Resumo: Este estudo de natureza teórico-bibliográfico tem por objetivo refletir sobe os conceitos de espiritualidade e otimismo trágico no pensamento de Viktor Frankl e sua possível contribuição para o enfrentamento da tríade trágica, em especial no contexto pandêmico da COVID 19. Os resultados apontam que diante de situações de sofrimento, culpa e morte, o ser humano tem a capacidade de transformar de modo criativo os aspectos trágicos da vida em algo construtivo. Ademais, o caráter transitório da existência faz com que a vida seja dotada de importância e adquira seu sentido. Conclui-se que diante das tragédias da vida é necessário atitudes firmes e responsáveis, buscando por sentido apesar das adversidades.
Palavras-chave: Espiritualidade, Tríade trágica, Sentido no sofrimento, Transitoriedade da vida.
Abstract: This study of a theoretical-bibliographic nature has as goal reflect about spirituality and optimism tragic in Viktor Frankl impressions and possible contribution of it to face the tragic triad, especially in the COVID 19 pandemic context. The results show that in front of situations of suffering, guilt and death, the human being has the ability to transform creatively the tragic aspects of the life in something useful. Furthermore, the transitory character of existence makes life endowed with importance and gains its meaning. It follows that facing the tragedies of life is necessary strong and responsible attitudes, looking for meaning despite the differences.
Keywords: Spirituality, Tragic Triad, Meaning in suffering, Transience of life.
Resumen: Este estudio teórico-bibliográfico pretende reflexionar sobre los conceptos de espiritualidad y optimismo trágico en el pensamiento de Viktor Frankl y su posible contribución a la tríada trágica, especialmente en el contexto de la pandemia del COVID-19. Los resultados indican que, frente a las situaciones de sufrimiento, culpa y muerte, el ser humano tiene la capacidad de transformar creativamente los aspectos trágicos de la vida en algo constructivo. Además, el carácter transitorio de la existencia hace que la vida sea dotada de importancia y adquiera su significado. Se concluye que ante las tragedias de la vida, son necesarias actitudes firmes y responsables, buscando sentido a pesar de las adversidades.
ARTIGOS
ESPIRITUALIDADE E OTIMISMO TRÁGICO NO ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA À LUZ DO PENSAMENTO DE VIKTOR FRANKL
Spirituality and Tragic Optimism in The Face of the Pandemic in The Light of Viktor Frankl’s Thought
Espiritualidad y Optimismo Trágico Frente a la Pandemia a la Luz del Pensamiento de Viktor Frankl
Recepción: 28 Junio 2021
Aprobación: 20 Octubre 2021
O ser humano sempre se preocupou com a temática da finitude da vida, seja com o objetivo de a compreender, ou mesmo na pretensa intenção de postergá-la, igualando-se aos deuses em sua eternidade. Ao olhar para a história das civilizações, não encontramos nenhuma que não reserve um lugar central para as crenças místicas e sobre o destino post morten. Encontra-se na A Epopeia de Gilgamesh, um antigo poema da Mesopotâmia, um diálogo entre o herói babilônico e Siduri, uma jovem divindade que tenta o dissuadir da ideia de imortalidade. Gilgamesh está profundamente abalado pela morte de seu amigo Enkidu.
Mas agora, oh, jovem que prepara o vinho, já que vi tua face, não permita que eu veja a face da morte a quem tanto temo. “Ela respondeu: ‘Gilgamesh, onde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é o destino do homem’ (ANÔNIMO, 2001, p. 95).
Já nessa epopeia em que se acredita ser de mais de dois mil a. C., fica patente a relação de temor que ainda hoje se tem em relação à morte, buscando cada vez mais distanciar-se dela. Não é de hoje que estamos rodeados de situações em que a finitude da vida se mostra como um fato. Basta acessarmos os meios de comunicação para ter acesso a inúmeras situações em que se aglutinam números expressivos de experiência de morte ou quase morte. Enquanto isso, confortavelmente dispostos de frente para o televisor, as assistimos com tranquilidade, desde seriados a noticiários, pois nossas observações se realizam quase sempre de modo dissociada: as mortes ocorrem aos outros, não a nós mesmos ou àqueles que amamos.
Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anuncia a emergência de saúde pública de importância internacional devido ao novo Coronavírus. Essa iminente ameaça invisível originada em novembro de 2019, na China, aproxima-se de nós de modo avassalador. Os mais de 600 mil mortos pela COVID-19[1] em nosso país põem em relevo uma característica da natureza humana: a finitude. Se antes era possível passar pela vida sem prestar muita atenção na possibilidade da própria morte, agora, principalmente com a pandemia, ela se apresenta como uma realidade incômoda. A consciência da morte gera angústia, perturbações, dores e medos. Tal reação pode ser advinda tanto pelo desconhecido e incerto que ela representa, quanto pela ideia de mortalidade. Fato é que a morte representa a consciência de um inevitável desejo e luta por continuar sendo.
Além dos impactos na saúde física, as incertezas na pandemia revelam implicações diretas no cotidiano e na saúde psíquica da população. Para Ornell et al. (2020, p. 232) o medo em uma pandemia aumenta os níveis de ansiedade e estresse em indivíduos saudáveis, intensificando os sintomas daqueles com transtornos psiquiátricos pré-existentes. Além disso, os pacientes infectados ou com a suspeita de COVID-19 podem sofrer intensas reações emocionais e comportamentais, com a possibilidade de evoluir para transtornos, sejam depressivos, de ansiedade, psicóticos ou paranoides e mesmo levar o paciente ao suicídio (ORNELL, 2020, p. 233).
Com a pandemia se impõe uma questão existencial de máxima relevância para a saúde: não basta garantir e lutar pela sobrevivência, mas também descobrir o porquê se quer viver, mesmo diante das adversidades. Nesse sentido, um cuidado integral não deve se restringir à prevenção e tratamentos no âmbito fisiopatológico, mas também uma atenção especial à dimensão espiritual do ser humano. Embora os efeitos da pandemia ainda não sejam totalmente compreendidos, entende-se que a concatenação de diversos saberes e estratégias podem oferecer respostas mais confortantes em um cenário de incertezas. Nesse viés, a espiritualidade pode ser empregada como estratégia concreta a fim de promover um cuidado mais humanizado.
Tendo como objetivo refletir sobre os conceitos de espiritualidade e otimismo trágico, este estudo teórico-bibliográfico buscou investigar como tais categorias podem contribuir para o enfrentamento da tríade trágica, em especial no contexto pandêmico em que vivemos.
O aporte teórico-metodológico teve seu principal referencial na Logoterapia e Análise Existencial de Viktor Frankl (2003, 2015, 2019a, 2019b, 2019c), especialmente em sua concepção de ser humano enquanto ser tridimensional, na construção dos conceitos de tríade trágica, otimismo trágico e busca de sentido, busca essa que se dá pela realização dos valores criativos, vivenciais e de atitude.
Para atingir esse intento, primeiramente este artigo busca refletir sobre o conceito da tríade trágica frankliana; num segundo momento, analisa-se o conceito de espiritualidade e, por fim, aponta-se as contribuições do conceito de otimismo trágico como alternativa para o bem estar psíquico, especialmente no enfrentamento da pandemia da COVID-19 que tem assolado o mundo desde o ano de 2019. Estamos no ano de 2021 e ainda não temos 100% da população brasileira vacinada e, no atual contexto histórico-social, não se sabe quando essa meta será alcançada.
Embora, às vezes, se queira considerá-las como um tabu, sofrimento, culpa e morte são possibilidades inerentes à existência humana, sendo impossível viver uma vida sem ao menos uma vez sentir medo diante de uma situação, entristecermos com a partida de um ente querido ou se sentir culpado por ter tomado determinadas atitudes. Todas essas situações podem ser causadoras de sofrimento e angústia e fazem parte do que o Viktor Frankl caracteriza como tríade trágica.
Não há nenhuma situação de vida que seja realmente sem sentido. Isso ocorre porque os aspectos aparentemente negativos da existência humana, especialmente aquela tríade trágica na qual convergem o sofrimento, a culpa e a morte também podem plasmar-se em algo positivo, numa realização. Mas, é claro, mediante uma atitude e firmeza adequadas (FRANKL, 2015, p. 28).
Em um mundo utópico a vida estaria livre de sofrimentos, mas também da possibilidade de se engrandecer mediante o enfrentamento heroico das adversidades. Como explica Lukas (1993), excluindo-se o fenômeno da culpa, visto que essa representaria o avesso da liberdade espiritual e da responsabilidade, o sofrimento e a morte pertencem inevitavelmente a tudo que é dotado de vida no ser humano (1993, p. 171). Assim, diante das tragédias da vida é necessário que se tome atitudes para que essas sejam superadas. Entretanto, não é fácil compreender que o fato de passar por tais circunstâncias e, o fato de que elas acontecerão independente da escolha de cada um, podem causam sofrimento em um primeiro momento.
Como lembra Batthyány (2020), estamos habituados a compreender o pensamento positivo como sendo o mais necessário e que irá solucionar tudo, desconsiderando a realidade concreta. Tal postura exclui a possibilidade do sofrimento como auxiliar no aprendizado e aprimoramento pessoal. No livro Em busca de sentido, ao tratar sobre a desvalorização da realidade, Frankl (2019a, p. 96) comenta: “Essas pessoas estão se esquecendo de que, muitas vezes, é justamente uma situação exterior extremamente difícil que dá a pessoa a oportunidade de crescer interiormente para além de si mesma.”
No entanto, vale lembrar que Frankl não acredita ser necessário o sofrimento para que se encontre um sentido, pois “sofrer desnecessariamente é ser masoquista, e não heroico” (FRANKL, 2019a, p.138). Contudo, se a vida possui sentido em todas as situações e o sofrimento faz parte da vida, ele também é dotado de sentido. A postura que o ser humano assume perante o sofrimento contribui para efetivar o que Frankl denomina de valor de atitude. Esse correspondendo ao modo como se realiza o sentido frente ao sofrimento inevitável das situações limites.
Assim, em relação ao sofrimento, mais importante do que negá-lo por meio de uma atitude positiva distinta da realidade é necessário reafirmá-lo e transformá-lo em conquista interior. Conforme defende Frankl (2003, p. 154), “[...] nenhum desses elementos se pode separar da vida sem se lhe destruir o destino. Privar a vida da necessidade e da morte, do destino e do sofrimento, seria como tirar-lhe a configuração, a forma.”
Se os momentos alegres dão forma à vida, os momentos de sofrimento, por meio do testemunho pessoal, possuem uma alta capacidade de transformar uma tragédia em triunfo pessoal, por meio da postura que se adota, uma situação difícil pode se transformar em sucesso humano.
Em relação ao segundo aspecto da tríade trágica, a culpa, Frankl (2019b) aponta que todos os seres humanos têm liberdade, inclusive para agir de forma inadequada, o que pode fazê-los se sentirem culpados. Dessa forma, revela que certa feita esteve num presídio em San Quentin conversando com um grupo de prisioneiros. Nesse encontro, Frankl afirma a esses prisioneiros que como qualquer ser humano tiveram liberdade para cometer crimes tornando-os culpados, contudo, continua Frankl (2019b, p. 80) “vocês têm a responsabilidade de superar a culpa erguendo-se acima dela, crescendo para além de vocês mesmos e mudando pessoalmente para melhor”.
De fato, a logoterapia compreende haver uma sabedoria nas emoções humanas para além da racionalidade. Trata-se de uma genuína intuição, um sentir intencional, como pensou Max Scheler, e não aquela derivada da dimensão psíquica. Como comenta Holanda e Moreira (2010, p. 348), a possibilidade de produzir algo fecundo a partir do que já foi ocorrido, não está em uma relação dialética com a ideia de responsabilidade. Pois o tornar-se culpável pressupõe responsabilidade. Dessa forma, o sentimento de culpa pode se tornar um ensejo para que o ser humano se erga para além de suas contradições.
No que concerne à morte, Epicuro (341 – 270 a. C.), em sua célebre Carta sobre a felicidade, aconselha seu amigo Meneceu a se acostumar com a ideia da mortalidade, pois seria um comportamento tolo dizer ter medo da morte, visto que o que aflige o ser humano não é a morte em si, mas a espera dessa que nunca se sabe quando chegará, impedindo de vivenciar o presente (EPICURO, 2002, p. 27)
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui (EPICURO, 2002, p. 29).
A sabedoria da filosofia epicurista acerca deste último aspecto da tríade trágica revela que a morte não pode ser experienciada em si, pois ela é, exatamente, a privação das sensações. Contudo, a relação com a morte pode se dar por meio da consciência reflexiva nos momentos em que se tem a percepção de nossa vulnerabilidade, como no caso de acidentes e enfermidades. Embora a morte suscite temores ou terrores, existencialmente falando, a morte não é um evento consecutivo à vida, mas simultâneo, sendo, portanto, impossível separar.
Epicuro (2002, p. 27) compreende que a consciência clara da morte proporciona ao ser humano a fruição da vida efêmera. Para Frankl (2019c), é exatamente esse caráter transitório da existência que faz com que a vida seja dotada de importância e adquira seu sentido. A consciência opera por contrastes. Nesse sentido, a ideia da morte tem o poder de fazer perceber a vida de modo pleno. Em A questão do sentido em psicoterapia Frankl comenta:
A morte pertence à vida tão plenamente como o sofrimento. Nenhum dos dois torna a existência do homem sem sentido, mas antes plena de sentido. E, portanto, certamente a singularidade da nossa existência no mundo, a irrepetibilidade do nosso tempo de vida, a irrevocabilidade de tudo aquilo com que a preenchemos – ou a deixamos esvaziar – isso é o que dá grande significação à nossa existência (FRANKL, 1990, p. 76).
Como pontua Frankl (1990), se fôssemos imortais poderíamos deixar tudo para depois, pois haveria muito tempo para realizar as ações e, além disso, nenhum fim, nenhum limite das possibilidades ameaçaria, fazendo com que o ser humano não encontrasse motivação suficiente para efetivar, no aqui e agora das situações, o sentido da vida. Nesse sentido, para Frankl (1990, p. 75), “a morte constitui o fundo sobre o qual o nosso ser é exatamente um ser responsável”. Pois, é a partir da finitude da vida que o caráter de algo único e a irrepetibilidade das situações se efetivam.
A elaboração de uma imagem de ser humano enquanto ser responsável é um dos grandes esforços de Frankl. Ao buscar a desconstrução de uma perspectiva naturalista, própria do cientificismo da época, ele propõe uma leitura do ser humano para além do psicofísico. Seu intento está em desvelar e garantir uma compreensão do humano desde sua dimensão espiritual, sendo, portanto, um ser bio-psico-espiritual (unitas multiplex). O relevo dado a essa última dimensão consiste em entendê-lo enquanto ser que ex-siste, isso é, um ser cuja essência da existência se encontra em sua abertura para o mundo. De outra forma, enquanto ser existencial, a pessoa é compreendida a partir de sua capacidade de transcender a si mesmo e de se posicionar, sendo capaz de escolher sua atitude, ou seja, a resposta que dará às situações que a vida lhe apresenta, indo além dos condicionantes biológicos, psicológicos e sociais.
Analisar a questão que envolve o conceito e prática da espiritualidade e como essa poderia contribuir no enfrentamento da tríade trágica, em especial no contexto pandêmico em que estamos vivendo exige que retomemos a concepção de ser humano a fim de evitar incompreensões.
Ao tratar o construto espiritualidade, Lousada (2017) aponta para a complexidade do tema, a qual reverbera na dificuldade de uma definição única. No entanto, a pesquisa realizada em produções científicas nas áreas de psicologia, saúde e educação aponta para pontos comuns que corroboram para a construção desta escrita. Segundo a autora, “a palavra espiritualidade foi relacionada à própria pessoa, seja referindo-se a conceitos positivos ligados ao ‘si mesmo’ como sensação de bem-estar; sentido de propósito de vida; amor a si; alegria, paz” (LOUSADA, 2017, p. 162). A palavra espiritualidade foi utilizada, como sendo um aspecto do ser humano ligado à força motora na vida, capaz de proporcionar mudanças e promover a saúde psicológica. É, também, essa força motora que gera mecanismos capazes de enfrentar a realidade tal qual ela se apresenta.
Em uma busca pela conceituação de espiritualidade, Esperandio a compreende como,
[...] parte humana imaterial, à potência de vida que se desenvolve e se expressa ao longo da existência humana. Essa energia vital, que se expressa e se movimenta no tempo e no espaço, tem como característica intrínseca a dinamicidade e o fluxo permanente. O território existencial, lugar que abriga a energia vital e lhe dá condições de desenvolvimento, será sempre único, singular e em mutação constante. A configuração de tais territórios subjetivos não ocorre fora das escolhas de sentido e propósito e das conexões que tais escolhas implicam. Por essa razão, espiritualidade é entendida como a dimensão na qual estão ancoradas as interrogações de sentido e propósito. A busca por respostas à necessidade de sentido é que faz com que o ser humano se movimente em busca de objetos, situações e experiências com finalidade de atender à sua vontade de sentido, como pontua Frankl (1988) (ESPERANDIO, 2020, p.9).
Fica patente que a dimensão espiritual está fortemente associada à questão do sentido que se precisa dar à vida. No contexto desta reflexão, espiritualidade, mais que um conceito teórico corresponde a uma postura diante da vida, que fundamenta a construção de estratégias de resiliência ante a tríade trágica de que nos fala Viktor Frankl.
Para Frankl (2019a, p. 124) “a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida”. O sentido é exclusivo e específico de cada situação, e, ao ser cumprido pela pessoa, assume uma importância capaz de atender sua própria vontade de sentido. Quanto ao sentido da vida, esse “difere de pessoa para pessoa, de um dia para o outro, de uma hora para a outra” (p. 133). Nessa perspectiva, o sentido é exclusivo e específico, ou seja, poderá ser cumprido apenas por aquela pessoa específica, de acordo com Frankl (2019a). “Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vontade de sentido” (FRANKL, 2019a, p.124-125).
Uma vez que cada situação na vida constitui um desafio para a pessoa e lhe apresenta um problema para resolver, pode-se, a rigor, inverter a questão pelo sentido da vida. Em última análise, a pessoa não deveria perguntar qual o sentido da sua vida, mas antes deve reconhecer que é ela que está sendo indagada. Em suma, cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida; à vida ela só pode responder sendo responsável (FRANKL, 2019a, p. 133).
Sempre há sentido nas situações, não importando quais sejam as circunstâncias ou situação na qual o ser se encontra. Para Frankl (2019a), embora o sentido da vida sempre se modifique com as situações, ele jamais deixa de existir. A partir disso, a análise existencial frankliana propõe três formas básicas para encontrar sentido, as quais se fazem por meio de valores e sentidos latentes nas relações homem-mundo. A primeira delas se dá pelo trabalho e/ou ações a que nos dedicamos diariamente, que concretizam os valores criativos; uma segunda, implicando os valores vivenciais, se constrói pela experiência junto à natureza, à cultura, e/ou junto a outra pessoa, amando-a; a terceira tem a ver com os valores de atitude, que configuram a forma como respondemos a uma situação de sofrimento ou uma fatalidade, situação que não pode ser mudada. Nesta terceira forma, Frankl humana (2019a, p. 136-137) ressalta que, “[...] o que importa, então, é dar testemunho do potencial especificamente humano no que ele tem de mais elevado e que consiste em transformar uma tragédia pessoal em um triunfo, em transformar nosso sofrimento em uma conquista.”
Pensar essas formas de encontrar o sentido da vida é um convite à reflexão sobre como temos respondido aos desafios que a vida tem nos colocado, não raras vezes nos pegamos desesperançados, e algumas outras até mesmo desesperados. São nesses momentos que a logoterapia nos lembra da responsabilidade perante um sentido, ou seja, “a consciência do ser-responsável” (FRANKL, 2019c, p. 81). E, então, desafiados pelas circunstâncias, lembrar do dito por Frankl (2019a, p. 137): “Quando já não somos capazes de mudar uma situação” - o autor nos convida a pensar em uma doença incurável, aqui nos propomos a pensar o contexto pandêmico – somos desafiados a mudar a nós próprios. Mudar a nós próprios, implica em rever nossas concepções e valores diante da vida, implica, ainda, rever nossas atitudes e modos de ser e estar no mundo e nas relações com aqueles que nos rodeiam e com a humanidade como um todo.
O contexto pandêmico em que vivemos, a forma com o vírus da COVID-19 se espalhou rapidamente pelo mundo, nos remete imediatamente à nossa responsabilidade, não somente com a nossa vida, mas também com a vida no e do planeta Terra. Olhar para o sofrimento que assola não apenas as pessoas isoladamente, mas a toda a população, nos impõe uma mudança de atitude, mudança essa que poderá nos propiciar encontrar sentido no sofrimento. “É o que ocorre aos homens daquele tipo que Scheler, no seu estudo sobre o burguês, caracterizou dizendo que, por causa dos meios de realização dos valores, esquecem o fim último (os próprios valores)” (FRANKL, 2019c, p.85). Encontrar sentido no sofrimento implica no exercício da espiritualidade, a qual é o fim de toda compreensão a que se propõe, no entanto, não prescinde da consideração dos meios pelos quais se faz, de outra forma, perderia a própria razão de existir: sua abertura para o mundo e para os valores contidos nele.
Na esteira do personalismo de Emmanuel Mounier, Frankl, em um pós-escrito de 1984, trata sobre A tese do otimismo trágico. Tal tese se refere ao fato de que a pessoa é e permanece otimista apesar da tríade trágica. Frankl esclarece que a palavra otimismo é uma derivação latina de optmum, isso é, o melhor. O otimismo trágico conclama, portanto, a capacidade do ser humano em transformar de modo criativo os aspectos trágicos da vida em algo construtivo (FRANKL, 2019a, p. 162).
Em sua gênese, a tragédia grega buscava a imitação das paixões humanas, tanto da felicidade quanto da infelicidade, proporcionando aos espectadores a vivência de emoções, principalmente as de terror e compaixão. Essa forma teatral tem seu êxito quando o público consegue assimilar, a partir das situações encenadas, que também são suscetíveis de sofrer de um mal idêntico ao que está sendo representado. Como comenta Aristóteles (384 – 322 a.C.) em sua Poética, a vivência da tragédia por imitação (mimesis) tem a capacidade de promover a kátharsis, isso é, a purificação dos sentimentos de compaixão e terror (2008, p. 48).
O modo como a tragédia era encarada pelos gregos está em sintonia com o enfrentamento aos aspectos da tríade trágica. As situações de sofrimento, culpa e morte com as quais o ser humano se defronta são situações potenciais de kátharsis. Como já dito, para Frankl não é necessário passar por essa tríade para que a vida adquira seu sentido. Contudo, já que o sentido é potencialmente inerente e latente em cada situação com as quais o ser humano se defronta, assim também o é em relação aos momentos trágicos da existência.
Daí o motivo por que falo de um otimismo trágico, isto é, um otimismo diante da tragédia e tendo em vista o potencial humano que, nos seus melhores aspectos, sempre permite: 1. Transformar o sofrimento numa conquista e numa realização humana; 2. Extrair da culpa a oportunidade de mudar a si mesmo para melhor; 3. Fazer da transitoriedade da vida um incentivo para realizar ações responsáveis (FRANKL, 2019a, p. 161).
O otimismo trágico não está em sintonia com a aceitação de uma espécie de destino, que é encarado a partir de um otimismo irrefletido ou ingênuo com o qual o ser humano deva se conformar, pois nesse se acreditaria que os rumos da história e da vida só mudariam com uma intervenção sobrenatural. Contra o catastrofismo de uma existência angustiada, o otimismo trágico, põe seu acento na esperança, evocando o ser humano a agir responsavelmente perante tais situações. Portanto, o otimismo trágico encontra sua justa medida num clima de grandeza e de luta.
Diante de todos os aspectos da tríade trágica o ser humano é convocado a renovar sua esperança e fazer o melhor possível de cada momento de sua vida. Especialmente em relação ao terceiro aspecto da tríade, a morte, o otimismo trágico traz à baila a consciência da transitoriedade da vida, que em vez de levar à angústia e sofrimento pelo fim, nos conclama a fazer o melhor que pudermos. Frankl (2019a, p. 172) chama a atenção sobre a díade existente entre vida e morte e sua interligação, já que “cada um dos instantes de que a vida é feita está morrendo, e aquele instante nunca mais voltará”. Para ele, a consciência da transitoriedade pode se tornar uma força motriz para a vivência responsável conforme o imperativo logoterapêutico: “viva como se você estivesse vivendo pela segunda vez e como se tivesse agido tão erradamente na primeira vez como está por agir agora” (FRANKL, 2019a, p. 172).
Esse imperativo, além de evocar o caráter de irrepetibilidade dos momentos e, consecutivamente, a irreversibilidade das nossas vidas, também aponta para o fato de que sempre há uma postura responsável a ser assumida. Frankl (2019a, p. 137) nos exorta ao fato de que “quando já não somos capazes de mudar uma situação - podemos pensar em uma doença incurável, como um câncer que não se pode operar - somos desafiados a mudar a nós próprios”.
Fato é que mesmo com o caráter transitório da existência, as posturas assumidas, as escolhas realizadas continuam a existir, independente dos indivíduos. O que foi realizado e arquivado no passado continuará a existir. Percebe-se, com isso que ter sido é a melhor forma de ser, pois ao decidir livremente o ser humano remove do nada do futuro, transformando-as em passado.
Tudo é escrito no arquivo eterno – nossa vida toda, todas as criações e ações, encontros e experiências, todos os amores e sofrimentos. Tudo isso está contido e permanece no arquivo eterno. A realidade não é um manuscrito redigido em um código que devemos decifrar, como ensinou o grande filósofo existencialista Karl Jaspers. Não a realidade é antes um documento que devemos ditar. Este documento é de natureza dramática, dia por dia a vida nos faz questões, somos interrogados pela vida e devemos responder. A vida, gostaria de afirmar, é um período de perguntas e respostas que dura quanto durar a vida [...]. Responder à vida significa fazer-nos responsáveis por nossas vidas (FRANKL, 2019c, p. 100).
Como comenta Robles (2014, p. 28), a angústia perante a morte é agravada quando se tem a sensação de não haver vivido uma vida completamente satisfatória, ou quando ainda há muitas metas não cumpridas ou pendências a resolver. Citando Yalom (1984) apud Robles (2014) defende que a angústia da morte é proporcionalmente inversa à satisfação com a vida.
Ao finalizar esse estudo teórico, que teve como objetivo refletir sobe os conceitos de espiritualidade e otimismo trágico no pensamento de Viktor Frankl, tornou-se mais evidente que no contexto pandêmico em que vivemos, a tríade trágica parece desempenhar mais expressividade, visto que não basta garantir a sobrevivência do corpo, mas, faz-se imperioso encontrar o sentido que há nas experiências vividas.
A iminência do sofrimento e morte pelo vírus faz com que muitas pessoas questionem qual é o sentido disso tudo, em especial, qual é o sentido da própria existência que tem se mostrado importante, mas fugaz. A busca pelo porquê viver nunca esteve tão presente na vida das pessoas, seja por ficarem reclusas em casa mantendo uma quarentena, seja por ter que sair para trabalhar todos os dias se perguntando se contraíram ou não a doença.
Aqui a compreensão do conceito de espiritualidade em interface com o conceito de otimismo trágico pôde desempenhar grande expressividade no enfrentamento das adversidades. A partir da base teórica frankliana é possível afirmar que diante de situações de sofrimento, culpa e morte o ser humano tem a capacidade de transformar, de modo criativo, os aspectos trágicos da vida em algo construtivo, conclamando atitudes responsáveis para o bem viver. Isso porque a teoria frankliana aponta para o fato de que a motivação primária do ser humano não consiste em obter prazer ou evitar a dor, mas antes em compreender notadamente um sentido em sua vida. Essa é a razão pela qual a pessoa está apta a sofrer, sob a condição, é claro, de que seu sofrimento tenha um sentido.
Uma das grandes contribuições de Frankl está em apontar para o caráter irrepetível dos momentos e, consecutivamente, da irreversibilidade das nossas vidas, conclamando uma postura responsável a ser assumida. No contexto pandêmico em que sofrimento, culpa e morte assolam o ser humano, temos em contrapartida a tese frankliana do otimismo trágico, ressaltando o potencial humano de converter o sofrimento em uma conquista e realização humana, de extrair do sentimento de culpa uma oportunidade de mudar a si mesmo para melhor e, por fim, fazer da transitoriedade da vida um incentivo para realizar ações responsáveis (FRANKL, 2019a, p. 161).
Ressalta-se que o otimismo trágico no enfrentamento da tríade trágica não consiste em encarar a vida a partir de um destino irrefletido e ingênuo, com o qual o ser humano precisaria se conformar. Mas na recusa de perder a esperança perante situações em que a fatalidade não pode ser alterada. Portanto, o otimismo trágico encontra sua justa medida num clima de grandeza e de luta, dizendo sim à vida enquanto ela pulsa e clama por realizações de valores e condutas responsáveis.