Resumo: Este artigo apresenta o tema do apofatismo. Na teologia, ele se apresenta como “teologia negativa” ou como renúncia (aphaíresis) à materialização de Deus em formulações conceituais, preferindo assim uma “teologia simbólica” que “celebra” o Sagrado com imagens ou ícones. Já na filosofia, aparece relacionado ao discurso negativo sobre o Ser ou ao Uno-bem; e, também, como crítica à teologia cristã por ter transformado Deus num ídolo noético, construído com argumentos metafísicos (ontoteológicos) e fixado em linguagem logocêntrica. E, no misticismo, o apofatismo entende a superioridade do “Mistério” - que é experienciado na mística - reconhecendo a sua “inefabilidade” e o seu “anonimato”, bem como a sua “niilidade”. Entre os nossos referenciais teóricos se destacam: Deirdre Carabine, Cristos Yannaras, Jean Luc-Marion e Vladimir Lossky. O resultado final é a concepção da existência de uma tradição apofática no cristianismo que tem a sua originalidade no “discurso negativo” dos filósofos da Grécia antiga, sua configuração em “teologia negativa” e na “mística de trevas” a partir da Patrística e como crítica às concepções ontológicas de Deus na modernidade e na contemporaneidade.
Palavras-chave: Apofatismo, Teologia aphairética, Filosofia negativa, Mística das trevas.
Abstract: This paper aims to present the theme of apophaticism. In theology, it is described as “negative theology” or as a renounce (aphairesis) to the materialization of God in conceptual formulations, privileging a “symbolic theology” that “celebrates” the Sacred with images or icons. On the other hand, in philosophy, it appears linked to the negative discourse about Being or to the One-good; and, also, as a criticism of Christian theology for having transformed God into a noetic idol, built with metaphysical arguments (ontotheological) and expressed in a logocentric language. And, in mysticism, apophaticism perceives the superiority of the “Mystery” - which is experienced in mysticism - recognizing its “ineffability” and its “anonymity”, and its “nihilism” as well. Among our theoretical references are Deirdre Carabine, Cristos Yannaras, Jean Luc-Marion, and Vladimir Lossky. The final result is the conception of the existence of an apophatic tradition in Christianity that has its originality in the “negative discourse” of the philosophers of ancient Greece, its configuration in “negative theology” and in the “mystique of darkness” from Patristicism on, and as a critique of the ontological conceptions of God in modernity and contemporaneity.
Keywords: Apophatism, Aphairetic theology, Negative philosophy, Mystique of darkness.
Resumen: Este artículo presenta el tema del apofatismo. En teología, se presenta como “teología negativa” o como renuncia (aphairesis) a la materialización de Dios en formulaciones conceptuales, prefiriendo así una “teología simbólica” que "celebra" lo Sagrado con imágenes o iconos. En filosofía, en cambio, aparece relacionado con el discurso negativo sobre el Ser o con el Uno-Bien; y, también, como crítica a la teología cristiana por haber transformado a Dios en un ídolo noético, construido con argumentos metafísicos (ontoteológicos) y fijado en el lenguaje logocéntrico. Y, en la mística, el apofatismo comprende la superioridad del “Misterio” - que se experimenta en la mística - reconociendo su “inefabilidad” y su “anonimato”, así como su “nihilidad”. Nuestras referencias teóricas incluyen: Deirdre Carabine, Cristos Yannaras, Jean Luc-Marion y Vladimir Lossky. El resultado final es la concepción de la existencia de una tradición apofática en el cristianismo que tiene su originalidad en el “discurso negativo” de los filósofos de la antigua Grecia, su configuración en la “teología negativa” y en la “mística de las tinieblas” de la época patrística y como crítica a las concepciones ontológicas de Dios en la modernidad y la contemporaneidad.
Palabras clave: Apophatismo, Teología afairética, Filosofía negativa, Mística oscura.
ARTIGOS
A TRADIÇÃO APOFÁTICA: perspectivas filosófica, teológica e mística do apofatismo
THE APOPHATIC TRADITION: philosophical, theological and mystical perspectives of apophatism
LA TRADICIÓN APOFÁTICA: perspectivas filosófica, teológica y mística del apofatismo
Recepción: 14 Marzo 2021
Aprobación: 30 Noviembre 2021
A palavra apofatismo, em grego antigo apóphasis ou apóphemi (ἀπόφασις ou ἀπόφημι) - geralmente, é traduzida como negação. Na filosofia, o apofatismo se trata do discurso negativo sobre o Ser e o Uno, das fronteiras do saber e do exprimir (conforme a mística especulativa) e, também, da crítica à metafísica ocidental na sua constituição como ontoteologia. Na teologia, se apresenta como a renúncia (aphaíresis: ἀφαίρεσις) à pretensão de se ter a compreensão da natureza divina ou de uma interpretação teológica absolutista. Na mística, surge como via de conhecimento e experiência religiosa que passa pela recusa radical a toda objetivação do Mistério em formulações ou conceitos e pela consciência da superioridade divina e dos limites da linguagem humana.
A presença do apofatismo em escritos de filósofos, teólogos e místicos no Oriente e no Ocidente nos faz pensar na existência de uma tradição apofática. Embora não existam trabalhos que tratem exclusivamente dessa tradição, não são poucas as obras que utilizaram esta expressão dando a entender que não é nenhum absurdo afirmá-la.[1]
Tradição é um termo complexo e equívoco, por isso, é necessário dizermos em qual sentido o empregamos. Assim, chamamos de tradição apofática toda aquela linhagem de pensadores que adotaram o apofatismo como discurso, método ou via de acesso ao conhecimento de Deus ou do Ser. Diz respeito àqueles pensadores que devido às influências recebidas souberam, com criatividade, propor e repropor o apofatismo o transformando num legado que transversalmente se fez tema forte em escritos místicos, teológicos, filosóficos.
Assim, o apofatismo está presente em diversas escolas de pensamento. Ele não é apenas um tema presente em trabalhos de alguns pensadores que fizeram dele a insigne tese de um pensar em conjunto e em desenvolvimento. Dificilmente se poderá negar que o apofatismo está presente em importantes nomes da filosofia, da teologia e da mística que influenciaram diretamente, não só correntes de pensamento, mas gerações de pensadores. Isso, de algum modo, nos faz visualizar certa continuidade do saber apofático e nos faz acreditar que se constitua como uma tradição; talvez esta seja a melhor expressão a utilizar.
De acordo com o Dicionário básico de filosofia o termo tradição, que vem do latim traditio ou tradere, indica “continuidade, permanência de uma doutrina, visão de mundo ou conjunto de costumes e valores de uma sociedade, grupo social ou escola de pensamento, que se mantêm vivos pela transmissão sucessiva através de seus membros.” (JAPIASSU; MARCONDES, 1996, p. 269). Tradição não pode ser interpretada como algo que pertence apenas ao passado, senão se refere ao presente. Assim, se refere a uma forma de pensamento ou cultura que fora transmitido ao longo da história, mas que se faz presente através daqueles que pertencem a uma comunidade tradicional, uma religião, uma corrente de pensamento ou grupo cultural ou social etc.
Compõem a ideia de tradição três elementos, a saber: a transmissão de um conteúdo, a forma como esse conteúdo é transmitido, bem como os sujeitos (ou expoente) vinculados a essa transmissão (LATOURELLE; FISICHELLA, 2018). Deste modo, ao falarmos da tradição apofática sinalizamos que o conteúdo transmitido é o próprio apofatismo. Já os meios de transmissão estão relacionados à adoção desse conteúdo como uma forma de pensar e à influência que importantes nomes, que adotaram o apofatismo como discurso, método ou via de conhecimento místico, tiveram em pensadores posteriores. Vinculado a este ponto, é possível dizer que entre os sujeitos que compõem esta tradição estão filósofos e teólogos, crentes e ateus, místicos cristãos, islâmicos e judeus, bem como escolas de pensadores desde o mundo grego até o mundo atual.[2] Vale dizer que embora haja certa influência, proximidade e continuidade, cada expoente interpreta o apofatismo dentro do horizonte do seu pensamento, isto é, no seu contexto histórico, social, religioso, teológico, filosófico, político, científico etc.
Sem a pretensão de esgotar o assunto e prescindindo de propor uma lista de pensadores que compõem esta tradição, o que também nenhum pesquisador ousou delimitar, propomos dizer sobre o apofatismo em três perspectivas, a saber: filosófica, teológica e mística. A organização em três perspectivas ou pontos de vista, trata-se de uma forma de distinção, o que não significa separar, senão demarcar as correntes, movimentos, as continuidades e os contextos.
Em perspetiva filosófica, o apofatismo está relacionado ao discurso sobre o Ser e o Uno, ao conhecimento humano (gnose), à linguagem. Neste sentido, trata-se da negação das afirmações do Ser e do Uno, da superioridade em relação aos entes, sobre os limites da inteligência humana em conhecer perfeitamente a natureza divina, bem como sobre a inefabilidade do princípio. Nesta perspectiva, o apofatismo envolve a ontologia, a gnoseologia e a linguagem.
O apofatismo marca que a experiência do objeto de conhecimento ou a relação que o ser humano estabelece com ele não é abarcada, em toda a sua plenitude, pela linguagem que busca apresentá-lo. Daí, o apofatismo além de se referir a um saber, se faz também como um discurso. O discurso apofático se constitui de palavras, porém menos de afirmações e mais de negações, porque o agente do discurso sabe que as palavras não esgotam a realidade que representam; em outros termos, reconhece a inadequação da linguagem em explicar determinados fenômenos ou realidades que não podem ser objetiváveis (tais como Deus ou o amor). Por isso, utiliza-se de palavras como elementos simbólicos e, por vezes, poéticos para expressar e comunicar uma experiência ou um saber (CARABINE, 2015).
Como discurso apofático, sua origem é grega. Neste cenário, o apofatismo manifestou-se em sua forma discursiva nos textos dos filósofos (CARABINE, 2015). Primeiramente, aparece nos escritos de Parmênides de Eleia, um dos pais da ontologia, que usou a via negativa como discurso sobre o Ser e o Uno (BLANCO, 2020). No fragmento 8 de um poema, intitulado Sobre a Natureza, que visa a refutação dos argumentos dos homens sabedores (sophoi) que debatiam sobre a origem do cosmos, Parmênides põe na boca de uma deusa a mensagem de que é preciso aproximar de um saber autêntico que renuncie ou ignore a via da opinião (SANTOS, 2002, p. 92). Logo, o discurso negativo renuncia a toda forma de opinião visando o verdadeiro conhecimento.
O conhecimento ontológico (sobre o Ser) se alcança através do conhecimento verdadeiro que exige a renúncia à sensação, ou seja, abnega aquilo que é do mundo sensível porque é uma ilusão e confunde o Ser com o Não-Ser (SANTOS, 2002). Com uma espécie de ontologia negativa o filósofo de Eleia buscou proclamar que o Ser é diferente e superior a tudo. Aquele que permanece em sua unicidade e é diferente de todas as coisas, desvela a sua verdade (aletheia) à medida que se renuncia a opinião (CARABINE, 2015).
Além de Parmênides, os escritos de Platão também marcaram a história do apofatismo, inclusive influenciando a filosofia e a teologia posteriores. O apofatismo platônico indica a superioridade das formas eternas (a verdade, a beleza e a bondade) que, embora possam ser conhecidas, são superioras à inteligência humana responsável por captar os seus efeitos e não a sua plenitude: para alcançar o autêntico conhecimento é preciso superar também as sombras (PLATÃO, 1993, Rep., VII, 514a-541b).
Tal como aquele prisioneiro, citado no livro A república, se liberta das correntes e contempla o sol do lado de fora da caverna, o ser humano precisa se livrar das amarras da opinião e, com isso, renunciar a todas as sombras do real para alcançar a realidade verdadeira: o Bem Supremo, que é suprassensível, e convergente à ideia pura, o princípio, o Uno que é eterno, imutável e superior ao Ser (PLATÃO, 1993, Rep., VII, 509b). Diferente de Parmênides que faz coincidir o Uno com o Todo e com o Ser, para Platão, o Uno é diferente do Ser: aquele que é absolutamente indivisível e absolutamente simples (REALE, 2007).
As características genuínas do Ser e do Uno, que se traduziram como a teologia platônica, se tornaram temas importantes para a tradição platônica e neoplatônica. Logo, o Uno, que é também bondade, é pensado como divino (PLOTINO, 2007, En., IV, 8, 1,).[3] Conforme Plotino (2007, En., VI, 9, 4, 14-16), Ele atrai para si, embora não se mova no espaço, mas atrai como desejável. E é, neste sentido, que falamos de união (theosis), a união da alma com aquilo que deseja o Uno, o Bem. Então, o Uno atrai a inteligência humana em busca da unidade, embora ele mesmo não careça ou necessite de alguma coisa. Com a unidade com o Bem se efetiva um tipo de conhecimento também superior que não se esgota em explicações, em palavras ou conceitos. Segundo Ullmann, “o conhecimento resultante da união com o Uno pode ser expresso em palavras, embora seja difícil exprimir a união.” (ULMANN, 2008, p. 160).
Com forte influência de Porfírio e Jâmblico, o apofatismo de Proclo trata-se de uma compreensão da superioridade e inefabilidade do Uno. Utilizando da analogia do Sol, muito comum no platonismo e na tradição neoplatônica, e da expressão epékeina tês ousías (além de todo o ser), Proclo evoca o sentido obscuro do Uno e do seu conhecimento (MARSOLA, 2007). Conforme Marsola, este filósofo funda uma mística das trevas que influenciará a tradição cristã. É certo que a mística filosófica (mystiké theoria) de Proclo apresenta-se constituída também por uma via analógica, e, neste contexto, é que surge a via apofática (MARSOLA, 2007).
O apofatismo está relacionado à superioridade e à inefabilidade do Uno, sendo que a unidade implica numa necessidade de renunciar a tudo o que o pensamento pode adicionar ao Uno (CARABINE, 2015). “A aphaíresis leva-nos a considerar que o intelecto, enquanto totalidade do inteligível, não é o termo último ao qual nossa mente chegará.” (MARSOLA, 2007, p. 367). Assim se apresenta o que podemos afirmar como misticismo especulativo que influenciou teólogos e místicos cristãos.[4] O apofatismo se apresenta como uma espécie de teologia negativa que reconhece a superioridade do Uno. Com isso, “[...] a teologia positiva deve ceder lugar à teologia negativa, que é verdadeira, enquanto afirma positivamente que a divindade está além das nossas afirmações e negações.” (ULLMANN, 2008, p. 214).
Ao se esculpir como um discurso filosófico que identifica o Ser ou o Uno a Deus, a perspectiva filosófica se configurou (sobretudo, entre os místicos cristãos em tempos patrísticos) como uma mística especulativa ou filosofia mística, isto é, como forma de experiência e saber místico-religioso de sentido radical do encontro com o Outro Absoluto (LIMA VAZ, 2000, p. 20).[5] Para entender esse encontro é preciso tomar a referência o pensamento de Lima Vaz sobre os dois eixos característicos da estrutura da mística especulativa.
O eixo subjetivo, correspondendo a uma ordenação vertical e hierárquica das atividades cognoscitivas da alma (psyché, anima) e, por conseguinte, das formas de conhecimento, culminando com a inteligência (nôus, mens) no seu ato mais elevado (nóesis, intuitivo). [...] O eixo subjetivo, que sustenta a experiência mística na sua forma especulativa, orienta, desta sorte, a alma na direção que conduz ao exercício pleno da sua capacidade de abrir-se ao Absoluto [...] por uma forma de conhecimento supra-racional, do qual se origina o êxtase do amor, num quiasmo perfeito entre o conhecimento e amor, cuja expressão ultrapassa os limites da razão discursiva. O eixo objetivo repousa sobre a pressuposição de que, à capacidade do ser humano de conhecer e amar o Absoluto, corresponde a realidade objetiva desse mesmo Absoluto intuído e amado [...] numa paradoxal relação de sujeito a objeto, que forma como que o cerne da mística especulativa. De um lado, o esforço do espírito humano para alcançar, pelo conhecimento e pelo amor, o vértice da pirâmide do ser, tal como parece elevar-se aos olhos da sua inteligência. De outro, esse vértice do ser, apenas entrevisto, distancia-se ao infinito, mergulhado numa profundidade insondável, para além de toda intuição distinta. (LIMA VAZ, 2000, p. 31-32).
Segundo Lima Vaz esse eixo objetivo se constitui de dois caminhos, a saber: a via do êntase que diz respeito à “descoberta do Absoluto no íntimo do Si substancial” (VAZ, 2000, p. 33) e a via do êxtase que se refere à “descoberta no ápice da ordem ascendente dos seres” (VAZ, 2000, p. 33). Estes dois movimentos assinalam, na mística neoplatônica e cristã, uma compreensão de que o encontro com o Absoluto se constitui como um ver transracional ou uma espécie de excessus mentis (LIMA VAZ, 2000, p. 33). Logo, considera-se não apenas a impossibilidade de a inteligência alcançar o Absoluto em toda a sua potencialidade e energia, mas assinala a impropriedade da linguagem humana em apresentar o ser divino, o Uno-Bem. Toda essa matriz teórica e linguística do apofatismo será importante influência em diversos filósofos cristãos ao longo da idade média, mostrando a superioridade de Deus (interpretado também em categorias filosóficas como Uno-bem e o Ser), os limites do conhecimento humano e a impropriedade dos conceitos objetivos da linguagem humana (PSEUDO-DIONÍSIO, 2004, Hc., I, 3, 121 C).[6]
Não se pode deixar de sinalizar as configurações do apofatismo filosófico como crítica à teologia cristã e sua absolutização indevida de Deus em termos de uma objetivação metafísica. Na modernidade e na pós-modernidade, destaca-se uma espécie de mística sem Deus, como fora denominada por Sell e Bruseke (2006) no livro Mística e sociedade. Esta espécie de mística filosófica apresenta uma crítica contundente à teologia cristã que, em nome da absolutização do Ser, fez Deus refém de uma linguagem lógica e distante de qualquer forma de pessoalidade.
As compreensões metafísicas do Ser de Deus será o grande tema da teologia e filosofia medieval e receberá crítica contundente dos filósofos modernos. Ainda que seja uma crítica ao cristianismo e à sua moral, esses filósofos entenderam que a teologia cristã dogmatizou o Ser. Este se tornou o Deus do cristão, elevado pela metafísica dos teólogos que cristianizaram a tradição ontológica.
Neste período histórico, o apofatismo também surge como crítica à teologia cristã por ter transformado Deus num ídolo noético, construído com argumentos ontoteológicos e fixado em linguagem logocêntrica (MARION, 1982; DERRIDA, 1971). Daí, o apofatismo assinala a necessidade da desconstrução dessa linguagem lógico-filosófica com pretensão de verdade absoluta da libertação da teologia e do seu objeto (Deus) das amarras das concepções pretensiosas de objetivar Deus em fórmulas ontológicas.[7]
Heidegger (1979) utilizou o termo ontoteologia para criticar os teólogos que esqueceram da verdade do Ser e transformaram Deus na Causa Sui ou mesmo num Super Ser com característica dos entes e, assim, criticou o que chamou de metafísica cristã.
A ontoteologia é reconhecida por Heidegger como a própria constituição da metafísica, enquanto esquecida da questão do ser mesmo: remetendo a questão do ente enquanto tal (em seu ser) à questão do ente supremamente ente, fundamento do ente em seu todo, ela torna a fechar a questão da diferença ontológica. (DUBOIS, 2005, p. 226).
Lima Vaz se refere ao filósofo alemão dizendo que a sua experiência do Ser “é uma experiência mística desfigurada que tenta exprimir-se no domínio duma linguagem poética e paraconceptual, na qual o que de fato se significa é a pura presença do sujeito (ou dasein) a si mesmo na sua mais radical imanência.” (VAZ, 2000, p. 20).[8]Para a crítica contemporânea, que também proclamava o esgotamento de todos os fundamentos, esta “seria uma concepção racional conceitual de Deus que oculta o que Ele é verdadeiramente.” (MORA, 2010, p. 184, tradução nossa).[9]
De certo modo, esse discurso ontoteológico se constitui de formulações sem sentido ou inválidas. Um Deus descrito assim não deve ser seguido e nem cabe lhe dedicar rezas e nem sacrifícios. “[...] Diante da causa sui, não pode o homem nem cair de joelhos por temor, nem pode, diante deste Deus, tocar música e dançar.” (HEIDEGGER, 1979, p. 201). Com um Deus feito em conceitos não estabelecemos autênticas relações; portanto, ele não pode existir a não ser que a teologia o liberte de suas categorias racionais.
De acordo com essa crítica, esse ídolo metafísico, que também se tornou o fundamento e a estrutura central da doutrina moral que influenciou o Ocidente, parece bem distante daquele apresentado nos Evangelhos. O que o louco de Nietzsche disse faz todo sentido. “Deus está morto! E quem o matou fomos nós.” (NIETZSCHE, 1982, p. 147). O que foi chamado proclamação da morte de Deus pode ser melhor interpretado como um anúncio histórico, isto é, a constatação que um tipo de concepção e linguagem sobre Deus não faz mais sentido.
A crítica também se estende à linguagem teológica. Assim se concluiu que a teologia preferiu uma linguagem positiva para expressar o Mistério inefável. É o mesmo que dizer que a teologia fez de Deus um senhor que passou a ser escravo de uma linguagem logocêntrica, uma linguagem irredutível repleta de uma lógica metafísica: argumentos silogísticos centrados na construção filosófica do lógos e que pretendem provar a existência de Deus (DERRIDA, 1971). Neste ponto, podemos citar Jacques Derrida (1971), o filósofo da desconstrução apofática, que indicou que a cultura ocidental fez do discurso sobre o ser a sua gramática. Logo, essa cultura ficou retraída ao lógos e, sendo refém desse paradigma, rejeitou qualquer outro discurso, sobretudo, o apofático (FRANKE, 2007, p. 09).
Segundo o filósofo, logocentrismo se refere ao imperialismo do lógos tanto na metafísica ocidental quanto na teologia cristã e na interpretação da Escritura (DERRIDA, 1971, p. 17).[10] Assim, sob a influência do apofatismo, propondo a desconstrução de todas as significações que têm sua fonte no lógos, em particular a significação da verdade, Derrida argumentou que o Ocidente privilegiou a centralidade dele (lógos); ou seja, dos sistemas de pensamento como matéria inalterável, fixadas no tempo como verdades definitivas e irrefutáveis. De tal modo, todas as determinações metafísicas são mais ou menos imediatamente inseparáveis de uma razão pensada descendente do lógos ou da sua instância, em qualquer sentido que o entenda (DERRIDA, 1971, p. 17). Portanto, mesmo identificando a origem da teologia positiva advinda do mundo grego, não obstante, a tradição cristã fez uso considerável desta linguagem.
Esse apofatismo, configurado em filosofia da desconstrução, retomou, com pensadores como Jean Luc-Marion, o caminho da teologia negativa clássica. Tendo forte influência cristã, Jean-Luc Marion também denunciou a teologia metafísica constituída como uma ontoteologia nos termos heideggerianos e a compreendeu como uma forma moderna e contemporânea de idolatria. No seu livro Deus sem Ser, Marion (1982) alerta que essa concepção teológica, com pretensão de verdade absoluta, transformou Deus num ídolo que reteve o olhar em formulações objetivas e não foi capaz de reconhecer que a teologia é como ícone, que aponta para o Mistério Absoluto, anterior e superior a todo conceito.
Assim, o apofatismo se reconfigurou como a retomada de uma consciência dos limites: tanto da inteligência, na sua pretensão de alcançar a natureza divina, quanto da linguagem humana, em falar de algo que não pode abarcar. Ele, o apofatismo, se tornou a própria crítica: como via de superação de uma teologia cristã com pretensões de verdade absoluta e como renúncia a um discurso teológico preso ainda a uma linguagem ontoteológica e sem sentido para o ser humano contemporâneo.
Em perspetiva teológica, o apofatismo se apresenta como teologia negativa ou apofática. Dizer que a teologia apofática tem início com o cristianismo é uma afirmação não consensual que pode ser visualizada nos trabalhos daqueles que estudam os filósofos, teólogos e místicos da tradição apofática. Um dos elementos causadores de dificuldade é a própria compreensão de teologia. Este termo já estava presente na Grécia Antiga, utilizado por Platão, mas comum nos debates dos filósofos pré-socráticos (CARABINE, 2015).
A princípio, a teologia estava relacionada aos mitos e, nos escritos platônicos, se referia à crítica filosófica aos deuses e à natureza deles (REALE, 2007). Sem embargo, quando se fala em teologia, no contexto do pensamento filosófico na Grécia Antiga, indica-se a presença desta terminologia e concepção na obra de um discípulo de Platão e fundador da Escola Peripatética: Aristóteles. Foi ele quem denominou de teologia a reflexão metafísica sobre o Ser (REALE, 2007). Ademais, não são poucos os trabalhos de pensadores e pesquisadores, de ontem e de hoje, que denominaram de teologia aquela reflexão filosófica sobre o princípio (o Ser, o Bem, o Uno etc.). Não por acaso, fala-se de teologia platônica, teologia aristotélica, teologia plotiniana, entre outras. Daí, a terminologia teologia apofática empregada ao pensamento de Platão ou de Plotino não é algo incomum, ainda que não sejam teólogos no sentido estrito da ciência dos cristãos. Em outras palavras, o discurso negativo da teologia platônica ou plotiniana pode ser dito como teologia apofática.
Além disso, em relação a outras tradições religiosas e suas teologias, não é estranho ouvir falar em apofatismo judaico, cristão, hindu etc. Raimon Panikkar, teólogo cristão que buscou diálogo com a tradição hinduísta, chegou a mencionar o apofatismo budista. [11] Também místicos judeus e cristãos falaram da existência de um apofatismo bíblico presente em alguns livros sapienciais, como nos Salmos e no Cântico dos Cânticos, e em textos como de Êxodo que relata o episódio de Moisés e a sarça ardente.
De todo modo, consideramos aqui a teologia de tradição apofática a partir da reflexão sobre o Deus no judaísmo e no cristianismo. Segundo Lima Vaz, no livro Escritos de filosofia VII (2002):
O apofatismo teológico supõe justamente percorrido o itinerário teológico ao termo do qual um movimento de autonegação descobre o vazio abissal de uma plenitude inapreensível por um logos distinto, mas cuja experiência, positivamente inefável, torna possível o discurso apofático de nomeação do Absoluto. Esse duplo paradoxo está subjacente às discussões atuais sobre a pertinência ou não do paradigma ontoteológico, de feitura heideggeriana, em ordem à interpretação das formas clássicas da metafísica cristã. Essa é, estruturalmente, uma ontologia teologal. O aparente desconhecimento dessa sua natureza levou Heidegger a incluí-las no esquema ontoteológico, consequência, aliás, da sua historicamente equivocada leitura da história da ontologia de Parmênides ao neoplatonismo. (LIMA VAZ, 2002, p. 276).
Essa teologia parte da consciência de que Deus é superior a qualquer formulação da inteligência e da linguagem humana. Ela é ciência da superioridade e da inefabilidade divina: Deus não é nada do que podemos definir ou nomear, Ele não se confunde com nenhuma das criaturas, ao mesmo tempo em que nenhum nome lhe convém (PSEUDO- DIONÍSIO, 2004, Dn., VIII, 597 C).
Embora o apofatismo teológico seja mais manifesto nos escritos dos Padres da Igreja, é verdade que se pode dizer de uma teologia negativa já presente em trabalhos anteriores, como é o caso do filósofo e teólogo Fílon de Alexandria. Ele foi o primeiro a propor uma conciliação entre a fé e a razão filosófica, de modo que o seu nome marcou a história especialmente pela sua ousadia em conciliar as categorias do platonismo com a Toráh, a escritura sagrada dos judeus (MORAES, 2017). Daí, o filósofo postulou o apofatismo como teologia, e assim, tratando da diferença ontológica entre o Ser e o Não-Ser, Fílon afirmou a superioridade divina em relação às coisas que existem. E, se considerando discípulo de Moisés, proclamou a superioridade, mas também a inefabilidade do Senhor, isto é, daquela essência oculta no mistério do tetragrama sagrado.[12]
No caso do cristianismo, restringindo aqui a compreensão de teologia para além da noção de teologia fontal (a Sagrada Escritura), é seguro dizer que o apofatismo teológico tem suas raízes no período patrístico. Na Patrística, o apofatismo não apareceu da mesma forma nos escritos de todos os seus expoentes. Em alguns textos, há apenas citações com caráter negativo, como parte de um discurso que assume a inefabilidade divina e, logo, a superioridade de Deus. Em outros textos, o apofatismo aparece como via teológica, como caminho necessário para a unidade com o Mistério e para o seu conhecimento.
Essa teologia teve como fonte a Sagrada Escritura e um aspecto litúrgico-espiritual.[13] Além disso, ela se inspirou nas categorias neoplatônicas para um diálogo com as culturas; aliás, essas categorias foram fundamentais para a criatividade teológica que precisou refletir sobre a fé e sistematizar a crença em dogmas, frente aos debates e querelas em torno das interpretações de diversos grupos, como os vinculados aos movimentos filosóficos, que acabaram sendo considerados heréticos. Afinal, o apofatismo teológico teve assim inspiração bíblica, bem como contribuições da teologia neoplatônica.
Os teólogos patrísticos influenciaram toda uma teologia posterior, o que vale também para o seu pensamento apofático; que por sua vez, influenciou teólogos no decorrer da idade média, modernidade e na atualidade. Ao trata do apofatismo teológico medieval e moderno, Luiz Oviedo (2003) afirmou que o primeiro se constituiu como um caminho ou via que visa a aproximação do ser humano do mistério de Deus; “caminho completado por meio da analogia ou da eminência que conseguiam exprimir esse mistério de modo mais positivo.” Daí, se pode falar em teologia negativa ou teologia apofática que se configura como via de conhecimento teológico ao lado da catafática ou teologia afirmativa. Aquela assinala a necessidade de renunciar as formas de objetivação de Deus em formulações categoriais que visam expor a natureza divina. A teologia negativa se faz como aphaíresis ou como a negação de um conhecimento pleno daquele que é Mistério hiperessencial e superior a toda linguagem humana.
Com a redescoberta da filosofia de Aristóteles, por volta do século XIII (Idade Média), muitos teólogos transformaram o Ser na sua grande reflexão filosófica. A Escolástica (sec. IX ao XVI), matriz teológica medieval, tratou Deus como o Ser divino, de modo que Deus passou a ser celebrado como o Ser Supremo, a Causa sui. Dele tudo veio, a Causa Primeira, que tudo move sem ser movido; com muitas semelhanças ao motor imóvel de Aristóteles. Utilizando das categorias da filosofia platônica e aristotélica, os teólogos afirmaram a inefabilidade do Ser Supremo que não poderia ter a sua natureza conhecida: assim era a teologia negativa.
De acordo com Cristos Yannarás (1995), este período marcou também a diferença entre o apofatismo teológico do Oriente e do Ocidente. O primeiro é de vertente grego- oriental e tem o Pseudo-Dionísio como o nome mais expressivo e influente, sendo o seu apofatismo caracterizado como um apofatismo da persona. A segunda vertente tem a teologia escolástica como sua forma mais manifesta e tem como marca um apofatismo da ousia. Estas duas formas dizem respeito mais a uma compreensão gnosiológica do que a um âmbito ontológico como a terminologia utilizada pode nos induzir a pensar (YANNARAS, 1995).
Ao caracterizar a diferença entre as duas vertentes teológicas do apofatismo, Yannarás entende que o apofatismo da ousia se limita a “enfatizar o caráter relativo das determinações racionais e dos procedimentos indutivos do criado e do incriado.” (YANNARÁS, 1995, p. 22). Os escolástico prezam pela diferenciação exclusivamente substancial e assim afirmaram o Super Ser, princípio e causa de todas as coisas, semelhante ao motor imóvel.
Por outro lado, segundo Yannarás (1995), o apofatismo da persona preza pela afirmação que a relação com Deus não pode ser abarcada por formulações noéticas, porque se dá como acontecimento existencial pleno captado de diversas formas: seja através da percepção sensorial, analógica, sentimental, contemplativas, entre outras formas. O Deus Superessencial (hyperousios), além do próprio Ser e do Bem, é sentido ou reconhecido na experiência mística, pois é um Deus pessoal que estabelece relação com o ser humano.
Portanto, esta seria uma diferença bastante importante na história do apofatismo medieval. Isso porque o apofatismo oriental se vinculará à mística sendo quase impossível separar teologia de mística. Inclusive, por alguns autores, a mística foi denominada de teologia mística, o que demarcava ou qualificava que a teologia não era exclusivamente razão, senão um movimento de união com o Mistério.[14] Não se pode negar que, no Ocidente, muitos místicos e teólogos assinalaram a unio mystica. Todavia, também no Ocidente a teologia escolástica chegou a marcar a história por uma forma de racionalidade tão forte, sobretudo, na escolástica tardia, com seu agudo teor conceitual, abstrato, dedutivo, entre outros (VAGAGGINI, 1976). De acordo com Libanio e Murad, “a ênfase no momento científico-racional da fé favoreceu a separação crescente da teologia com a espiritualidade, liturgia, Escritura e vida da Igreja. A distinção conduz à dilaceração.” (LIBANIO; MURAD, 2007, p. 133).
No século XX, segundo Oviedo (2003), o desenvolvimento de uma teologia dialética, que não priorizava a confiança na razão, possibilitou o reaparecimento de uma teologia negativa, depois de propostas teológicas que pareciam mais reafirmar uma teologia cristã exclusivamente afirmativa. [15] Neste sentido, uma teologia que não fosse dialética e se gloriasse dos seus fundamentos racionais, poderia transformar Deus num objeto ao modo das ciências modernas, bem como terminaria por celebrar mais um ídolo conceitual do que o Mistério transcendente.
Num artigo intitulado Negative theology in contemporary interpretations, Daniel Jugrin assinala que na atualidade o apofatismo teológico se vincula ao sentido de negação e se estabelece como uma “ponte entre o ser humano pós-moderno e Deus, que possibilita seu acesso a esse território transcendente e dá sentido à sua existência.” (JUGRIN, 2019, p. 149). Neste mesmo horizonte de reflexão, o apofatismo teológico se tornou presente também nas propostas inter-religiosas que compreenderam Deus como um Mistério presente em todas as religiões, embora seja tematizado e tenha nome próprio no interior do cristianismo.
Nesta longa jornada, o apofatismo teológico pode ser interpretado de muitos modos, mas é certo que ele se caracteriza como:
[...] um caminho constante do pensamento, que elimina progressivamente do objeto que quer alcançar qualquer atribuição positiva, para desembocar finalmente numa espécie de possessão por ignorância total daquele que nunca poderia ser um objeto de conhecimento. Pode-se dizer que é uma experiência intelectual da derrocada do pensamento diante daquilo que está além do pensável. Com efeito, a consciência da derrocada do pensamento humano constitui um elemento comum de tudo aquilo que se pode chamar de apófase ou teologia negativa, tanto quando ela permanece nos limites da inteligência, constando simplesmente a inadequação radical entre o nosso pensamento e a realidade que ele quer captar, como quando ela ultrapassa os limites da inteligência, atribuindo à ignorância daquilo que Deus é em sua natureza inacessível o valor de um conhecimento místico superior ao intelecto. (MONDIN, 1979, p. 375).
De todo modo, seja na tradição oriental ou ocidental, a teologia se faz como reflexão sobre a divindade: de um Deus que se dá na história como autocomunicação plena, mas que permanece mistério eterno (RAHNER, 2008). O apofatismo teológico diz de um Deus que é Mistério, mas que se abaixa na história (kênosis): a Trindade em sua imanência (em si mesma) se comunica em sua economia (obra) através do evento Jesus. Além disso, a kênosis ainda assinala a singularidade de Jesus Cristo no mistério da sua paixão, morte e ressurreição, bem como a sua solidariedade com os menores: Deus que se faz pequeno e pobre.[16]
Sendo Deus um Mistério, se reconhece que além do limite do conhecimento há também o limite da linguagem humana no sentido que se emprega a Deus nomes e conceitos que servem para a comunicação e para a diferenciação do que é e do que não é; o que assinala também a lucidez de que toda representação lhe é imprópria e indigna. Os teólogos apofáticos reconheceram que a linguagem tem o seu valor pois se faz como comunicação de uma experiência, como fenômeno da diferenciação entre Criador e criatura etc.
Sim, para os teólogos apofáticos há critérios e algo pode ser dito: além da Revelação (teândrica) e do poder ou energia divina (manifesta na obra da Criação e através da iluminação do Espírito), o testemunho (nos textos sagrados) e a experiência religiosa possibilitam também uma forma de saber teológico, ainda que limitado. Logo, a teologia negativa se faz como renúncia (aphaíresis) à materialização do Transcendente em formulações conceituais, indicando assim que uma teologia afirmativa se autentica como “teologia simbólica” que “celebra” Deus com imagens ou ícones que o representam. Em outras palavras, o apofatismo se apresenta como teologia negativa ou aphairética, que se constitui como a ciência da superioridade de Deus e da sua inefabilidade, ainda que as palavras sejam necessárias como via afirmativa (catafática) de elaboração racional dos crentes e para eles a respeito da sua fé.
Em perspectiva mística, a primeira coisa a se dizer é a existência de um problema teórico que precisa ser dissolvido com cuidado. Falar em apofatismo místico pode parecer um jogo de palavras tal como uma tautologia, ou seja, quando se utiliza termos diferentes para expressar o mesmo sentido. Daí, a terminologia apofatismo místico pode sugerir, de algum modo, uma forma redundante; isto acontece porque a própria definição de mística implica numa definição apofática: silenciar, cerrar os lábios, fechar os olhos diante de uma realidade Sagrada compreendida como Mistério.
É indubitável que tanto a mística quanto o apofatismo expressam a inefabilidade de Deus, bem como a sua niilidade e anonimato.[17] Celebra-se, assim, a superioridade do Ser divino, própria da experiência mística ou percebido pela inteligência pela via apofática, que implica nos limites do conhecimento e da linguagem para compreender e verbalizar o Mistério divino que se autocomunica.
Por outro lado, assinalamos que a mística, enquanto experiência religiosa de sentido radical ou de unidade e deificação, está intrinsecamente relacionada ao princípio de apofaticidade, isto é, à ação contínua no qual o pensamento, à medida que progride, vai eliminando atribuições positivas a fim de alcançar uma espécie de possessão por ignorância total do Mistério que não pode ser objeto de pensamento e que se situa distante do horizonte do pensável (LOSSKY, 1991).
Embora possa haver conflitos de opiniões se o apofatismo e a mística constituem coisas diferentes ou iguais, a nosso ver, é possível dizer do apofatismo nos textos místicos do cristianismo. Vladimir Lossky (1991), ao sinalizar a existência de uma diferença entre teologia mística, mística e apofaticidade, contribui com a nossa reflexão sobre o apofatismo místico. Tal como Lossky reflete, podemos compreender a teologia mística como a expressão do conteúdo da fé e também a expressão daquela realidade divina sentida na experiência mística. Ela se constitui como um instrumento que visa um objetivo, um encontro ou união com Deus, a deificação ou theosis, como denominaram os padres gregos (LOSSKY, 1991).
Já a mística compreende uma experiência religiosa radical, é o próprio encontro e a vivência do Sagrado. Ela se configura como a relação que indica uma presença e comunhão entre duas realidades: o místico e o Mistério. Relacionada à teologia, a mística se mostra como a valorização pessoal do conteúdo da fé (LOSSKY, 1991).
Já a apofaticidade está implícita na mística. Diz respeito ao caminho, à via que se faz a partir da eliminação processual das formulações afirmativas sobre Deus, como um Mistério que não pode ser objetivado e que culmina na sua “possessão por ignorância”, como dizia Vladimir Lossky (MONDIN, 1979, p. 373). Isso não quer dizer uma forma de “antirracionalismo, agnosticismo, fideísmo cego ou logomaquia.” (MONDIN, 1979, p. 374). Trata-se de uma via que está presente na teologia como método negativo e na mística como via de acesso ao conhecimento do Mistério. Através da apofaticidade não se assimila o Mistério, “passamos a uma profunda mudança, uma transformação interior do nosso espírito, para nos tornarmos aptos para a experiência mística.” (MONDIN, 1979, p. 374).
Evidentemente, parece-nos ser equivocada ou mesmo insustentável a ideia de uma mística catafática; mas, reafirmamos que apofatismo não é necessariamente mística, embora estejam intrinsecamente vinculados. Portanto, será importante dizer que o apofatismo aparece na mística como uma via da chamada teologia mística ou mesmo como um princípio como consciência da renúncia às formas de objetivação de Deus em fórmulas com pretensão de verdade absoluta (YANNARAS, 1995).[18] Mas, não se pode esquecer que a mística implica numa experiência religiosa, num encontro com um Deus pessoal.
O apofatismo aparece nos textos místicos vinculado àquele princípio de apofaticidade e como teologia negativa. Em ambos os casos, está relacionado aos temas do Mistério de Deus, a inefabilidade divina, as limitações do conhecimento e da linguagem humana, ao caminho da alma para a unidade com o Uno-Bem (theosi) etc.
Os místicos irão tratar do apofatismo como uma das vias que levam à união mística (hénosis), bem como à deificação ou divinização do ser humano (theosis). Dois importantes nomes são Gregório de Nissa e o Pseudo-Dionísio, o areopagita. O primeiro entendeu o apofatismo como mística de trevas enquanto o segundo falou em teologia negativa. Para estes místicos, Deus habita as trevas, ou melhor, a escuridão mais que luminosa. Assim, as trevas podem se referir à inefabilidade e o anonimato divino.[19] Deus é trevas, mais do que luminosa, dizia o Pseudo-Dionísio (2004, p. 129, Mt., 1, 997 B). Seria o mesmo que dizer: a claridade é tão intensa que turva a visão (BEZERRA, 2009, p. 101).
Deus é compreendido a partir da via negationis, “que consiste na possibilidade de se pensar Deus fora de toda categoria e objetividade racional.” (BEZERRA, 2009, p. 99). Isso não quer dizer que o conhecimento humano sobre Deus é negado. A partir do pensamento do Pseudo-Dionísio, o areopagita, pode-se dizer que o apofatismo compreende Deus como inefabilidade pura: “Ele é tudo em tudo e não é nada em nada.” (BEZERRA, 2009, p. 95).
Ao lado da via catafática e da via eminente, a via apofática celebra a niilidade e o anonimato do Mistério divino e tem como fim a elevação do espírito até à unidade e à deificação (nascimento de Deus no ser humano). Vale dizer que o apofatismo teológico não se configura como um saber retórico ou irracionalista. A negação não significa necessariamente um retirar o conceito, mas abnegar qualquer pretensão de afirmação absolutista.[20]
O apofatismo aparece como um princípio ou via de conhecimento que indica a suspensão de afirmações absolutas sobre Deus e a sua natureza, ao mesmo tempo é consciência dos confins do saber humano, embora a Revelação, a sua energia manifesta na obra da Criação e o seu poder possibilitem uma forma de saber limitado devido a capacidade humana de compreender os mistérios divinos.
Se o apofatismo teológico se faz de palavra (ainda que negativas), em perspectiva mística, se faz de silêncio. Como palavra, o apofatismo teológico demarca não haver oposição à teologia catafática. A palavra evoca a sua relação com a teologia catafática ou afirmativa. O silêncio assinala a sua relação com a mística que, por sua vez, assinala a experiência religiosa com o Deus absconditus.
Entre tantos personagens bíblicos citados pela tradição mística, Moisés representa o apofatismo místico. Para alguns místicos, Moisés foi o primeiro apofático, sendo o arquétipo para todos aqueles que fecham os olhos e cerram os lábios para contemplar Aquele que não pode ser dito em palavras e nem pode ser conhecido, pois é ignorância e silêncio (PSEUDO- DIONÍSIO, 2004, Ep., III, 1069 B).
Conforme Gregório de Nissa (2017), Moisés foi o patriarca bíblico que experimentou a teofania, a manifestação da presença de Deus profundamente em sua vida. Moisés esteve na presença de Deus: esta é uma experiência mística. Esta presença é sentida e se apresenta como superior, de modo que a sua expressão só se dá através de uma linguagem simbólica. Aquele que aparece na sarça que ardia em chamas, mas não se consumia, não tem nome. Ele se apresenta como o Eu sou, o que os teólogos interpretaram não como um nome próprio, mas um atributo: o Ser. Dessa luz da sarça, Moisés vai em direção às trevas. Essa é a representação do Mistério divino. É nas trevas que o ser humano precisa adentrar, lugar que revela a infinitude divina.
A nossa primeira consideração se trata de demarcar que somos conscientes dos limites do texto, uma vez que o assunto é amplo e não poderíamos esgotá-lo nestas páginas. Este artigo representa o primeiro passo ou mesmo um esboço sobre o qual iremos nos debruçar e buscar desenvolver nos próximos anos de estudo.
A apresentação do apofatismo, a partir das três perspectivas assinaladas, nos levou a afirmar que existe uma tradição apofática composta por autores cristãos e não cristãos, no Ocidente e no Oriente. Logo, o apofatismo não é simplesmente um tema que aparece pontualmente em escritos de filósofos, teólogos e místicos, senão compreende uma tradição que o transformou em método filosófico, via teológica e experiência religiosa de silêncio e contemplação (theoria), de unidade e presença etc. Esta tradição inspirou e continua a inspirar importantes pensadores no Oriente e no Ocidente, não só cristãos, mas também não crentes.
Aos que almejam ou acreditam deter um saber total, o apofatismo indica uma nova atitude frente às pretensões de um conhecimento absolutista: todo conhecimento humano, por mais válido que seja, sempre está em processo de melhoria e sempre há algo próprio da realidade ou do objeto que lhe escapa e que não é apreensível. Aos crentes, o apofatismo ensina a renunciar aquelas concepções de um Deus fechado em conceitos e doutrinas que pretendem ser “verdades absolutas”. Infelizmente temos visto ainda exclusivistas que insistem em pôr no trono, da moral e da doutrina, um ídolo resultante das suas intenções e pretensões de conhecimento absolutista.
Enfim, em tempos de diversidade religiosa, o apofatismo nos provoca a compreender a liberdade do Mistério que é celebrado no cristianismo e nas religiões com outros nomes divinos. Somente uma aproximação apofática em comunhão com as vias simbólicas e místicas são capazes de nos fazer saber algo do Mistério universal que tudo supera.