ARTIGOS

O PRAZER NOS ESCRITORES CRISTÃOS ANTIGOS: uma incursão inicial

Pleasure in Ancient Christian Writers: an initial survey

El Placer en los Escritores Cristianos Antiguos: una incursión inicial

Cesar Motta RIOS
Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, Bacharel em Letras: Grego e Licenciado em Letras: Espanhol. Pós-doutorado em Filosofia da UFMG., Brasil

O PRAZER NOS ESCRITORES CRISTÃOS ANTIGOS: uma incursão inicial

Interações, vol. 17, núm. 1, pp. 111-132, 2022

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 01 Enero 2021

Aprobación: 30 Noviembre 2021

Resumo: O prazer como questão não ocupa a atenção da Bíblia Hebraica, mas, a partir do encontro judaico com o pensamento grego, torna-se um tema relevante e, por vezes, tratado com bastante atenção. Os escritores cristãos antigos não deixaram de acolher essa discussão. Ainda que não se torne um tema central, quando o assunto é a vida que a pessoa cristã vive na presente era, não é estranho que a mesma questão que acompanhou Platão, Epicuro e os estoicos se faça presente. No presente artigo, abordo textos do Novo Testamento, textos do período dos pais apostólicos e, por fim, obras de dois escritores mais sofisticados: Clemente de Alexandria e Gregório de Nissa. Por meio de uma leitura atenta das fontes primárias, procuro discernir como o prazer chega a ser uma questão para esses escritos cristãos, considerando possíveis conexões entre suas abordagens e anteriores. Proponho que o motivo de cuidarem do tema do prazer residia em uma rivalidade entre a atenção aos prazeres e a atenção a Deus.

Palavras-chave: Teologia, Patrística, Hedonismo, Prazer, Filosofia.

Abstract: Pleasure as an issue does not occupy the attention of the Hebrew Bible, but, from the Jewish encounter with Greek thought, it becomes a relevant topic and, at times, it is treated with great attention. Ancient Christian writers did not fail to welcome this discussion. Although it does not become a central theme, when the subject is the life that the Christian person lives in the present era, it is not strange that the same issue that accompanied Plato, Epicurus and the Stoics is present. In this article, I approach texts from the New Testament, texts from the Apostolic Father’s times, and, finally, works by two more sophisticated writers: Clement of Alexandria and Gregory of Nyssa. Through a careful reading of the primary sources, I try to discern how pleasure becomes an issue for these Christian writings, considering possible connections between their approaches and previous. I propose that the reason for taking care of the theme of pleasure lay in a rivalry between attention to pleasures and attention to God.

Keywords: Theology, Patristic, Hedonism, Pleasure, Philosophy.

Resumen: El placer como tema no ocupa la atención de la Biblia hebrea, pero, a partir del encuentro judío con el pensamiento griego, se convierte en un tema relevante y, en ocasiones, tratado con gran atención. Los escritores cristianos antiguos no dejaron de acoger esta discusión. Aunque no se convierta en un tema central, cuando se trata de la vida que vive el cristiano en este siglo, no es extraño que esté presente el mismo tema que acompañó a Platón, Epicuro y los estoicos. En este artículo, me acerco a textos del Nuevo Testamento, textos del período de los padres apostólicos y, finalmente, obras de dos escritores más sofisticados: Clemente de Alejandría y Gregorio de Nisa. A través de una lectura cuidadosa de las fuentes primarias, trato de discernir cómo el placer se convierte en un problema para estos escritos cristianos, considerando las posibles conexiones entre sus enfoques y anteriores. Propongo que la razón para cuidar el tema del placer radicaba en una rivalidad entre la atención a los placeres y la atención a Dios.

Palabras clave: Teología, Patrística, Hedonismo, Placer, Filosofía.

1 INTRODUÇÃO

Uma leitura atenta de Platão, Aristóteles, dos estoicos e Epicuro faz notar que, entre os gregos, tratar do prazer como um assunto importante não é raro. No Antigo Israel, conforme se percebe em um estudo da Bíblia Hebraica, por outro lado, o prazer não é tratado consistentemente como problema. Somente escritores judeus posteriores, que se envolveram com o pensamento grego, passaram a tratar do prazer como uma questão mais importante (cf. RIOS, 2015).

Os escritores cristãos antigos, obviamente, atentam para o texto do Antigo Testamento. Mas habitam um mundo pós-encontro greco-judaico. Aqueles que são aqui abordados escrevem em grego, e não são necessariamente alheios ao que vinha sendo discutido sobre o prazer nesse idioma, ainda que não se possa, de antemão, sugerir que esse contato fosse direto ou aprofundado.

No que segue, realizo uma incursão inicial entre importantes textos cristãos dos primeiros séculos. Passo, inicialmente, por textos neotestamentários, para, em seguida, abordar escritos do período dos Pais Apostólicos. Por fim, considero Clemente de Alexandria e Gregório de Nissa, importantes pensadores cristãos versados na filosofia grega.

Por meio de leitura atenta das fontes primárias, procuro alcançar uma melhor noção sobre como os escritores cristãos antigos trataram do prazer, considerando variações e possíveis conexões com desenvolvimentos anteriores.

2 BREVE CONSIDERAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO

O princípio dos sinais (ἀρχὴν τῶν σημείων) realizados por Jesus conforme o Evangelho segundo João é a transformação de água em vinho durante uma festa (Jo 2,1-11).[1] Isso nos faz suspeitar que, assim como no Antigo Testamento, também no Novo (que é já, de certa forma, greco-judaico), não se encontrará um posicionamento radicalmente contrário ao prazer.

Essa aparente despreocupação com respeito ao assunto, contudo, não se mantém continuamente. Há também alguma tensão. No Evangelho segundo Lucas, um estilo de vida dedicado à fruição de prazeres é contrastado por Jesus ao de João Batista, que é apresentado como o maior dentre os nascidos de mulher (Lc 7,26-28). Se é sutil nesse trecho a oposição, realizada por meio do elogio do modelo em contraste, o delineamento se torna mais nítido em seguida, quando, na explicação da conhecida parábola do semeador, Jesus afirma: “A [semente] que caiu em meio às plantas espinhentas são aquelas pessoas que escutaram, mas que, tendo partido, foram oprimidas pelas preocupações, riqueza e prazeres da vida (ὑπὸ μεριμνῶν καὶ πλούτου καὶ ἡδονῶν τοῦ βίου), e não produzem frutos com perfeição” (Lc 8,14)[2].

A colocação dos prazeres – juntamente com outros elementos - como tendo um efeito negativo é óbvia. Não há colaboração deles com a Palavra para que a vida seja como deve ser (que é o que importa conforme a argumentação), mas figuram como um potencial de estorvo.[3]

Em algumas poucas passagens das epístolas, há algum destaque mais específico ao potencial prejudicial do prazer. No trecho de Romanos que descortina a impiedade entre os não-judeus (Rm 1,18-32), o apóstolo Paulo afirma que Deus os havia entregado a paixões desonrosas (πάθη ἀτιμίας). Não menciona o prazer especificamente, mas, pelo que segue, parece tê-lo também em mente no conjunto das paixões.

A Epístola de Tiago é mais específica: “De onde vêm as guerras e de onde vêm os conflitos entre vós? Não seria de dentro, dos vossos prazeres (ἐκ τῶν ἡδονῶν ὑμῶν) que militam em vossos membros?” (Tg 4,1). A linguagem do combate associada ao prazer e às paixões em geral não soa estranha a quem conhece o que anteriormente, no âmbito greco-judaico, se discutiu sobre o tema.[4] Para Tiago, essa peleja com os prazeres tem papel muito significativo na vida de piedade (ou impiedade) de seus destinatários. Pouco adiante, afirma: “Vós pedis e não recebeis, porque pedis mal, para aproveitar em vossos prazeres (ἵνα ἐν ταῖς ἡδοναῖς ὑμῶν)! Não sabeis que a amizade com o mundo é inimiga para com Deus? Aquele que quiser ser amigo do mundo se constitui como inimigo de Deus!” (Tg 4,4).

Não fica imediatamente clara a relação entre o desfrutar dos prazeres e o tema da amizade com o mundo e inimizade para com Deus, mas isso, a meu ver, se esclarecerá em seguida.

A Epístola a Tito menciona o prazer de passagem. Ao lembrar seus leitores da necessidade de serem pacientes e nada maldizentes para com todas as pessoas, inclusive aquelas que não fazem parte da Igreja, argumenta que eles mesmos, anteriormente, eram desprezíveis:

Pois, antes, também nós éramos insensatos, desobedientes, desvirtuados, serviçais de desejos e prazeres variados (ἐπιθυμίαις καὶ ἡδοναῖς ποικίλαις)[5], passando a vida em maldade e inveja, desprezíveis, odiando uns aos outros. E, então, a bondade e a philanthropia[6] de Deus, nosso salvador, resplandeceu (Tt 3,3-4).

Ressalto que, se do lado de Deus há um amor, uma amizade benéfica em direção ao ser humano, tão repetidamente enfatizada no Cristianismo Antigo pela noção de philanthropia, do lado do ser humano não há reciprocidade. Em 2 Timóteo 3,4, lemos que, nos últimos dias (ἐν ἐσχάταις ἡμέραις), os seres humanos teriam uma longa série de características negativas. Entre essas, e, na verdade, em certo destaque por fechar o catálogo de certa forma está o fato de que seriam “mais amigos do prazer do que amigos de Deus” (φιλήδονοι μᾶλλον ἢ φιλόθεοι). Essa formulação me parece refletir o principal motivo de preocupação dos escritores cristãos antigos com o tema do prazer, que entendo estar subjacente ao proposto (e aqui já referido) na Epístola de Tiago. Não é sem razão que será retomada por Gregório de Nissa, como se verá, com algum esclarecimento.

Observo que há certa correspondência entre o que se encontra no Novo Testamento e o que ecoava no âmbito judaico de língua grega. Parece haver um conhecimento comum compartilhado de modo amplo sobre o prazer. Em alguns pontos, pode haver até mesmo alguma correlação mais específica. Ainda assim, não há propriamente uma reflexão aprofundada. Por outro lado, de passagem, aberturas para reflexões pertinentes são realizadas, como em 2 Pedro 2,13, onde se percebe a noção de que ter algo por prazer ou não envolve certa subjetividade, visto que se diz que algumas pessoas consideram prazer o deleite durante o dia (ἡδονὴν ἡγούμενοι τὴν ἐν ἡμέρᾳ τρυφήν).

Esses apontamentos aqui reunidos não devem obscurecer o fato de que, considerado o volume todo dos escritos neotestamentários, temos relativamente poucas palavras dedicadas ao tema do prazer. Não há proposta de renovada discussão, mas um possível aproveitamento de noções que seriam conhecidas por um público mais amplo. De qualquer forma, é possível que essas menções no texto canônico tenham servido como modelo ou validação para desenvolvimentos posteriores entre escritores cristãos das décadas e séculos subsequentes.

3 O PERÍODO DOS PAIS APOSTÓLICOS

Nos escritos dos mais antigos dos pais apostólicos, pouco se menciona o prazer, e, como no caso do Novo Testamento, não há preocupação em aprofundar a reflexão a respeito. Ainda assim, há trechos dignos de menção. Em 2 Clemente 15.15, parece haver alguma sintonia com 2 Pedro 2,13, pois faz saber que aquilo que se considera prazer é diferente de pessoa para pessoa. Afirma que certas palavras ditas por Deus têm tanto prazer (ἡδονὴν) para aqueles que as praticam, quanto condenação para os que deixam de dar ouvido a elas.

Inácio de Antioquia, por sua vez, preocupado com a unidade da Igreja, exorta o rebanho a permanecer junto do pastor, porque havia muitos lobos tentando extraviar ovelhas por meio de prazeres maus (ἡδονῇ κακῇ - Carta aos filadelfos, 2.2)[7]. Se tomamos a colocação do adjetivo como bem cuidada, suspeitamos que Inácio já se mostra não estritamente linear em sua oposição ao prazer. Se há prazer mau, haveria também prazer bom ou, pelo menos, não mau.

Já na sua Carta aos romanos, o mártir parece mostrar que sua experiência não foi como a que se deu com aquelas pessoas (da parábola de Jesus) que tiveram a Palavra semeada sufocada por espinhos. Faz isso contrapondo os prazeres da vida, que ele rejeita, ao Cristo que se dá na eucaristia, que ele deseja: “Não tenho prazer (οὐχ ἥδομαι) em alimento corruptível, nem nos prazeres desta vida (ἡδοναῖς τοῦ βίου τούτου). Quero o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo, da semente de Davi, e quero como bebida o seu sangue, que é amor/agape imperecível” (Carta aos romanos, 7.3, tradução nossa).[8]

Nessa breve construção, Inácio reflete a oposição, já vista no Novo Testamento, que coloca os prazeres como em contraste com o que deve ser valorizado na vida piedosa. Além disso, deixa claro o que valoriza em lugar dos prazeres, estando certo, ao que parece, de que sua proposta tem algo de surpreendente considerando-se a vida ordinária.

Até aqui, entendo que não temos nenhum passo significativamente além do que se encontra no Novo Testamento. Dois outros documentos, O Pastor de Hermas e a Epístola a Diogneto, apresentam afirmações mais incisivas e interessantes para a presente incursão.

O Pastor de Hermas, comumente considerado como proveniente de algum momento entre as décadas de 120 a 150 d.C. (SILVA; FUNARI, 2017, p. 113), destoa das outras obras catalogadas entre os Pais Apostólicos por ter características próprias de textos apocalípticos. Essa peculiaridade e o fato de o documento não utilizar o termo “Cristo” não o tornaram menos valorizado no Cristianismo Antigo. Embora seja discutível até que ponto O Pastor foi considerado em alguns círculos como “Escrituras” ou “canônico” (BATOVICI, 2017), sua recepção na Patrística posterior e a abundância de seus testemunhos manuscritos tornam inegáveis sua muita circulação e considerável influência.

Interessa-me especialmente a parte d’O Pastor dedicada às Parábolas, e, mais especificamente, detenho-me na oitava e na sexta parábolas.

A oitava parábola trata do arrependimento. A dedicação das pessoas ao cumprimento da Lei de Deus é representada por ramos, que podem ser verdes, com brotos, com frutos, secos etc. Conforme a situação dos ramos, as pessoas – todas elas que foram chamadas no nome do Senhor (οἱ κεκλημένοι ἐν ὀνόματι κυρίου) - têm seu destino indicado.[9] Após uma primeira triagem, elas têm a oportunidade de terem seus ramos ainda cuidados para uma triagem subsequente. Algumas têm mudada a situação dos ramos, o que ilustra o arrependimento. Outras não apresentam mudança.

Muitos dentre eles, então, arrependeram-se e partiram para habitar na torre. Mas muitos se afastaram de Deus para sempre. Esses perderam a vida para sempre. Alguns dentre eles ficaram com o ânimo cindido (ἐδιψύχησαν) e em discordância. Para esses, então, há arrependimento, caso rapidamente se arrependam e não permaneçam nos prazeres deles (ταῖς ἡδοναῖς αὐτῶν). Mas, caso permaneçam em suas práticas, também esses produzirão morte para si mesmos. (O Pastor, Parábola VIII, 8.5, tradução nossa).[10]

Esses que não estão com a própria alma em unidade (de propósito) precisam se arrepender, e, isso fazendo, não permanecerão nos próprios prazeres. Como o que requer arrependimento é a forma como foram negligentes para com a Lei, chegamos à inevitável conclusão de que a permanência nos próprios prazeres é oposta à observância da Lei e, portanto, pecaminosa.[11]

No desenvolvimento da parábola, tornará a aparecer formulação bem semelhante a respeito do destino dos que não se arrependem na inteireza do ser: “Mas daqueles que não se arrependem, mas que permanecem nos prazeres (ταῖς ἡδοναῖς), a morte está perto.” (O Pastor, Parábola VIII, 9.4, tradução nossa).[12]

Se a oitava parábola parece radical quanto ao lugar do prazer ao lado do que é pecaminoso e que precisa ser abandonado por qualquer pessoa que queira ver-se livre da morte, a sexta parábola surpreende em um sentido diferente.

Prestes a ter a experiência da visão, Hermas está sentado considerando os mandamentos. Chega à conclusão de que ele (e qualquer pessoa também) é bem-aventurado (μακάριος) se andar nos mandamentos do Senhor (O Pastor, Parábola VI, 1.1). O assunto da visão será justamente o que se dá com as pessoas conforme observam ou não os mandamentos. Mesmo o arrependimento, caso não seja seguido de um caminhar nos mandamentos, seria em vão (εἰς μάτην - O Pastor, Parábola VI, 1.3).

A imagem contemplada é de ovelhas pastando e saltando junto a um pastor radiante com seu rebanho. Embora a cena seja bonita de se ver, o pastor em questão é o anjo do deleite e do engano (ἄγγελος τρυφῆς καὶ ἀπάτης - O Pastor, Parábola VI, 2.1). Ele faz as pessoas se esquecerem dos mandamentos e, no fim, perecerem (2.3). Dentre as ovelhas encantadas por esse pastor-anjo do deleite e engano, algumas pastam no mesmo lugar e não estão saltando. Essas são passíveis de arrependimento. Aparece, então, um segundo pastor na visão. Esse tem aspecto rude e conduz essas ovelhas a um espaço restrito e cheio de espinhos. As ovelhas ficam ali retidas e sofrem golpes do pastor. No entanto, embora pareça algo muito ruim, esse pastor é um dos anjos justos, responsável pela punição das ovelhas (ὁ ἄγγελος τῆς τιμωρίας ἐκ δὲ τῶν ἀγγέλων τῶν δικαίων – 3.2). As punições vistas como espinhos ou golpes na imagem são, na vida das pessoas, os mais variados infortúnios, carências, doenças etc. (3.4). Segue uma explicação sobre a finalidade disso, que é preparar as pessoas para uma posterior purificação e aperfeiçoamento (3.6). Por fim, Hermas faz uma pergunta que nos interessa:

Quais, – eu disse – Senhor, são os deleites nocivos? Toda ação – ele disse – é deleite para a pessoa caso a faça prazerosamente (ἡδέως), pois o irascível, ao fazer o que é adequado para o padecimento (πάθει) de si mesmo, tem nisso deleite; também o adúltero, o embriagado, o caluniador, o mentiroso, o arrogante, o defraudador, enfim, qualquer um que faça tudo que é semelhante a esses faz o adequado para a própria doença. Então, tem deleite (τρυφᾷ) em sua ação. Todos esses deleites são nocivos para os servos de Deus. Então, por meio desses enganos padecem (πάσχουσιν) os que são punidos e torturados. (O Pastor, Parábola VI, 5.5-6, tradução nossa)[13]

A definição do que é deleite passa pela pessoa que pratica a ação, pelo modo (prazeroso ou não) em que a pratica. E o deleite não é coisa boa, em princípio. A lista de tipos de pessoas deixa isso claro. Mas, se tudo que se faz prazerosamente é deleite, e viver no deleite traz punição e tortura, a solução para não viver punição e tortura seria não viver deleite algum? Para não sofrer não se pode ter prazer? A continuação do argumento nega essa solução, apresentando uma complementação importante:

Mas há também deleites que concedem salvação (τρυφαὶ σώζουσαι) às pessoas, pois muitas pessoas, operando o que é bom, se deleitam, contribuindo para o próprio prazer (τῇ ἑαυτῶν ἡδονῇ φερόμενοι). Então, esse deleite é conveniente para os servos de Deus e alcança vida para essa pessoa; mas os deleites nocivos antes mencionados alcançam torturas e punições. E, caso [essas pessoas] continuem e não se arrependam, alcançam a morte para si mesmas. (O Pastor, Parábola VI, 5.7, tradução nossa)[14]

É muito significativo que, nesse trecho, o prazer (ἡδονή) continua participando da definição daquilo que é deleite (τρυφή), mas não define pecado ou ato que requeira punição. O problema não é o prazer em si, mas a qualidade de bom (ἀγαθὸν) ou não daquilo que, em sendo realizado, traz prazer à pessoa.[15] No fim, parece que o tipo de pessoa define aquilo que lhe é associado ao prazer e que é, portanto, deleite. Temos, pois, um bom deleite, um bom prazer, uma boa pessoa.

Tendo vislumbrado essa complexidade maior em O Pastor, passo à Epístola a Diogneto, que nos leva a ver uma radical rejeição do prazer, mas que pode esconder alguma modalização nessa visão negativa.

A Epístola a Diogneto deixa dúvidas sobre sua autoria e datação. O documento pode ser lido em conjunto com os apologistas da parte final do século II d.C., embora tenha sido comumente publicado junto aos textos dos Pais apostólicos (HOLLON, 2005). Há, de fato, um intento apologético em sentido amplo no escrito, e isso faz com que se perceba uma preocupação com a cultura greco-romana.[16] Há, por exemplo, uma crítica aberta à religiosidade popular e seu uso de esculturas cultuais (Ep. Diogn. 2).[17] Os cristãos seriam odiados justamente por não as reconhecerem como deuses (Ep. Diogn. 2.6). Há, também, uma investida contra discursos vãos e frívolos (κενοὺς καὶ ληρώδεις) de certos filósofos dignos de confiança (ἀξιοπίστων φιλοσόφων - Ep. Diogn. 8.2).[18] [19]

O capítulo 5 é provavelmente o trecho mais citado da epístola, com sua exposição dos cristãos como pessoas que vivem pacificamente entre todos, adotando variados costumes conforme o contexto e reagindo de modo exemplar à perseguição. O capítulo 6, que me interessa diretamente, propõe um aprofundamento dessa exposição a partir da seguinte analogia: “Para dizer de modo simples: aquilo que é a alma para o corpo (σώματι ψυχή), isso são, no mundo, os cristãos (ἐν κόσμῳ Χριστιανοί)” (Ep. Diogn. 6.1, tradução nossa).[20] [21] Como previsível, há uma série de correlações que sustentam a analogia, por exemplo, a noção de que os cristãos estão dispersos pelo mundo assim como a alma ocupa todo o corpo (Ep. Diogn. 6.2). O ponto importante no momento é o seguinte: “A carne odeia a alma e faz guerra contra ela – que nada faz de errado– porque impede de fazer uso dos prazeres. O mundo também odeia os cristãos – que nada fazem de errado – porque se opõem aos prazeres (ταῖς ἡδοναῖς ἀντιτάσσονται)” (Ep. Diogn. 6.5, tradução nossa).[22]

Ao lado da noção não muito surpreendente de que a alma procura coibir o livre uso do prazer por parte do corpo[23], surpreende a radicalidade da oposição proposta entre os cristãos e os prazeres, sem qualquer restrição de sentido.

O papel negativo dos prazeres torna a figurar quando o autor contrasta a vida das pessoas cristãs antes e depois da intervenção de Deus:

Então, tendo [Deus] tudo ordenado da parte de si mesmo com o Filho, até um tempo atrás nos permitiu, como queríamos, ser levados por movimentos desordenados, desviados por desejos e prazeres (ἡδοναῖς καὶ ἐπιθυμίαις). Isso fez não exultando em nossos atos pecaminosos (τοῖς ἁμαρτήμασιν ἡμῶν), mas os suportando; nem tampouco, antes, consentindo no período da injustiça, mas preparando o agora da justiça, para que, neste tempo, tendo sido refutados como indignos da vida a partir das próprias obras, agora, fôssemos feitos dignos pela bondade de Deus, e, tendo ficado claro que, por nós mesmos, era impossível que entrássemos no Reino de Deus, fôssemos tornados capazes.[24] (Ep. Diogn. 9.1, tradução nossa)[25]

Aqui, o prazer (novamente, sem qualquer restrição de sentido) continua sendo apresentado como negativo, com um detalhe a mais: aparece, de certa forma, associado ao pecado.

Esses dois trechos podem dar a entender que o autor tem uma postura completamente oposta a qualquer tipo de prazer, propondo como absolutamente necessário um ascetismo completo, um desprezo total a todo e qualquer prazer. Isso seria estranho para alguém que valoriza o fato de os cristãos viverem entre todos os povos seguindo seus costumes, inclusive quanto à dieta (Ep. Diogn. 5.4). Essa falta de oposição absoluta ao prazer do alimento se manifesta na primeira exclamação escolhida para manifestar espanto diante do benefício da morte de Cristo em lugar e em favor dos seres humanos: “Oh que doce (γλυκείας) troca! Oh que feitura inescrutável! Oh que benefício inesperado! Que a iniquidade de muitos se ocultasse em um só justo, enquanto a justiça de um só justificasse a muitos iníquos!” (Ep. Diogn. 9.5, tradução nossa).[26]

Se o gosto doce, valorizado por ser prazeroso, é trazido para tal exclamação positiva, o leitor sabe que, ao menos em alguma medida, há lugar para um valor positivo no prazer, em algum tipo de prazer, ao menos.

Falta um desenvolvimento claro no texto para que se possa discernir como o autor relaciona a oposição aos prazeres com a afirmação positiva de pelo menos um prazer. Por outro lado, talvez não seja mera conjectura afirmar que não há um enfrentamento do prazer em si, mas oposição a uma valorização equivocada dele, se lançamos luz sobre o entendimento de que Deus, reconhecido como dono e criador de tudo, philánthropos e paciente, é, somente ele, bom (μόνος ἀγαθός ἐστιν – Ep. Diogn. 8.7-8). Novamente, poderíamos entender que o lugar de Deus e da criação na concepção da realidade é fundamental para essa polêmica específica. Contudo, se é necessária uma perspectiva própria para esse entendimento, ela parece não estar tão acessível aos filósofos, visto que o conhecer deve vir acompanhado pelo temor (μετὰ φόβου), que é tido, ao lado do prazer, uma das quatro paixões fundamentais (Cf. Leg. 2.8, SVT 211).

4 CLEMENTE DE ALEXANDRIA E GREGÓRIO DE NISSA

Se, até aqui, encontramos afirmações incisivas e instigantes, mas não um tratamento detido e claramente conectado com discussões anteriores sobre o prazer, os nomes que trago agora para a reflexão podem mudar esse quadro. Clemente de Alexandria e Gregório de Nissa guardam entre si diversas diferenças, seja geográfica, cronológica, de estilo, na forma de tratar os diversos temas. Contudo, algo têm em comum: ambos são certamente hábeis na filosofia. Podemos esperar, portanto, que aquilo que digam sobre o prazer não será dito sem algum reconhecimento do que antes se disse, para além das Escrituras.[27]

Clemente de Alexandria (150 – 215 d.C., aproximadamente) tem uma bem marcada suspeita com respeito ao prazer. Nisso, se assemelha a Fílon, de quem, inclusive, toma a interpretação do relato da queda, tendo a serpente como símbolo do prazer:

Quando o primeiro ser humano brincava livre no paraíso, ainda era uma criança de Deus. Mas quando, tendo caindo pelo prazer (serpente indica alegoricamente o prazer, que rasteja sobre o ventre, o vício da terra, que se volta para a matéria), era desviado para os desejos, o menino que se fazia homem em sua desobediência também tendo deixado de dar ouvidos ao pai, envergonhava-se de Deus. Foi tão forte assim o prazer: o ser humano livre por sua simplicidade achou-se preso em pecados. (Exortação, XI, 111, 1, tradução nossa)[28] [29]

Como se poderia esperar, a reversão dessa situação se dará pela crucificação de Cristo. Clemente reforça também aqui a natureza da queda que vislumbra:

O Senhor quis mais uma vez soltá-lo de suas correntes. E, tendo se prendido à carne (mistério divino isso!), subjugou a serpente e tornou o tirano em escravo, a morte. Então (o maior paradoxo!), aquele ser humano tornado errante pelo prazer, preso à corrupção, com mãos esticadas mostrou livre. (Exortação, XI, 111, 2, tradução nossa)[30]

Coerente com essa concepção antropológica oriunda dos primórdios e com esse intento divino revelado, Clemente entenderá que, ao ser humano, cabe escapar dos prazeres: “Purifica o templo, e os prazeres e frouxidões, qual flor efêmera, abandona ao vento e ao fogo. Cultiva sensatamente os frutos da prudência, e eleva-te a ti mesmo como primícias a Deus, de modo que não sejas somente obra, mas também graça de Deus.” (Exortação, XI, 117, 5, tradução nossa)[31] [32]

Em O Pedagogo, o leitor encontra orientação prática sobre como isso deveria acontecer nas diversas atividades e situações da vida, além de algum aprofundamento na reflexão. Ao tratar do banho, por exemplo, Clemente afirma que há quatro motivos para frequentá-lo: por causa da limpeza, do aquecimento, da saúde ou, por último, do prazer. E restringe: “Então, o banhar-se por causa do prazer deve ser rejeitado. Pois o vergonhoso prazer deve ser cortado completamente. O banho deve ser recebido por causa da limpeza e da saúde pelas mulheres; mas somente por causa da saúde pelos homens. (O Pedagogo, III, 9,1, tradução nossa)[33]

Quando trata das companhias, interpreta a Lei alegoricamente, de modo que a proibição do consumo de carne suína indicaria a ordem no sentido de não “se envolver com pessoas impuras, as quais, ao modo dos suínos, se regozijam em prazeres corporais (ἡδοναῖς σωματικαῖς), comidas asquerosas e excitações licenciosas, tendo como que uma urticária para obter prazer obsceno que se congratula com o mal.” (O Pedagogo, III, 11, 75, tradução nossa)[34]

O tema da alimentação também é ensejo para a questão do prazer. Aqui, outra vez, Clemente é restritivo:

Algumas pessoas, por um lado, de fato, vivem para comer, como, é claro, animais irracionais, para os quais a vida não é nada além do estômago. Mas a nós, por outro lado, o Pedagogo ordena comer para viver. Porque nem é uma obra para nós o alimento, nem uma meta o prazer (οὔτε σκοπὸς ἡδονή), mas o alimento é admitido em favor da permanência aqui, durante a qual o Lógos instrui (παιδαγωγεῖ) para a incorruptibilidade. (O Pedagogo, II, 1,4, tradução nossa)[35]

A frugalidade não é somente entendida como comportamental, mas, novamente, fundamenta-se em um entendimento sobre a origem: Deus dispôs alimento e bebida ao ser humano com vistas à preservação da vida, e não com vistas ao prazer (Cf. O Pedagogo, II, 1,5).

Se o prazer se torna referência importante tanto para o entendimento antropológico, quanto para a consideração sobre práticas triviais, é certo que também estará na definição de pecado. Em um movimento sagaz, diríamos que Clemente parece unir uma concepção filosófica a seu entendimento religioso:

Tudo o que está além da reta razão (τὸν ὀρθὸν τὸν λόγον) é ato pecaminoso (ἁμάρτημα). Agora, de fato, os filósofos têm por adequado ordenar as paixões (τὰ πάθη) mais originárias da seguinte forma: o desejo, propensão desobediente à razão; o medo, evasão desobediente à razão; o prazer, elação da alma desobediente à razão; [a dor, compressão da alma desobediente à razão.] (O Pedagogo, I, 13.1, tradução nossa)[36]

Escrituras e filosofia se encontram com frequência na argumentação. Por vezes, de modo explícito, como quando Clemente lança mão do recurso – conhecido há mais de século - de atribuir aos antigos hebreus a origem de certos conhecimentos de filósofos gregos. Em seu argumento em favor da frugalidade, afirma:

Por isso, aquele que, dentre os filósofos, emulou a verdade, Platão reavivou a faísca da filosofia hebraica: ‘Tendo ido eu – diz ele – não me agradou em nada a dita vida feliz (βίος εὐδαίμων), repleta de mesas italianas e siracusanas - empanturrar-se duas vezes ao dia e nunca se deitar sozinho pela noite, e quantos hábitos acompanham essa vida. Pois, a partir desses hábitos, nenhum ser humano debaixo do céu poderia jamais tornar-se sensato praticando-os desde novo.’[37] Platão não era, com efeito, completamente desinformado sobre Davi, o qual na sua própria cidade, ao estabelecer a arca sagrada no meio do tabernáculo, tendo feito contente todo o povo submisso, ‘diante do senhor, repartiu para todo o poderio de Israel, desde homens até mulheres, a cada um, um rolinho de pão, um pão assado ao fogo e um bolo de panela.’ (O Pedagogo, II, 1, 18,1-2, tradução nossa)[38]

Coerente com o entendimento considerado até aqui, está a meta: “Dominando certamente os prazeres, impediremos os desejos” (O Pedagogo, II, 1,9,1, tradução nossa)[39]. Isso é afirmado a partir da restrição do consumo de alimentos sacrificado a ídolos (cf. 1 Cor 10,20). Menciono o fato para observar que, na leitura de Clemente, é possível associar à questão do prazer textos bíblicos que não guardam qualquer relação perceptível com o tema. Mencionei, antes, a interpretação alegórica que toma de Fílon sobre o relato do Éden. Como já observado, de modo semelhante e, também, comparável a Fílon, entende que a Lei mosaica proclama a frugalidade (εὐτέλεια) ao restringir o consumo de uma grande variedade de animais. E o faz não para promover sofrimento. Pelo contrário, pois, a bem da verdade, “Muito frequentemente, foi o prazer que gerou nos seres humanos dano e dor, enquanto o excesso de alimentos pare na alma aflição, esquecimento e falta de senso.” (O Pedagogo, II, 1, 17,3, tradução nossa)[40]. O que o alexandrino cristão faz, além de Fílon, é continuar esse movimento de leitura com o Novo Testamento. Para outro exemplo desse movimento em uma leitura de texto paulino, considere o seguinte texto bíblico: “a pessoa que come, come para o Senhor, pois dá graças a Deus; e a pessoa que não come não come para o Senhor, e dá graças a Deus” (Rm 14,6). Clemente conclui: “De modo que o alimento justo é ação de graças. E, realmente, a pessoa que sempre dá graças não se ocupa prazeres” (O Pedagogo, II, 1,10,3-4, tradução nossa).[41]

Revela-se até aqui um teólogo muito mais detido quanto ao tema do prazer que os anteriores, de modo que é inviável um tratamento exaustivo. Faço somente duas observações adicionais, no sentido de não deixar espaço para possíveis equívocos: imaginar que ele é absolutamente contrário a toda ideia de prazer; imaginar que ele propõe ser a filosofia tão importante quanto as Escrituras.

Quanto ao primeiro possível equívoco, observo que Clemente pode, ao menos de passagem, considerar um prazer que não é negativo:

Maior é a união da prudência, a qual exala cheiro de um puro prazer (καθαρᾶς ἡδονῆς).[42] Sem dúvida, afirma maravilhosamente a tragédia: Ai! Ai! Oh mulheres, - diz – como entre seres humanos, por exemplo, / nem ouro, nem tirania, nem delicadeza de riqueza / tem tão diferentes prazeres (διαφόρους τὰς ἡδονάς) / quanto de um homem bom e de uma mulher piedosa / uma opinião justa e inteligente (O Pedagogo, III, 12,1, tradução nossa)[43]

Quanto à filosofia, observo que ele a exalta e acolhe, ao mesmo tempo em que vislumbra sua superação:

Por isso, parece-me, desde que o próprio Lógos se achegou a nós desde o céu, não se faz mais necessário acudirmos a instrução humana, a Atenas e outra parte da Grécia, nem para junto da Jônia, agitando-nos de curiosidade. Pois, se nosso Mestre, o qual preencheu todas as coisas com santas potências, criação, salvação, ação benéfica, estabelecimento de leis, profecia, ensino, se esse mestre tudo nos ensina agora, também o universo já se tornou, pelo Lógos, uma Atenas e Grécia. (Exortação, XI, 112,1, tradução nossa)[44]

Neste ponto, inusitadamente, é possível vislumbrar em Clemente alguma aproximação, inclusive, com o pensamento de Epicuro. Também no pensador cristão, encontramos, por exemplo, a noção de que é preciso controlar os desejos, de que há uma busca correta pela felicidade, e de que os prazeres corporais não devem ser usufruídos de modo exacerbado (FATIC; DENTSORAS, 2014, p. 525). Não obstante, em Clemente, há uma metafísica diversa, que o encaminha a soluções diferentes, orientadas para além de uma lógica materialista.[45] Para Clemente, na luta contra o prazer, a pessoa tem um auxílio além daquele do argumento filosófico. A alma conta com um cocheiro que a conduz, embora não sem dificuldades, muitas vezes. Clemente diz que esse cocheiro é o próprio Pedagogo (O Pedagogo, III, 11,1), enquanto Fílon dizia ser Deus (Leg. 2.85).

Outro escritor cristão antigo que passeava com tranquilidade entre filosofia e Escrituras é Gregório de Nissa, irmão do também muito conhecido Basílio. Dele, considero Sobre a virgindade em minha busca sobre o tema do prazer. O tratado impõe um desafio considerável. Embora uma leitura rápida possa levar à conclusão de que seu propósito é promover a castidade ascética e desvalorizar o matrimônio, leituras mais atentas têm demonstrado que, no todo, não é isso que almeja. Há uma certa valorização (ainda que com reconsideração) tanto da virgindade quanto do casamento (cf. HART, 1990. LUDLOW, 2014). O que fez com que muitos reconhecessem uma campanha anti-matrimônio foi a radicalidade do capítulo 3 em sua investida contra a noção comum do casamento como modo de vida mais prazeroso. Começo justamente observando como essa parte do escrito mobiliza a noção de prazer em sua argumentação.

O caminho mais fácil para desfavorecer o casamento seria expor casos infelizes de relacionamentos repletos de desentendimentos ou assombrados pela escassez frequente de recursos para o sustento da família. Mas Gregório toma outro caminho. Começa pelos mais prazerosos (ἡδίστων). O casamento imaginado por ele é entre pessoas de nobre nascimento, abastadas, com idade compatível – na flor da idade, muita afeição etc. E, qualquer boa característica poderia ser acrescentada às qualidades desse casamento, conforme a vontade do leitor. Então, vem o convite a uma consideração atenta da realidade: “Mas vê a dor que forçosamente se faz presente ao mesmo tempo e que fumega sob as coisas benéficas aqui enumeradas” (Sobre a virgindade 3,2). Ele diz não querer se referir ao problema da inveja que esse quadro faria brotar em outras pessoas. Pela apreensão gerada, a vida das pessoas invejadas se torna mais carregada de coisas dolorosas (λυπηρά) do que de coisas prazerosas (ἡδέων). Ainda que não houvesse esse tipo de percalço, haveria dor:

Isso mesmo, eu digo, que adoça toda a vida deles, isso mesmo é combustível da dor. Pois, visto que são seres humanos, essa coisa mortal e perecível, e veem os túmulos daqueles a partir dos quais vieram a existir, têm a dor como inseparável e intimamente unida à vida (ἀχώριστον ἔχουσι καὶ συνεζευγμένην τῇ ζωῇ τὴν λύπην), se partilham ao menos um pouco da capacidade de reflexão. Com efeito, a contínua expectação da morte, não sendo reconhecida em quaisquer sinais claros, mas por meio da incerteza do que está por vir, a todo tempo, como opositora aterrorizando, perturba a sempre presente alegria, inquietando as felicidades com o medo do que se espera (Sobre a virgindade, 3.3, tradução nossa).[46] [47]

Exemplos bastante convincentes sustentam a afirmação:

Pois viste, se realmente te era possível ver sem perigo, muita confusão de opostos, riso misturado com lágrimas e dor combinada com felicidades (λύπην εὐφροσύναις συμμεμιγμένην): em todo lugar, a morte se fazendo presente, pelas expectativas, junto aos que são gerados, e tocando cada coisa dentre as que são relativas ao prazer (τῶν καθ' ἡδονὴν). Quando quer que o noivo veja a face amada, em seguida, sem dúvida, também o medo da separação se imiscui; e caso ouça a prazerosa voz, então, cogitará o não haver de escutá-la um dia; e quando se alegrar na contemplação da beleza, então, mais ainda, se estremecerá com relação à expectação do luto (Sobre a virgindade, 3.3, tradução nossa).[48]

O argumento se mostra complexo. Há uma inseparabilidade entre a dor e acontecimentos que seriam, aparentemente, motivo de apenas prazer no casamento. A noção de que o prazer, o mais das vezes, vem misturado com dor é bem conhecida na tradição helênica desde Platão.[49] Ou seja, o notável aqui não é sua formulação, mas sua mobilização nessa reflexão específica.

No capítulo 5, figura outra contraposição também comum anteriormente, mas aplicada especificamente à deliberação entre casamento e castidade. A alma, entregue a paixões, se prende ao que é terreno e deixa de considerar o que é intelectível. Gregório diz que o que há de elevado na alma seria rebaixado pela elevação dos prazeres (διὰ τῆς ἐπαναστάσεως τῶν ἡδονῶν).[50] E questiona: “Com efeito, como ainda poderá, com olho livre, erguer o olhar para a luz familiar e intelectível a [alma] que foi pregada seguindo o prazer da carne (τῇ ἡδονῇ τῆς σαρκὸς) e que engajou o desejo às paixões/afecções humanas? (Sobre a virgindade, 5, tradução nossa).[51]

Pouco adiante, o cenário oposto é expresso em termos significativos, inclusive, porque o próprio prazer ganha uma nova caracterização e condição:

Assim, antes de tudo, livre e solta, nossa alma ergueria os olhos para o prazer divino e bem-aventurado (τὴν θείαν τε καὶ μακαρίαν ἡδονὴν). Não se voltará para nenhuma das coisas terrenas, nem participará daquelas coisas julgadas como prazeres conforme acordo da vida comum, e transferirá toda potência desejosa [ou “erótica”] das coisas corpóreas para a contemplação intelectível e imaterial do belo (Sobre a virgindade, 5, tradução nossa).[52]

Previsivelmente, Gregório dirá que a virgindade tem em vista a promoção de uma tal disposição da alma (τὴν τοιαύτην [...] τῆς ψυχῆς διάθεσιν). Mas o menos previsível é a concepção de um prazer divino e bem-aventurado, o que se reforçará em seguida com uma referência a um prazer divino e imaculado (τῆς θείας τε καὶ ἀκηράτου[53] [...] ἡδονῆς). A polêmica contra o prazer está relacionada com uma substituição: uma substituição equivocada que os prazeres terrenos fomentam, mas que pode ser revertida. Nessa reversão, há uma reconsideração do que é realmente prazer.

O assunto é tratado com seriedade, porque, para Gregório, existe um risco de que, sem considerar o problema e pensando que não há bem além do prazer[54], a pessoa se torne mais amiga do prazer do que amiga de Deus (φιλήδονον αὐτὸν μᾶλλον εἶναι ἢ φιλόθεον – Sobre a virgindade, 8). Recupera-se, assim, 2 Timóteo 3,4. É bom observar que, antes do texto neotestamentário, Fílon havia escrito que o movimento da parte irracional, desmedida e desobediente da alma torna a pessoa mais amiga dos prazeres e amiga das paixões do que amiga da virtude e amiga de Deus (φιλήδονον καὶ φιλοπαθῆ μᾶλλον ἢ φιλάρετον καὶ φιλόθεον - Agr. 1.88). O problema da amizade para com os prazeres (que está unido ao problema da amizade do mundo, na linguagem de Tiago) está, a meu ver, tanto em Fílon, quanto no Novo Testamento e em Gregório, associado ao problema da inimizade contra Deus, que pode ser vislumbrada na indiferença. No limite, diria que o problema não é o prazer em si, mas o afastamento da pessoa com relação a Deus, que a atenção ao prazer poderia ocasionar. Decerto, cada escritor pode lidar com isso de forma peculiar, mas há uma percepção compartilhada.

A seriedade com que aborda o problema, faz com que Gregório, mesmo quando trata mais positivamente do casamento, mais ao final do escrito, o faça não pela alegria do prazer no âmbito do casamento, mas pela dedicação de quem, mesmo sabendo dos riscos, se dedica ao matrimônio para procriação. O casamento tem seu valor como serviço prestado à humanidade, o qual deve ser realizado com cuidados e restrição ao prazer (Sobre a virgindade, 12).[55] Não é estranho que, no prólogo de seu trabalho sobre o Cântico dos Cânticos (In Canticum Canticorum), Gregório defenda arduamente a prática da leitura alegórica e assim interprete esse livro peculiarmente sensual das Escrituras.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parece possível entender que o espaço dedicado à questão do prazer e a complexidade do tratamento do tema crescem com o tempo. Seria equivocado afirmar categoricamente, a partir dessa aparente progressão, que há um desenvolvimento contínuo, em que o posterior considera o que veio antes e o desenvolve. A conexão com o anterior não é sempre verificável ou direta. Há fatores adicionais e conexões externas. Certamente, a forma de tratamento se dá conforme recursos peculiares do autor e tipo de obra que escreve.

De fato, no Novo Testamento, em 2 Clemente e em Inácio de Antioquia, temos menções esparsas e não tão fundamentais para uma reflexão maior, embora sinalizem preocupações pontuais importantes. Na Epístola a Diogneto, temos alguma atenção maior, mas isso se manifesta na forma própria do gênero do texto, que tem traços apologéticos bem reconhecíveis. O Pastor acolhe o problema do prazer, concedendo-lhe certa importância, possivelmente por algo próprio da vivência comunitária cristã do autor. A maneira como expõe o assunto se molda em parte pelo gênero de seu discurso, com traços da literatura apocalíptica. Até aqui, parece-me que aparentes conexões com reflexões filosóficas anteriores sobre o prazer podem se dever a uma notícia do conhecimento filosófico comum, que circulava entre as pessoas em geral. Clemente de Alexandria e Gregório de Nissa, por sua vez, são versados em filosofia e leitores de Fílon.[56] Nesse caso, conexões com a filosofia e a obra filoniana não devem ser vistas como incidentais e podem, inclusive, ter ocasionado o maior volume de texto dedicado ao problema.

Acrescento que pode haver, inclusive, certa concordância entre a proposta de Fílon, Clemente e Gregório e noções moralistas de fora dos âmbitos judaico e cristão. Não obstante, há aqui uma especificidade no tratamento do prazer, visto que o cuidado entendido como necessário está diretamente ligado com o lugar de Deus no pensamento desses autores.

De alguma forma, esse duelo que eles percebem entre o prazer e Deus, e que me parece fundamental também para o tratamento mais simples e breve do assunto nos outros escritos aqui abordados, transparece nas palavras de outro conhecido pai da Igreja, também muito hábil em filosofia. No início do livro I de suas Confissões, Agostinho formula de modo especialmente belo o que viria a ser muitíssimo conhecido: “nosso coração é inquieto, até que repouse em Ti” (Confissões, I, 1,1, tradução nossa)[57] [58]. Ao final do Livro I, essa afirmação se desdobra: “Era aqui, de fato, que eu pecava: Que não nele, mas em suas criaturas, em mim e em outras, eu buscava prazeres (voluptates), honras e verdades, e então, assim, eu caia em dores, confusões e erros (Confissões, I, 20, tradução nossa)[59].

Conforme indicações de Platão, o prazer seria repleção[60] ou restauração à condição natural.[61] Se, pois, o prazer acontece quando, tendo estado em falta de algo (ou de uma condição) que lhe é apropriado conforme a natureza, o ser se vê saciado, Agostinho concordaria que a repleção/restauração de que o ser humano realmente necessita não está nessas realizações provisórias que comumente são tidas como prazer. A verdadeira saciedade sem mistura de dor por qualquer motivo – reincidência da carência, inadequação do elemento que sacia, insegurança sobre a continuidade, desmedida etc. – está na comunhão com Deus, para a qual nenhum obstáculo deve haver. Por isso, prazer e engano parecem aparentados ou valorizados de modo semelhante nos escritores cristãos antigos.

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Notas

1 Todas as citações do Novo Testamento foram feitas a partir da NA28, NESTLE-ALAND, 2012.
2 As traduções de textos antigos utilizadas neste artigo são de minha responsabilidade.
3 Entre as características do “gênero de vida direcionada a Deus” (τὸ τῆς πρὸς θεὸν ζωῆς γένος – Her. 47), Fílon menciona que a pessoa que o vive é “superior às riquezas, à glória e aos prazeres” (χρημάτων μὲν καὶ δόξης καὶ ἡδονῶν κρείττω – Her. 48).
4 Considere-se a interpretação de Fílon sobre a aniquilação dos egípcios no Mar vermelho (Somn. 2.266-267; cf. Leg. 2.101-102). Ainda mais diretamente relacionado está Somn. 2.13-14: “E, à sua própria maneira, concentrados, também os prazeres do corpo, a se precipitarem, e encobrem continuamente tudo que há de intelectível. Em seguida, não muito depois, a sabedoria, soprando na direção contrária com um vento impetuoso e violento, enfraquece o fluxo dos prazeres, e, a uma só, acalma todos os cuidados e ambições que se dão por meio dos sentidos. Então, tal ciclo de uma eterna guerra gira em torno da alma multifacetada, pois quando um inimigo foi destruído, seguramente cresce outro mais poderoso, à maneira da Hidra de muitas cabeças. Porque sobre esta, dizem que, no lugar da cabeça cortada brota outra, indicando enigmaticamente a raça difícil de se vencer, que é de muitas formas e de muitas origens, a raça da maldade imortal.”
5 O destaque dado à variedade associada aos prazeres é conhecido dos leitores de Fílon (Cf. Leg. 2.75; 2.107; Gig. 1.18).
6 Faço a transliteração do termo grego, evitando assim a confusão da noção aqui encontrada com a mais simples e específica noção atribuída ao termo “filantropia” em português corrente. A noção de philanthropia como disposição da parte de Deus para com o ser humano já era muito relevante em Fílon, que se utiliza do termo nesse sentido tendo antecedentes entre os gregos, que falavam de seus deuses ou de seus governantes (cf. BORGEN, 2005, p. 246-247). Observo que Borgen também anota o fato de Tito 3,3-7 ter como paralela, em Fílon (Abr. 77-84) a utilização da noção de philanthropia como motivadora da ação de Deus para com Abrão, que terá sua identidade mudada a partir do encontro (BORGEN, 2005, p. 245).
7 Todos os textos de Inácio de Antioquia são citados a partir do texto grego presente em THE APOSTOLIC FATHERS, 1919.
8 οὐχ ἥδομαι τροφῇ φθορᾶς οὐδὲ ἡδοναῖς τοῦ βίου τούτου ἄρτον θεοῦ θέλω ὅ ἐστιν σὰρξ Ἰησοῦ Χριστοῦ τοῦ ἐκ σπέρματος Δαυείδ καὶ πόμα θέλω τὸ αἷμα αὐτοῦ ὅ ἐστιν ἀγάπη ἄφθαρτος.
9 Todas as citações d’O Pastor são feitas a partir do texto grego presente em THE APOSTOLIC FATHERS, 1917.
10 πολλοὶ οὖν μετενόησαν ἐξ αὐτῶν καὶ ἀπῆλθον εἰς τὸν πύργον κατοικεῖν πολλοὶ δὲ ἀπέστησαν εἰς τέλος τοῦ θεοῦ οὗτοι τὴν ζωὴν εἰς τέλος ἀπώλεσαν τινὲς δὲ ἐξ αὐτῶν ἐδιψύχησαν καὶ ἐδιχοστάτησαν τούτοις οὖν ἐστὶ μετάνοια ἐὰν ταχὺ μετανοήσωσι καὶ μὴ ἐπιμείνωσι ταῖς ἡδοναῖς αὐτῶν ἐὰν δὲ ἐπιμείνωσι ταῖς πράξεσιν αὐτῶν καὶ οὗτοι θάνατον ἑαυτοῖς κατεργάζονται.
11 Essa oposição entre observância da Lei e vida orientada por si mesmo é fundamental na visão de escritores judeus e cristãos quando o assunto é o prazer. É óbvio, por um lado, que essa preocupação conflita com perspectivas como a dos neopirronistas ou dos cirenaicos, que valorizaram especialmente a própria experiência para a tomada de decisões (LAMPE, 2015, p. 46,49). Mas, muito além disso, a valorização da Lei produz algum atrito também com visões mais distantes do hedonismo puro também. A própria colocação do ser humano (ainda que se trate do homem bom, sábio) como medida na reflexão ética (cf. de Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1176ª – ARISTOTLE, 1926) produz incômodo diante da noção de que há uma medida externa e dotada de autoridade inquestionável. É significativo que, antes de os cristãos entrarem na discussão, Fílon tenha interpretado o assassinato de um egípcio por parte de Moisés, o legislador da Torah, como uma indicação do confronto contra a noção do prazer como primeiro e maior bem e o ensinamento de Epicuro de modo mais amplo (Fug. 148; cf. RANOCCHIA, 2008, p.89).
12 τῶν δὲ μὴ μετανοούντων ἀλλ᾽ ἐπιμενόντων ταῖς ἡδοναῖς ὁ θάνατος ἐγγύς.
13 Ποῖαι φημί κύριε τρυφαί εἰσι βλαβεραί Πᾶσα φησί πρᾶξις τρυφή ἐστι τῷ ἀνθρώπῳ ὃ ἐὰν ἡδέως ποιῇ καὶ γὰρ ὁ ὀξύχολος τῇ ἑαυτοῦ πράξει τὸ ἱκανὸν ποιῶν τρυφᾷ καὶ ὁ μοιχὸς καὶ ὁ μέθυσος καὶ ὁ κατάλαλος καὶ ὁ ψεύστης καὶ ὁ πλεονέκτης καὶ ὁ ἀποστερητὴς καὶ ὁ τούτοις τὰ ὅμοια πάντα ποιῶν τῇ ἰδίᾳ νόσῳ τὸ ἱκανὸν ποιεῖ τρυφᾷ οὖν ἐν τῇ πράξει αὐτοῦ. αὗται πᾶσαι τρυφαὶ βλαβεραί εἰσιν τοῖς δούλοις τοῦ θεοῦ διὰ ταύτας οὖν τὰς ἀπάτας πάσχουσιν οἱ τιμωρούμενοι καὶ βασανιζόμενοι.
14 εἰσὶν δὲ καὶ τρυφαὶ σώζουσαι τοὺς ἀνθρώπους πολλοὶ γὰρ ἀγαθὸν ἐργαζόμενοι τρυφῶσιν τῇ ἑαυτῶν ἡδονῇ φερόμενοι αὕτη οὖν ἡ τρυφὴ σύμφορός ἐστιν τοῖς δούλοις τοῦ θεοῦ καὶ ζωὴν περιποιεῖται τῷ ἀνθρώπῳ τῷ τοιούτῳ αἱ δὲ βλαβεραὶ τρυφαὶ αἱ προειρημέναι βασάνους καὶ τιμωρίας περιποιοῦνται ἐὰν δὲ ἐπιμείνωσι καὶ μὴ μετανοήσωσιν θάνατον ἑαυτοῖς περιποιοῦνται.
15 Usando a terminologia acolhida por Fílon (Leg. 3.250), diríamos que o problema está no ἡδύ e não imediatamente na ἡδονή. O primeiro termo designa aquilo que produz o prazer (τὸ ποιητικὸν), enquanto o segundo designa o prazer em si (αὐτό). Ao que parece, o que se propõe aqui é que a qualidade daquilo que produz o prazer qualifica também o evento (τὸ ἀποτέλεσμα) da fruição do prazer, assinalado por Fílon como o ἥδεσθαι.
16 Ainda que a tensão exista também com os judeus, cf. Ep. Diogn. 5.17.
17 No capítulo seguinte, há uma crítica também ao culto judaico (Ep. Diogn. 3). Há um claro intento de diferenciação entre cristãos e judeus (Ep. Diogn. 3.1).
18 Isso diz sobre as teorias quanto ao elemento original. Embora o assunto nos remeta a um tempo longínquo, fazendo-nos lembrar dos pré-socráticos, é preciso considerar que se mantinha em discussão, sendo acolhido com respeito pelo estoico Sêneca no século I d.C., por exemplo (INWOOD, 2005, p. 182).
19 Todas as citações da Epístola a Diogneto são feitas a partir do texto grego presente em THE APOSTOLIC FATHERS, 1917.
20 Ἁπλῶς δ᾽ εἰπεῖν ὅπερ ἐστὶν σώματι ψυχή τοῦτ᾽ εἰσὶν ἐν κόσμῳ Χριστιανοί.
21 A analogia entre mundo e ser humano, o pensamento antropológico paralelo ao cosmológico, é comum no mundo grego e romano, entre estoicos, por exemplo, assim como em Fílon (Por exemplo, cf. de Sêneca Nat. Quaest. III, 15 e VI, 14; Em Fílon, por exemplo, Somn. 1.15). A crítica a greco-romanos e judeus não impede o autor de lançar mão de recurso conhecido a partir deles.
22 μισεῖ τὴν ψυχὴν ἡ σὰρξ καὶ πολεμεῖ μηδὲν ἀδικουμένη διότι ταῖς ἡδοναῖς κωλύεται χρῆσθαι μισεῖ καὶ Χριστιανοὺς ὁ κόσμος μηδὲν ἀδικούμενος ὅτι ταῖς ἡδοναῖς ἀντιτάσσονται.
23 Nem sempre a oposição é tão simples. Fílon considera que a oposição não se dá simplesmente entre corpo e alma, mas também entre partes irracionais da alma e sua parte racional (cf. Somn. 2.151).
24 Em grego, há um jogo de palavras entre “impossível” (ἀδύνατον) e “capazes” (δυνατοὶ). Como o primeiro está em função adverbial e o segundo em função adjetiva, não é muito simples manter a correlação entre os termos na tradução.
25 Πάντ᾽ οὖν ἤδη παρ᾽ ἑαυτῷ σὺν τῷ παιδὶ οἰκονομηκώς μέχρι μὲν τοῦ πρόσθεν χρόνου εἴασεν ἡμᾶς ὡς ἐβουλόμεθα ἀτάκτοις φοραῖς φέρεσθαι ἡδοναῖς καὶ ἐπιθυμίαις ἀπαγομένους οὐ πάντως ἐφηδόμενος τοῖς ἁμαρτήμασιν ἡμῶν ἀλλ᾽ ἀνεχόμενος οὐδὲ τῷ τότε τῆς ἀδικίας καιρῷ συνευδοκῶν ἀλλὰ τὸν νῦν τῆς δικαιοσύνης δημιουργῶν ἵνα ἐν τῷ τότε χρόνῳ ἐλεγχθέντες ἐκ τῶν ἰδίων ἔργων ἀνάξιοι ζωῆς νῦν ὑπὸ τῆς τοῦ θεοῦ χρηστότητος ἀξιωθῶμεν καὶ τὸ καθ᾽ ἑαυτοὺς φανερώσαντες ἀδύνατον εἰσελθεῖν εἰς τὴν βασιλείαν τοῦ θεοῦ τῇ δυνάμει τοῦ θεοῦ δυνατοὶ γενηθῶμεν.
26 ὢ τῆς γλυκείας ἀνταλλαγῆς ὢ τῆς ἀνεξιχνιάστου δημιουργίας ὢ τῶν ἀπροσδοκήτων εὐεργεσιῶν ἵνα ἀνομία μὲν πολλῶν ἐν δικαίῳ ἑνὶ κρυβῇ δικαιοσύνη δὲ ἑνὸς πολλοὺς ἀνόμους δικαιώσῃ.
27 Abordo os seguintes escritos: De Clemente, Exortação aos gregos e O pedagogo; de Gregório de Nissa, Sobre a virgindade.
28 ὁ πρῶτος ὁτὲ ἐν παραδείσῳ ἔπαιζε λελυμένος, ἐπεὶ παιδίον ἦν τοῦ θεοῦ: ὅτε δὲ ὑποπίπτων ἡδονῇ ῾ὄφις ἀλληγορεῖται ἡδονὴ ἐπὶ γαστέρα ἕρπουσα, κακία γηΐνη, εἰς ὕλας τρεφομένη παρήγετο ἐπιθυμίαις, ὁ παῖς ἀνδριζόμενος ἀπειθείᾳ καὶ παρακούσας τοῦ πατρὸς ᾐσχύνετο τὸν θεόν. οἷον ἴσχυσεν ἡδονή: ὁ δἰ ἁπλότητα λελυμένος ἄνθρωπος ἁμαρτίαις εὑρέθη δεδεμένος.
29 Todas as citações de Exortação e de O Pedagogo de Clemente são feitas a partir do texto grego presente em CLEMENS ALEXANDRINUS, 1905.
30 τῶν δεσμῶν λῦσαι τοῦτον ὁ κύριος αὖθις ἠθέλησεν, καὶ σαρκὶ ἐνδεθείς ῾μυστήριον θεῖον τοῦτὀ τὸν ὄφιν ἐχειρώσατο καὶ τὸν τύραννον ἐδουλώσατο, τὸν θάνατον, καί, τὸ παραδοξότατον, ἐκεῖνον τὸν ἄνθρωπον τὸν ἡδονῇ πεπλανημένον, τὸν τῇ φθορᾷ δεδεμένον, χερσὶν ἡπλωμέναις ἔδειξε λελυμένον.
31 ἅγνισον τὸν νεών, καὶ τὰς ἡδονὰς καὶ τὰς ῥᾳθυμίας ὥσπερ ἄνθος ἐφήμερον καταλίμπανε ἀνέμῳ καὶ πυρί, σωφροσύνης δὲ τοὺς καρποὺς γεώργησον ἐμφρόνως, καὶ σεαυτὸν ἀκροθίνιον ἀνάστησον τῷ θεῷ, ὅπως οὐκ ἔργον μόνον, ἀλλὰ καὶ χάρις ᾖς τοῦ θεοῦ.
32 Nos Preceitos de Clemente, temos a ideia da substituição dos prazeres nos seguintes termos: “Não obstante, no lugar dos prazeres que há nessas coisas [comidas e bebidas], toma as felicidades que estão nas palavras divinas e nos hinos, as quais ministram para ti com a sabedoria da parte de Deus; e uma reflexão celestial te eleve em direção ao céu” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, 2018).
33 Ἡδονῆς μὲν οὖν ἕνεκα λοῦσθαι παραπεμπτέον· ἄρδην γὰρ τὴν ἀναίσχυντον ἡδονὴν ἐκκοπτέον. Παραληπτέον δὲ τὸ λουτρὸν ταῖς μὲν γυναιξὶ καθαριότητος ἕνεκεν καὶ ὑγιείας, ὑγείας δὲ μόνης ἀνδράσι.
34 ἀκαθάρτοις ἀναμίγνυσθαι ἀνθρώποις, οἳ δίκην ὑῶν ἡδοναῖς σωματικαῖς καὶ δεισαλέαις τροφαῖς καὶ γαργαλισμοῖς ἀσελγέσι κνηστιῶντες πρὸς ἀφροδίτην κακόχαρτον ἡδονὴν χαίρουσιν.
35 Οἱ μὲν δὴ ἄλλοι ἄνθρωποι ζῶσιν, ἵνα ἐσθίωσιν, ὥσπερ ἀμέλει καὶ τὰ ἄλογα ζῷα, οἷς οὐδὲν ἀλλ' ἢ γαστήρ ἐστιν ὁ βίος, ἡμῖν δὲ ὁ παιδαγωγὸς ἐσθίειν παραγγέλλει, ἵνα ζῶμεν. Οὔτε γὰρ ἔργον ἡμῖν ἡ τροφὴ οὔτε σκοπὸς ἡδονή, ὑπὲρ δὲ τῆς ἐνταῦθα διαμονῆς, ἣν ὁ λόγος εἰς ἀφθαρσίαν παιδαγωγεῖ, ἐγκρίνεται ἡ τροφή.
36 Πᾶν τὸ παρὰ τὸν λόγον τὸν ὀρθὸν τοῦτο ἁμάρτημά ἐστιν. Αὐτίκα γοῦν τὰ πάθη τὰ γενικώτατα ὧδέ πως ὁρίζεσθαι ἀξιοῦσιν οἱ φιλόσοφοι, τὴν μὲν ἐπιθυμίαν ὄρεξιν ἀπειθῆ λόγῳ, τὸν δὲ φόβον ἔκκλισιν ἀπειθῆ λόγῳ, ἡδονὴν δὲ ἔπαρσιν ψυχῆς ἀπειθῆ λόγῳ, [λύπην δὲ συστολὴν ψυχῆς ἀπειθῆ λόγῳ].
37 Carta VII, 326c. Pouco antes, o texto da carta propõe um louvor à reta filosofia (ὀρθὴν φιλοσοφίαν), visto que, a partir dela, se pode discernir o que é justo no âmbito político e tudo que é justo entre os indivíduos (Carta VII, 326a). Delineia-se uma oposição entre dois modos de vida. (cf. PLATON, 1949.)
38 Ὅθεν κατηγορῶν τοῦ τρυφῶντος βίου ὁ τὴν ἀλήθειαν ἐζηλωκὼς τῶν φιλοσόφων Πλάτων τὸ ἔναυσμα τῆς Ἑβραϊκῆς φιλοσοφίας ζωπυρῶν· Ἐλθόντα δέ με, φησίν, ὁ ταύτῃ λεγόμενος αὖ βίος εὐδαίμων, Ἰταλικῶν τε καὶ Συρακουσσίων τραπεζῶν πλήρης, οὐδαμῶς ἤρεσεν, δὶς τῆς ἡμέρας ἐμπιμπλάμενον ζῆν καὶ μηδέποτε μόνον κοιμώμενον νύκτωρ, καὶ ὅσα τούτῳ ἐπιτηδεύματα συνέπεται τῷ βίῳ· ἐκ γὰρ τούτων οὔτ' ἂν φρόνιμος οὐδείς ποτ' ἂν γενέσθαι τῶν ὑπὸ τὸν οὐρανὸν ἀνθρώπων δύναιτο ἐκ νέου ἐπιτηδεύων τοιαῦτα, οὔθ' οὕτω θαυμαστῇ φύσει κραθήσεται. Οὐ γὰρ ἄπυστος ἦν ὁ Πλάτων τοῦ Δαβίδ, ὃς ἐν τῇ πόλει τῇ ἑαυτοῦ τὴν ἁγίαν ἱδρύων κιβωτὸν ἐν μέσῃ τῇ σκηνῇ, παντὶ τῷ ὑπηκόῳ εὐφροσύνην ποιήσας λαῷ, ἐναντίον τοῦ κυρίου διεμέρισεν εἰς πᾶσαν τὴν δύναμιν τοῦ Ἰσραὴλ ἀπὸ ἀνδρὸς ἕως γυναικός, ἑκάστῳ κολλυρίδα ἄρτου καὶ ἐσχαρίτην καὶ λάγανον ἀπὸ τηγάνου.
39 κρατοῦντες δηλονότι τῶν ἡδονῶν κωλύομεν τὰς ἐπιθυμίας.
40 Ἀνθρώποις δὲ τὰ μὲν πολλὰ βλάβην καὶ λύπην ἐνεγέννησεν ἡδονή, δυσπάθειαν δὲ καὶ λήθην καὶ ἀφροσύνην ἡ πολυτροφία ἐντίκτει τῇ ψυχῇ.
41 ὡς εἶναι τὴν δικαίαν τροφὴν εὐχαριστίαν· καὶ ὅ γε ἀεὶ εὐχαριστῶν οὐκ ἀσχολεῖται περὶ ἡδονάς.
42 A expressão não é estranha para a tradição filosófica. Platão a utiliza, mas não parece possível discernir um sentido único e definitivo em sua obra. Em um só diálogo (a República, no caso), indica uma vez o prazer desacompanhado de dor ou o prazer não relacionado com a realidade corpórea (cf. MOUROUTSOU,2020, p. 568). Embora o assunto de Clemente seja a união entre homem e mulher, seu texto dirige a atenção para uma união intelectual, desconsiderando a união sexual. Parece-me possível aventar que ele quer justamente contrapor esses prazeres puros, como do âmbito da mente, aos prazeres corporais comumente associados ao casamento.
43 Μεγίστη γὰρ ἡ σωφροσύνης συζυγία καθαρᾶς ἡδονῆς ἀποπνέουσα. Πάνυ γοῦν θαυμασίως ἡ τραγῳδία· Φεῦ φεῦ, γυναῖκες, (φησίν) ὡς ἐν ἀνθρώποις ἄρα οὐ χρυσός, οὐ τυραννίς, οὐ πλούτου χλιδὴ τοσοῦτον εἶχε διαφόρους τὰς ἡδονὰς ὡς ἀνδρὸς ἐσθλοῦ καὶ γυναικὸς εὐσεβοῦς γνώμη δικαία καὶ φρονοῦσα τἄνδικα.
44 διό μοι δοκεῖ, ἐπεὶ αὐτὸς ἧκεν ὡς ἡμᾶς οὐρανόθεν ὁ λόγος, ἡμᾶς ἐπ̓ ἀνθρωπίνην ἰέναι μὴ χρῆναι διδασκαλίαν ἔτι, Ἀθήνας καὶ τὴν ἄλλην Ἑλλάδα, πρὸς δὲ καὶ Ἰωνίαν πολυπραγμονοῦντας. εἰ γὰρ ἡμῖν ὁ διδάσκαλος ὁ πληρώσας τὰ πάντα δυνάμεσιν ἁγίαις, δημιουργίᾳ σωτηρίᾳ εὐεργεσίᾳ νομοθεσίᾳ προφητείᾳ διδασκαλίᾳ, πάντα νῦν ὁ διδάσκαλος κατηχεῖ καὶ τὸ πᾶν ἤδη Ἀθῆναι καὶ Ἑλλὰς γέγονεν τῷ λόγῳ.
45 A valorização da diferença e o consequente não acolhimento do epicurismo são esperados. Havia, de fato, notável distância entre as propostas imediatamente repudiadas dos hedonistas puros, lineares, e a sistematização de Epicuro (Cf. WOLFSDORF, 2013, p. 179). Contudo, Fílon, que exerce notável influência sobre Clemente, mesmo reconhecendo essa distância, mantinha-se radicalmente avesso à proposta do filósofo (RIOS, 2015, p. 1650).
46 Τοῦτο αὐτό φημι τὸ διὰ πάντων αὐτοῖς τὸν βίον καταγλυκαίνεσθαι, τοῦτό ἐστι τὸ τῆς λύπης ὑπέκκαυμα. Ἕως γὰρ ἂν ἄνθρωποι ὦσι, τὸ θνητὸν τοῦτο καὶ ἐπίκηρον πρᾶγμα, καὶ τοὺς τάφους τῶν ἀφ' ὧν γεγόνασι βλέπωσιν, ἀχώριστον ἔχουσι καὶ συνεζευγ μένην τῇ ζωῇ τὴν λύπην, εἰ καὶ μικρὸν μετέχοιεν τοῦ λογίζεσθαι. Ἡ γὰρ διηνεκὴς τοῦ θανάτου προσδοκία οὐκ ἐπὶ ῥητοῖς τισι σημείοις ἐπιγινωσκομένη, ἀλλὰ διὰ τὴν ἀδηλίαν τοῦ μέλλοντος πάντοτε ὡς ἐνεστηκυῖα φοβοῦσα τὴν ἀεὶ παροῦσαν εὐφροσύνην συγχεῖ, τῷ φόβῳ τῶν ἐλπιζομένων τὰς εὐθυμίας ἐπιταράσσουσα
47 Todas as citações sobre a virgindade são feitas a partir do texto grego presente em GREGÓRIO DE NISSA, 1863.
48 Εἶδες γὰρ ἄν, εἴπερ ἰδεῖν ἀκινδύνως ἐξῆν, πολλὴν τῶν ἐναντίων τὴν σύγχυσιν, γέλωτα δακρύοις ἐμπεφυρμένον καὶ λύπην εὐφροσύναις συμμεμιγμένην, πανταχοῦ τοῖς γινομένοις συμπαρόντα διὰ τῶν ἐλπίδων τὸν θάνατον καὶ ἑκάστου τῶν καθ'ἡδονὴν ἐφαπτόμενον. Ὅταν ἴδῃ ὁ νυμφίος τὸ ἀγα πώμενον πρόσωπον, εὐθὺς πάντως καὶ ὁ φόβος τοῦ χωρι σμοῦ συνεισέρχεται· κἂν ἀκούσῃ τῆς ἡδίστης φωνῆς, καὶ τὸ μὴ ἀκούσεσθαί ποτε ἐννοήσει· καὶ ὅταν εὐφρανθῇ τῇ θεωρίᾳ τοῦ κάλλους, τότε μάλιστα φρίττει τὴν προσδοκίαν τοῦ πένθους·
49 De tal forma que “o prazer sem dor (λύπης δὲ αὖ χωρὶς τὴν ἡδονὴν) nunca o poderíamos averiguar adequadamente” (Filebo, 31b). Também no Filebo, sugiro conferir especialmente o tratamento desenvolvido em 45a adiante, com atenção para 46c, visto que, ali, prazer e dor estão misturados e corpo e alma estão envolvidos, o que parece ser o caso utilizado por Gregório. Já no pensamento de Epicuro, o prazer cinético é entendido como sempre misturado com dor, diferentemente do prazer katastemático (ARENSON, 2019, p.119).
50 Cf. de Fílon, por exemplo, Agr. 22 e Somn. 2.13. Destaco que a oposição aqui trabalhada por Gregório é semelhante àquela que o próprio exegeta alexandrino estabelece em Somn. 1.243-244.
51 Πῶς γὰρ ἔτι δύναται πρὸς τὸ συγγενές τε καὶ νοητὸν φῶς ἐλευθέρῳ ἀναβλέπειν τῷ ὄμματι ἡ προσηλωθεῖσα κάτω τῇ ἡδονῇ τῆς σαρκὸς καὶ τὴν ἐπιθυμίαν πρὸς τὰ ἀνθρώπινα πάθη κατασχολήσασα.
52 Ὡς ἂν οὖν μάλιστα ἡμῖν ἐλευθέρα καὶ ἄνετος ἡ ψυχὴ πρὸς τὴν θείαν τε καὶ μακαρίαν ἡδονὴν ἀναβλέποι, πρὸς οὐδὲν τῶν γηΐνων ἑαυτὴν ἐπιστρέψει οὐδὲ τῶν νενομισμένων κατὰ τὴν τοῦ κοινοῦ βίου συγχώρησιν ἡδονῶν μεταλήψεται, ἀλλὰ μετα θήσει τὴν ἐρωτικὴν δύναμιν ἀπὸ τῶν σωματικῶν ἐπὶ τὴν νοητήν τε καὶ ἄϋλον τοῦ καλοῦ θεωρίαν.
53 Curiosamente, o adjetivo, que pode indicar que algo é puro, livre de mistura, também pode indicar uma pessoa virgem.
54 Concretamente, o risco extremo seria o de que – por via de uma adesão intelectual ou de uma conclusão coincidente por intuição pessoal – seguissem o caminho dos pensadores cirenaicos, que, unanimemente, consideravam que “o prazer, seja mental ou corporal, seria o maior e mais certamente intrínseco bem” (LAMPE, 2015, p. 2).
55 Hart (1990) demonstra bem esse aspecto do casamento como serviço no texto de Gregório.
56 Ambos figuram em um grupo seleto de Pais que “leram e estudaram Fílon com profundidade” (RUNIA, 1998, p. 332).
57 inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te.
58 As citações das Confissões são feitas a partir do texto latino presente em AUGUSTINE, 1912.
59 hoc enim peccabam, quod non in ipso, sed in creaturis eius, me atque ceteris, voluptates, sublimitates veritates quaerebam, atque ita inruebam in dolores, confusiones, errores.
60 Cf. Górgias 496e.
61 Cf. Filebo, 32a. Observo que é comum o entendimento de que o que Platão desenvolve no trecho é válido para todos os tipos de prazer, embora Flecher (2014, p. 116) sustente que a definição é válida somente para prazeres corporais, e não para prazeres psíquicos. Aristóteles parece testemunhar a favor de uma amplitude maior da definição, ao considerar ele mesmo todo prazer como forma de restauração/repleção (cf. ARENSON, 2019, p. 53).
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