ARTIGOS
CONDENAÇÃO OU INDULGÊNCIA ÀS FILHAS DE EVA?: a perspectiva de Edith Stein diante da natureza feminina
Damn or Indulgence to the Eve’s Daughters?: Edith Stein’s perspective about the female nature
¿Condenar o Perdonar las Hijas de Eva?: la perspectiva de Edith Stein sobre la naturaleza femenina
CONDENAÇÃO OU INDULGÊNCIA ÀS FILHAS DE EVA?: a perspectiva de Edith Stein diante da natureza feminina
Interações, vol. 17, núm. 1, pp. 171-182, 2022
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Recepción: 04 Septiembre 2021
Aprobación: 04 Febrero 2022
Resumo: Plenitude. O termo muitas vezes utilizado para designar a característica primordial da criação do primeiro homem, a partir do mito da cosmogonia cristã, não pode ser igualmente atribuído à sua correspondente, a mulher. De fato, a teologia cristã - representada fundamentalmente pela patrística - esforçou-se por mantê-la sempre em segundo lugar, submissa e silenciada, por toda a história do Ocidente. Contudo, a partir dos movimentos em prol dos direitos das mulheres, a estrutura social derivada do mito de Adão e Eva passa a ser revista e reinterpretada à luz do desejo pela equidade. É diante desse cenário que Edith Stein (1891-1942), uma das primeiras doutoras em Filosofia da Alemanha, reescreve a interpretação de Eva, fundando uma nova linha argumentativa acerca da natureza feminina. A carmelita ultrapassa a teologia dos primeiros padres ao desfazer a imanência da natureza, inserindo a variável do tempo à definição da natureza dos gêneros. Ater o olhar à obra de Stein pode revelar novas vias teológicas para atualizar a discussão diante das questões da contemporaneidade. Seria o suficiente, contudo, para recomeçar a história das mulheres na teologia?
Palavras-chave: Teologia escrita por mulheres, Natureza feminina, Edith Stein.
Abstract: Fullness. The term that is often used to designate the primordial characteristic of the creation of the first man, from the myth of Christian cosmogony, can’t be equally attributed to his assistant, the woman. In fact, Christian theology - represented fundamentally by the patristic - strove to keep her always in a second place, submissive and silenced, throughout the history of the West. However, from the movements in favor of women’s rights, the social structure derived from the myth of Adam and Eve was revised and reinterpreted in the desire's light for equity. It is against this backdrop that Edith Stein (1891-1942), one of the first PhDs in Philosophy in Germany, rewrites Eva’s interpretation, founding a new line of argument about the female nature. The carmelite surpasses the theology of the first priests by undoing the immanence of nature, inserting the variable of time into the definition of the nature of genres. Paying attention on Stein’s work can reveal new theological ways to update the discussion on contemporary issues. Would it be enough, however, to restart the history of women in theology?
Keywords: Theology written by women, Feminine nature, Edith Stein.
Resumen: Plenitud. El término utilizado a menudo para designar la característica primordial de la creación del primer hombre, delante el mito de la cosmogonía cristiana, no puede atribuirse igualmente a su contraparte, la mujer. De hecho, la teología cristiana - representada fundamentalmente por la patrística- se esforzó por mantenerla siempre en segundo lugar, sumisa y silenciada, a lo largo de la historia de Occidente. Sin embargo, a partir de los movimientos a favor de los derechos de las mujeres, la estructura social derivada del mito de Adán y Eva se revisa y reinterpreta a luz del deseo por la equidad. Es en este contexto que Edith Stein (1891-1942), una de las primeras doctoras en Filosofía en Alemania, reescribe la interpretación sobre Eva, fundando una nueva línea de argumentación sobre la naturaleza femenina. La carmelita supera la teología de los primeros sacerdotes al deshacer la inmanencia de la naturaleza, insertando la variable del tiempo en la definición de la naturaleza de los géneros. Mantener atención en el trabajo de Stein puede revelar nuevas formas teológicas de actualizar la discusión, especialmente acerca de temas contemporáneos. ¿Sería suficiente, sin embargo, para reiniciar la historia de la mujer en la teología?
Palabras clave: Teología escrita por mujeres, Naturaleza femenina, Edith Stein.
1 INTRODUÇÃO
[...] tentando lançar um olhar para dentro do mais íntimo de nosso ser, descobrimos que não se trata de um ser pronto e, sim, de um vir-a-ser, e procuramos então esclarecer esse processo do vir-a-ser. (STEIN, 2020, p.88)
A vocação feminina, ou ainda, o chamado da Criação perante a mulher é tema de diversas reflexões de Edith Stein (1891-1942) contidas na obra relançada no Brasil A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça (2020). A necessidade de responder a tais questões provém das inquietas perguntas do tempo de Stein: poderiam as mulheres participar da Universidade e da Política? Quais seriam os impactos do trabalho feminino nas organizações familiares? Não estariam as mulheres tentando, afinal, viver como homens? Stein, se recorresse à tradição teológica, não responderia nenhuma das questões de seu tempo - afinal, a teologia católica desprezava a mulher por considerá-la culpada pela entrada do pecado no mundo - o que obrigou a teóloga a organizar um novo sistema de pensamento que, desta vez, investigaria a mulher para além da culpa.
Para responder aos questionamentos de sua época, Stein busca as perguntas filosóficas mais elementares sobre a mulher e as utiliza como ponto de partida na discussão. Isto significa que, antes de argumentar sobre trabalho, por exemplo, a teóloga buscará investigar a mulher enquanto conceito. É da investigação teológico-filosófica dos contornos deste objeto, a mulher, que as consequências sociais poderiam ser posteriormente atribuídas. O modo com que a teóloga decide se aproximar da questão condiz com sua própria formação: antes de João Paulo II a tornar Santa Teresa Benedita da Cruz em 1998, Stein pertencia à tradição filosófica fenomenológica, fundada por Edmund Husserl (1859-1938).
Além de ter sido orientanda do próprio Husserl, Stein foi uma das dez primeiras mulheres alemãs a alcançarem o doutoramento em filosofia. A escrita da tese Sobre o problema da empatia (2004), defendida na Universidade de Göttingen em 1916, demonstra sua brilhante capacidade argumentativa que, na escrita de um texto filosófico, abre espaço para discussões com o tomismo e com a própria metodologia fenomenológica criada por Husserl. Herdando a dúvida metódica cartesiana, Stein abre a escrita da tese com a definição de fenomenologia, baseando-a na supressão do sujeito em detrimento da análise dos fenômenos em relação ao objeto, isto é, ignorando-se as características reais ou empíricas da existência, as experiências devem ser consideradas no plano da generalidade essencial e investigadas em si mesmas. Assim, de certo modo, o método consiste em uma redução, como intitulará Stein.
Na base de qualquer controvérsia sobre a empatia, existe uma suposição tácita: os sujeitos externos e suas experiências não são dados. Antes se trata do desenvolvimento do processo, os efeitos, a base dessa doação. Mas a próxima tarefa é considerada em si mesma e sua essência investigada. A orientação em que fazemos isso é a “redução fenomenológica”. O objetivo da fenomenologia é o esclarecimento e, com ele, o fundamento último de todo o conhecimento. Para atingir este objetivo, ele exclui da consideração tudo o que é de alguma forma “dubitável”, que pode ser eliminado. [...] Posso duvidar que exista aquilo que vejo diante de mim, pois persiste a possibilidade de um engano; para isso devo excluir a posição de existência, não tenho permissão para fazer uso dela; mas o que não posso excluir, o que não está submetido à dúvida, é a experiência das coisas [...] É assim que todo o “fenômeno-mundo” permanece após a supressão da posição do mundo. E esses “fenômenos” são o objeto da fenomenologia. (STEIN, 2004, p. 20-21, tradução nossa)[1]
A investigação dos fenômenos fará com que, acerca da questão mulher, Stein escolha aproximar-se inicialmente da literatura elementar dos teólogos essenciais que fundaram a base filosófica do cristianismo: os primeiros padres, como ficaram conhecidos pensadores como Crisóstomo (347-407 d.C) e Jerônimo (340-420 d.C), além de Agostinho de Hipona (354-430 d.C). Se os fenômenos vivenciados pelas mulheres da época de Stein pudessem ter uma origem, levando em consideração a formação do Ocidente, com certeza ela seria a interpretação bíblica feita e proclamada como verdadeira através dos séculos. Também os primeiros padres iniciam suas reflexões por questões elementares: a natureza da mulher será investigada a partir da criação feita pelo próprio Deus. Assim, será a cosmogonia cristã, ou ainda, o mito de Adão e Eva o escolhido para justificar uma suposta natureza feminina, dela derivando consequências sociais.
Investigar a teologia dos primeiros padres torna-se relevante para comparar como Stein realiza interpretações diferentes a partir do mesmo fenômeno, sendo este a literatura bíblica. As ligações entre a teologia de Stein e a conquista de direitos pelas mulheres são inegáveis, de modo que submeter à análise sua obra significa rever a pretensa culpa do gênero feminino no cristianismo, arrastada durante séculos e ainda hoje utilizada como argumento para a diferenciação entre os gêneros. Se Stein revê o conceito mulher e reescreve uma teologia que não a condene, seria possível afirmar nela o recomeço da história feminina na teologia?
2 A TRADIÇÃO TEOLÓGICA EM QUESTÃO: O CONCEITO MULHER PARA OS PRIMEIROS PADRES E SUAS DERIVAÇÕES SOCIAIS
Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Deus criou o homem à sua imagem, a imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. (Gn 1, 26-27)[2]
Duas são as narrativas bíblicas presentes no livro do Gênesis acerca da criação do primeiro homem e da primeira mulher, uma presente no primeiro capítulo do livro (Gn 1, 26-27) e outra no segundo (Gn 2, 23). As diferenças entre elas, embora sutis, serviram de base teológica para os primeiros padres, especialmente Crisóstomo (347-407 d.C), Jerônimo (340-420 d.C) e Agostinho (354-430 d.C). Não tomando o texto bíblico como literatura mas como interpretação literal da realidade, tais pensadores preencheram as lacunas deixadas pelo relato bíblico com suas próprias interpretações sempre, evidentemente, destacando a verdade divina em cada uma delas. A verdade particular, contudo, revelava uma predileção pela segunda narrativa (Gn 2, 23) que, ao invés de colocar homem e mulher em posição de igualdade perante a Criação, apresentava o homem como a primeira criatura e a mulher como sua auxiliar correspondente.
Crisóstomo (2014) justificará a primazia masculina no ato da Criação, que faz com que o homem se torne o ser principal e a mulher, o secundário e imperfeito, a partir da prevalência do homem tanto em relação ao tempo quanto aos acontecimentos. Em outras palavras, o fato do homem ser criado primeiro indicaria a preferência de Deus sobre esta criatura, mais perfeita e sábia do que a que seria criada posteriormente. Além disso, o fato da queda provir da mulher e não do homem indicaria uma perfeição maior deste em detrimento daquela. Prova da imperfectibilidade feminina seria a incapacidade de instrução das mulheres: quando foi dada a Eva a possibilidade de instruir seu marido, o instruiu a comer a maçã, o que levou a morte e a desgraça de toda a humanidade. Uma vez que a mulher “[...] ensinou uma vez ao homem, tudo subverteu e tornou-o culpado pela desobediência” (CRISÓSTOMO, 2014, p.30), é negado perpetuamente o direito ao ensino – o que implicará no silenciamento feminino.
Crisóstomo confunde em sua argumentação o termo ensinar com dominar (CRISÓSTOMO, 2014, p.28). Isto é, quando afirma que as mulheres não devem ensinar na assembleia, afirma do mesmo modo que elas não devem instruir os homens em suas decisões - o que significaria dominar sobre eles. É dado ao homem o direito exclusivo do domínio sobre si e sobre a mulher, ou seja, o poder de decisão sobre a vida da mulher é do gênero masculino, uma vez que ela não seria sábia o suficiente para tomar decisões, como fora visto em Eva. Diante desta incapacidade feminina, Crisóstomo condena as mulheres ao silêncio: “Durante a instrução, a mulher conserve o silêncio, com toda a submissão. Eu não permito que a mulher ensine, ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio.” (CRISÓSTOMO, 2014, p.28, grifos nossos). O silêncio, que impede a fala da mulher, impediria também que ela desviasse mais uma vez os rumos da Criação - o que significaria que toda sua fala é pecaminosa.
A mulher ensinou uma vez, e tudo subverteu; por isso o Apóstolo disse: “Não lhe é permitido tomar a palavra. Que importa às demais mulheres que ela o tenha feito? Importa certamente; o sexo é fraco e leviano. Aliás, o sermão trata de todo o sexo. Pois não disse: Eva foi seduzida, e sim “a mulher”, designando mais o sexo em comum do que um nome. (CRISÓSTOMO, 2014, p.32, grifos nossos)
Toda a base argumentativa de Crisóstomo está baseada, então, em duas premissas: a primazia da criação masculina e a culpabilização da mulher diante da queda, já que, segundo o teólogo, “[...] não foi Adão seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão.” (CRISÓSTOMO, 2014, p.28). Evidencia-se como a cosmogonia cristã é interpretada culpabilizando terrível e perpetuamente Eva, quase que excluindo a participação de Adão na queda. Crisóstomo expande a culpa de Eva a todo o gênero feminino que, descendente da primeira mulher, estaria culpado eternamente. Assim, derivam-se as punições sociais de Crisóstomo (2014) às mulheres, que incluiriam, além da subjugação e do silêncio, o não adorno do corpo com joias ou pérolas, o não uso de tranças nos cabelos, além, é claro, da virgindade.
Agostinho, um dos mais respeitados teólogos da tradição teológica cristã, também justificará a natureza fraca e débil da mulher a partir da segunda narrativa do Gênesis. Por ser criada depois e de uma parte do homem – no caso, a costela -, esta seria sempre incompleta, isto é, a natureza feminina não existiria por si só, apenas se derivaria de uma parte da masculinidade. O fato da mulher ter sido retirada do homem faria, consequentemente, com que esta se tornasse um ser sem essência própria. Assim, o “[...] elemento inferior dos dois humanos” (AGOSTINHO, 2011, XIV, 11), aquele que será seduzido, é praticamente um erro da Criação. Ainda na análise do segundo relato da Criação, é relevante destacar que Agostinho não vê a mulher como uma correspondente do ser masculino, e isso porque, por sua natureza, os atos femininos seriam sempre incompletos, fracos e falhos, ao contrário dos atos masculinos: sempre perfeitos e completos.
A questão que o argumento de Agostinho alcança é a finalidade da existência feminina. Ora, se a natureza da mulher já havia se provado falha e pecaminosa, inapta para fazer qualquer serviço com a perfeição masculina, para que Deus a teria criado? Agostinho observará que a única ação que o homem não pode realizar perfeitamente sozinho é a procriação, portanto, a função da mulher é auxiliar na geração de filhos. Resignada à função de procriadora pela teologia, a mulher ocupará, na estrutura social criada pelo cristianismo no Ocidente, apenas o lugar da vida privada, a vida pública será papel masculino. Assim, enquanto ao homem, por sua natureza, caberá o trabalho, o raciocínio e a plena vida social, à mulher, também por sua natureza, restará a casa, as crianças e a cozinha.
Não vejo que espécie de auxílio a mulher deveria prestar ao homem, caso se exclua a finalidade da procriação. Se a mulher não foi dada ao homem para ajudá-lo a dar à luz crianças, para que mais serviria? Para cultivarem a terra juntos? Se fosse necessária ajuda para isso, um homem seria de melhor auxílio para outro homem. O mesmo se há dizer para o conforto na solidão. Pois muito maior o prazer para a vida e para a conversa quando dois amigos vivem juntos do que quando homem e mulher vivem juntos. (AGOSTINHO, De bono conjugali 9, 5-9 apud RAINKE-HEINEMANN, 2019, p.105-106)
Também Crisóstomo afirma a finalidade da vida feminina a partir da procriação. Segundo o teólogo, apesar do gênero inteiro estar condenado pela queda de Eva, poderia ser redimido a partir da concepção de crianças que, se bem educadas, constituiriam verdadeiros “atletas de Cristo” (CRISÓSTOMO, 2014, p.37). Crisóstomo ainda incentivará os casais a bem criar seus filhos, ensinando-os a coragem e a prudência, além de bem criar suas filhas, silenciando-as: “Mães, educai retamente vossas filhas. É fácil tarefa. Vigiai. Que permaneçam em casa.” (CRISÓSTOMO, 2014, p.40). Evidencia-se que na educação das crianças repetem-se os conceitos de gênero já estabelecidos pela argumentação, que tornam, portanto, naturais as capacidades criativas e desbravadoras dos meninos, e estranham as mesmas se atribuídas às meninas.
Jerônimo também se revela defensor da finalidade procriativa das mulheres ao comentar a genealogia feita no primeiro capítulo de Mateus (Mt 1, 1-26). Segundo o teólogo, o que justifica o fato dos nomes das mulheres aparecerem na genealogia – que é, inclusive, uma genealogia que provém dos pais, sendo a família da mãe descartada - é “[...] mostrar que aquele que viera para os pecadores, ao nascer de pecadoras, havia de destruir o pecado de todas elas.” (JERÔNIMO, 2021, p.9). Confirma-se em Jerônimo a ideia proposta por Crisóstomo: as mulheres só alcançariam a salvação a partir da geração de filhos.
Evidencia-se tanto em Crisóstomo quanto em Agostinho e Jerônimo a sub-natureza feminina. Criada em segundo lugar e responsável pela desgraça da humanidade, Eva regalará por herança a culpa a todo o gênero feminino que, mesmo após a vinda de Cristo, não se redimirá totalmente. Se houvesse, de fato, o perdão ao pecado de Eva nessas argumentações teológicas, a mulher não continuaria subjugada ao domínio masculino. Do mesmo modo, as punições sociais recebidas por conta de Eva – como o silenciamento - também não seriam mais apropriadas. Diante da tradição patrística que ignora a redenção feminina, Ranke Heinemann (2019) afirmará que o primeiro e único defensor das mulheres na história do cristianismo fora o próprio Cristo. Após Cristo, a Igreja tornou-se masculina e, apartando as mulheres da vida plena, tornou-se também misógina.
Somando tudo, considerando a repressão, a difamação e a demonização das mulheres, toda a história da Igreja faz parte de um longo, arbitrário e bitolado despotismo masculino sobre o sexo feminino. E esse despotismo continua até hoje, ininterrupto. A subordinação das mulheres aos homens continua a ser um postulado dos teólogos ao longo da história da Igreja; e mesmo na Igreja masculina de hoje continua a ser tratado como um dogma da vontade divina. A Igreja masculina nunca compreendeu que a realidade da Igreja se baseia na humanidade partilhada do homem e da mulher. (RANKE-HEINEMANN, 2019, p.159)
3 DA CONDENAÇÃO À SALVAÇÃO: A PERSPECTIVA DE STEIN DIANTE DO GÊNERO FEMININO
A interpretação de Stein difere-se da dos primeiros padres em um primeiro elemento essencial: a inerência. Para Stein, a definição da natureza feminina está condicionada ao tempo, isto é, não é definitiva. Em outras palavras, não é possível utilizar a narrativa presente no Gênesis para justificar perpetuamente a definição da mulher e os papeis femininos na sociedade, e isso porque, da Criação ao século XX, elementos teológicos se alteraram, em específico, a humanização de Deus para a salvação da humanidade. Para a teóloga, a natureza de ambos os sexos e suas relações alteram-se em três momentos distintos que também alteraram a relação dos gêneros com Deus: o paraíso, a queda e a redenção.
Stein analisa ambas as passagens do Gênesis. Da primeira, compreende que, apesar da diferenciação entre os gêneros, ambos são responsáveis pela tríplice tarefa dirigida pelo divino: que sejam imagem e semelhança de Deus, que tenham descendência e que dominem sobre a Terra. Já na segunda, assume uma certa prioridade do homem diante do fato deste ser criado primeiro, mas eleva a mulher ao analisar o termo “auxiliar correspondente” (Gn 2, 23). Do hebraico kenegdo, o termo poderia ser traduzido literalmente por uma ajuda como ele defronte, o que a carmelita interpreta metaforicamente como um reflexo no espelho, isto é, apesar de homem e mulher serem diferentes, são constituídos um em contrapartida do outro, “[...] de modo que ambos se assemelhem, mas não totalmente, que se complementem como uma mão a outra.” (STEIN, 2020, p.63). Na vivência no paraíso, tal complementariedade resulta apenas em harmonia.
Não se fala aqui em domínio do homem sobre a mulher. Ela é chamada de companheira e ajudante, e do homem se diz que ele se unirá a ela e que ambos formarão uma só carne. Assim, dá-se a entender que a vida do primeiro casal humano deva ser entendida como a mais íntima comunidade de amor, que tenham cooperado em harmonia perfeita das forças, assim como, antes da queda, em cada um deles, individualmente, todas as forças eram cheias de harmonia, os sentidos e a mente na proporção certa, sem possibilidade de antagonismos. Por isso mesmo, nem conheciam o desejo desordenado pelo outro. É isso que está expresso nas palavras: Estavam nus e não se envergonhavam. (STEIN, 2020, p.64)
A definição de quem é a mulher transforma-se inteiramente após a sedução de Eva pelo tentador e sua desobediência junto a Adão, que resulta na queda, isto é, na penetração do pecado no mundo, outrora perfeito e criado por Deus (Gn 3, 1-24). Nesta nova realidade, o homem é castigado com o trabalho - “Maldita é a terra por sua causa: com fadiga obterá dela o sustento durante todos os dias de tua vida” (Gn 3, 17) - e a mulher, com a subjugação - “Multiplicarei, sobremodo, os sofrimentos da tua gravidez; em meio a dores darás à luz filhos: o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (Gn 3, 16). Segundo Stein, é a mudança no relacionamento com Deus, outrora harmônico e pacífico, que traz como consequência a mudança nas relações dos seres humanos com a terra, com seus descendentes e entre si mesmos.
Esta condição, normalizada por Agostinho, é sinônimo da desordem entre os gêneros e Deus para Stein que, como visto, desordena também as outras esferas da vida. Esta não é uma condição perpétua, uma vez que o pecado não aflige a humanidade e a condena eternamente: com a vinda de Cristo e a salvação da humanidade, a condenação do Gênesis é dissolvida. Como projeto divino, o Deus feito carne deseja novamente tornar as relações harmônicas e baseadas no amor. Para a carmelita é evidente que “[...] o novo reino de Deus veio para realizar um reordenamento entre os sexos, isto é, para eliminar as relações condicionadas pelo pecado reestabelecendo a ordem original” (STEIN, 2020, p.67)
Homem e mulher são destinados a levar uma vida comum como se fossem um único ser. Mas, ao homem que foi criado primeiro cabe a direção dessa comunidade de vida. Tem-se, no entanto, a impressão de que essa interpretação não reflita puramente a ordem original e salvífica, antes parece imbuída ainda da ordem da natureza caída, uma vez que dá destaque à relação de domínio e entende o homem como ser mediador entre o Redentor e a mulher. Nem o relato da criação nem o evangelho fazem referência a essa mediação na relação com Deus. Ela é própria, isso sim, da lei mosaica e do direito romano. (STEIN, 2020, p.68)
A crítica de Stein às interpretações dos primeiros padres está contida no fato de que estes ignoraram a vinda de Cristo como salvífica também para o castigo da mulher de submeter-se ao homem. Comodamente, a teologia católica continuou definindo a mulher pelo pecado original, mesmo após Cristo ter apagado seus efeitos em toda a humanidade. É partindo, então, de uma humanidade redimida pela graça divina que Stein definirá a nova natureza da mulher, esta existindo por si mesma, não dependente do homem. A interpretação também se baseará na leitura do Novo Testamento, especificamente do Evangelho, a partir das características literárias texto bíblico, o que faz com que a teóloga reconheça alegorias e relações simbólicas (STEIN, 2020) onde antes as leituras tinham sido literais.
A análise da natureza feminina no tempo da redenção volta-se para a tríplice missão confiada por Deus a ambos os gêneros. Stein afirma que, diante das três atitudes básicas diante do mundo – conhecer, desfrutar e criar -, apraz mais à mulher o desfrute e o cuidado. E isso porque, justifica a carmelita, há uma ordem natural que coloca a mulher ao lado do homem e, na função a ela confiada de cuidar dos filhos, a função materna predominou na constituição do ser feminino. Da maternidade, espiritual ou biológica, derivam as características aparentes na mulher.
A responsabilidade, que pesa sobre os ombros do homem, poderia parecer grande demais, ao lado dos deveres profissionais, se não tivesse a seu lado a ajudante que, segundo a sua natureza, tem a vocação de assumir mais da metade desse peso. Se, por um lado, existe nela o desejo de poder desenvolver plenamente a sua própria personalidade, procura igualmente ajudar as pessoas que lhe são próximas a desenvolverem-se, também sem restrições. Assim, o marido encontrará nela a melhor conselheira para a própria orientação dela, dos filhos e dele mesmo. Em muitos casos, cumprirá melhor suas obrigações deixando-a à vontade em suas aspirações e deixando-se guiar por ela. Faz parte da dedicação feminina ao desenvolvimento correto das pessoas próximas a preocupação com a ordem e a beleza de toda a casa para que se crie um ambiente propício ao desenvolvimento de todos. (STEIN, 2020, p.79, grifos nossos)
A valorização da maternidade feminina e o reconhecimento de que a mulher também se realizará vocacionalmente, isto é, cumprirá o chamado divino destinado à sua natureza se seguir às próprias aspirações - o que, logo em seguida, Stein apresentará como sendo o poder de trabalhar de maneira independente - é muito relevante na construção deste sistema de pensamento. Destaca-se, em primeiro lugar, a afirmação de que o trabalho doméstico e a criação dos filhos é uma tarefa, não uma herança condenativa – e a vocação da mulher ao cuidado não isenta o homem de participar delas. Em segundo lugar, é importante apontar que, caso a mulher assuma o papel de esposa, o homem poderá se deixar guiar por ela. Os pontos apresentados constituem um avanço muito considerável à uma teologia que se esforçou por relegar à mulher o lugar de serviçal, e serviçal porque não fora considerada um ser com natureza própria, mas apenas um “homem imperfeito” (AQUINO, De veritate 5, 9 apud RANKE-HEINEMANN, 2019, p.223), nas palavras de Tomás de Aquino (1225-1274)
Destas definições derivam-se então os argumentos a favor da participação da mulher na vida externa à casa. E isso porque, naquele momento, estaria reestabelecida a ordem da relação original, o que permite, segundo Stein, que, a cooperação harmônica e a regulamentação de comum acordo distribuam os papéis profissionais entre homens e mulheres. É neste ponto da argumentação que Stein responde aos questionamentos de seu tempo: a política e o trabalho profissional são possíveis às mulheres, não porque estas querem ser como os homens, mas porque possuem uma natureza própria que as inclina à vida pública - o que, destaca Stein, seria muito benéfico tendo em vista as ótimas características naturais das mulheres.
Diante da natureza feminina, entendida por Stein como um dom dado por Deus, a carmelita proporá um trabalho de formação feminina específico para que se manifeste sua essência e traços específicos. Segundo Peretti (2013), Stein advogará a favor, especialmente, da educação formal do gênero feminino e se envolverá com o Partido Democrático Alemão para apresentar políticas públicas com essa finalidade. Pode-se dizer que, apesar de Stein ser uma das primeiras mulheres Doutoras na Alemanha, seu trabalho teológico e posterior luta social se empenharam em transformar tal situação.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teologia transborda na sociedade. A afirmação é inegável no Ocidente, onde o cristianismo foi o grande responsável por organizar os papéis sociais, bem como a moralidade. Investigar o conceito mulher, contudo, ultrapassa perceber singulares aspectos desta cultura e alcança as justificações teológicas para a construção e manutenção de tal estrutura social. A herança da patrística, responsável por firmar as primeiras bases da religiosidade após a morte de Cristo, revela-se na perpetuação da misoginia através dos séculos, que nega a salvação plena do gênero feminino mesmo após o sacrifício de Cristo. A grande novidade do pensamento de Stein, que contrasta com a argumentação dos primeiros padres, é o perdão dos pecados às filhas de Eva.
A partir da desvinculação do gênero feminino com o pecado de Eva, uma nova história para as mulheres pode ser traçada, não apenas na teologia, mas na vida social em si. O direito ao ensino e à formação acompanham tal argumento: se a vontade de saber outrora levou ao pecado, após a redenção, ela leva à construção de uma sociedade harmônica, remida e pacífica. Esta sociedade incluí a mulher como de fronte ao homem, como disse Stein anteriormente, isto é, as diferenças de gênero acompanham unicamente as peculiaridades de cada um, de acordo com o plano divino. Apesar de replicar o argumento de Crisóstomo, que afirma a primazia da criação masculina, Stein o ultrapassa ao adicionar o tempo da redenção, em que os castigos da queda já não são justificáveis na sociedade.
Dar espaço à leitura e investigação de pensadoras como Stein é repensar a construção da sociedade Ocidental, especialmente com relação aos preconceitos de gênero. Ao arrastar a herança patrística ao longo de vinte séculos, os resultados apontam apenas para a misoginia e para a construção de uma Igreja machista, que continua muitas vezes a entoar o refrão da submissão feminina como se continuasse no século I. A manutenção de uma Igreja exclusivamente masculina reflete na persistência de uma sociedade marcada pelas inúmeras violências cometidas contra a mulher em detrimento da plenitude masculina. Repensar tais teologias é também repensar o funcionamento da sociedade, considerando a mulher como ser integral e autêntico. A partir da constatação da plena existência feminina, quantas possibilidades ao gênero não se criariam?
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 2011.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2015.
CRISÓSTOMO. Comentário às cartas de São Paulo. Coleção Patrística, vol. 27. São Paulo: Paulus, 2014.
JERÔNIMO. Comentário ao Evangelho de Mateus. Coleção Patrística, vol. 44. São Paulo: Paulus, 2021.
PERETTI, Clélia. A mulher no contexto histórico contemporâneo de Edith Stein. Revista Relegens Thréskeia, [S.l.], v. 2, n. 2, p. 26-47, dez. 2013.
RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus: Igreja Católica e sexualidade – de Jesus a Bento XVI. 5° edição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
STEIN, Edith. Sobre el problema de la empatía. Madrid: Editorial Trotta, 2004.
STEIN, Edith. A mulher: sua missão segundo a natureza e a graça. Campinas: Ecclesiae, 2020.
Notas