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DISCURSO DOCENTE E COMUNIDADE ESCOLAR: lei 10.639/2003 e religiões afro-brasileiras

Teaching Speech and School Community: 10.639/2003 law and Afro-Brazilian religions

Habla Docente y Comunidad Escolar: ley 10.639 / 2003 y religiones afrobrasileñas

Aurenéa Maria de OLIVEIRA"
Doutora em Sociologia e mestra em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil
Graziella Moura da SILVA
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)., Brasil

DISCURSO DOCENTE E COMUNIDADE ESCOLAR: lei 10.639/2003 e religiões afro-brasileiras

Interações, vol. 17, núm. 1, pp. 54-73, 2022

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 12 Mayo 2021

Aprobación: 17 Octubre 2021

Resumo: A presente pesquisa teve por objetivo analisar o discurso docente sobre a influência da comunidade escolar, através de pais religiosos, no ensino de história da África e cultura africana, envolvendo elementos de pertença religiosa nesse processo. Operando com a Teoria do Discurso elaborada por Ernesto Laclau e com a metodologia da Análise de Discurso francesa, buscou-se examinar a fala de cinco professores de duas escolas públicas pernambucanas, situadas na cidade do Recife, sobre a interferência de pais em tal trabalho. Neste aspecto, os enunciados colhidos em entrevistas semiestruturadas, afirmam que esses pais interferem no espaço educacional referente ao ensino em tela no que tange especialmente ao trato com as religiões afro-brasileiras, o que revela intolerância e racismo, sugerindo a necessidade da escola se fundamentar com mais propriedade acerca de conhecimentos que envolvam esse debate fora e em sala de aula.

Palavras-chave: Religiões afro-brasileiras, Discurso docente, Lei 10, 639/2003, Ensino de história da África, Comunidade escolar.

Abstract: This research aimed to analyze the teaching discourse on the influence of the school community, through religious parents, in the teaching of African history and African culture, involving elements of religious belonging in this process. Operating with the Discourse Theory elaborated by Ernesto Laclau and with the methodology of the French Discourse Analysis, we sought to examine the speech of five teachers from two public schools in Pernambuco, located in the city of Recife, on the interference of parents in such work. In this regard, the statements collected in semi-structured interviews state that these parents interfere in the educational space related to the teaching on screen, especially in terms of dealing with Afro-Brazilian religions, which reveals intolerance and racism, suggesting the need for the school to be grounded with more propriety about knowledge that involves this debate outside and in the classroom.

Keywords: Afro-Brazilian religions, Teaching discourse, Law 10639/2003, African history teaching, School community.

Resumen: Esta investigación tuvo como objetivo analizar el discurso docente sobre la influencia de la comunidad escolar, a través de los padres religiosos, en la enseñanza de la historia y la cultura africanas, involucrando elementos de pertenencia religiosa en este proceso. Operando con la Teoría del Discurso elaborada por Ernesto Laclau y con la metodología del Análisis del Discurso Francés, se buscó examinar el discurso de cinco profesores de dos escuelas públicas de Pernambuco, ubicadas en la ciudad de Recife, sobre la injerencia de los padres en dicha labor. . Al respecto, las declaraciones recogidas en entrevistas semiestructuradas afirman que estos padres interfieren en el espacio educativo relacionado con la enseñanza en pantalla, especialmente en términos de lidiar con las religiones afrobrasileñas, lo que revela intolerancia y racismo, sugiriendo la necesidad de la que la escuela se base con más propiedad sobre el conocimiento que involucra este debate fuera y en el aula.

Palabras clave: Intolerancia Religiosa. , Religiones afrobrasileñas, Discurso del Docente, Enseñanza de la historia africana, Comunidad escolar.

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa objetivou analisar, em duas escolas públicas pernambucanas, o discurso docente com perfil de participação no movimento negro, sobre a influência da comunidade escolar, por meio do pensamento de pais especificamente religiosos, no ensino de história da África. Entretanto, para atingir tal objetivo, precisou-se primeiramente compreender qual o lugar que a cultura e história africana e afro-brasileira ocupam na escola, dialogando com a lei 10.639 (BRASIL, 2003) que viabilizou esse tipo de ensino. Além disso, foi fim nosso, identificar avanços, dificuldades e resistências ao ensino em questão.

Diante disso, é fato que pais, religiosos ou não, e professores se questionam sobre a importância e a necessidade de se trabalhar a história da África no ambiente escolar, porém, é preciso reconhecer que diversos povos contribuíram para a formação da população brasileira, entre eles destacam-se os povos nativos, portugueses e africanos que formaram a grande diversidade étnica e cultural brasileira. Contudo, atualmente os negros (pretos e pardos) representam 56,2% da população brasileira de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), fazendo do Brasil o país com maior quantitativo de pessoas negras fora do continente Africano.

No entanto, mesmo o Brasil sendo majoritariamente negro, sua história ainda é por diversas vezes apresentada de forma estereotipada e racista, limitada a uma única narrativa proveniente da perspectiva Europeia. Omite-se a problemática do processo de colonização ter sido uma violência para os africanos que para cá vieram, rotulados como mercadoria pelos colonizadores portugueses. Além disso, o processo de abolição da escravatura foi muito tardio no país, não tendo havido nenhum tipo de reparação simbólica e material por anos de chicotadas e opressões. Infelizmente ainda hoje, negros e negras não são reconhecidos, valorizados e mesmo tendo resistido e lutado pela liberdade, continuam marginalizados pelo estigma, precisando cotidianamente batalhar pelo direito à igualdade, reivindicando o reconhecimento pela riqueza cultural, social e econômica que ergueram nesse país.

Compreendendo todas essas dificuldades e limitações foi desenvolvida a lei 10.639 (BRASIL, 2003) que legisla sobre a obrigatoriedade do trabalho da temática africana e afro-brasileira no ambiente escolar, em todo território nacional. É importante destacar que a respectiva lei foi uma conquista do movimento negro que muito reivindicou por políticas públicas que buscassem combater ao racismo no processo educacional. Enfatizemos o artigo 2° da referida Lei que dispõe sobre o “[...] estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2003).”

Diante disso, espera-se que no processo de educação formal haja reconhecimento da contribuição negra no Brasil. Mas, apesar da existência da respectiva lei desde 2003, ainda precisamos lutar no combate ao racismo e à intolerância religiosa, por meio do trabalho relacionado à cultura e história africana e afro-brasileira, proporcionando momentos formativos e críticos ao enfrentamento às discriminações, além de oportunizar o acesso dos estudantes a saberes ancestrais, entendendo que

Se a escola é um campo, um espaço de produção e de apropriação de conhecimentos, então é fundamental e justo e função da escola que os saberes africanos, que são um patrimônio da humanidade, sejam compartilhados, aprendidos, conhecidos. A escola não deve negar à população este patrimônio, não pode subtrair um direito, que é de todos, de conhecer o repertório cultural dos povos africanos. (TRINDADE, 2013, p. 13).

Contudo, mesmo com a implementação da lei 10.639 (BRASIL, 2003), ressalta-se: o ambiente escolar continua perpassado pela prática da violência física e simbólica em seu cotidiano contra negros e negros, com presença de manifestações de menosprezo a sua cultura, como por exemplo, os ataques que adeptos de religiões de matriz africana sofrem. Isto sinaliza para a necessidade de os docentes que trabalham com a história da África munirem-se de instrumentos, em cursos de formação, para lidar com está temática, já que no estado de Pernambuco, o ensino em tela é dado de modo interdisciplinar, como tema transversal que deve perpassar todas as disciplinas, não somente a de história.

A isso, somam-se apelidos depreciativos, brincadeiras e piadas alusivas à cor da pele, ridicularizarão de traços físicos que expressam agressões, revelando as muitas faces do racismo brasileiro (CARREIRA, 2010). Tais situações podem ocorrer com estudantes sem obrigatoriamente estarem dentro do ambiente escolar, todavia, acontecendo no ambiente escolar, revelam estigmas que devem ser combatidos, pois, a escola

[...] como parte integrante dessa sociedade que se sabe preconceituosa e discriminadora, mas que reconhece que é hora de mudar, está comprometida com essa necessidade de mudança e precisa ser um espaço de aprendizagem onde as transformações devem começar a ocorrer de modo planejado e realizado coletivamente por todos os envolvidos, de modo consciente. (LOPES; MUNANGA, 2005, p. 189).

Desse modo, se buscou nessa pesquisa examinar o discurso docente sobre pais especificamente religiosos no trato do ensino de história e da cultura africana na escola onde seus filhos estudam. Reconhecemos que esses pais, não somente os religiosos, são agentes educadores do espaço informal (GOHN, 2006) e poderosos influenciadores no ambiente familiar e que como tal, podem aceitar ou não tal tipo de ensino; entretanto, o fato de serem religiosos, como ver-se-á adiante, é citado no discurso docente como fator de interferência maior no ensino em questão.

Por essa razão, nosso objetivo geral foi o de analisar o discurso docente acerca da influência de pais religiosos no ensino de história da África e da cultura africana, envolvendo especificamente elementos de pertença religiosa nesse processo. Como objetivo específico, procurou-se identificar, também no discurso docente, se essa influência para eles (docentes) promove avanços ou retrocessos a este tipo de ensino.

2 O ESPAÇO EDUCACIONAL INFORMAL

Quando se fala em aprendizagem e desenvolvimento na infância, logo a associação ao campo da educação formal é estabelecida, através das escolas, com seus conteúdos previamente demarcados. Reconhecendo que a escola é uma etapa fundamental do aprendizado, e consequentemente do desenvolvimento humano, a compreendemos como lócus de

Ensino e aprendizagem de conteúdos historicamente sistematizados, regulamentados e normatizados por leis, dentre os quais se destacam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Segundo a LDBEN de 1996, a escola objetiva formar o indivíduo como um cidadão ativo, desenvolver habilidades e competências várias, desenvolver a criatividade, percepção, motricidade, etc. (GOHN, 2006, p. 18).

Entretanto, o aprendizado começa previamente à entrada da criança de sete, oito anos, por exemplo, no ambiente escolar, consequentemente, o conhecimento não é exclusividade das escolas, tendo todos na infância a oportunidade de aprender em diferentes lugares e situações. Assim, a educação não é sinônimo de escola, dado que esta é parte daquela e tudo o que se expande, para além da formalização escolar, é território educativo a ser operado.

Compreendendo que existem outras instituições que se constituem como poderosas influenciadoras na educação infantil, destacamos aqui a instituição familiar caracterizada como espaço de educação informal (GOHN, 2006). O campo da educação informal é marcado por aprendizagens geradas e compartilhadas com espontaneidade e esse espaço educativo, mesmo sendo considerado por muitos como um ambiente pouco convencional de aprendizagem, se configura em importante local de estimulação a novos conhecimentos haja vista que

A educação informal socializa os indivíduos, desenvolve hábitos, atitudes, comportamentos, modos de pensar e de se expressar no uso da linguagem, segundo valores e crenças de grupos que se frequenta ou que pertence por herança, desde o nascimento. Trata-se do processo de socialização dos indivíduos em que os componentes herança e naturalização estão presentes. (GOHN, 2006, p. 18-19).

Mesmo distintos, os campos de educação formal e informal se articulam, podendo está última constituir-se numa aliada da escola no processo de ensino e aprendizagem da criança. Desse modo, a partir do reconhecimento dos ensinamentos e experiências compartilhados entre a criança e seus familiares, é possível desenvolver um perfil mais específico do aluno e consequentemente da comunidade na qual ele está inserido, conduzindo a elaboração de ações mais pertinentes aos objetivos e princípios educacionais da escola. Dessa forma, compreende-se que a visão sobre a comunidade na qual o estabelecimento educacional está inserido poderá influenciar nas deliberações tomadas no ambiente escolar, sobretudo se a escola levar em consideração questões como: o que as crianças têm aprendido informalmente sobre as religiões afro-brasileiras? O que seus pais lhe ensinam sobre isso?

3 RELIGIÃO NO CONTEXTO ESCOLAR E CULTURA

Considerando que as práticas articulatórias, presentes na comunidade se constituem de relações contingentes onde os sentidos são precários e sem literalidade (LACLAU; MOUFFE, 1985), podemos identificar nas famílias posições/discursos que hegemônicos ou não, podem vir a intervir direta ou indiretamente no contexto escolar. Destacamos aqui o discurso religioso por ele integrar a vivência de muitos que atuam no espaço educacional. Assim é

[...] denominada de articulação qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal modo que a sua identidade seja modificada como um resultado da prática articulatória. À totalidade estruturada resultante desta prática articulatória, chamaremos discurso. (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 105, tradução nossa)[1].

Porém, especificamente na escola pública, a religião tende ou a ser ignorada por professores e gestores, ou a ser valorizada apenas a partir do eixo cristão dominante (OLIVEIRA, 2020). Entretanto, surge um questionamento: seria possível um ambiente escolar totalmente livre da influência religiosa? Neste aspecto defendemos que

As pessoas, em sociedade, compartilham valores e crenças, que são suas orientações culturais. Além disso, elas mantêm relações entre si. Uma cultura é um modo de vida que integra, de forma viável, orientações culturais e formas de interação social. O que depende, por sua vez da estrutura social da qual os indivíduos participam. (WILDAWSKY, 1990, p.47, tradução nossa)[2]

Compreendendo assim que o acervo sociocultural dos pais - incluindo aqui suas pertenças religiosas, estas entendidas como cultura - é incorporado à realidade da criança, se expressando no ambiente escolar por meio do discurso do aluno, entendemos igualmente que tal expressão discente faz parte de sua identidade. Desse modo, reitera-se que o discurso presente na vivência da criança, não é algo abstrato, mas algo que denota práticas e ações que carregam crenças, valores, representações e que revelam posições sociais e ideológicas deles posto que

Aprendem durante seu processo de socialização nas relações e relacionamentos intra e extrafamiliares. Assim a educação informal incorpora valores e culturas próprios, de pertencimento e sentimentos herdados. Os indivíduos pertencem aqueles espaços segundo determinações de origem, raça/etnia, religião, etc. São valores que formam as culturas de pertencimentos nativos dos indivíduos. (GOHN, 2006, p. 16).

Assim sendo, assumindo que o Brasil é constituído por uma diversidade religiosa e que essa diversidade está atuante nos discursos, investigar esses discursos a partir dos conceitos de preconceito, estigma e intolerância faz-se relevante (OLIVEIRA, 2007). Sobre isso, Oliveira (2007) afirma que a intolerância é uma violência física e/ou verbal; já o estigma é uma inferiorização social e o preconceito uma pré-concepção sobre algo, alguém ou grupos. Neste aspecto, as temáticas relacionadas à história e cultura negra são importantes para interferir no processo de estigmatização de religiões minoritárias como as de origem africana, por exemplo, (OLIVEIRA, 2019).

Entretanto, os negros ao longo da história foram colocados como inferiores, se ignorando sua importância sociocultural. Tal visão, infelizmente, repercute até a atualidade, estimulando o racismo e o preconceito. Analisando possíveis fontes de tais problemas, nos deparamos com o ambiente escolar, no qual se compreende que o que se ensina na escola ainda é fortemente centrado numa perspectiva europeia e embranquecedora.

Contudo, é importante que a escola considere os sujeitos que compõem a comunidade escolar em sua diversidade étnica, religiosa e racial, reconhecendo que eles fazem parte dessa sociedade multirracial e pluriétnica. Para tal, ela não deve ignorar a existência do racismo e da discriminação que afloram a todo o momento, ora de modo velado, ora escancarado e que estão presentes na vida diária (LOPES; MUNANGA, 2005).

Entre os pontos que devem ser desmistificados no trabalho do ensino de história da África está o trato com as religiões de matriz africana, compreendendo que estas religiões fazem parte da formação da identidade brasileira e da identidade cultural negra no Brasil, haja vista que elas foram símbolo de resistência. Contudo, as respectivas religiões não têm sido trabalhadas no ambiente educacional do ensino de história da África por conta dos estereótipos que sofrem por parte da comunidade escolar, sendo identificados sobre elas discursos que expressam ideologias racistas e de estigmatização (OLIVEIRA, 2019).

Consequentemente ao se buscar trabalhar as respectivas religiões no contexto escolar do ensino de história da África, elementos antes isolados na comunidade escolar, dentre eles pais religiosos, encontram uma oportunidade para constituir articulações hegemônicas e legitimar seus posicionamentos racistas e intolerantes à respectiva temática. Sobre a hegemonia constata-se que ela

[...] não é alcançada por aqueles que possuem os melhores argumentos, ou por grupos moralmente melhores comparados a um conteúdo ético universal. Nada garante que o discurso hegemônico seja melhor ou mais progressivo que seus concorrentes, pois a operação hegemônica não é valorativa ou moralmente mensurável, mas apenas uma guerra de forças entre grupos opostos. (SMITH, 1988, p. 184, tradução nossa)[3]

Neste aspecto, o discurso docente como se verá adiante, sinaliza para afirmações de que as religiões afro-brasileiras são menosprezadas e discriminadas pela comunidade escolar, especialmente por pais religiosos de denominação evangélica, o que revela, entre outros elementos, o estigma relacionado ao papel que o negro e sua cultura ocupam na sociedade brasileira, podendo tal fato ser configurado como racismo religioso.

É importante enfatizar que a intolerância religiosa não é recente na história, principalmente no cenário brasileiro. Decorrente de conflitos que envolvem manifestações sociais, culturais e políticas, ela engloba diversas formas de expressão (OLIVEIRA, 2007). Entretanto, o conceito de intolerância religiosa no Brasil, está diretamente associado à manifestação de julgamentos que buscam depreciar e estigmatizar o Candomblé e a Umbanda, por fazerem parte da cultura e história relacionada ao povo negro. Por essa razão, tais atos podem ser designados como racismo religioso, pois,

Partimos do pressuposto de que a intolerância religiosa é uma ação de intransigência em relação às outras religiões e, em relação às religiões de matriz africana, inscreve-se na dimensão do racismo que marca a história de pessoas negras, de sua descendência africana e de sua cultura no Brasil. (CARREIRA, 2010).

Diante disso, constata-se a necessidade de que tais discussões devem estar presentes no ambiente escolar, por meio do ensino da história da África, devendo elas ser abordadas na perspectiva do contexto histórico e cultural, agregando também a construção para uma sociedade que respeite a diversidade, na luta pela redução da intolerância religiosa (OLIVEIRA, 2007; 2019; 2020)

4 METODOLOGIA

Diante do exposto, é importante ressaltar que essa pesquisa teve como objetivo geral analisar o discurso docente sobre formas de influência da comunidade escolar, especificamente dentro dessa comunidade pais religiosos, no ensino de história da África e da cultura africana, envolvendo elementos de pertença religiosa nesse processo. O objetivo específico buscou identificar, também no discurso docente, se a influência desses pais religiosos promove, para o segmento docente entrevistado, avanços ou retrocessos ao tipo de ensino em tela. Já a problemática envolveu, igualmente no discurso docente, questões acerca de como a influência de pais religiosos no ensino de história da África e cultura africana interfere no combate ao racismo especificamente religioso. Para tal, a nossa hipótese foi a de que o discurso docente entende a percepção de pais religiosos, especialmente os de denominação evangélica, interferindo negativamente no ensino de história da África.

O trabalho foi organizado em dois momentos: o primeiro foi dedicado ao estudo do campo teórico-metodológico, tendo sido realizado levantamento bibliográfico de textos relacionados à temática. Os textos trabalhados nessa primeira fase trouxeram um debate sobre a discussão metodológica da Análise de Discurso (AD) francesa, na qual se procurou compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e de sua história (ORLANDI, 2005).

Neste primeiro momento, trabalhamos também a Teoria do Discurso (TD) de Ernesto Laclau e Mouffe (1985) de modo mais referencial, procurando situar práticas e lógicas investigadas em contextos políticos de modo que elas possam assumir uma significância hegemônica, provendo a base para uma possível crítica e transformação de sentidos sociais existentes (LACLAU; MOUFFE, 1985).

Entretanto, o foco da pesquisa foi o de buscar analisar como se estabelece a relação da pertença religiosa, no contexto familiar das crianças, com a atuação da escola no trabalho do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Assim, entrelaçando discussões em torno dos processos de educação formal e informal, com base na autora Maria da Gloria Gohn (2006), procuramos observar a articulação da escola com a comunidade.

O segundo momento ocorreu por meio de pesquisa feita virtualmente (por conta do contexto da pandemia Covid-19 que nos encontramos) em duas escolas públicas situadas na cidade de Recife, estas selecionadas devido ao trabalho significativo e representativo que desenvolvem com a lei 10.639 (BRASIL, 2003) junto à comunidade e ao município. Nelas foram realizadas entrevistas online, através de questionário com perguntas semiestruturadas, com cinco professores que lecionam o ensino de história da África e possuem perfil de atuação no movimento negro. Estes discursaram sobre o significado e o grau de importância que cada um dá ao ensino de história da África e dentro dele, ao trato com as religiões afro-brasileiras e igualmente, sobre possíveis influências de pais religiosos no ensino em tela.

A análise foi realizada a partir da categoria de hegemonia, ressignificada pela Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (1985) o que possibilitou, junto com a AD, identificar ideologias que perpassam os discursos dos entrevistados, observando aquelas que são hegemônicas e não hegemônicas no que se refere à relação escola, comunidade e religião. A conceituação de discurso não se vinculou apenas ao ponto de vista da fala, mas, a uma ação que vai além, posto que na TD ele não remete apenas aos domínios linguísticos, extrapola-os no sentido de que a nomeação é um ato que expressa relação social, ou seja, posições de sujeitos (LACLAU; MOUFFE, 1985).

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao se pesquisar a implementação de políticas educacionais ligadas à temática negra, destaca-se a lei 10.639 (BRASIL, 2003) que torna obrigatória o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas brasileiras. Sendo esta lei, como já colocado, uma conquista do movimento negro, ela traz o estudo da história da África, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, trazendo sua contribuição nas áreas social, econômica e política para a história do Brasil.

Diante disso, passamos agora a discutir o panorama de sua efetivação, dialogando acerca do trato específico da discussão cultural envolvendo as religiões de matriz africana no ensino de história da África. Para tal, foi analisado o discurso de cinco professores de duas escolas pernambucanas (que não serão identificadas, junto com os docentes, por questões éticas) que trabalham com o ensino de história da África e que, direta e indiretamente, possuem perfil de atuação no movimento negro. Refletindo sobre como o discurso deles constitui práticas articulatórias entre influências externas e o ensino em sala de aula, entende-se por discurso, como já salientado, um complexo relacional que envolve não só falas, mas práticas (LACLAU; MOUFFE, 1985).

Assim, primeiramente é preciso reconhecer, que a partir da referida lei, houve um aumento no que se refere ao trato com a história e a cultura africana nas escolas, principalmente se considerarmos a trajetória dos conteúdos programáticos. Entretanto, esta temática não pode ser limitada ao trato da memória do negro e sua participação na formação cultural e social no Brasil, mesmo esse sendo um ponto importante. Sobre isso, os profissionais da educação esboçam a necessidade de se promover momentos formativos e críticos de enfrentamento as discriminações raciais a partir de uma ideologia educacional vinculada ao que se denomina na atualidade de pedagogia multicultural

Trabalhando a questão das nossas origens, da formação do nosso país, então a gente vai resgatar os diferentes povos que fazem parte da construção desse país, trazer essa construção do continente Africano, também as questões indígenas. (ENTREVISTADO 01). Tento trazer da melhor forma, explicando que nós somos dessa descendência africana, nós temos essa formação enquanto povo África, porque parece que quando os pais olham, e até alguns alunos também os africanos, os descendentes de africano, eles são esquecidos ou postos abaixo dos demais por terem sido escravos; é uma situação bem complicada de se contornar, mas a gente tem que ir devagarzinho vai contornando com calma, com atenção, mostrando as influencias, saindo desse folclorismo. (ENTREVISTADO 02).[4]

A pedagogia multicultural, de acordo com Lopes e Munanga (2005), defende que o trato com a história da África

Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas [...]. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional. (LOPES; MUNANGA, 2005, p. 16).

Entretanto, o que vem atualmente causando polêmica na comunidade escolar, são conteúdos relacionados às religiões de matriz africana, sendo identificados ainda poucos educadores, no ambiente de educação formal e informal, que reconhecem que a identidade negra no Brasil está direta/indiretamente ligada à interação entre cultura e religião (OLIVEIRA, 2019). Contudo, o discurso é um complexo de elementos dados a partir de um conjunto de relações que possibilita a polissemia dos significantes. No caso dos docentes entrevistados, foi hegemônica a perspectiva de que buscam trabalhar com as religiões de matriz africana vendo neste debate a oportunidade de trabalhar a história afro-brasileira, mas também dar conta do debate da intolerância religiosa que é aqui caracterizada como racismo religioso, entendendo o trato dessas religiões a partir de uma ideologia cultural de afirmação da herança negra

Quando eu falo de questão religiosa, eu falo de questão de influência, de herança cultural, o que os negros nos deixaram. Os africanos deixaram de herança cultural, a comida, religião, vestimentas, palavras. A religião entra como herança cultural, que eu possa absorver daí muita coisa. (ENTREVISTADO 05). Objetivo é que eles conheçam outras formas de religiões e as respeitem pra que não precisem tolerar. [...] Tem que ter o respeito, que começa pela forma de falar dessas religiões. (ENTREVISTADO 04). A religião de matriz africana é uma das formas de resistência do nosso povo se manter. Trazer a sua cara pra o Brasil, eles conseguiram a partir das religiões de matriz africana, manter a cultura viva do povo africano. (ENTREVISTADO 02).

Assim, os professores entrevistados entendem, a partir da ideologia cultural da afirmação da herança negra que se fez hegemônica, que o trato com as religiões de origem africana representa algo positivo no processo educacional, se levarmos em conta nossa pluralidade sociocultural. Sobre isso, defendemos que a história do negro no Brasil está vinculada a sua religião, visto que ele não tinha condições de se defender de um regime no qual todos os direitos pertenciam aos brancos sem fazer uso de suas crenças, sobretudo na fase colonizadora (OLIVEIRA, 2019).

Outro ponto que circulou no discurso dos professores ao serem questionados sobre a temática religiosa no contexto do ensino da história e cultura da África, refere-se ao uso de expressões preconceituosas e racistas entre os estudantes, que potencialmente se transformam em intolerância dentro do ambiente escolar, porém o sentido relacionado às expressões foi determinado por relação com outros elementos. Considerando-se que a linguagem da criança é uma das manifestações próprias da cultura e da educação informal, para os entrevistados há uma relação entre esse ódio e o contexto da comunidade familiar, o que faz com que eles identifiquem a ideologia do racismo religioso neste espaço informal

Exatamente por causa dessa questão de intolerância, que não se entende que isso está dentro dos estudos, mas quando chega nesse momento os pais querem nos ensinar a ensinar, querem dizer que isso não cabe ao papel da escola, de educador de educar, que quem tem que educar pra isso é eles que são os pais, que não podemos ensinar, nem sequer mencionar, mostrar que existem outros tipos de religião que não somente as cristãs. [...] A comunidade, esse debate na comunidade é difícil e com os pais religiosos. (ENTREVISTADO 04). Eles não tiveram tanta oportunidade de estudar, pesquisar, de entender o significado, então eles usam do preconceito, daquilo que está pré-estabelecido, pré-julgado, e tomam como se fosse verdade. São pouquíssimos pais que têm o respeito, sabe que precisam estudar isso e ter respeito. Em sua maioria vai dizer que não concorda, que não é certo, especialmente os que são religiosos. (ENTREVISTADO 01).

Assim, é reconhecida, na fala dos entrevistados, a existência da relutância sobre o estudo das religiões afro-brasileiras pela comunidade escolar, em especial por pais religiosos de estudantes. Observa-se assim que a rejeição ao trabalho sobre essas religiões reafirma as articulações hegemônicas e legitima esses posicionamentos de relutância por parte dos progenitores. Os docentes reconhecem, no entanto, que esses pais são produto da ideologia eurocêntrica, que perpassou de algum modo suas formações.

Partindo da tomada de consciência dessa realidade à relutância dos pais quanto ao ensino das religiões de matriz africana, podemos considerar, no discurso docente, a presença da intolerância religiosa no ambiente escolar, esta se caracterizando pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar crenças religiosas de segmentos minoritários (OLIVEIRA, 2019; GOMES; CAMPOS; AMORIM, 2009). Porém, existe uma disputa pelo significado dessa realidade, constatando-se que muitos consideram tal relutância parte de um racismo religioso existente não somente no ambiente informal da comunidade escolar e da família, mas nas escolas também. Isso ressalta aquilo que já destacamos de que a hegemonia nem sempre é alcançada por aqueles que possuem os melhores argumentos, ou que defendem conceitos moralmente melhores ou mais progressivos.

Compreendendo que o estigma, presente no discurso dos pais com relação às religiões de matriz africana, é transmitido de forma consciente ou não, para as crianças que irão reproduzi-lo no ambiente escolar, precisamos, para que o respectivo ciclo seja quebrado, que a escola busque trabalhar a diversidade, não aceitando nenhum tipo de racismo

Cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados. (LOPES; MUNANGA, 2005, p. 17).

Contudo, considerando que mesmo se tratando de estruturas discursivas antagônicas entre discursos docentes e discursos familiares com relação ao ensino das religiões de matriz Africana, Laclau e Mouffe (1985) trazem que na relação antagônica não existem termos positivos, mas apenas diferenças e desse modo, cada significado se afirma pela distinção em relação aos demais. Isto é, não se trata de julgar, mas devemos dialogar junto aos familiares sobre o trabalho da história e cultura africana, estendendo seu estudo ao espaço educacional informal. Assim, talvez possamos construir coletivamente novas formas de convivência e de respeito entre professores, alunos e comunidade, resultando isso em práticas articulatórias entre elementos diferentes. Mas, essa transição embora necessária, não é automática, acontece de modo absolutamente contingente. Neste caso, é preciso que a escola se conscientize cada vez mais de que ela existe para atender a sociedade na qual está inserida e não o contrário. Sobre isso, a ideologia legalista de combate ao preconceito racial deu o tom dos discursos dos professores entrevistados

Foi uma história negada a eles também, conhecer a história afro-brasileira e africana é um direito de todos os brasileiros, porque essa é a história do nosso país também. A construção do nosso país se deu através da escravização do povo preto e todas as pessoas precisam conhecer a história, porque a história do povo preto está além, não começa com a escravização e nem termina com a abolição. (ENTREVISTADO 03). Os pais têm que conhecer, porque a gente está falando de educação de crianças, a gente está falando do futuro, educar crianças é muito importante isso faz parte da construção do futuro, mas o futuro a gente constrói hoje. [...] A educação não se faz só na escola, a escola é uma pequena parte dessa educação, fora da escola a comunidade, a família tem um papel fundamental nessa educação, além da família, a sociedade educa. A família, a sociedade inteira precisa sim saber da importância da educação das relações étnicos raciais, de ensino de história e cultura africana, tem que saber, precisa compreender, precisa saber dessa importância, precisa saber que isso é lei. (ENTREVISTADO 02). São questões muito minuciosas, os pais não devem ter tido esse contato com o estudo da África, como se está tendo hoje com os nossos alunos, a gente sabia que os negros foram trazidos como escravos, que teve alguma influência no Brasil, mas era muito folclórico. Quando você coloca dentro da casa o filho estudando o ensino de história da África, você tem que fazer um trabalho com essas famílias, tem que conversar com essas famílias também. (ENTREVISTADO 01).

Esse movimento tem impulsionado as escolas brasileiras a pensar sobre a necessidade de se criar estratégias de combate ao racismo e de valorização da cultura negra na comunidade escolar, sobretudo com relação ao respeito à diversidade religiosa. Mas, para se avançar nessa discussão faz-se necessário analisar a ideologia da autonomia do professor no contexto educacional, visto que a educação carece de princípios éticos que orientem a prática pedagógica e a sua relação com a questão racial na escola e na sala de aula. Sendo assim, o professor deve utilizar sua autonomia, para adotar determinada metodologia e materiais didáticos que estejam respaldadas em legislações e diretrizes antirracistas. Caso contrário, o educador não saberá lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar alunos e comunidade

Então assim, trabalho o ensino de história e cultura africana, de toda forma, porque estou na minha sala de aula, tenho minha autonomia, se alguma mãe chegar pra falar comigo converso, mas eu não deixo de trabalhar. (ENTREVISTADO 04). Deixo bem explicado como é a minha organização de trabalho, e como eu me coloco nessa organização de trabalho e como eu me imponho nessa organização de trabalho. Interessante ressaltar que trabalho de maneira bem livre dentro da minha sala de aula, trabalhar os conteúdos do meu jeito, porque eu construí essa história de dizer como faço as coisas, porque sou uma professora antirracista e o racismo não passa por mim. (ENTREVISTADO 05).

Identificada pelo discurso docente a influência de pais religiosos no ensino de história da África e a necessidade desse debate se estender da escola à comunidade, fora identificado também na fala dos entrevistados a ideologia da formação, tendo em vista, assumirem que muitas vezes faltam competências formativas e de planejamento neste âmbito

Desde o momento que cheguei nessa escola, cheguei me impondo, acho que a militância também ensina isso pra gente, que precisa chegar pisando firme. Quando vamos falar, travar essa luta do racismo, precisamos estar pisando firme, sabendo o que estamos falando, sabendo das leis, dentro do embasamento legal, e também tendo o embasamento pedagógico e didático, porque sou uma professora. (ENTREVISTADO 04). Quando eu senti uma pontinha desse estranhamento, desse impasse, eu procurava me armar, me munia dos argumentos científicos legais, pedagógicos, para não dar espaço pra isso acontecer e acho que é isso que a gente tem que fazer enquanto professor. Vamos fazer isso à vida inteira, porque não vai parar não. Eu sentia muito mais uma resistência dos pais com religião. [...] Não é questão de aceitar ou não, você não precisa aceitar a religião do outro, você não precisa se converter à religião do outro, mas você precisa entender que existe essa religião, que não é melhor ou pior que a sua. Toda uma conversa sobre respeito. (ENTREVISTADO 05). Um pai veio me perguntar “professora eu queria entender porque a senhora está trabalhando macumba em sala de aula”. Eu sempre converso com os pais de maneira muito branda, porque, na verdade, essas pessoas são frutos do racismo institucional e estrutural do lado de fora, quando eles vêm a mim, eles vêm refletindo esse racismo, o racismo que eles vêm se forem pais brancos eles batem de frente com o fruto do racismo deles, se forem pais negros, que é maioria, eles se veem refletidos em mim. Trato com brandura, porque eu sei que muitas vezes o entendimento é reduzido, porque a sociedade nos obriga a esse reducionismo. [...] Então eu chamei ele e mostrei o planejamento, mostrei que no meu planejamento tinha o trabalho dos debates das religiões, todas as religiões. Que era feira de conhecimento, mostrei o objetivo e a importância de todas as crianças compreenderem e conhecerem outras religiões, o mais importante pra mim, foi que ele parou conversou comigo, me entendeu, refletiu que quando estava trabalhando a sua religião ele não reclamou e quando estava trabalhando essa religião reclamou. [...] A conversa tem que vir de maneira respeitosa, e você tem que estar amparada por uma formação, sua organização, pelo que você vai dizer, por onde você vai dirigir a conversa. (ENTREVISTADO 02).

Mas, nesse sentido, não se trata apenas de planejamento pedagógico e sim de conscientização de professores e pais sobre a temática, ressaltando que no discurso dos docentes entrevistados, a ideologia da parceria que presume o apoio da gestão e da coordenação, colocou-se como mais atuante para a autonomia docente no trato dessa questão

Tive um apoio incondicional por parte da gestão nesse momento, que “nós não vamos lhe abandonar, porque sabemos que a sociedade precisa disso, não é só você que precisa é a sociedade que precisa”, foi muito gratificante, porque a escola abraçou a coisa, a gestão abraçou o trabalho, a gestão me deu meios de fazer o trabalho. Conversou com os pais, esses pais que foram mais incisivos de chegar e proibir os alunos, a gestão chamou pra conversar, tive um apoio muito forte, foi muito gratificante por isso. A direção da escola está presente, se fez presente. Alguns pais foram ver os meninos juntamente com a coordenação. A presença da gestão fez o trabalho ficar muito melhor, eu não tenho que reclamar. (ENTREVISTADO 01). Tenho o apoio da coordenação, a coordenadora é uma mulher preta, uma mulher que também trabalha com a história de África. Então ela sempre tem materiais, sugestões, sempre pesquisa alguma coisa e traz, tenho esse apoio por ser uma mulher negra, mestra em educação étnico-racial, isso faz a diferença no ambiente, faz muita diferença no trabalho do cotidiano também. (ENTREVISTADO 02). No meu caso tenho uma sorte de ter caído numa escola que tem uma gestão receptiva, é democrática, tenho autonomia em sala de aula, sempre tive autonomia em minha sala de aula, deste que entrei na rede, deste que entrei eu sempre tive autonomia, todas as propostas que levei pra minha sala de aula e para escola, sempre foram bem recebidas e acolhidas, dentro das possibilidades. (ENTREVISTADO 04).

Porém, os professores reconhecem que ao fazer o planejamento pedagógico deve-se levar em consideração o contexto cultural da comunidade e em especial dos pais, especialmente sua religião (ideologia da receptividade), isso feito não como empecilho para o respectivo trabalho, mas como ponto a ser considerado, visto que, o conteúdo não deve ser concebido como doutrinação, mas como estímulo a novas aprendizagens culturais com quebra de estereótipos

Tenho que ter a preocupação com a religião do pai que é diferente daquela que coloquei na atividade, fazendo menção a uma cultura, que no mês de novembro, cuja temática era relação ético-raciais, estudo da África e muito mais. Então assim, você vê que a preocupação sempre está voltada para os pais, porque são de outra religião (ENTREVISTADO 02). Nunca teve interferências dos pais diretamente, pra mim nunca teve. Porém, lógico que quando vou planejar alguma coisa eu penso nisso, eu não vou levar também nada que possa soar como agressivo para ninguém. Avalio o que dá pra levar e o que não dá pra levar e também tem a questão da idade, porque eles são pequenos pode ser que não tenha um impacto tão positivo. Mas, é lógico que avalio, eu já deixei de levar certos livros pensando que poderia gerar um alarde muito grande que iria acabar me atrapalhando mais que ajudando. Às vezes não é o material em si, mas as respostas que pode vir daquilo, às vezes é tão ruim, vai gerar um desgaste tão grande, que você acaba perdendo tanto tempo que poderia estar usando outra forma, construindo algo de uma forma positiva. (ENTREVISTADO 03). Já interferiu sim, no sentido de eu pensar que determinado material podia gerar um determinado desconforto, um desgaste, que eu iria perder mais tempo tentando explicar que se eu tivesse pegando outro material que iria passar sem estresse. Não é que por pensar que certos materiais não sejam pedagógicos, mas às vezes prefiro aquele negócio de evitar a fadiga. Às vezes prefiro, porque o tempo pedagógico é muito precioso, pra gente estar perdendo ele com brigas. Meu tempo é pra os meus estudantes, não é pra os pais, não é pra coordenadora, supervisora da escola, o meu tempo pedagógico é pra os meus estudantes, então prefiro focar nisso assim. A interferência nesse sentido só, mas nada que eu vá deixar de fazer, já levei livros que falavam dos orixás, e não teve nenhum problema. (ENTREVISTADO 04).

Todavia, no discurso dos docentes o ponto que causa mais polêmica no planejamento de suas aulas de ensino de história da África, relaciona-se às atividades envolvendo músicas e danças de religiões de matriz africana, principalmente como forma de apresentação para a comunidade escolar e está rejeição envolve mais, segundo eles, pais religiosos de denominação evangélica. Existe muita pressão por parte desses pais, segundo os entrevistados, para que seus filhos não participem das atividades, causando muitas divergências, pois, mesmo com os professores explicando que tais atividades são importantes para o campo educacional das crianças, pois fazem parte do contexto histórico e cultural dos ancestrais negros, os pais não concordam. No entanto, há um consenso na fala dos entrevistados acerca da ideologia do limite pedagógico, que sinaliza para a ideia de que os estudantes não devem forçadamente participar de tais atividades

A mãe evangélica chegou e falou “... professora olhe, ela não vai dançar maracatu, porque somos evangélicos e não dançamos” e a gente debatia é uma atividade da escola, é uma cultura, não tem nada demais. Era uma questão de respeito, mas, também uma situação de respeito às atividades da escola. No entanto, você não vai poder forçar ninguém a dançar, e não pode forçar a pessoa a apresentar uma dança, tem essas questões da criança se sentir constrangida naquele momento. Mas, você pode trabalhar com a criança sobre uma pesquisa de maracatu. (ENTREVISTADO 04). Uma mãe veio falar que ela não iria participar da apresentação cultural, porque a família dela era evangélica e não aceita. Falei tá certo, mas na minha sala de aula ela vai participar, ela pode não se apresentar na festa, mas nos momentos de sala de aula ela vai participar, e não há quem impeça. Conversei na época com a estudante, expliquei pra ela se ela não quisesse ela também não iria fazer, se ela não quisesse, ela não era obrigada, mas se ela quisesse ela iria participar, ensaiar com os outros colegas na sala, mas que ela não era obrigada a participar lá fora. Expliquei a família dela, que a gente não estava dançando simplesmente, mas a gente estava estudando, estávamos tendo um momento de aprender sobre os momentos culturais, sobre os movimentos do corpo com relação a essas danças que faz parte da nossa cultura. (ENTREVISTADO 01). Os pais evangélicos aqui na escola são os que interferem diretamente no trabalho do ensino de história da África e eles não aceitam que sequer se mencione qualquer coisa sobre as religiões de matriz africana. Os pais religiosos de outras religiões, também não gostam, mas, interferem menos, não são tão intolerantes. Os que aceitam, sem interferência alguma, não assumem religião, são sem religião ou, se assumem como ateus. (ENTREVISTADO 02).

Com base nessas discussões, compreende-se que o racismo é fruto de um longo processo de produção e reprodução de inferiorização da cultura negra, incluindo nesse processo as religiões de matriz africana. Sendo assim, fica igualmente compreensível o fato de que muitas crianças, ao se depararem com o ensino de história e cultura da África nas escolas, principalmente relacionado a determinadas pertenças religiosas, recorram a expressões e comportamentos estigmatizantes. Entretanto, o discurso da criança é constituído através de processos de identificação e significação contingentes que se estabelecem em meio às disputas hegemônicas. Estabelece-se que essa relutância acontece no momento inicial, mas após dar continuidade à respectiva temática, esse posicionamento é modificado, segundo o depoimento dos docentes, o que de acordo com a AD, se configura numa ideologia da desconstrução

Os estudantes têm os preconceitos deles, construídos e em construção, mas eles estão ali num ambiente que é propicio à aprendizagem, eles estão ali pra ter essa troca, então conseguimos dialogar. Ensinando a respeitar as diferenças. (ENTREVISTADO 05). Quando eu começava a falar algumas coisas aí eles “... eita professora isso é macumba”, eles perguntavam muitas coisas eram umas falas dos próprios estudantes pejorativas, mas quando eles falavam aquilo, no lugar de eu brigar, eu tentava mostra como era, como deveria ser. Tinha essa resistência deles, mas acabou que essa resistência deles foi mudando. Nos meninos menores esse trabalho é mais fácil, porque quanto mais novo melhor, mais aberto à gente está. Quando eles vinham com uma fala, com um termo preconceituoso a gente conversava, a resposta era diferente você percebia, aquela vontade de saber, a curiosidade sem malícia, isso de todas as crianças. [...] A gente ia explicando, criando, desfazendo um preconceito, isso com todas as crianças, sejam evangélicas ou não. (ENTREVISTADO 03). O preconceito vem da comunidade, dos pais que como posso dizer, tão próximos do fanatismo religioso. Não vou dizer que todos os pais religiosos possuem dificuldade com o ensino de história da África e as religiões de origem africana, agora dificultam, mas, as crianças, elas não vêm com esse preconceito. Basta à gente começar a conversar, dialogar que elas escutam (ENTREVISTADO 02).

Assim, reforçamos que o discurso presente no ambiente escolar é perpassado por inúmeras demandas particulares, advenham elas dos docentes, da comunidade ou dos estudantes. Neste sentido, faz-se necessário que se criem redes de equivalências que atuem na promoção de articulações identitárias, possibilitando que diferentes indivíduos convivam de forma respeitosa, com a finalidade de que o ensino de história e cultura da África assuma sua amplitude, promovendo debates e reflexões.

6 CONSIDERAÇÕS FINAIS

A respectiva pesquisa procurou examinar o discurso docente sobre as relações existentes entre o ensino de história da África e cultura africana e a influência da comunidade escolar, mais especificamente de pais religiosos neste tipo de ensino. Tendo como objetivo central analisar a fala de professores entrevistados sobre as formas de influência desses pais religiosos, verificou-se, por meio do discurso desses docentes com perfil de atuação no movimento negro, que quando se trata de educação de crianças é preciso considerar a diversidade. Reconhecendo-se que o processo de ensino e aprendizagem não se limita à instituição escolar (educação formal), constatou-se, através das entrevistas, que o contexto familiar (educação informal), carrega valores de culturas particulares que são transmitidos às crianças e que estes chegam à escola. Contudo, tais valores podem agregar pontos positivos ou negativos, visto que, muitos pais carregam estigmas internalizados, dentre eles o racismo.

Neste aspecto, pela fala docente, foi afirmado que os pais religiosos, sobretudo os de denominação evangélica, estão exercendo influência no espaço educacional referente ao ensino de história da África. Dentre estas, podem ser destacadas àquelas relacionadas ao comportamento das crianças no sentido de reverberarem conscientemente ou não, atitudes estigmatizantes e racistas que advêm de sua educação informal, o que não colabora com a alteridade e a aplicabilidade da lei 10.683 (BRASIL, 2003).

Diante disso, fora identificado nos discursos dos docentes entrevistados a interferência em suas práticas pedagógicas. Isto é, o professor que busca elaborar um trabalho relacionado ao estudo da história e da cultura negra através de momentos formativos e críticos de enfrentamento às discriminações raciais com o objetivo de desconstruir a visão dos alunos, enfrenta questionamentos críticos de pais religiosos, especialmente quando abordam as religiões afro-brasileiras.

No que se refere à perspectiva dos pais, os docentes evidenciaram em suas falas que o trato com as religiões de matriz africana é difícil, visto que essas religiões são associadas à demonização. Esta relutância aumenta se considerarmos as apresentações artísticas no ambiente escolar relacionadas a elas. Contudo, mais do que apresentações artísticas que envolvam elementos das religiões de matriz africana, faz-se necessário garantir o diálogo entre os pares e isto envolve a comunidade escolar como um todo, incluindo neste trajeto pais, discentes, docentes e gestores com ou sem religião.

Todavia, seria compreensível se o professor em seu discurso demonstrasse frustração quanto às respectivas interferências em seu planejamento escolar, entretanto, constatou-se que eles interpretam essa relutância de pais religiosos como carências educacionais do seu passado, sendo elas fruto de um ensino racista, intolerante e eurocêntrico e de uma relação incisiva/fanática com suas respectivas religiões. Conclui-se então que é preciso haver uma conscientização da comunidade escolar em relação à história e cultura do povo negro. Enfatiza-se desse modo, a importância do diálogo e da cooperação entre os campos da educação formal e informal, pois, é a partir dessa interação que o racismo, em suas várias formas, inclusive a religiosa, e a intolerância poderão ser transformados em respeito. Para tal reitera-se, é relevante que a escola se prepare para esse debate através de cursos de formação específicos

REFERÊNCIAS

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WILDAWSKY, Aaron. et al. Cultural theories. Boulder, Colorado: Westview Press, 1990.

Notas

1 [...] called articulation any practice that establishes a relationship between elements in such a way that its identity is modified as a result of the articulatory practice. The structured totality resulting from this articulatory practice will be called discourse (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 105)
2 People in society share values and beliefs, which are their cultural orientations. Furthermore, they maintain relationships with each other. A culture is a way of life that integrates, in a viable way, cultural orientations and forms of social interaction. Which, in turn, depends on the social structure in which individuals participate. (WILDAWSKY, 1990, p. 47)
3 [...] is not reached by those who have the best arguments, or by groups that are morally better compared to a universal ethical content. Nothing guarantees that the hegemonic discourse is better or more progressive than its competitors, as the hegemonic operation is not evaluative or morally measurable, but just a war of forces between opposing groups. (SMITH, 1988, p. 184).
4 Pesquisa realizada com cinco (05) docentes de escolas públicas pernambucanas, situadas na cidade de Recife, entre março e abril de 2021 por meio de entrevistas online feitas via questionários com perguntas semi-estruturadas.
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