uma outra consciência de si; isto quer dizer que ela só é enquanto ser reconhecido” (Hegel apud FANON, 2008, p. 180).
Deivison Faustino argumenta que Fanon não rechaça a dialética hegeliana; antes, faz uma “apropriação transfigurada (canibalizada) da dialética” (FAUSTINO, 2021, p.445-451). Neste sentido, assim como Hegel, Fanon segue afirmando que a identidade se constroi na relação de reciprocidade com o outro:
O homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro homem, a fim de ser reconhecido. Enquanto ele não é efetivamente reconhecido pelo outro, é este outro que permanece o tema de sua ação. É deste outro, do reconhecimento por este outro que dependem seu valor e sua realidade humana. É neste outro que se condensa o sentido de sua vida (FANON, 2008, p. 180).
Apesar de partir do reconhecimento como reciprocidade, Fanon afirma que na experiência de sociabilização colonial a dialética não pode se efetivar porque o negro da colônia difere do servo em Hegel, visto que este disfruta de uma igualdade para com o senhor no que tange a dignidade humana, já aquele foi assujeitado pela colonização, foi “rebaixado de sua humanidade para o nível da animalidade objetificada”, reduzido à uma subontologia, coisificado. Sem condições de construir a sua identidade diante de um Outro como elemento constitutivo do Eu, o negro além de depender do olhar deformante do branco para compor a sua própria imagem e assistir o desmoronamento do próprio ego que, resultando na duplicação da consciência de si mesmo, conforme descreveu Du Bois, acaba direcionando as suas atividades pulsionais a si próprio[5]; como uma espécie de autoódio como um dos complexos germinados no contexto colonial que é preciso superar por meio da luta descolonial.
Estando, portanto, a dialética interditada no mundo colonial, Fanon acredita que o desafio está em fazer com que o negro (homem de cor) se torne um agente em sua própria libertação; pois compreende que fora desta luta descolonial não é possível chegar ao reconhecimento de si mesmo. Por isso o desafio está em “conduzir o homem a ser acional, mantendo na sua esfera de influência o respeito aos valores fundamentais que fazem um mundo humano, tal é a primeira urgência daquele que, após ter refletido, se prepara para agir.” (FANON, 2008, p. 184).
Enquanto médico psiquiatra Fanon dedicou-se, sobretudo, ao cuidado do sujeito colonizado e pôde diagnosticar as “diferentes posições que o preto adota diante da civilização branca.” (FANON, 2008, p. 29). Mais que diagnosticar, Fanon queria mesmo era “ajudar o negro a se libertar do arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial.” (FANON, 2008, p. 44). E ao fazer uma leitura dialética da situação colonial, Fanon coloca em relevo os aspectos subjetivos e objetivos da dominação colonial e, assim, coloca as coisas em seu devido lugar, isto é, explicita que os complexos do negro, atribuídos como características essenciais do negro, na verdade, têm causas exteriores. Nesta leitura dialética da história, Fanon constata as origens sociais do sofrimento psíquicos.
Se ele se encontra a tal ponto submerso pelo desejo de ser branco, é que vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica (FANON, 2008, p. 95).
Diante deste diagnóstico, para levar a cabo a desalienação, em Pele negra, máscaras brancas, Fanon lança mão da “sociogenia” como método sociodiagnóstico para analisar e intervir na experiência vivida dos sujeitos negros racializados/colonizados e submetidos à desumanização. Fanon compreendia que tanto o problema do sujeito cindido quanto a sua libertação era uma questão social. Daí a importância da “sociogenia” que, segundo Faustino, é a base estruturante de toda a proposta teórica de Fanon (FAUSTINO, 2018a, p. 148-150). Isso significa que se a alienação é consequência das intervenções desumanas da sociedade, sua superação passa pela transformação da estrutura social. Este é, com efeito, uma importante constatação, visto que comumente defendemos a simples inclusão dos oprimidos nas estruturas já existentes, o que mantém intacto as estruturas de dominação. E por muitas vezes estamos convencidos que o problema da alienação é puramente de ordem subjetiva. Seguindo nesta leitura histórica e social de problemas que eram reduzidos ao âmbito do individual, em Pele negra, máscaras brancas, Fanon explica o porquê da sociogênesis:
Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é só uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo [...] digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sociodiagnóstico. (FANON, 2008, p. 28).
Embora a psicologia filogenética ou constitucional, que relacionava o comportamento humano à morfologia e à fisiologia traçando uma correlação entre o perfil corporal e as características psicológicas dos sujeitos, tenha sido superada por Freud; Fanon acreditava que era preciso ir além da dimensão psicoafetiva do desejo, situando-o no contexto histórico e social concreto. Trata-se de situar as implicações traumáticas do colonialismo para a subjetividade negra em suas determinações historicamente concretas, isto é, a modernidade capitalista e a sua pulsão de reificação do outro. Por isso:
[...] permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo: inicialmente econômico; em seguida, pela interiorização, ou melhor, epidermização dessa inferioridade (FANON, 2008, p. 28).
Isso não significa que essa tomada de consciência deva restringir-se apenas a dimensão econômica da dominação, pois mesmo a dialética no sentido marxista opera com restrições na situação colonial; onde a racialização constitui o marcador por excelência da população. Tanto em Pele negra, máscara branca como em Os condenados da terra, Fanon denuncia a cisão que opera o mundo colonial e, portanto, o marxismo deve ser estendido, pois no contexto colonial fica nítido que o que primeiro fragmenta o mundo, não é a classe, é o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma superestrutura.
Quando nos apercebemos, na sua imediatidade, do contexto colonial, é evidente que o que divide o mundo é, em primeiro lugar, o pertencer ou não a determinada espécie, a determinada raça. Nas colônias, a infraestrutura económica é também uma superestrutura. A causa é efeito: é-se rico porque se é branco, é-se branco porque se é rico. Daí que as análises marxistas devam ser sempre ligeiramente distendidas de cada vez que se aborda o problema colonial (FANON, 2021, p. 44).
Por meio da sociogenia busca-se restaurar a humanidade, por meio da autodeterminação e autoliberação, isto é, facilitar a formação da subjetividade, autorreflexão e práxis de libertação. Trata-se de capacitar o sub-outro a tomar uma posição, na qual ele ou ela pode reconhecer e fazer as coisas por si mesmos. Nisto consiste o radicalmente novo na sociogenia de Fanon: a “invenção da existência”, que deve ser entendida como criação que é a capacidade principal da parte ativa do ser, da prática de liberdade, de criar, de inventar e de viver em harmonia com os outros, isto é, ser radicalmente humano (WALSH, 2013, p. 44-46)
[...] esqueceram a constância do meu amor. Eu me defino como tensão absoluta de abertura. (FANON, 2008, p. 124).
Para Fanon, entretanto, a percepção e a afirmação de si não deveriam implicar no fechamento ao outro, antes haveria de ter o esforço constante para identificar elementos que lhes são comum (FAUSTINO, 2018b, p. 127). Um dos grandes problemas que envolve a experiência de valorização da identidade negra, que Fanon percebeu nos antilhanos, mas que pode ser identificado também em movimentos de libertação afrodiaspóricos, reside na afirmação de uma suposta essência africana, pois uma compreensão essencialista da identidade pode incorrer no mesmo problema que se deseja superar, isto é, uma concepção universalista da identidade que chega ao ponto do rechaço do outro que não se identifica com ela, mantendo o eterno círculo de inimizade, do ódio e do ressentimento.
Neste sentido, Fanon fez severas críticas à tendência da afirmação unilateral da cultura outrora negada pelo colonialismo. É certo que a estigmatização e a negação da cultura dos povos colonizados e, evidentemente, do próprio colonizado, deve ser enfrentada na luta descolonial para desmontar a falácia da superioridade ética e estética da cultura ocidental. E evidente que não se pode negar o valor subjetivo de uma volta à própria cultura, outrora negada e rechaçada pelo próprio colonizado no desejo de “tornar-se branco”, ou melhor, no desejo de habitar o mundo branco. A questão é que uma afirmação unilateral, do mesmo modo que sua negação unilateral, guarda uma perigosa armadilha. Ora, a cultura, enquanto um determinado jeito de ser e estar no mundo, só faz sentido na medida que é assumida como “aberta, percorrida por linhas de força espontâneas, generosas, fecundas” (FANON, 1980, p. 38). E estancar esse dinamismo da cultura foi o que fez o colonialismo, por meio de um estrangulamento sistemático, fechando e catalogando a cultura do colonizado como peça de museu (FAUSTINO, 2018b, p. 89). Tal procedimento é tão importante para a dominação colonial quanto a inferiorização dos colonizados, visto que a mumificação cultural conduz à uma “mumificação do pensamento individual” (FANON, 1980, p. 38).
Tanto em Os condenados da terra quanto em Pele negra, máscara branca, o que Fanon critica é a visão essencialista que o negro cultiva de si mesmo como uma reação ao racismo antinegro: o “branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negrura” (FANON, 2008, p. 27). Diante do não reconhecimento do branco, o negro na busca por autodeterminação e reconhecimento corre o risco de se perder nas armadilhas criadas pelas contradições que ele deseja superar. O caso mais explícito disso, que Fanon conhece bem, é a afirmação da negritude que acaba assumindo a premissa do racismo de que o negro é diferente do branco; porém é superior que o branco. Neste sentido que Senghor irá afirmar que a “Emoção é negra” e a “Razão é helênica” (cf. FAUSTINO, 2013, p. 121-123), como uma espécie de antítese do colonialismo, uma negação da civilização branca. O fato é que, em Fanon, o “negro não existe. Não mais que o branco”. Discorrendo sobre essa crítica fanoniana, Armando de Melo Lisboa diz que:
Sua dura crítica do racismo às avessas e dos maniqueísmos esterilizadores fica transparente tanto nos ‘Condenados da terra’ [...] quanto em ‘Pele negra, máscara branca’ [...]. Essa última obra adverte que o negro, sendo ‘uma construção do branco’, ‘se joga no grande buraco negro’ no qual ‘rejeita a atualidade e o devir em nome de um passado místico’ [...]. Prognostica que, enquanto os negros compreenderem sua condição humana a partir da assunção da epidermização em que foram enquadrados e lhes inferiorizou, enquanto assumirem que sua pele negra os identifica e continuarem a se ver racializados, permanecerão capturados pelo olhar racial europeu e prosseguirão vendo-se a si mesmos pelos olhos brancos, ou melhor, das máscaras brancas desse deformante olhar (LISBOA, 2019, p. 113).
Achille Mbembe recupera esse olhar clínico de Fanon diante da realidade do calabouço das aparências, cujo único remédio para brancos e negros saírem da doentia jaula do racismo - onde estão enclausurados e da qual surgem como versões do mesmo distúrbio patológico -, é erradicar a crença em “raças” e renunciar o uso do venenoso léxico cromatológico para se auto identificarem (MBEMBE, 2018, p. 12 apud LISBOA, 2019, p. 113).
A luta de libertação da condição colonial visa “passar do estado animal ao humano” e, assim, libertá-lo da pseudo pele ontológica que o branco lhe impôs e reintegrá-lo simplesmente como ser humano; processo que poderá reabilitar também o próprio verdugo (LISBOA, 2019, p. 113). Neste horizonte, para Fanon o conceito de humano e de humanidade não existe a priori, terão de fazê-los surgir. Aquilo que o Ocidente costumou chamar de humano, para Fanon não passa de branquitude. Isso significa reconhecer que não apenas a identidade negra é racializada, mas também a identidade branca. E sair das regiões estéreis e áridas da existência, comenta Achille Mbembe, é antes de mais nada sair da clausura da “raça”; cuja clausura o olhar do Outro e o poder do Outro buscam encarcerar o sujeito. Superando o complexo da raça, aparece o eu fanoniano, na qual não há uma identidade pré- definida, mas apenas abertura radical.
É por essa razão que o eu fanoniano é fundamentalmente abertura, distinção e afastamento – o Aberto. Isso logo evoca essa região árida da existência que é a raça. Para Fanon, a declosão do mundo pressupõe a abolição da raça. Ela só pode ocorrer se admitirmos a verdade segundo a qual “o negro não existe. Não mais que o branco; o negro é um ser humano parecido com os outros, um ser humano como os outros, um ser humano entre outros seres humanos.” (MBEMBE, 2019, p. 72).
No artigo Teologia negra: a fenomenologia do damné como caminho de humanização, como uma primeira proposta de interlocução entre teologia pós-moderna e pensamento decolonial, sinalizamos que a nossa comum humanização passa pela práxis dos condenados da terra (CALDEIRA, 2018, p. 1270-1299). Fulcral no cristianismo pós- moderno é a proposta de uma ontologia relacional na gratuidade para vislumbrar a nossa comum humanização. Fanon mesmo afirmou que “qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada” (FANON, 2008, p. 103). Se uma ontologia relacional é fundamental, esta não pode prescindir da “interdição da dialética”; mas, deve ir além da reciprocidade para aterrizar no estágio da gratuidade. Talvez aqui a razão teológica possa contribuir para o debate do mútuo reconhecimento na gratuidade, a saber, o estágio do messiânico.
A partir da filosofia da libertação, Henrique Dussel, em seu artigo “Descolonização epistemológica da teologia” (2013, p. 19-30), afirma que uma teologia descolonizada implica na superação da cristandade monocultural e imperial e na reabilitação do messianismo originário. A partir da razão teológica em chave fenomenológica e desconstrucionista, ou seja, na interlocução entre teologia e filosofia pós-moderna, a reabilitação do messianismo originário denota o movimento de volta a coisa mesma da fé cristã. E a coisa mesma da fé cristã, por sua vez, designa o perdão e o nascimento da identidade relacional. Sob o marco da racionalidade pós-moderna, o teólogo mexicano Carlos Mendoza Álvarez inseriu o cristianismo hegemônico em sua própria desconstrução como um imperativo ético e ontológico para conduzir à reabilitação do messianismo originário (cf. MENDOZA ÁLVAREZ, 2010). Desconstruído o cristianismo de sua pretensão de totalidade que caracterizou a cristandade monocultural e imperial, em um marco fenomenológico, mimético e desconstrucionista, a reabilitação do messianismo originário acontece sob o signo da temporalidade messiânica e kariológica, isto é, uma nova ordem de existência ontologicamente reconciliada inaugurada pelo Messias Jesus (CALDEIRA, 2018, p. 1270-1299). Trata-se da concretização histórica da fé nos atos de extrema gratuidade realizados pelas vítimas perdoadoras, a saber, aqueles que conseguiram superar o ódio e o ressentimento e se entregarem como per-dón.
O messianismo interpretado nesta perspectiva pós-moderna assume, pois, o rosto de uma existência vivida até o extremo de si mesmo, como uma subjetividade afetada pela presença da “vítima perdoadora”, isto é, pela densa presença do Cristo que vive o desejo como pura doação. Trata-se de uma subjetividade que vive a temporalidade redimida de sua violência fraticida e sororicida. Sendo, pois, o messianismo uma ordem de existência vivida sob o signo da gratuidade, a universalidade da mensagem de Jesus de Nazaré deve ser vivida por uma subjetividade que superou o ódio e o ressentimento, vivendo como uma subjetividade doadora (CALDEIRA, 2019b, p. 1-25).
A teologia pós-moderna enquanto instância crítica à razão moderna, afirmou a impossibilidade de falar de Deus e do humano fora do marco da fenomenologia, visto que a experiência de devir humano se encontra intrinsecamente relacionada com o devir divino no mundo. Daí a afirmação da subjetividade radicalmente aberta à diferença e à alteridade como a interlocutora privilegiada de Deus, compreensível apenas à luz da kénosis divina.
Importa recordar, também, que o núcleo da mensagem cristã reside no advento da nova humanidade e, sob o binômio kénosis/theosis, o evento salvífico deve ser assumido como um processo de humanização[6]. O racismo, por sua vez, consiste exatamente numa prática sistemática de desumanização, uma violação constante e permanente da dignidade humana inerente a todo ser humano criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gên 1.26).
Com isso, torna-se possível pensar a concreção histórica da redenção divina que acontece concomitante aos processos de subjetivação dos justos e das vítimas da história violenta da humanidade, quando elas alcançam o estágio mais elevado da subjetividade, isto é, a sua significação messiânica.
Nesta perspectiva de um cristianismo pós-moderno, o messianismo emerge como um modo de ser-no-mundo para além da essência; onde o messianismo não é outra coisa que a existência que vive a temporalidade messiânica e kairológica, na qual a redenção chega como “fagulhas” no coração da história violenta da humanidade, que se debate entre rivalidade e doação (cf. MENDOZA ÁLVAREZ, 2015). A redenção chega, portanto, por meio dos gestos de extrema gratuidade das vítimas da história, que indo muito além da mera reciprocidade – típica da dialética hegeliana – e supera-se o ódio e o ressentimento; abrindo, assim, passagem para a instauração da intersubjetividade enquanto estágio harmonioso do mútuo reconhecimento na gratuidade; por isso é da ordem do dom (CALDEIRA, 2018b, p. 141-159).
Para dar conta, pois, da superação da violência intersubjetiva e o advento de um mundo novo, a teologia da libertação pós-moderna propugna uma ontologia relacional da gratuidade por meio da qual o estágio do mútuo reconhecimento chega através do perdão oferecido gratuitamente pelas vítimas dos sistemas totalitários e, quem sabe, abre-se à reconciliação. Isso significa que a nossa comum humanização está enlaçada a superação do ódio, do ressentimento e perdão das vítimas históricas que se oferecem como dom aos outros (per-don).
Com efeito, não parece ter outra saída para todos nós fora de uma ontologia relacional da gratuidade. Inclusive uma ontologia relacional na gratuidade faz muito sentido para as cosmo percepções africanas, pois, como recorda Mbembe, nas antigas tradições africanas “o ponto de partida da interrogação acerca da existência humana não é a questão do ser, mas a da relação, da implicação mútua, ou seja, da descoberta e do reconhecimento de uma outra carne diferente da minha” (MBEMBE, 2017, p. 51). Também a filosofia do ubuntu parece denotar essa perspectiva de uma ontologia relacional quando afirma que “Ubuntu pode ser traduzido como ‘o que é comum a todas as pessoas’ A máxima zulu e xhosa, umuntu ngumuntu ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas) indica que um ser humano só se realiza quando humaniza outros seres humanos.” (NOGUEIRA, 2012, p. 147-150).
Eis, portanto, a importância de seguir falando em ontologia relacional e na gratuidade. Evidentemente, a proposta de uma ontologia relacional indica uma ruptura epistemológica em relação à ontologia da substância, cuja característica fundamental é a substância e não a relação (cf. KNAUER, 2012, p. 19-41). Trata-se, com efeito, do núcleo de uma problemática pouco trabalhada no pensamento teológico negro, isto é, a possibilidade de instauração da intersubjetividade enquanto estágio harmonioso do mútuo reconhecimento, por meio da superação do ódio e do ressentimento; para além da reciprocidade.
Do ponto de vista teológico, a inauguração da ontologia relacional na gratuidade aconteceu com a ressurreição da vítima-perdoadora, o Messias Jesus, ao aparecer para as discípulas e discípulos e revelar-lhes que de suas chagas brotam a vida (cf. Isaías 53.5) (cf. MENDOZA ÁLVAEZ, 2015).
No cristianismo pós-moderno a reconciliação aparece como um estágio harmonioso do mútuo reconhecimento, isto é, o estágio da intersubjetividade, o messiânico em linguagem judaico-cristã. Um horizonte aberto somente por meio do perdão oferecido pelas vítimas dos sistemas totalitários, que assume a sua vulnerabilidade até o extremo e oferecem-se como dom. Nesse horizonte, o perdão vai muito além da mera interioridade e da reivindicação da justa justiça; antes, o perdão é – da ordem da doação – dom aos outros (per-dón, em espanhol) (ANDRADE, 2007). Isso não significa abrir mão da justiça para a vítimas da história violenta – justiça que deve ser entendida no sentido mais concreto possível-; mas transcendê-la para abrir o horizonto da reconciliação.
Por isso, na perspectiva negra, falar de perdão sem considerar o racismo estrutural e estruturante – como o sistema de permanente desumanização – sempre soará como uma atitude de ajustamento e de submissão; uma forma de escapismo que deseja manter a pessoa negra na subcondição. Trata-se, na perspectiva fanoniana, de uma falsa reconciliação, pois não busca restaurar as condições materiais para a possibilidade de amar que foram negadas. O teólogo Joseph Drexler-Dreis fazendo uma recepção de Fanon pela teologia afirma:
Aplicada à reconciliação, a restauração das condições em que o amor pode emergir representaria [...] uma situação reconciliada; qualquer coisa que compromete as condições que possibilitam a alguém amar o outro é uma reconciliação fácil demais [...]. Estas pseudorreconciliações vêm tanto através de uma demanda da parte dos colonizadores quanto de um desejo da parte dos colonizados de vestir uma máscara branca (DREXLER- DREIS, 2013, p. 124).
Neste sentido, o perdão está intrinsecamente vinculado à restruturação do mundo e nossa elevação em humanidade.
Diante do permanente processo de desumanização a qual a população negra é submetida, a teologia negra emerge para denunciar a impossibilidade de falar/imaginar o advento da nova humanidade, discurso central do cristianismo, sem considerar a exclusão ontológica e epistêmica de uma porção considerável da humanidade que foi reduzida a subhumanidade por meio do racismo. A teologia mostra a sua pertinência e significância ao entrar em interlocução com o pensamento negro crítico, de modo especial com Frantz Fanon, para desvelar o caráter objetivo e subjetivo da dominação. E assim reconhecer quão enlaçado está o racismo com a exploração das populações não-brancas. E falar, portanto, de perdão em sociedades contemporâneas não pode estar desvinculado da luta pela transformação concreta das estruturas de poder. E tampouco se pode falar em transformação de estruturas sem propugnar a descolonização das subjetividades, quer sejam brancas quer sejam não-brancas. O perdão não pode prescindir da justiça para as vítimas do racismo, que implica a destruição das estruturas de dominação que tem na racialização (racismo)o seu eixo fundamental. Em meio a luta pela implosão dessas estruturas de poder, vamos também nos reerguendo em nossa humanidade.