ARTIGOS
JORGE MARIO BERGOGLIO: do provincial no contexto da ditadura argentina ao Papa Francisco
Jorge Mario Bergoglio: from provincial in the context of argentine dictatorship to Pope Francis
Jorge Mario Bergoglio: del provincial en el contexto de la dictadura argentina al Papa Francisco
JORGE MARIO BERGOGLIO: do provincial no contexto da ditadura argentina ao Papa Francisco
Interações, vol. 17, núm. 1, pp. 155-170, 2022
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Recepción: 26 Noviembre 2021
Aprobación: 25 Febrero 2022
Resumo: O trabalho se dedica à trajetória de Jorge Mario Bergoglio à frente do governo da Província Jesuíta no contexto da ditadura argentina (1976-1983) e sua proposta sui generis de um caminho que, fugindo à dicotomia política, encontra na síntese das oposições, a possibilidade de sobrepassar o antagonismo entre os polos. Pergunta-se como as experiências de Bergoglio influenciaram a conduta desse agente religioso que veio a se tornar o Papa Francisco e, que hoje, desempenha um papel relevante no debate público. O estudo caracteriza-se, metodologicamente, por ser uma pesquisa exploratória de caráter histórico com aproximações biográficas. Fundamenta-se em aportes teóricos, fontes bibliográficas e autores que apontam a necessidade da perspectiva sociológica para a compreensão do campo onde se atua, realizando assim, a articulação entre a perspectiva histórico-sociológica e a aproximação biográfica. Argumenta-se sobre como seu pensamento profundo e original, forjado nos anos da ditadura argentina, poderia indicar um caminho para conflitos e desafios que nossas sociedades enfrentam na contemporaneidade. Sua proposta de um prisma que encontrava na oposição polar a possibilidade de uma síntese poderia hoje aportar elementos provenientes da esfera religiosa para o âmbito do debate público secularizado.
Palavras-chave: Jorge Mario Bergoglio, Ditadura Militar argentina, Polarização, Papa Francisco, Contemporaneidade.
Abstract: This work is dedicated to Jorge Mario Bergoglio´s trajectory as Head of the Jesuit Province Government in the context of the Argentine dictatorship (1976-1983) and its sui generis proposal of a way that escapes from political dichotomy and finds in the synthesis of oppositions the possibility of surpassing the antagonism between the poles. It reflects on how Bergoglio’s experiences influenced this religious agent’s behavior that later becomes Pope Francis and plays a relevant role in public debate nowadays. Methodologically, this study is exploratory research of historical character with biographical approaches. It is based on theoretical contributions, bibliographical sources and authors who indicate the need for sociological perspective to comprehend the field in which it operates, hence achieving articulation between historical-sociological perspective and biographical approach. It discusses how his deep and original thinking, forged in the years of the Argentine dictatorship, could indicate a path to resolving conflicts and challenges that our societies face today. Today his proposal of a prism which found the possibility of a synthesis amidst total opposition might provide elements from the religious sphere to the scope of secularized public debate.
Keywords: Jorge Mario Bergoglio, Argentine Military dictatorship, Polarization, Pope Francis, Contemporaneity.
Resumen: El trabajo se dedica a la trayectoria de Jorge Mario Bergoglio como Provincial de los Jesuitas en el contexto de la dictadura argentina (1976-1983) y su propuesta sui generis de un camino que, huyendo a la dicotomía política, encuentra en la “síntesis de las oposiciones”, la posibilidad de sobrepasar al antagonismo entre los polos. Se pregunta cómo las experiencias de Bergoglio influenciaron la conducta de ese agente religioso que llegó a ser el papa Francisco y, que hoy, ocupa un rol importante en el debate público. El estudio se caracteriza, metodológicamente, por ser una pesquisa exploratoria de carácter histórico con aproximaciones biográficas. Se fundamenta en aportes teóricos, fuentes bibliográficas y autores que subrayan la necesidad de la perspectiva sociológica para la comprensión del campo donde se actúa, realizando así, la articulación entre a perspectiva histórico-sociológica y la aproximación biográfica. Se argumenta acerca de cómo su pensamiento, forjado en los años de la dictadura argentina, podría indicar un camino para conflictos y desafíos que nuestras sociedades afrontan en la contemporaneidad. Su propuesta que encontraba en la oposición polar la posibilidad de una “síntesis” podría hoy, aportar elementos provenientes de la esfera religiosa hacia el ámbito del debate público secularizado.
Palabras clave: Jorge Mario Bergoglio, Dictadura Militar argentina, Polarización, Papa Francisco, Contemporaneidad.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo surgiu do anseio de propiciar um esboço acerca da trajetória de Jorge Mario Bergoglio à frente do governo da Província Jesuíta, no contexto da ditadura argentina (1976-1983). Para tanto, faz-se mister recorrer à ideia de uma visão que contemple o panorama complexo a partir de uma perspectiva histórica e sociológica, para assim caminhar em direção a uma aproximação biográfica, que possibilite a análise da atuação do religioso, que é o objeto primeiro de nosso estudo.
Como nos ensina Bourdieu (1986) em seu texto A Ilusão Biográfica, falar de história de vida é de alguma forma pressupor que a vida é uma história, e que uma vida é, inseparavelmente, um conjunto de acontecimentos de uma existência individual, que se entende como uma história e o relato dessa história. Bourdieu trabalha ainda alguns pressupostos, como entender que o relato biográfico propõe acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em sucessão cronológica, tendem ou pretendem organizar-se em sequências ordenadas segundo relações inteligíveis (BOURDIEU, 1986).
Ao propor um estudo que aborde a trajetória de um indivíduo dentro de um período histórico específico, a rigor, a sua atuação à frente do governo da província jesuíta argentina, é importante observar a relação entre a perspectiva sociológica e a aproximação biográfica.
Não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado a outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis (BOURDIEU, 1986).
Tal construção prévia também se faz necessária a qualquer avaliação do que chamaríamos de superfície social, como descrição rigorosa da personalidade designada pelo nome próprio, isto é, o conjunto das posições simultaneamente ocupadas num dado momento por uma individualidade biológica socialmente instituída – Bergoglio – e que age como suporte de um conjunto de atributos e atribuições que lhe permitem intervir como agente eficiente em diferentes campos (período histórico estudado) (BOURDIEU, 1986).
As perspectivas historiográfica e sociológica nos aportam possibilidades no sentido de analisar como se deu o desencadear dos fatos, ao fazer um recorte histórico sobre o último período ditatorial na Argentina (1976-1983), articulado à atuação do provincial dos Jesuítas da Argentina nesse contexto histórico, entendendo o jogo dialético de circunstâncias como um campo intrincado de tensões constantes. Ambas as perspectivas jogam luz ao caminho que propomos ao desenvolver um estudo que aborde a temática do drama vivido por uma sociedade, sob a luz da atuação de um agente de transformação no interior da Companhia de Jesus: seu papel como ser social e como agente religioso diante dos dilemas enfrentados pela Argentina dos anos 1970.
Nesse sentido, nosso trabalho caracteriza-se, metodologicamente, sob o prisma de uma pesquisa exploratória de caráter histórico com aproximações biográficas. Fundamentamo-nos em fontes bibliográficas e autores que apontam a necessidade da perspectiva sociológica para a compreensão do campo onde se atua, realizando assim, a articulação entre a perspectiva histórico-sociológica e a aproximação biográfica.
Partindo do contexto sócio-político-religioso à época, o objetivo deste trabalho é propor uma reflexão sobre como o pensamento do provincial Jorge Mario Bergoglio, forjado nesse contexto epocal, poderia dialogar com as questões polarizantes da contemporaneidade. Pensamento que se veria refletido em textos de Francisco e que hoje contribui ao debate público internacional.
1 O PROVINCIAL E A SÍNTESE DAS OPOSIÇÕES
Ao assumir como superior provincial em 31 de julho de 1973, padre Jorge, como era conhecido, encontrou na Província Jesuíta um ambiente que retratava, em seu microcosmo, o que acorria na sociedade argentina. Os jesuítas estavam bastante divididos entre diferentes inclinações teológicas que se mostrariam difíceis de orquestrar. O debate interno se dava, principalmente, entre teólogos da libertação, teólogos do povo e teólogos conservadores.[1]
A respeito de tais circunstâncias, Bergoglio nos esclareceria décadas mais tarde:
O meu governo como jesuíta no início tinha muitos defeitos. Estávamos num tempo difícil para a Companhia: tinha desaparecido uma inteira geração de jesuítas. Por isso, vi-me nomeado Provincial ainda muito jovem. Tinha 36 anos: uma loucura. Era preciso enfrentar situações difíceis, e eu tomava as decisões de modo brusco e individualista. [...] O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios problemas. (BERGOGLIO, 2013, p. 15).
Os tempos que se anunciavam eram cada vez mais desafiadores para o padre Jorge Mario Bergoglio no comando da província jesuíta argentina. A morte de Juán Domingo Perón,[2] em 01 de julho de 1974, e o período subsequente em que governou a presidente Isabel Perón,[3] aumentaram sobremaneira os conflitos e a polarização da sociedade argentina, que se via na eminência de uma guerra civil.
Em 24 de março de 1976 ocorre o golpe militar autonomeado Proceso de Reorganización Nacional.[4] Os militares novamente tomavam o poder na Argentina. Uma junta militar, formada pelos militares das três Armas: Jorge Rafael Videla do Exército, Emílio Eduardo Massera da Marinha e Orlando Ramón Agosti da Aeronáutica, assumiu o poder e depôs, não só Isabel Perón, como os governadores e os vice-governadores. O congresso nacional foi dissolvido. Os membros da corte suprema foram removidos. Assumiu a presidência do país o General Jorge Rafael Videla. Declarou-se o estado de sítio na Argentina, suprimindo os direitos constitucionais, suspendendo as atividades políticas e de associação, proibindo os sindicatos, perseguindo e sequestrando militantes políticos, ativistas sociais e guerrilheiros e censurando os jornais (PIGNA, 2005).
Com a instauração do governo militar na Argentina, a situação de agitação social ganha contornos inimagináveis de barbárie e violência. Avolumam-se os desaparecidos e os oficialmente detidos pelos operativos militares e, isso, também se estendeu aos setores da Igreja Católica, à esquerda do espectro político. A Igreja também se dividiu entre apoiadores e contrários ao regime. Havia uma Igreja perseguida e seus membros sofreram tortura e foram assassinados (MIGNONE, 1986).
Transcorrido um ano do governo de Bergoglio à frente da Província Jesuíta (1974), observava-se uma situação paradoxal. Essa era resultante de uma combinação dos equívocos de condução, citados anteriormente em primeira pessoa pelo próprio Bergoglio, e sua consequente tentativa de remediá-los, buscando um equilíbrio na orquestração de pensamentos teológicos tão divergentes. O contexto epocal em nada facilitava o diálogo e a concertação[5]. A Companhia de Jesus na Argentina tendia a uma divisão entre bergoglianos e antibergoglianos (HIMITIAN, 2013).
Havia os que se alinhavam com a conduta de Bergoglio no governo da província – os nomeados bergoglianos. Estes assumiam uma postura mais ao centro, diante da dicotomia radicalizada que imperava nesse contexto social e que ecoava na Companhia. Em outro polo, estavam aqueles que eventualmente eram seus detratores – antibergoglianos. Esses, divididos em dois grupos: os que se posicionavam na esquerda militante, e os da direita, que se alinhavam com o regime ditatorial e que, nessas circunstâncias, contavam com o apoio significativo da cúpula eclesiástica argentina. “Por temperamento, Bergoglio não se enquadrava nem na direita tradicional, nem na esquerda revolucionária.” (QUEVEDO, 2013, p. 43).
Observa-se que ambos os setores, diametralmente opostos em ideologias sócio-político-religiosas, criticavam e viam com desconfiança a postura de Bergoglio nesse seu afã de equilíbrio. O intento era o de manter certa unicidade da Companhia, concebendo que a comunidade devia ser superior às convicções do indivíduo. No entanto, a resultante é que o provincial encontrava detratores em ambos os pontos extremados do conflito. De fato, a posição de Bergoglio era, sob qualquer enfoque, incômoda. Seus movimentos visando alguma concertação despertavam, entre os exaltados militantes de ambos os setores, certa desconfiança e rechaço. Como exemplo: quando buscava fomentar as ações pastorais junto aos bairros mais pobres, aos trabalhadores, era visto com desconfiança pelos conservadores. No entanto, quando buscava orientar a sacerdotes que exerciam certa militância política no sentido de que abrandassem seu discurso para evitar confrontos e perseguições, era por eles criticado.
A questão que surge é como colocar-se diante das demandas de um contexto tão turbulento? Bergoglio se posiciona em um entrelugares. Fundamenta seu discurso e sua atuação dentro de um caminho de ponderação, buscando um ponto de vista distinto das disputas e tensões dialéticas propostas nesse contexto. O equilíbrio que buscava era a proposição de um caminho, uma via, que, sem ignorar as diferenças, encontrasse uma síntese das oposições com vistas a manter a unidade da Companhia. Sua proposta se evidencia no documento Una institución que vive su carisma (BERGOGLIO, 1978), no qual explicita seu pensamento diante da polarização de sua época.
“No centro está a ideia de ‘uma unidade que não anula o diferente, que não reduz o conflito’. Uma unidade em tensão que reconhece o valor da polaridade impedindo sua resolução em contradição.” (BERGOGLIO apud BORGHESI, 2018, p. 79).
A escolha de Bergoglio pelo caminho ao centro não acontece de maneira banal. Ela tem fundamentos ideológicos que advém de sua formação intelectual como religioso, em diálogo com suas vivências como indivíduo, inserto no contexto histórico, social e religioso que lhe tocou vivenciar. Em outras palavras: Bergoglio recorreu à sua formação intelectual, à sua formação jesuítica, articulada a seu contexto epocal, para a formulação de seu pensamento e sua proposta para a Companhia de Jesus na Argentina. Essa respondia, também, às questões histórico-sociais da Argentina dos anos 1970.
Para que possamos melhor entender qual a fundamentação ideológico-intelectual que regia as ações do Padre Jorge, nos concentraremos na análise de quatro princípios fundamentais que regiam seu pensamento: 1) a unidade é superior ao conflito; 2) o todo é superior à parte; 3) o tempo é superior ao espaço, 4) a realidade é superior à ideia (BERGOGLIO, 1978).[6]
O primeiro princípio, a unidade é superior ao conflito, nos traz o cuidado do Padre Bergoglio na busca de uma coesão em torno da união da Companhia de Jesus. Eram tempos tão turbulentos e de tantas divisões ideológicas, que emanavam do campo social para o âmbito interno da Companhia, que a busca de uma síntese das oposições era necessária para o intento de coesão da instituição. Revelava também uma atitude sui generis, em uma sociedade que se encontrava submersa em radicalismos. Sob esta óptica, encontramos um agente de transformação religiosa que busca o equilíbrio na síntese das oposições, em uma sociedade imperativamente polarizante como a argentina.
O segundo princípio, o todo é superior à parte, está intrinsicamente relacionado ao primeiro. Nos traz possibilidades de análise do pensamento do Padre Jorge Mario Bergoglio que tangenciam a ideia de que essa união, por ele desejada para a Companhia nesse contexto conflitivo, deve sobrepor às divergências ideológicas do âmbito pessoal.
Sua proposição de um caminho, divergente das posições extremadas de seu tempo, demonstra a singularidade de sua posição ao centro que, longe de ser morna, se mostra profunda e original. “A única via que o cristão seguidor de Inácio tinha para sair da polarização histórica é a aceitação do plano de Deus maior do que nossos ‘projetos’.” (BORGHESI, 2018, p. 75).
Vale ressaltar, a proposta de Bergoglio não se tratava da construção de uma unidade sem conflito. A premissa, no entanto, impede a absolutização das diferenças por sobre princípios e valores que nos unem. Entendidos em quais esferas se deseje: Planeta, Pátria, Sociedade, Igreja, Comunidade, etc. “A unidade é sempre o resultado de uma tensão que pode encontrar solução somente numa síntese que transcende e consente a solução do antagonismo entre os polos.” (BORGHESI, 2018, p. 76).
O terceiro princípio, o tempo é superior ao espaço, indica que as questões momentâneas da disputa de poder, que regem os impulsos nas tensões ideológicas cotidianas, devem ser subordinadas e condicionadas a esse tempo maior que advém dos processos. Em outras palavras: “Indica o método para chegar à síntese, ou seja, a importância atribuída aos processos em relação à vontade de domínio que visa à ocupação dos espaços.” (BORGHESI, 2018, p. 77).
Vê-se, nesse princípio, um prisma que aponta à perspectiva de longo prazo, enquanto realiza a construção cotidiana desta síntese, que busca a união da instituição e do próprio povo. O que temos aqui é a proposição de uma visão para além das radicalizações do tempo presente, que pode propiciar uma perspectiva de encontro em algo maior e mais importante que as questões ideológicas imediatistas.
No quarto princípio, a realidade é superior à ideia, encontramos um desdobramento resultante da compreensão do princípio anterior. Propõe o entendimento de que, uma vez que nos concentremos em sobrepassar as diferenças, poderemos encontrar-nos na realidade que nos toca a todos. Uma realidade que é superior à ideia e às ideologias. Trata-se de um “[...] retorno à realidade, à categoria do possível, contra o fascínio da ideologia revolucionária e a pretensão de mudar o mundo a partir de vanguardas ‘das elites’.” (BORGHESI, 2018, p. 76).
Esse chamado à realidade possibilita um locus que, saindo da dicotomia simplista, busca, sem negar as diferenças, a síntese das oposições. A necessidade de tal síntese encontrava respaldo na realidade cotidiana, na sociedade resultante de um confronto odioso na Argentina dos anos 1970. Fazia-se necessário um encontro desideologizado, pois, a realidade que tais ideologias radicalizadas trouxeram ao país foi a da barbárie, do desrespeito aos direitos humanos e da morte.
Em suas palavras na pastoral social de 1976, Bergoglio diz:
Estamos divididos porque nossa adesão aos homens foi substituída pela adesão a sistemas e ideologias. Perdemos o senso do homem e do povo concreto com todas as suas experiências históricas e suas aspirações mais claras. Não devemos ouvir apenas o chamado de coerências sistemáticas que pretendem manipular os homens em base a seus interesses. O homem, que é origem, sujeito e fim de cada instituição, foi por elas absorvido e manipulado. (BERGOGLIO apud BORGHESI, 2018, p. 77).
O confronto ideológico na Argentina terminou por facilitar um ambiente de manipulação das camadas populares para o enfrentamento e a disputa política de poder com base na violência e no terror. A proposta do jovem provincial dos Jesuítas da Argentina, em seu contexto epocal, evidencia a atuação de um agente de transformação que parte da esfera religiosa – Companhia de Jesus – na formulação de um pensamento que busca atender também às demandas do campo social e político – a Argentina dos anos 1970. Bergoglio tentava, com sua proposta de síntese das oposições, a união da Companhia de Jesus, da própria Igreja Católica argentina e de todo o povo que sofria as agruras de um confronto ideológico que conduziu o país à barbárie e à violência.
2 DO PROVINCIAL BERGOGLIO AO PAPA FRANCISCO
Entendendo a perspectiva histórico-sociológica proposta nesse artigo, como sendo um emaranhado dialético de diversos fatores em um complexo jogo de mediações constantes, articula-se a ideia de quão presente está em Francisco a proposta bergogliana da Argentina dos anos 70.
Francisco desempenha, atualmente, um papel relevante no debate público acerca de variados temas. Poder-se-ia encontrar traços da proposta do Provincial dos Jesuítas da Argentina, forjada no contexto turbulento da ditadura militar dos anos 70, no magistério do Papa Francisco?
Encontramos em Francisco a idiossincrasia de um religioso latino-americano, que viveu as vicissitudes de seu tempo na Argentina e que, articula tais experiências a uma formação intelectual sólida e de herança primordialmente europeia. Acerca de uma formação que entenda a importância dos clássicos, Jorge Mario Bergoglio relatou:
Falando de “clássicos”, referimo-nos aos momentos fortes da experiência e da reflexão religiosa e cultural que fazem história, pois, de qualquer modo, tocam os acontecimentos irreversíveis do caminho de um povo, da Igreja, do cristão. Trata-se de ter sempre diante dos olhos o núcleo fundamental que nos constitui e nos identifica, para poder realizar, sem por isso desviar de nossa identidade, os passos que as situações históricas concretas e atuais exigem de nós. (BERGOGLIO, 1978, p. 35, tradução nossa).[7]
Na contemporaneidade, observamos que Francisco traz consigo, em uma tensão dialética constante, a síntese de sua idiossincrasia latino-americana e o exercício de sua função de sumo pontífice da Igreja Católica Romana. A tônica, se assim podemos referir-nos, de seu pontificado, tem apontado para uma retomada dos ares do Concílio Vaticano II (1962-1965). No entanto, esse movimento se dá sob a ótica contemporânea que contempla a problemática do século XXI. O faz, trazendo consigo a preocupação com os mais pobres e a partir desse lugar tão conhecido por ele, através de sua vida sacerdotal e de sua condição de latino-americano. Bergoglio é um homem que viveu, cotidianamente, o conflito de uma sociedade desigual, onde o luxo e a ostentação de uma elite abastada coexistiam com a pobreza e a miséria dos trabalhadores, dos mais pobres. Realidade comum aos latino-americanos. O Papa Francisco é também Jorge Mario Bergoglio em sua síntese, com todas as tensões e conflitos que trazemos em nossa bagagem de vida. Somos a síntese de tudo aquilo que nos construiu como singularidade; ainda que neguemos alguns traços e sobrevalorizemos outros, a tensão dialética dessa síntese está presente naquilo que somos, pensamos e em como atuamos.
Esse diálogo, entre o jovem provincial dos Jesuítas da Argentina e o contemporâneo Papa Francisco, se vê evidenciado em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (FRANCISCO, 2013). No quarto capítulo da exortação mencionada, intitulado A Dimensão Social da Evangelização, quando aborda o tema do bem comum e da paz social no item III, o Papa Francisco revisita os princípios do jovem provincial Bergoglio. Esses vêm dispostos na seguinte ordem: “o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia, e o todo é superior à parte.” (FRANCISCO, 2013, n. 222-237).
Sobre o Bem Comum e a Paz Social, Francisco nos diz que: “A paz social não pode ser entendida como irenismo[8] ou como mera ausência de violência obtida pela imposição de uma parte sobre as outras.” (FRANCISCO, 2013, n. 218). Essa colocação do Papa Francisco pode ser posta em perspectiva em relação aos tempos vividos por ele na ditadura militar argentina (1976-1983). O golpe militar denominado Proceso de Reorganización Nacional, através de uma falsa retórica de busca da paz e da união nacional, trouxe, na prática, uma imposição bárbara e atroz de uma parte sobre as outras e, ao contrário de trazer a paz, impôs ao país uma violência sem limites. Na contemporaneidade, a experiência de Bergoglio no contexto de sua época na Argentina, se reflete na fala de Francisco, buscando uma amplitude mundial. “Uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência.” (FRANCISCO, 2013, n. 219).
Acerca dos princípios revisitados em Evangelii Gaudium, Francisco também os apresenta em uma perspectiva ampliada ao contexto mundial, indicando que a aplicação destes pode apresentar-se como uma via para a construção da paz para as nações e para todo o planeta. Pretendemos, portanto, nesse revisitar de conceitos, articular uma possível conexão entre a circunstância epocal do provincial Bergoglio, no contexto da ditadura argentina, à visão amadurecida e ampliada à cena mundial do Papa Francisco.
Em o tempo é superior ao espaço, Francisco reafirma, nesse princípio, o prisma de longo prazo, sem a pressão imediatista das circunstâncias epocais. As disputas ideológicas, que culminaram na violência dos anos 1970 na Argentina, proporcionaram a Francisco uma visão ampliada que, na contemporaneidade, contribui ao debate público internacional. Traz a crítica à atividade política, que sublima a luta pelo imediato espaço de poder em detrimento dos processos e projetos de desenvolvimento:
Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo atual, se preocupam realmente mais com gerar processos que construam um povo do que com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efêmeros, mas que não constroem a plenitude humana. (FRANCISCO, 2013, n. 224).
Com a unidade prevalece sobre o conflito, traz a ideia de que as diferenças existem e devem ser aceitas, para que delas possamos extrair as potencialidades presentes nos polos conflitantes. Aqui, encontramos em Francisco a herança de seu contexto enquanto provincial dos Jesuítas da Argentina:
Perante o conflito, alguns se limitam a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse, lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projetam nas instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se impossível. (FRANCISCO, 2013, n. 227).
Quando aceitamos a existência do conflito com bases propositivas, sem a imposição da anulação do outro pela absolutização de nossos ideais, abre-se um caminho para sua resolução na diferença. Proporciona-se a ambiência para que nasça um novo projeto, onde a outra parte representa um ponto de vista que diverge do nosso, mas que não deve ser entendida como adversária a ser combatida e/ou aniquilada. Trata-se da síntese das oposições, proposta para as questões globais da contemporaneidade. O que se propõe é uma espécie de pacto cultural que possa congregar uma diversidade que se respeite[9].
Na proposição de que a realidade é mais importante que a ideia, encontramos a premissa de que os sofismos e articulações rebuscadas são, por via de regra, vazios e distantes da realidade prática e cotidiana da vida do povo. O que encontramos presente é a ideia de uma realidade para além das convicções ideológicas. Uma realidade que deve sobrepô-las. Essas convicções, apartadas da realidade aplicável na melhoria das relações humanas, torna-se apenas idealismo ineficaz, retórica vazia e fomento para radicalizações e conflitos (FRANCISCO, 2013). Revisitar tal premissa, nos dias atuais, é um imperativo para quem viveu a polarização entre um idealismo revolucionário e uma ortodoxia autoritária, e observa a escalada de radicalismos e autoritarismos na contemporaneidade.
Por esse caminho, chegamos à ideia de que o todo é superior à parte. No contexto da ditadura argentina, o provincial Bergoglio propunha, com tal premissa, uma união da Companhia de Jesus e da própria Igreja, em resposta às questões polarizantes que advinham do campo social. Consistia em buscar uma síntese que, sem anular as diferenças, permitisse o sobrepasso das tensões ideológicas epocais, em prol da união da instituição e do povo.
Na visão amadurecida de Francisco, encontramos a premissa do jovem provincial aplicada ao panorama mundial. Ampliada a uma perspectiva que concebe a dimensão global sem, contudo, negligenciar as particularidades relacionadas àquilo que é inerente às realidades e idiossincrasias locais. Ademais, sua proposta de uma aproximação dialogal entre agentes com concepções ideológicas distintas, visa uma relação permeada pelo respeito, pela preservação e prática de valores autenticamente humanos.
Na premissa de que o todo é superior à parte, podemos encontrar refletida a tensão entre duas forças opostas, que nos oprimem na velocidade da vida no mundo moderno e tecnológico: de um lado, a globalização de um modo de vida e, sobretudo, de um consumo que é almejado por todos; de outro, os que estão excluídos desse padrão de vida, que não é factível a todos, posto que as condições de vida, de educação e de empreender nesse mundo veloz e tecnológico, são primordialmente nacionais. A encíclica Laudato Si’ (2015), que foi a primeira a ser produzida integralmente por Francisco, nos revela a tônica do pensamento de um amadurecido Bergoglio. Uma mensagem marcante em Laudato Si’ é a de que tudo está conectado. Nós, humanos, não estamos dissociados da natureza e da Terra. Somos parte de um todo que precisa de um equilíbrio, de uma síntese, entre habitar o mundo tecnológico dos dias atuais e o uso racional dos recursos de nossa “casa comum”.
O tempo atual sublima uma vida centrada em nossas individualidades e desejos que tentamos imediatamente satisfazer, em uma busca pela felicidade que, cada vez mais, está condicionada ao ter e menos ao ser e ao sentir. Essa postura individualista acaba por fazer com que percamos a visão do todo. Nos dias hodiernos, é imperativo que tenhamos sempre em perspectiva que, para além de nossas singularidades, há um complexo e intrincado sistema de vida em sociedade, que mais tem oprimido e excluído que nos feito progredir. Um sistema do qual nossa singular existência também depende e do qual somos parte indissociável, habitando o mesmo planeta.
O todo que é superior à parte traz, nesse contexto, a proposição de que “É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós.” (FRANCISCO, 2013, n. 235).
A ideia de um bem maior tangencia o cuidado com o planeta, em contraposição à exploração e ao esgotamento dos recursos da Terra. Um diálogo entre os povos, baseado em relações mais justas e igualitárias e não na opressão e no subjugo de uma nação ante a outra. Perpassa uma economia que leve em conta as pessoas e suas realidades locais em uma visão de cooperação e diálogo, não na exploração das nações menos desenvolvidas e no lucro à custa do subdesenvolvimento de outros povos. “É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.” (FRANCISCO, 2013, n. 236).
Encontramos, no pensamento de Francisco, a síntese entre o latino-americano Bergoglio e a visão de mundo amadurecida do homem que hoje ocupa a cátedra de Pedro. Essa perspectiva se mostra em seus pronunciamentos e seus escritos. Como exemplos: o já citado Evangelii Gaudium (FRANCISCO, 2013); Laudato Si’ (FRANCISCO, 2015); Fratelli tutti (FRANCISCO, 2020a) e, recentemente, Vamos sonhar juntos (FRANCISCO, 2020b), escrito face à situação pandêmica mundial.
Francisco tem, na contemporaneidade, um papel relevante no cenário internacional e demonstra, em reiteradas oportunidades, sua idiossincrasia latino-americana na dialética entre sua herança cultural e seu papel de líder religioso que não se abstém do debate público.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encontramos na perspectiva bergogliana a gênese da proposta de um agente de transformação, no interior da Companhia de Jesus argentina, dentro do contexto conflitivo vivido por esse agente em uma ditadura militar. Esse religioso tornou-se o Sumo Pontífice e, como Francisco, atua hoje como agente de transformação, a partir da esfera religiosa, no ambiente do debate público secularizado. Traz consigo as experiências do padre Jorge Mario Bergoglio e a idiossincrasia natural ao primeiro Papa latino-americano da história da Igreja Católica Romana.
Acreditamos haver podido apresentar, nesse artigo, as possíveis relações dialéticas entre o jovem provincial dos Jesuítas da Argentina e o atual Papa Francisco. Sua proposta de síntese das oposições, elaborada em um contexto específico de sua biografia, vê-se atualmente ampliada na visão do Sumo Pontífice. A proposta dialogal de Francisco traz em seu bojo a gênese do pensamento bergogliano da Argentina dos anos 1970. Em um mesmo sentido, procuramos apresentar as premissas em seu contexto epocal e, na sequência, revisitá-las na perspectiva do pontífice contemporâneo.
Francisco parece experienciar em si a própria síntese proposta, na tensão entre a singularidade idiossincrática latino-americana e o exercício de seu pontificado como líder da Igreja Católica Romana. Em outras palavras, existe uma tensão dialética entre os ímpetos do indivíduo Bergoglio e a ortodoxia necessária para o exercício do pontificado de Francisco. De um lado, ainda hoje, encontra detratores por suas posições no governo da Igreja, por muitos entendidas como autoritárias, passionais e intempestivas. Características tão comumente atribuídas aos latino-americanos e que Francisco, de alguma forma, herda do jovem Bergoglio. De outro lado, o experiente Francisco busca harmonizar, não sem contratempos, sua personalidade latina aos cuidados e ortodoxias concernentes a seu cargo.
Sem termos, nesse artigo, nenhuma pretensão de expor afirmações terminantes em relação ao tema, o que se propõe é a reflexão acerca de como seu pensamento profundo e original, forjado nos anos da ditadura argentina, poderia indicar um caminho para conflitos e desafios que nossas sociedades enfrentam na contemporaneidade. Vivemos uma escalada de tensões político-sociais que elevam o tom do debate, e a polarização é assunto hodierno nas reflexões e discussões. Há uma tendência aos discursos totalitários e populistas, que sublimam as pautas ideológicas por sobre critérios da realidade e da ciência. As tensões dessa ordem notam-se em escala global.
A proposta bergogliana de um prisma, que encontra na oposição polar a possibilidade de uma síntese, poderia hoje aportar elementos provenientes da esfera religiosa para o âmbito do debate público secularizado.
Alentamos que esse texto possa suscitar reflexões e questionamentos, acerca de um pensamento propositivo no diálogo, síntese e concertação, face às questões polarizantes da contemporaneidade.
REFERÊNCIAS
BERGOGLIO, Jorge Mario. Una institución que vive su carisma. Boletín de Espiritualidad. Argentina: Compañia de Jesús, 1978.
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Notas