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MULHERES NEGRAS E RESILIÊNCIA: aprendendo com orixá Oxum
BLACK WOMEN AND RESILIENCE: learning from orixá Oxum
MUJERES NEGRAS Y RESILIENCIA: aprendiendo de orixá Oxum
Interações, vol. 17, núm. 1, pp. 34-53, 2022
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS



Recepción: 10 Marzo 2021

Aprobación: 01 Diciembre 2021

Resumo: As mulheres negras experienciam, cotidianamente, situações de opressão, seja pelo preconceito e discriminação racial, seja pelo de gênero, o que as coloca em constante conflito e sofrimento psíquico. Diante disto, este ensaio pretende refletir sobre a possibilidade de as religiosidades afro-brasileiras, em destaque, o candomblé, se constituírem como um território promotor de saúde mental, uma vez que oferecem um repertório simbólico importante para a promoção de comportamentos resilientes diante das adversidades. Serão analisadas três narrativas míticas sobre a orixá Oxum, divindade dos rios e das cachoeiras, compreendendo-as como potenciadoras de capacidades e qualidades, que podem produzir novos sentidos e ações de resistência.

Palavras-chave: Mulher negra, Candomblé, Oxum, Resiliência.

Abstract: Black women experience, everyday, situations of oppression, either by prejudice and racial discrimination, either by gender, what puts them in a constant conflict and psychological distress. Given this situation, this essay will reflect on the possibility of Afro-Brazilian religions, mainly candomblé, to offer a territory promoting mental health, as it offers an important symbolic repertoire for the promotion of resilient behavior in the face of adversity. Three mythical narratives about the orixá Oxum, divinity of the rivers and the waterfalls, will be analyzed here, understanding them as potentiating capacities and qualities that can produce new meanings and actions of resistance.

Keywords: Black women, Candomblé, Oxum, Resilience.

Resumen: Las mujeres negras viven a diario situaciones de opresión, ya sea por prejuicios raciales y discriminación, o por género, lo que las pone en constante conflicto y sufrimiento psicológico. Ante esto, este ensayo pretende reflexionar sobre la posibilidad de que las religiones afrobrasileñas, em particular, el candomblé, se constituyan como un territorio que promueve la salud mental, ya que ofrecen un importante repertorio simbólico para la promoción de conductas resilientes en el rostro. de la adversidad. Se analizarán tres narraciones míticas sobre el orisha Oxum, divinidad de los ríos e de las cascadas, entendiéndolas como potenciadoras de capacidades y cualidades, que pueden producir nuevos significados y acciones de resistencia.

Palabras clave: Mujer negra, Candomblé, Oxum, Resiliência.

1 INTRODUÇÃO

Existem várias definições para o fenômeno denominado resiliência. Conforme Bianchini e Dell”Aglio (2006), são experiências de sujeitos que enfrentam adversidades diárias, todavia incluem a proteção e meios de seu âmbito e suas próprias competências para vivenciar suas histórias de vida. Esse fenômeno é atribuído às pessoas que são capazes de desenvolver características positivas em situações difíceis, revertendo essas positividades para o seu bem-estar psíquico e emocional.

Diferentes pessoas podem vivenciar o mesmo evento estressor de formas diferentes, por isso a resiliência será um fenômeno que vai variar individualmente, apesar de não estabelecer um traço individual. Contudo, a resiliência não pode ser considerada como uma característica fixa da pessoa, como traço de personalidade. Ela tenderá a se alterar de acordo com a mudança das circunstâncias envolvidas na história de vida de cada sujeito, considerando os diferentes contextos em que ele vive. Para Rutter (1985), resiliência como conceito, se apresenta como um grupo de sistemas sociais e intrapsíquicos que fortalecem a pessoa em situações desfavoráveis, ajudando-o a seguir em suas experiências e tarefas cotidianas, sem se sucumbir à depressão, ao suicídio ou a uma vida sem sentidos (RUTTER, 1985).

Quanto à relação entre resiliência e crenças religiosas, estudos apontam que estas podem proporcionar comportamentos resilientes diante de vários fenômenos da vida humana. Tais como propiciar o aumento do propósito e significado da vida diante de situações de perda e grande sofrimento, diante de doenças graves e da finitude. Nesse sentido, Chequini (2007) diz que os sistemas de crenças possibilitam a ressignificação de experiências de adversidade a partir de um ponto de vista de transcendência e espiritualidade. A autora relata que a espiritualidade compreende algo que compõe a essência humana e nos permite estar em harmonia com o mundo, assim possibilitando a resiliência.

Outros autores também seguem nesta direção, considerando a fé, a crença no transcendente, a espiritualidade, as práticas religiosas, como sendo importantes dimensões no desenvolvimento da resiliência (ARAÚJO; MELLO; RIOS, 2011). A religiosidade e suas práticas são capazes de promover atitudes positivas, autoconfiança e reflexão existencial diante das adversidades, contribuindo para a superação dos traumas psicológicos e capacitando as pessoas para seguir suas vidas como maior segurança.

Um importante elemento para que ocorra a resiliência é a adversidade, pois é ela que aciona a criatividade e os recursos que a pessoa tem para enfrentar a realidade e transformá- la. A adversidade instiga o sujeito, ou toda uma coletividade, a buscar por soluções para lidar com o sofrimento pelo qual atravessam (CHEQUINI, 2007).

Considerando o campo religioso e a adversidade, as religiões afro-brasileiras são exemplos de luta e resistência contra o sistema opressivo da escravização, desse momento adverso que foi a diáspora negra. Ela envolveu a imigração forçada de milhares de homens e mulheres oriundos de diversas sociedades africanas obrigando-os a sustentar o regime escravocrata que envolvia o monopólio de cultivos da metrópole portuguesa. Os escravizados foram alvo de extremas violências que buscavam atingir além de seus corpos, suas identidades raciais, inferiorizando-as, e suas identidades étnicas, através da demonização e perseguições com vistas à condenação das tradições de origens africanas no Brasil (NOGUEIRA, 2020).

No entanto, apesar do racismo religioso, as religiosidades de matriz africana sobreviveram a partir de um intenso processo de resistência cultural que envolveu a reinterpretação do sagrado. Nessa reinterpretação foram possíveis dois movimentos, o de dar continuidade às suas crenças religiosas e, ao mesmo tempo, através do hibridismo cultural, reler e integrar aspectos de outras religiosidades às suas crenças de origem, como a católica, indígena e espírita.

Desde a sua origem, as casas, onde se realizavam os cultos individuais, e posteriormente os terreiros, que integraram o culto a diversas divindades, foram espaços de encontro para rememorar, celebrar e festejar as divindades africanas e afro-brasileiras, assim como um espaço de refúgio para os escravizados que fugiam da violência dos senhores. A reinvenção das religiões africanas no Brasil ocorreu não só como uma forma coletiva de resistência cultural, “mas, em primeira instância, como uma necessidade para enfrentar o infortúnio ou os tempos de experiência difícil, dos quais a escravidão é sem dúvida um dos casos mais extremos.” (PARÉS, 2020).

A marca africana teve início com o calundu colonial, termo banto que estaria presente na região da Bahia do século XVII até meados do século XVIII, e que designava uma variedade de práticas religiosas que incluíam elementos das religiosidades indígenas brasileiras. Paralelo aos calundus se organizavam os batuques de divertimento e as folias das irmandades católicas, com a forte participação dos africanos e seus descendentes nascidos no Brasil em todas essas manifestações. Como nos diz Luis Nicolau Parés (2020), o sincretismo afrocatólico do candomblé contemporâneo tem suas raízes na duplicidade de práticas que surgiram no século XVII e se desenvolveram no século XVIII.

A institucionalização das religiões afro-brasileiras aconteceu aos poucos, com a crescente complexidade dos cultos que incluíram as práticas iniciáticas e o culto a várias divindades em um mesmo terreiro, além dos rituais de cura e adivinhação já presentes nos calundus. A partir de 1860, o candomblé tinha atingido um nível de institucionalização comparável ao que existe hoje, contando para com sua formação com a contribuição cultural do povo africano, indígena e afro-brasileiro. (DIAS, 2016). Compreendemos como candomblé o culto afro-brasileiro que preserva em sua essência rituais africanos adaptados ao contexto da realidade brasileira. De acordo com Lody (1987), o candomblé possui a função de manter as memórias africanas reelaboradas no contexto afro-brasileiro. O candomblé busca preservar traços africanos na língua, na música, nas denominações das comidas, e nos rituais que visam a manter e fazer circular o axé. Outro fator que caracteriza o candomblé é a aproximação de uma estética africana, tanto nos rituais, como nos paramentos e vestimentas dos orixás. O candomblé, então, pode ser identificado como uma religião de culto aos orixás.

Os orixás são divindades africanas, trazidas pelos africanos que aqui chegaram e permaneceram sendo cultuados por seus descendentes. Denominamos de panteão o conjunto dos orixás que são cultuados nos terreiros. Os orixás incorporam nos praticantes iniciados que são denominados de filhos de santo. A palavra santo faz referência ao tempo da escravização no qual o culto era proibido e era necessário fazer uso do sincretismo religioso, desta maneira os orixás eram cultuados de forma oculta atrás de imagens de santos católicos. Os africanos, então, trouxeram da África sua sabedoria ancestral religiosa, que foi adaptada à realidade do cotidiano na colônia escravista. Tais conhecimentos foram perpassados aos descendentes nascidos no Brasil, que mantiveram a tradição até os dias atuais.

As religiões afro-brasileiras se desenvolveram em todos os estados brasileiros, fazendo com que os cultos adquirissem características regionais específicas. Tem-se assim, o candomblé na Bahia, o batuque no Rio Grande do Sul, o xangô em Pernambuco, o Tambor de Mina no Maranhão e no Pará. Não cabe aqui desenvolver o tema, mas para registrar, outras denominações religiosas foram documentadas ao longo da formação do referido campo religioso, como a cabula e a macumba, que se desdobraram, a partir do século XX, no que conhecemos hoje por umbanda.

É a partir disto que este trabalho propõe uma reflexão sobre os mitos da orixá Oxum e o conjunto de elementos simbólicos positivos que estas narrativas oferecem, contribuindo para com o fortalecimento psíquico das mulheres negras em situação de opressão, e que depositam suas crenças nas divindades de ancestralidade africana.

2 RESILIÊNCIA E MULHERES NEGRAS

As mulheres africanas, que chegaram ao Brasil escravizadas, eram muito diferentes em seus costumes e formas de vida. Isso ficou bem destacado nas formas que desenvolveram para sua sobrevivência. Aqui chegando desenvolveram-se com destaque no comércio de rua, costume oriundo das terras africanas nos quais as mulheres eram reconhecidas como grandes comerciantes e negociantes. Em África, as mulheres já possuíam liberdade e comandavam em seus reinos, eram mestres nas artes militares, assim como líderes na política, na economia, no comércio e na religião (CLARKE, 1984).

No início do século XIX, houve um aumento do processo de urbanização das cidades, esse cenário facilitou a emergência do comércio de rua. Por isso, as negras escravizadas passaram, então, a trabalhar como vendedoras ambulantes de produtos variados, o que lhes conferiu autonomia e recursos, o que às vezes lhes proporcionava abrir seus próprios negócios. Neste período, porém, havia uma grande demanda de trabalho de agricultura e pecuária de subsistência. Isto possibilitava às cativas possuírem pequenas propriedades no interior das fazendas. Já nas senzalas, por meio da tradição da oralidade, as mulheres repassavam o conhecimento oral de técnicas e cura por meio de ervas medicinais, realização de partos, as benzeções e práticas religiosas. O trabalho urbano das cativas proporcionou muitos benefícios para os seus proprietários, permitindo-lhes uma renda semanal oriunda de seu trabalho. Muitas delas além de dar aos senhores a quantia requisitada pelo trabalho ainda conseguiam acumular valores que lhe possibilitassem comprar sua alforria, assim como a de filhos e companheiros. (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007).

Muitas das libertas que eram donas de seu próprio negócio quanto mais bem sucedidas mais ostentavam em tecidos, joias e utensílios caros que representavam não só uma estética como também conquista e sucesso profissional. Assim como também em seus tabuleiros, elas levavam símbolos religiosos que expressavam sua ligação com o sagrado. Esses momentos de trânsito urbano eram utilizados para criar redes de comunicação e articulação. As atividades dessas mulheres foram essenciais para marcar a importância do papel da mulher negra na reorganização da população africana em diáspora (NOVAES, 2017).

Além da participação nas revoltas, as quitandeiras. também chamadas de negras de tabuleiro, eram consideradas uma ameaça nas áreas de mineração pois ajudavam no extravio de ouro e diamantes para contrabando. Em Minas Gerais, várias foram, portanto, as medidas realizadas no sentido de tentar controlar e vigiar as ações destas mulheres. Tais medidas visavam impedir o comércio próximo às áreas de mineração, como também a proibição de circulação de escravizados(as) à noite. Negros (as) libertos (as) eram proibidos (as) de receber em suas casas negros (as) escravizados (as). Essas casas eram comércios bem-sucedidos, mas eram também abrigos de negros fugidos, locais para esconderijo de utensílios furtados assim como ponto de passagem de quilombola (FIGUEIREDO, 2017).

Esse pequeno percurso histórico das mulheres negras no Brasil já aponta para sua capacidade de resistir à opressão, de se organizarem, de contribuir e serem solidárias com seu grupo social. De acordo com pesquisa realizada por Prestes (2013), sobre a resiliência de mulheres negras, a transmissão psíquica tem grande contribuição no processo de resiliência dessas mulheres. Segundo essa autora, tal transmissão ocorre de geração a geração, podendo ser passada tanto das mais velhas para as mais novas, quanto das mais novas para as mais velhas. A autora ressalta que não apenas as experiências vividas servem de base para os conteúdos transmitidos, mas também as formas de pensar, as emoções e sensações envolvidas. A história da população negra foi preenchida por elementos omitidos e distorcidos. Foi negado às negras e aos negros o direito ao nome, aos costumes e sua religiosidade. Tal fato fez com que as experiências individuais fossem complementadas por outros subsídios, promovendo uma transformação dos elementos para que pudessem resistir. Prestes (2013) destaca a importância da transmissão de elementos de resiliência tanto de mães para filhas, como de filhas para mães. Outro fator citado por tal autora são os simbolismos. Tais fatores estão relacionados a forma como as comunidades de origem vão influenciar nas atitudes e na autoimagem destas mulheres. Principalmente em relação aos seus pertencimentos, seja ao perfil de mulher negra, seja em relação às manifestações de origem negra. Esses pertencimentos promovem na pessoa uma ligação com tal grupo, promovendo identificação com as características somadas a seu perfil pessoal. Um exemplo é o simbolismo da mulher negra como forte e guerreira. Mesmo sendo uma construção social e não um fenômeno natural, sabemos que essa é uma manifestação presente no imaginário coletivo.

Davis (2016), também ressalta o fato de que no período escravista as mulheres negras tinham que fazer o mesmo trabalho destinado aos homens sem distinção de cargo ou quantidade por gênero. Para tanto podemos supor que a imagem da mulher negra forte ocorre tanto no sentido do físico quanto do emocional. Prestes (2013) vai afirmar que esse fator pode servir tanto positiva quanto negativamente, gerando uma onerosa carga emocional, que poderá acarretar problemas na saúde psíquica e orgânica dessas mulheres. Entretanto, essa autora também vai ressaltar que esta categorização pode tanto ser um fator de risco, como pode ser um fator de proteção, pois as trajetórias ancestrais podem servir de exemplo e inspiração.

De acordo com Prestes (2013), cada vez que um grupo recebe uma herança do passado, ele recebe junto o conhecimento sobre as normas da comunidade, e a partir disso pode se localizar na mesma. Com estas informações pode construir seu futuro. Este fenômeno é denominado de enraizamento. Nas formas de transmissão de saberes relacionados às manifestações negras a principal marca é a da oralidade. A autora ressalta que o fato das mulheres negras serem acometidas de comprometimentos psíquicos, psicossomáticos e psicossociais em decorrência dos processos de racismo e machismo não inviabilizam nem incompatibilizam com os processos de resiliência, pois a mesma não está diretamente relacionada à presença ou ausência de sintomas. A resiliência poderia ser identificada a partir da forma que as mulheres negras reagem diante dos eventos sofridos, ressignificando simbolicamente tais acontecimentos.

Nesse sentido, é importante quando se pensa a saúde psíquica das mulheres negras, localizar territórios que possam acolher essas mulheres com seus conflitos, sofrimentos e busca por apoio. Este ensaio aponta os terreiros de candomblé como um desses territórios. Os símbolos presentes nos mitos (ou itans), com referência às orixás, divindades africanas que representam as mulheres, são capazes de despertar sentimentos potenciadores de afetos capazes de mobilizar a coragem, o desafio, o espírito de luta, a perseverança, nas mulheres, fortalecendo-as em suas lutas cotidianas.

Para Eliade (1992), o mito retrata os acontecimentos de um passado distante que atua como modelo exemplar em diversas e diferentes cerimônias, com o propósito de restaurar as etapas da vida, o cotidiano, as atividades e experiências humanas, e isto acontece através dos ritos. Recita-se novamente como foi a criação do mundo, como se deu o nascimento das crianças, como foram realizadas as curas, o que foi preciso fazer para que a terra fornecesse sempre o alimento, e assim por diante. Os mitos cosmogônicos recontam a origem da humanidade e do mundo que habitam, supondo a existência de um criador, que funda o mundo como ele é hoje. Esses mitos e seus ritos estão incorporados nos diferentes sistemas religiosos conferindo sentidos às pessoas e comunidades religiosas.

No candomblé, itan é o termo correspondente à mito. Itan é um termo iorubá que significa história de orixá. Essas histórias são repassadas de geração para geração, através da oralidade. Elas falam de como tudo começou nos tempos imemoriais, estabelece os rituais que devem ser praticados e que envolvem tradições e segredos, ensinam os princípios éticos e morais. Essas narrativas “tomam como personagens pessoas, animais, plantas, seres divinos, que em um tempo remoto passaram conflituosas idênticas às que os seres humanos vivem na atualidade.” (FARIAS, 2018, p 7). O itan, pois, propõe uma reflexão sobre as experiências dos seres humanos, da realidade que enfrentaram e de como conseguiram superar as adversidades, conferindo sentido às ações humanas. É a partir dessa perspectiva que esse trabalho se inspirou, buscando nas narrativas que compõem os itans, conhecimento, força e coragem para as mulheres negras enfrentarem os relacionamentos abusivos que recebem em seu cotidiano.

3 O CANDOMBLÉ COMO ESPAÇO DE RESILIÊNCIA PARA AS MULHERES

A religiosidade fazia parte essencial no cotidiano do universo primário do negro africano. A reconstrução desse universo religioso no Brasil também se iniciou desta forma. De acordo com Silva (1994), com as condições as quais os negros e negras foram submetidos pelas violências do processo escravista, faz emergir, de forma imperativa, o desejo de reconstrução de suas tradições religiosas. Para tanto, buscaram as memórias das práticas religiosas que trouxeram em seus corpos e mentes, e reconstruíram suas instituições religiosas, a partir do intenso contato com outros cultos e práticas rituais aqui já existentes, como as religiosidades indígenas, católica e espírita, o que foi denominado por sincretismo religioso.

Houve um primeiro estágio de adaptação dos africanos que aqui chegaram em torno dos batuques, cantos e irmandades católicas, e de um segundo estágio que correspondeu à formação de estruturas mais complexas como calundus e candomblés, estágio em que os negros libertos tiveram um papel fundamental. Mas na verdade, esses estágios se sobrepuseram, quando os calundus de origem africana se organizaram em paralelo com os batuques de divertimento e as folias das irmandades católicas (PARÉS, 2020, p.109).

Calundu foi um termo genérico, utilizado no século XVIII, para se referir às diversas práticas rituais africanas, em oposição às católicas e indígenas, e foi marcada pela presença de tambores, danças, cantos, rituais de adivinhação e cura, e pode ser considerado o precursor dos candomblés. Orixá, que é uma divindade africana, é o “senhor da nossa cabeça, força poderosa da natureza que nos dá suporte físico e espiritual” (KILEUY; OXAGUIÃ, 2018, p.80). Cada orixá é considerado um pai que rege seus filhos humanos. Eles são transcendentes aos seres humanos e têm idade imemorial. Vivem no orum (o mundo espiritual), descem no terreiro nos dias de festas para serem homenageados. Incorporados em seus filhos, “se tonam energia pura, dançam com eles e para eles, comungam de suas alegrias e de seus infortúnios, escutam seus lamentos, recebem seus agradecimentos”. (KILEUY; OXAGUIÃ, 2018, p.80). As divindades são ligadas a elementos da natureza, a orixá Oxum, por exemplo, tem conexão com as águas doces, Iansã com os raios e a ventania, já Iemanjá com as águas salgadas.

Os orixás e as orixás transmitem aos filhos de santo o axé, uma força vital que está presente em todos os elementos e práticas materiais e espirituais do culto. Santos (1986) relata que o axé é necessário para que a existência se desenvolva, sem o axé todo desenvolvimento, crescimento e movimento vital seria estagnado. O axé é uma força que para ser adquirida precisa ser transmitida, não surge simplesmente. A transmissão ocorre através de meios materiais e simbólicos. O axé precisa ser plantado, alimentado, acumulado e em seguida transmitido a todos os elementos que integram o terreiro. Isso é realizado através de rituais que irão possibilitar que essa força energética seja introjetada naquele território permitindo que assim o templo possa ser ali estabelecido. Após o axé ser plantado ele irá se desenvolver e se tornar mais forte. Ele pode diminuir ou aumentar conforme irão ser realizados os rituais. O axé é tanto individual como coletivo, é preciso que cada membro alimente o seu para que o axé do grupo esteja fortalecido. Quanto mais tempo de existência tem um terreiro e quanto mais alto na hierarquia estiverem suas sacerdotisas, mais forte será seu axé. (SANTOS, 1986). É o axé que fortalece os filhos e filhas de santos, transmitindo- lhes a sua força para lidar com os acontecimentos da vida diária.

É fundamental ressaltar que o candomblé foi fundado por mulheres negras. Augras (2008) relata que mulheres africanas, originárias da cidade de Keto, fundaram o primeiro candomblé de origem iorubá[1], no início do século XIX. Tais mulheres eram Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nassô . O cargo de liderança religiosa da Casa foi designado a Iyá Nassô. (GOMES, 2012; MOURA, 1995). Essas mulheres, plantaram as raízes do candomblé de keto inicialmente no centro de Salvador, próximo a Igreja da Barroquinha. Conforme Silva (1994) tais mulheres faziam parte da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, todas eram libertas. Nascia então a Casa de Candomblé denominada Iyá Omí Asé Aira Intilé. Posteriormente, a Casa foi transferida para o bairro do Engenho Velho e a denominação foi alterada para Ilê Axé Iyá Nassô. Contudo, o terreiro ficou famoso pelo nome de Casa Banca. A partir desse terreiro outros se originaram, por meio da dissidência do mesmo, dando origem a outras casas tradicionais e antigas.

Após o falecimento de Iyá Nassô, a sua sucessão causou uma cisão resultando na criação de outras casas com a mesma raiz, o Iyá Omi Axé Iyá Massê, que fica conhecido com o nome de Gantois, nome do antigo proprietário do terreno no Rio Vermelho e o Axé Opô Afonjá. Até a data atual essas três casas são as mais tradicionais e se caracterizam por serem matriarcais, só as mulheres ocupam os cargos mais altos da hierarquia (MOURA, 1995).

A participação de Iyá Nassô é fundamental para o Candomblé da nação Keto no Brasil. A partir de seu protagonismo, essa forte e representativa raiz foi possível de ser consolidada, com bases e fundamentos religiosos específicos que ela trouxe de África. Toda a organização do culto, sua permanência e sua raiz estão plantadas nas demais casas da mesma origem perpetuando hoje o Candomblé iorubá no Brasil.

Na Agontimé foi a fundadora da primeira Casa de Candomblé de origem jeje, no Maranhão. De acordo Pierre Verger (1990), a rainha Na Agontimé era esposa do rei Agonglo, do Daomé, atual Benin. O rei tinha dois filhos e designou que seu sucessor seria o filho mais novo, o príncipe Guezo. Porém, por ele ainda não ter idade para assumir o trono, quando o rei veio a falecer, o príncipe Adandozan o filho mais velho deveria governar até que Guezo tivesse idade para tal. Porém, contrariando a determinação do Rei Agonglo, Adandozan não só não passa o trono ao seu irmão, como realiza um reinado altamente sanguinário tendo, inclusive, vendido como escrava a rainha Na Agontimé e vários membros da corte.

Santos (2011) relata que Na Agontimé, no Brasil, recebeu o nome de Maria Jesuína. Conforme a autora, ela conquistou sua liberdade e sistematizou o “culto aos voduns”[2] culto aos antepassados da realeza do Daomé. A Casa das Minas no Maranhão foi fundada em 1840. Sendo o culto praticado até os dias atuais. Segundo Arraes (2017), o nome da casa é Querebentã de Zomanudu. A Casa das Minas no Maranhão se caracteriza por ser matriarcal, na qual os cargos de maior poder são exercidos pelas mulheres, tal como em outros cultos de matriz africana no Brasil (FERRETTI, 2018).

A rainha Na Agontimé, mesmo afastada de seus familiares e do seu reino, não esqueceu seus costumes nem suas raízes. Reconstruiu seu culto em terras brasileiras (SANTOS, 2011). Na Agontimé reforça a característica de liderança feminina religiosa própria das mulheres africanas e afro-brasileiras. Destacando-se como fundadora de uma das casas religiosas mais tradicionais do Brasil.

Numa sociedade marcada pelo patriarcalismo observamos que a emergência e manutenção do candomblé, deu-se na mão das mulheres. Landes (2002) já em 1939, denominava a participação de mulheres negras no candomblé de matriarcado baiano, e afirmou que elas eram mulheres à frente de seu tempo em um período no qual o feminismo ainda dava seus primeiros passos no país. A autora ainda afirma que o sacerdócio baiano nagô era quase que exclusivamente feminino, pois, de acordo com a tradição, compete às mulheres os cargos que tratam das divindades.

A participação da mulher negra tanto na estrutura familiar como na religiosa é fundamental para a sobrevivência de um legado de memória, tradição e identidade cultural da população afrodescendente no Brasil (SILVA, 2010). Outro fator importante a ser ressaltado é em relação aos casamentos. Ruth Landes (2002) destacou em sua pesquisa que a maioria das sacerdotisas não era casada, por não quererem abrir mão de sua liberdade e autonomia. Os homens podem participar de suas vidas desde que não ameacem a sua liberdade. Uma etapa da pesquisa de Ruth Landes (2002) é uma entrevista com a Yalorixá Mãe Menininha. A sacerdotisa tinha um companheiro, mas revelou que nunca se casou. A pesquisadora avalia que ela teria perdido muito, pois na legislação brasileira da época (ano de 1936) a mulher teria que se submeter inteiramente ao marido, fato totalmente incompatível para organização do Candomblé.

Percebe-se nestas mulheres não apenas uma responsabilidade religiosa com o cumprimento de seu dever, mas também um orgulho de serem quem são. Em relação ao seu terreiro, elas demonstram estar conscientes da importância que têm. Por parte das yalorixás, nota-se uma postura de respeito e seriedade. Têm plena consciência de seu status hierárquico, cada qual exerce seu poder ao seu estilo.

Outra faceta relacionada ao candomblé é a discriminação sofrida, isso por não serem religiões cristãs, não serem maniqueístas e por ser uma religião de negros e de origem africana. A intolerância religiosa presente no cotidiano faz com que os seguidores do candomblé sejam vítimas de várias modalidades de violência. Para escapar da discriminação, os adeptos se utilizam de estratégias para parecerem invisíveis, tal como nos relatou Caputo (2012) em sua pesquisa sobre como são tratadas as crianças do candomblé na escola. Duas irmãs revelaram que, em sua comunidade, frequentaram a Igreja Católica por um longo período, frequentando as missas e, até mesmo, recebendo os sacramentos. Esta era a estratégia utilizada para diminuir o sofrimento gerado pelo preconceito.

A ocultação de si mesmos nas sombras da invisibilidade acaba por ser uma solução para serem aceitas. Solução que também agrada aos dominadores, que assim permanecem fingindo que tais categorias não existem e, quando elas emergem, tratam-nas com ações hostis diretas ou indiretas.

De acordo com Santos (2017) um fato que se tornou símbolo da luta contra a intolerância religiosa foi o caso a Yalorixá Mildreles Dias Ferreira, que acabou por falecer. Conhecida por Mãe Dedé de Iansã, a sacerdotisa nonagenária sofreu um infarto fulminante por conta de repetidos ataques que vinha sofrendo desde que uma igreja evangélica iniciou atividades em frente ao terreiro Oyá Denã. Membros da Casa de Oração Ministério de Cristo teriam passado a noite em vigília proferindo ofensas dirigidas à Yalorixá, que teria chorado muito e posteriormente passou mal e veio a falecer.

Silva (2007) relata o caso da mãe Gilda, da Casa Axé Abassá de Ogum, localizada na cidade de Itapuã na Bahia. A Yalorixá participava de uma manifestação política, quando foi fotografada próxima de uma oferenda por uma revista. Tal imagem foi utilizada a posteriori em uma edição da Folha Universal. Ao lado da foto havia uma legenda ofensiva denominando os praticantes de candomblé de charlatões e enganadoras que lesavam pessoas. Mãe Gilda chegou a entrar com uma ação judicial contra a Igreja Universal, após seu terreiro ser invadido por fiéis dessa igreja. Mãe Gilda também foi vítima de infarto fulminante, falecendo aos 65 anos, em consequência do abalo emocional dessas agressões. A Câmara de Vereadores de Salvador criou então o Dia Municipal de Combate à Intolerância Religiosa, em homenagem a Yalorixá na data do seu falecimento.

O candomblé, pois, é um espaço que se abre para que as mulheres exerçam seu poder religioso reivindicando a resiliência daquelas que comandam os terreiros. Mãe Dedé de Iansã e Mãe Gilda deixaram para suas filhas e filhos o legado da resiliência. Demonstraram, com suas trajetórias religiosas, que é necessário prontidão sempre, para combater o preconceito e a discriminação de que as religiões afrodiaspóricas sempre foram alvo.

4 OS ENSINAMENTOS DA ORIXÁ OXUM

Os terreiros das religiões afro-brasileiras se configuram como o suporte territorial para a continuidade da religiosidade de vários povos da diáspora africana no país. É nele que descem os orixás e as orixás, e dentre estas elegemos Oxum para a reflexão que aqui se propõe, a de analisar como esta entidade sagrada pode conferir resiliência ao sofrimento psíquico das mulheres negras, uma vez que os modelos míticos comportam uma série de qualidades que proporcionam a reelaboração das experiências dos sujeitos.

Neste campo religioso cada filho ou filha de santo é feito da mesma substância dos deuses e deusas, “a identificação dessa origem divina se apoia em um corpus mitológico que descreve o temperamento de cada divindade, sua linhagem, a força da natureza que lhe corresponde, o seu papel na comunidade e no mundo”. (AUGRAS, 2008, p. 89). É no ritual de incorporação que a deusa se torna presente no corpo de suas devotas, possibilitando a comunicação entre esse mundo, o ayê, o espaço sagrado, o orum. Esse processo comunicativo permite que, de alguma maneira, a filha de santo se apodere dos poderes da orixá, uma vez que no momento da incorporação não há diferenciação entre a pessoa e a divindade, pois todas as fronteiras entre esse mundo e o outro foram abolidas.

A experiência religiosa da incorporação por divindades ou por espíritos de antepassados marca as religiões afro-brasileiras. Através do trânsito entre o mundo visível e invisível, os orixás, as orixás e as entidades espirituais possuem os corpos de seus devotos, e continuam intervindo em suas vidas cotidianas, seja através dos desdobramentos da identidade mítica na personalidade do médium (AUGRAS, 2008), seja na constituição dos gêneros (BIRMAN, 2005; FRY, 1982; LANDES, 2002); ou atuando na inversão de poder e em táticas de resistências às opressões recebidas (LAGES, 2012; LAGES, 2007).

É nesse sentido que se pretende observar como as orixás do panteão afrodiaspórico, e dentre elas, Oxum, pode se fazer presente na vida de mulheres negras, conferindo-lhes o seu axé, a força para superação das adversidades e opressões a que estão submetidas. Esse axé pode ser traduzido como uma força despertada pela emoção que empodera a pessoa, a faz refletir, tomar decisões, agir, resistir.

Oxum ou Osun é uma orixá que reina sobre as águas doces, reconhecida como senhora da beleza, do amor, da riqueza, da fecundidade, da vaidade e do poder da mulher. No Brasil, se apresenta nos terreiros com vestes azuis e douradas, e em suas mãos carrega um abebé, um leque em forma redonda, que pode ter em seu centro, um espelho, e um ofá, um arco e flecha, ou às vezes, segura uma espada. Seu nome é associado ao Rio Osun que corre numa região da Nigéria, e conta uma história que um dia o Rei Larô instalou sua cidade às margens de um rio de águas limpas. Tendo sua filha mergulhado e desaparecido nas águas, reaparece lindamente trajada. A jovem conta que foi muito bem recebida pela dona do rio. A partir de então, Larô passou a fazer ricas oferendas às águas como prova de gratidão. Ele também recebe do rio, peixes, e, assim, sela sua aliança com ele exclamando oxum gbó (Oxum floresce, faz crescer). Por isso, a cidade de Lorô passa a ser chamada de Oxogbô ou Osgbo. Oxum, pois é ligada ao rio e à cidade (LOPES, 2005).

Dentre os iorubás, Oxum é filha de Iemanjá, orixá que rege os oceanos, e de Orunmilá, dono do segredo dos búzios, dos mistérios. Oxum, na relação com o seu pai, já demonstra sua capacidade de trazer para si conhecimentos destinados apenas aos orixás homens. Conta um itan Oxum deita-se com Exu[3] para aprender o jogo dos búzios (LOPES, 2005, p.128) que Obatalá[4], também detentor do jogo de advinhação foi banhar-se em um rio, tirando suas roupas brancas. Exu-Elegbá, em suas eternas brincadeiras, apossou-se das roupas de Obatalá. Em pânico, pois como sair e andar nu, depararou-se com Oxum, que o tranquilizou, pois negociaria com o mensageiro a devolução das roupas. Mas em troca queria aprender o jogo dos búzios. Sem saída, Obatalá cede. É por isso que Oxum domina tão bem, como seu pai Orunmilá, o segredo do jogo. Desde cedo aparece na divindade sua capacidade de não desistir de seus desejos.

Dentre os mitos de Oxum, relatados por Prandi (2001), e que nos interessa analisar para este trabalho, destacam-se três: Oxum Navezuarina cega seus raptores; Oxum leva ebó[5] ao Orum e salva a terra da seca; Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homens. O que os alinhava eram as atitudes positivas de Oxum frente às situações de sofrimento e conflito, e de como ela se dispõe a enfrentar essas ocasiões como protagonista de sua própria história.

Em Oxum Navezuarina cega seus raptores, mulheres são aprisionadas por soldados que lutavam em uma guerra entre tribos. Dentre elas, estava Navezuarina, um outro nome de Oxum, que invocando suas forças mágicas, faz surgir um clarão que cega os soldados. Nesta oportunidade, usando de seu conhecimento sobre as ervas, ela passa uma mistura de plantas nos olhos dos guerreiros que recobram a visão. Agradecidos, eles libertam as outras jovens que retornam para suas aldeias. Neste itan sobressai a força interior de Oxum, suas forças mágicas invisíveis para se libertar da força e poder dos homens. Ela sabe que a situação é extremamente difícil. Fugir de um campo de guerra não é nada fácil, mas ela não sucumbe. De repente uma ideia lhe vem. Para sair daquele lugar ela precisa fazer os soldados agirem a seu favor e das outras jovens. Ela cega os soldados, e em seguida os cura com seus unguentos, usando seu conhecimento sobre as plantas. Agradecidos pela cura, eles soltam as prisioneiras que retornam para suas casas. A capacidade de avaliar uma situação perigosa com calma e esperteza, capacidade de negociação, de vencer o medo, de saber se distanciar e aproximar com cautela, é o que Oxum ensina às mulheres.

No itan Oxum leva ebó ao Orum e salva a terra da seca, a orixá enfrenta a ira de Olodumare contra a humanidade, retirando a água da terra, e a levando para o céu. A terra torna-se árida e infecunda, matando as pessoas e animais de sede. O oráculo de Ifá é consultado, e ele diz que somente um ebó, uma comida sagrada, feita com bolos, ovos, um galo, agulha e linha, poderia vencer a ira de Olodumaré. É Oxum que se apresenta para levar o ebó ao Céu, e inicia sua peregrinação para recolher os alimentos que deverão ser oferecidos ao orixá raivoso. Assim que consegue e chega à porta do Céu, ela se depara com um grupo de crianças, e acaba dando a elas o alimento que levava. Oludumaré se sensibiza com o gesto de Oxum, e devolve a água para a terra. Sobressai aqui o aspecto materno da orixá, que tanto é cultuado nos terreiros de candomblé. Elementos como a fertilidade da terra, a água, o alimento, os bolos, o galo, a agulha e linha para costurar o ebó, remetem aos afazeres no espaço doméstico, da cozinha, geralmente destinado às mulheres. O ritual da oferenda de alimentos aos orixás tem o sentido de fortalecer os vínculos com as divindades, de retribuir o axé que os orixás conferem aos seus filhos no ayê (o mundo material). Mas no mito, Oxum oferece é às crianças. Seu olhar é para os humanos, ela desobedece a norma de oferecer o ebó à divindade. O que move em Oxum e a fortalece para enfrentar a raiva de Olodumaré é o amor, a compaixão que sente pelas crianças e pelo seu povo. Ela enfrenta o deus sem saber o que receberá como castigo. Mas sua atitude o comoveu, o convenceu, aplacou a sua raiva. Oxum aqui ensina às mulheres a se apropriarem dos saberes de seus ancestrais e os usar. Assim, no cozinhar estão presentes importantes símbolos, o fogo (clareza, regeneração, purificação); o cru e o cozido (transformação, mudança); linha e agulha (união, integração). Podemos pensar, ainda, no cozinhar como cuidar, proteger o outro, fortalecer o outro, prepará-lo fisicamente para os embates através de um corpo forte.

Outro aspecto presente no mito é o caminhar. Oxum sai à procura dos alimentos que vão compor o ebó. Ela não fica parada, esperando os alimentos chegarem até ela. Ela é que sai à procura deles, precisa se esforçar, andar, conversar com um e outro, falar da situação. Oxum ensina às mulheres que elas devem ser persistentes, encontrar nelas mesmas a qualidade de seguir sempre adiante, apesar dos obstáculos.

Essa capacidade de enfrentamento, de se dispor a seguir em frente, buscar formas de proteger a si mesma, à comunidade, ou a natureza, também é expressa em outro mito, que não será analisado aqui, mas que vale a pena a leitura: Oxum é transformada em pavão e abutre.

Por fim, em Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homens, os orixás homens se reúnem, logo depois de criado o mundo, e começam a distribuir as tarefas dentre eles, excluindo as mulheres das conversas e dos encargos, e dos cargos de comando. Ressentida pela exclusão, Oxum se enfurece e retira das mulheres a fertilidade. Os orixás se alarmaram, pois, as consequências seriam catastróficas. Oludumaré ficou sabendo da exclusão de Oxum, e aconselha aos orixás a convidá-la, pois sem a fecundidade, o mundo deixaria de ser mundo. E Oxum passou a participar das decisões. Oxum ensina aqui às mulheres negras a resistirem, a irem à luta, a se apropriarem de todos os espaços onde são discutidos os seus direitos, os das mulheres, dos seus filhos e filhas. Ensina a colocar a própria voz em sua defesa e à defesa das pessoas que passam por situações semelhantes de opressão, o da exclusão nos diferentes espaços da vida.

Oxum, então, pode ser compreendida com uma fonte simbólica de resiliência psíquica para as mulheres negras que são adeptas do candomblé. Os itans da orixá trazem poderosos elementos de fortalecimento psíquico à medida que eles são transmitidos nos terreiros, para as filhas de santo e para as pessoas que buscam a compaixão da orixá. Como disse Prestes (2013), esses elementos de resiliência fortalecem as mulheres nos seus combates. Isto é possível devido ao processo de identificação com a deusa, com seus valores e capacidades. Nas situações de adversidade, pois, como a do racismo, surge a possibilidade de ressignificação dos acontecimentos a partir da experiência religiosa com a orixá Oxum.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência religiosa do candomblé é um legado cultural, que como foi visto, tem a presença forte das mulheres, que são responsáveis pela manipulação do sagrado, dos rituais, e que alcançaram um lugar de destaque e respeito junto à sua comunidade religiosa. O panteão candomblecista, por sua vez, disponibiliza para as mulheres, as orixás e os orixás, ancestrais sagradas, que transmitem às suas filhas e filhos o precioso axé, a força de sua divindade.

As mulheres negras, em momentos de aflição, nas lutas cotidianas de enfrentamento ao racismo contra a exploração do poder patriarcal e dos desdobramentos que eles causam em todas as esferas de suas vidas, e na de seu grupo social e cultural, buscam formas de sobrevivência psíquica e física. É necessário ser resiliente, para não sucumbir. Um dos espaços que pode fortalecer as mulheres psicologicamente, é o campo religioso afro- brasileiro. Ele possui todo um conjunto de elementos simbólicos que conferem sentido à existência, fortalecem espiritualmente seus filhos e filhas, mantendo-os firmes nas labutas cotidianas. Quando parece que as forças estão sendo minadas pelo desânimo, pode surgir a orixá Oxum, transmitindo o seu axé, a sua coragem, sua rebeldia, a sua perseverança, a sua esperteza, o seu amor, o seu afeto maternal, a sua capacidade de negociar, de tirar proveito da situação, e salvar a si mesma e aos outros.

As mulheres negras adeptas desta religiosidade podem usufruir nos terreiros desses predicados de Oxum. Através do ritual de incorporação, as filhas de Oxum podem se apoderar do poder da deusa das águas doces. Oxum pode lavar as feridas dos sofrimentos diários, servindo também de inspiração, de motivação, e modelo de atitudes resilientes às suas filhas.

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Notas

1 Iorubá representa o grupo étnico de africanos da região hoje conhecida como Nigéria e Togo. A cidade de Keto, era compreendida por membros dessa etnia. Keto também era um reino dedicado ao culto de Oxóssi e no Brasil deu origem ao Candomblé denominado da nação Keto ou nação iorubá. (AUGRAS, 2008).
2 Na língua do povo jeje, vodun significa orixá. Os jeje são um grupo étnico, antigos residentes do reino do Daomé, atual Benin. (FERRETI, 2018).
3 Exu é o orixá da transformação, está no princípio de todas as coisas, é considerado o primogênito do universo. (AUGRAS, 2008).
4 Obatalá, também denominado Oxalá, é o orixá da criação de todos os seres vivos do planeta Terra. (AUGRAS, 2008).
5 Ebó é um ritual sagrado que tem como objetivo equilibrar o axé. (AUGRAS, 2008).


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