Dossiê

AS BASES FILOSÓFICAS DO NIILISMO E DO ESPIRITISMO EXPLICADAS SEGUNDO O CONFLITO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO

The Philosophical Foundations of Nihilism and Spiritism Explained According to the Conflict Between Science and Religion

Las Bases Filosóficas del Nihilismo y del Espiritismo Explicadas Según el Conflicto Entre Ciencia y Religión

Humberto Schubert COELHO
Doutor e Mestre em Ciência da Religião da UFJF, Brasil

AS BASES FILOSÓFICAS DO NIILISMO E DO ESPIRITISMO EXPLICADAS SEGUNDO O CONFLITO ENTRE CIÊNCIA E RELIGIÃO

Interações, vol. 17, núm. 2, pp. 234-252, 2022

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 11 Septiembre 2021

Aprobación: 18 Abril 2022

Resumo: Em meio ao bem conhecido choque entre ciência e religião na cultura pós-iluminista, a polarização típica dos conflitos permitiu que emergissem alternativas diametralmente díspares nos extremos do espectro, embora ambas perfeitamente conscientes da natureza do problema. Embalada pela ruptura cultural com a religião oficial, a intelectualidade buscou alternativas conciliáveis com a nova mentalidade científica, tais quais a teologia natural, o materialismo, o agnosticismo e espiritualismos esclarecidos. Niilismo e Espiritismo são dois exemplos clássicos de desdobramento dramático da crise da consciência europeia, e que repercutiram fortemente sobre as classes ilustradas latino-americanas. Em sintonia com o contexto filosófico de seu nascimento, as duas propostas enfatizam as conclusões lógicas cabíveis de suas bases metafísicas para a grande questão que ganhará força a partir de meados do século XIX, o drama da existência humana. Também em sintonia com o contexto do conflito entre ciência e religião, contudo, falham em compreender a fundamentação metafísica que, naquele momento, tornara-se tabu, e só poderia ser assumida indiretamente sob alcunhas como “filosofia positiva”, “mentalidade científica” e “filosofia baseada em fatos”. Este trabalho expõe, portanto, a essência filosófica dessas duas propostas.

Palavras-chave: Metafísica, Niilismo, Espiritismo, Ciência e religião, Fundamento.

Abstract: From the well-known clash between religion and science in post-Enlightenment culture, the typical polarization of conflicts allowed diametrically opposed proposals to grow, both of them perfectly aware of the problem that gave them birth. Invigorated by the cultural quarrel with religion, many intellectuals invested in theories more in harmony with scientific mentality, such as natural theology, materialism, agnosticism and learned spiritualisms. Nihilism and Spiritism are classical examples of the dramatic developments of this crisis of European consciousness, with considerable influence on the educated classes in Latin America. This paper, therefore, presents the philosophical essence of such proposals. In harmony with the philosophical atmosphere of the nineteenth century, both proposals emphasized the logical consequences of their premises and metaphysical grounding for the drama of human existence. Also, according to the historical context of the cultural clash between religion and science, however, both proposals mistakenly assumed the idea of the obsolesce of metaphysics, only admitting their metaphysical foundation from a backdoor, under labels such as “positive philosophy”, “scientific worldview” and “fact based philosophy”. The present paper, therefore, will expose the philosophical essence of these proposals.

Keywords: Metaphysics, Nihilism, Spiritism, Science and Religion, Foundation.

Resumen: En medio del conocido choque entre ciencia y religión en la cultura pos-ilustrada, la típica polarización de los conflictos ha permitido que en los extremos del espectro surjan alternativas diametralmente dispares, aunque ambas son perfectamente conscientes de la naturaleza del problema. Impulsada por la ruptura cultural con la religión oficial, la intelectualidad buscó alternativas que pudieran conciliarse con la nueva mentalidad científica, como la teología natural, el materialismo, el agnosticismo y el espiritualismo ilustrado. El nihilismo y el espiritismo son dos ejemplos clásicos del dramático desenvolvimiento de la crisis de la conciencia europea, y que tuvieran una fuerte repercusión en las clases ilustradas latinoamericanas. En sintonía con el contexto filosófico de su nacimiento, ambas propuestas enfatizan las conclusiones lógicas de sus bases metafísicas para el gran tema que ganará fuerza a partir de mediados del siglo XIX, el drama de la existencia humana. También en sintonía con el contexto del conflicto entre ciencia y religión, sin embargo, no logran comprender el fundamento metafísico que, en ese momento, se había convertido en tabú, y solo podía asumirse indirectamente bajo apodos como "filosofía positiva", "ciencia científica" y mentalidad "y" filosofía basada en hechos ". Por tanto, este trabajo expone la esencia filosófica de estas dos propuestas.

Palabras clave: Metafísica, Nihilismo, Espiritismo, Ciencia y religión, Fundamento.

1 INTRODUÇÃO: A ORIGEM LÓGICA DO NIILISMO



Fausto: Pois que eu, ai! Filosofia, jurisprudência e medicina, e desgraçadamente também teologia de cima a baixo estudei, com ardente empenho. E cá estou eu agora, pobre tolo! E sou tão sábio quanto era antes; ...[1]
Mefistófeles: Eu sou o espírito que a tudo aniquila! E o faço com razão, pois tudo, o que é criado, Não vale senão para ser eliminado; Por isso melhor seria se nada jamais houvesse surgido.[2]

Os fragmentos nas epígrafes acima são exaustivamente reproduzidos como prefigurações do niilismo, não raro citados com gosto por seus representantes. A história, contudo, apresenta o doutor Fausto como um sujeito amargurado, ressentido e aniquilado pela monotonia da vida, ultimamente convertido e resgatado de seu egoísmo para o arrebatamento salvífico da Mater Gloriosa, ao passo que o diabo sabidamente não é mais que um exemplo de toda a decadência e todo o vazio de uma existência desprovida de valores e ideais. Ambos os personagens nos apresentam inconfundivelmente a crítica áspera de J. W. Von Goethe ao esboço de niilismo de seu tempo, pálida imagem das vascas de melancolia que caracterizariam a literatura, a filosofia e a cultura em geral dos séculos XIX e XX.

Coisa semelhante já havia ocorrido com seu Werther, através do qual o autor expeliu pensamentos suicidas pela catarse artística, apenas para que o exemplo positivo de superação pela sublimação estética fosse malbaratado pela influência mórbida sobre outros potenciais suicidas que viram no protagonista um modelo. Com as figuras de Fausto e do próprio diabo, a crítica de Goethe ao ceticismo e ao niilismo que explicitamente combatia seria aproveitada como chamariz aristocrático de vícios desprezados pelo autor, então reciclados pelo relativismo estetizante da geração pós-romântica como refinamento e grandeza de espírito, o que contradiz inteiramente o sentido desta como de todas as demais obras de Goethe.

Dir-se-ia tratar-se de um daqueles fenômenos culturais inexoráveis, que identificado de antemão só faz sofrer o visionário; combatido, só reserva a seus oponentes o martírio.

É também curioso, por outro lado, que um pensamento que contradiz tão radicalmente a racionalidade tenha se desenvolvido na “era da ciência”, pois já desde Parmênides sabíamos não haver o nada, e que ex nihilo nihil fit. Depois, com G. Leibniz, a ciência foi devidamente separada da metafísica como o campo de estudos dos fenômenos dados, enquanto à metafísica caberia responder questões de outro jaez, como “por que há algo ao invés do nada?”, ou seja, questões referentes aos porquês das coisas e não ao “como, onde e quando” das preocupações científicas. Com Leibniz, porém, a resposta ao porquê do mundo e da vida não pode se resumir a causações mecânicas e/ou determinadas, pois denota necessariamente um tipo de ação inteligente que só é pensável como partida de um agente, no caso Deus. Esta resposta e as distinções nela implicadas teriam grande influência sobre as subsequentes tentativas de preservação ou destruição do sentido da vida, já que este fora fortemente ligado à noção de desenho e de projeto propositais, evidentemente por parte de um Criador ou Arquiteto supremo.

O abandono da metafísica e da teologia, com sua noção de um tal fundamento absoluto para a ordem cósmica e moral tinha de implicar em um consequente abandono e relativização dos valores morais, estéticos, espirituais e de um sentido unívoco e integrativo para a vida humana, uma motivação natural para viver. O niilismo não é, portanto, mais do que um subproduto, um efeito colateral do ataque à metafísica e sua substituição pelo materialismo cientificista.

No segundo livro da República [379a-381e], Platão afirmara que o conceito de justiça só faria algum sentido à luz da pressuposição de uma ordem cósmica, isto é, que Deus seja bom e imutável, incapaz de fazer o mal. Somente a partir de uma definição tão inequívoca, como as da lógica ou da matemática, poder-se-ia garantir como consequência a estabilidade do conceito de justiça. Sem isso, as cogitações relativistas de Glauco e Trasímaco teriam razão de ser: a justiça seria uma invenção humana, e poderia ser refeita e desfeita de acordo com a flutuação dos interesses. Ora, os relativistas não podem estar certos porque sua definição de justiça é contraditória; o que é justo para o que lucra é injusto para o que perde, e com a inversão das posições o primeiro chamará de injusto o que chamava de justo e o segundo chamará justo o que chamava injusto. Platão mostra que isso não satisfaz a categoria da definição adequada de coisa alguma (no caso a justiça) e que definições dependem de aceitarmos a fixidez da abstração intelectual. A fixidez da justiça, contudo, pressupõe não apenas o seu conceito como natural, e não inventado, como também a fixidez do critério da ação boa ou má: um supremo agente ou Deus.

Com toda a razão, niilistas e simpatizantes do niilismo – como, notoriamente, Nietzsche e Heidegger[3] – viram em Platão o responsável por uma perversão na trajetória do pensamento, já que ele substituiu os conceitos fundados na percepção e nas emoções por conceitos transcendentes e ideais. Mesmo pensadores não niilistas, mas com gosto pela empiria, muitas vezes viram em Platão um intelectualismo vicioso e sonhador.

Aristóteles era menos religioso e mais analítico que Platão, e nos oferece estranhas, conquanto tremendamente influentes definições de deuses, divino e teologia. No livro Épsilon da Metafísica ele se refere à superioridade das coisas divinas como necessariamente mais permanentes: ἀνάγκη δὲ πάντα μὲν τὰ αἴτια ἀΐδια εἶναι, μάλιστα δὲ ταῦτα: ταῦτα γὰρ αἴτια τοῖς φανεροῖς τῶν θείων [Met. VI, 1026a] (Todas as causas devem ser eternas, mas especialmente estas; que são as causas nas quais o divino aparece). A Metafísica, contudo, e mais ainda a Física, sugerem que Aristóteles designa pelo termo ‘divino’ os princípios da realidade, os fundamentos das coisas e, mais especificamente, os astros e as forças originárias suprassensíveis e incausadas do hiperurânio. Independentemente da feroz disputa pelo significado das palavras de Aristóteles, a tradição, especialmente após o surgimento do cristianismo, e as reações à tradição pressupuseram que tais palavras significavam a identificação da metafísica e da teologia na forma de uma ontoteologia.[4]

A partir dessa cola, o fundamento intelectualista da realidade fundia-se aos temas éticos e existenciais do sentido e propósito da vida. Também a ideia de causalidade final em Aristóteles seria amplamente interpretada como elemento de uma teologia racional, na forma da destinação dada por Deus e da disposição intencional das coisas conforme a Providência. Até o surgimento do materialismo antimetafísico, no século XIX, o fundamento metafísico do pensamento ocidental privilegiou fortemente a ideia de harmonia sistemática entre o ser e o propósito.

Fosse doutro modo, nem o materialismo (ruptura metafísica) redundaria em niilismo (esvaziamento do propósito) nem o niilismo exigiria ou pressuporia a negação de uma metafísica idealista. Essas relações, entretanto, se dão consistentemente, e disso decorre o também consistente e praticamente inevitável confronto com Platão.

Por tratar-se de uma teoria ou visão existencial, sobre os propósitos e significados, o niilismo está na ponta da cadeia de raciocínio cuja base é a metafísica, que é justamente a ciência dos princípios a partir dos quais emitimos julgamentos sobre as demais áreas ou tarefas filosóficas. Entre as propostas metafísicas pode-se considerar a “idealista” – em um sentido muito amplo –, que funde inteligibilidade do ser ao caráter subjetivo da inteligência, implicando em Deus, bem e sentido da vida; ou a materialista, que dissocia a inteligibilidade do ser de qualquer essência intelectual, subjetiva ou moral do próprio ser, implicando em ausência de fundamento para a moral e o sentido da vida e a necessidade de proporem-se arranjos funcionais e pragmáticos nesses campos.[5]

Em sentido prático, no entanto, pode-se tanto começar pela metafísica quanto pela postura existencial. Aqueles que começam pela metafísica são inclinados pela lógica caminhar também para o niilismo, enquanto os que começam pelo niilismo são também pressionados a buscar o pressuposto lógico adequado em uma justificação metafísica para o sentimento existencial ou constatação de absurdidade da vida. Em muitos casos, no entanto, niilismo e uma sólida fundamentação metafísica formam-se em associação orgânica onde o ponto de partida é indiscernível; como é o caso de A. Schopenhauer.[6] Igualmente não é possível afirmar se em Platão uma investigação metafísica imparcial conduz a um caráter idealista ou se um caráter idealista conduz a uma investigação metafísica condizente. No limite, as associações lógicas podem ou parecem ser descobertas no caminho, de modo que metafísica e postura existencial se reforçam mutuamente a partir da progressiva conscientização da sua relação derivativa.

Importante, mas constituindo excurso longo demais para o presente trabalho, é a relação entre as críticas à metafísica, particularmente as irracionalistas (românticas ou reducionismos sociológicos ou psicológicos). Ao lado da fundamentação materialista, niilismos irracionalistas ou fisiológicos proliferaram à sombra do descrédito da metafísica a partir de 1830.

Isso configurou duas alternativas para os defensores do niilismo; ou bem se deveria afirmar que nenhuma proposta filosófica possui qualquer fundamentação rigorosa, e com isso sustentar guerra contra a metafísica e igualar todas as demais filosofias à constatada ausência de fundamento; ou bem se deveria eleger um modelo metafísico como fundamento e apostar em sua vitória contra modelos metafísicos que viabilizassem a projeção de sentido para a vida. Em ambos os casos, contudo, os dois grupos estão estreitamente vinculados como um mesmo processo cultural.[7]

Contra este projeto antimetafísico que escamoteia a natureza metafísica do materialismo em prol de consequências niilistas seria de se esperar algum tipo de reação tradicionalista ou legitimamente metafísica, mas, surpreendentemente, a opção dos intelectuais e cientistas religiosos da época foi enfatizar também uma forma de superação da metafísica e “enquadramento científico” do elemento religioso através do estudo de seus fenômenos. Com isso, o século XIX foi marcado pela guerra entre os desdobramentos rebeldes da exaustão da tradição metafísica, um espetacular drama edipiano que só começa a ser compreendido no final do século XX.

o Explicadas Según el Conflicto Entre Ciencia y Religión

2 PRIMEIRAS TENTATIVAS DE SUPERAÇÃO DA METAFÍSICA E O AVANÇO DO MATERIALISMO CIENTIFICISTA

Embebida de secularização iluminista, a filosofia de Immanuel Kant parte de um conceito epistêmico de religião, entendendo a fé como crença em relatos históricos e ignorando uma dimensão propriamente religiosa da vida.[8] Com isso, a força da filosofia de Kant viria a condicionar a alta especulação metafísica a um estado de desconforto com o objeto essencial da religião, preferindo a ele a redução dos conteúdos espirituais a uma conduta moral inteiramente independente da concretude ontológica da experiência religiosa. Kant o admite com todas as letras em A religião nos limites da simples razão:

Há somente uma (verdadeira) religião; mas pode haver múltiplos tipos de fé. – Pode, no entanto, acrescentar-se que nas diversas Igrejas separadas umas das outras pela diversidade dos seus modos de crença é possível deparar com uma única e mesma verdadeira religião. – É, pois, mais conveniente (e também, de facto, mais usual) afirmar “Este homem é desta ou daquela fé” (judaica, maometana, cristã, católica, luterana) do que dizer “É desta ou daquela religião”. A última expressão não deveria sequer utilizar-se, quando se fala ao grande público (em catecismos e sermões); pois é para este demasiado erudita e incompreensível; de igual modo, as línguas modernas não subministram para ela nenhuma palavra com o mesmo significado. (KANT, 2008, p.126)

Ainda que grosseira, esta definição de “fé” ou credo sobressaiu como a definição acadêmica moderna de religião em geral, sem a exceção de centros acadêmicos especializados no estudo das “religiões históricas”, cada vez mais tendentes ao ateísmo metodológico de uma assunção da metafísica materialista.

Kant, contudo, entendia a si mesmo como indivíduo religioso e criador de um programa filosófico capaz de defender as ideias fundamentais religiosas, tais quais a de Deus e a da imortalidade da alma, como ideais postulados pela razão humana (KANT, 2002, p.219-237), mas, por isso mesmo, fortemente subordinadas à ética, no que seria contestado ou corrigido por uma série de outros autores interessados na defesa da especificidade da religião e contrários à sua absorção aos cânones da ética.

Tentando completar a obra de Kant no que dizia respeito à revelação religiosa, J. G. Fichte diria em sua Tentativa de uma crítica à toda a revelação, que os postulados de Kant esgotam a revelação racional, de modo que a revelação empírica (dos profetas, livros sagrados e fundadores das religiões) careceria de objetividade, tendo de se contentar com a condição de mera crença (FICHTE, 1793, p.219-223).

Na sequência, grandes pensadores como G. W. F. Hegel lançaram projetos de reabilitação da religião contra a tendência secularizante e mesmo materialista do Iluminismo, mas esses projetos foram pouco influentes, desagradando ao mesmo tempo à ortodoxia religiosa e aos materialistas.

J. Fichte e F. W. J. Schelling, que nutriam visões talvez menos heterodoxas e agnósticas sobre Deus e a religião não souberam transmitir ao público geral uma maior confiança, e pesou sobre o século XIX o volume superior de autores mais populares favoráveis à franca secularização e abandono das ideias religiosas sob o pretexto de sua incompatibilidade com a ciência moderna.[9]

Se os idealistas não souberam defender suficientemente ou de modo culturalmente relevante as ideias religiosas, contudo, apresentaram uma estrutura sistemática rigorosa e ainda não superada por outros métodos ou propostas filosóficas, estrutura que continua relevante para as recentes tentativas de reconstituição da metafísica diante das demandas por fundamento ético e epistemológico diante do relativismo extremo da segunda metade do século XX.

Contrasta com o rigor extremo das demonstrações idealistas anunciação profética de um necessário ou iminente fim da metafísica, como feito pelo Curso de Positivismo de Auguste Comte. O ponto de partida do curso não é um princípio fundamental, um argumento em favor das ciências ou capaz de contestar a metafísica, e sim uma declaração programática de que a filosofia não deve admitir causas obscuras ou essências ocultas, mas quando analisamos o parágrafo em que este perigo é descrito fica evidente que ele se resume à ideia de Deus (COMTE, 2000, p.28).

Não apenas os materialistas como igualmente os espiritualistas se renderam a este sentimento muito específico de meados do século XIX – de atestação da morte da metafísica –, voltando-se para o esforço de superação da metafísica, então entendida como entrave obsoleto, confusão obscurantista, terreno da especulação, abstração e fantasia inúteis.

Contra toda a razoabilidade, F. Lange chega a apresentar a tese de que os avanços da escola ateniense quando comparados ao materialismo de Demócrito e Leucipo seriam questionáveis, ao passo que os retrocessos inquestionáveis. No livro, a base dos argumentos em favor do materialismo são visões estereotipadas e infantilizadas do idealismo e do intelectualismo da escola ateniense e juízos de valor em favor da verdade incontestável da redutibilidade última da realidade aos elementos físicos (LANGE, 1887, p.38-45), o que sabidamente é uma tese tão metafísica quanto a idealista.

Com todas as suas limitações, a obra de Lange teve significativa influência em um ambiente indisposto contra o intelectualismo do idealismo alemão, e Friedrich Nietzsche viria a reler o livro com grande entusiasmo, considerando-o, depois, uma das razões para sua crítica da tradição metafísica.

3. O IRRACIONALISMO COMO OPÇÃO OU ACEITAÇÃO DA FALTA DE OPÇÃO FILOSÓFICA

O ataque de Nietzsche, portanto, chega em um estágio já bastante avançado da crítica à religião, à metafísica e, apenas consequentemente, ao esforço racional em busca da ordenação, explicação e atribuição de sentido ao mundo e à vida. Ironicamente – e de nenhum modo Socrático –, Nietzsche apresenta-se como pensador em sintonia com a “era científica”, fruto do processo de purificação da cultura dos arcaísmos religiosos e metafísicos. Como os positivistas e os materialistas dogmáticos engajados na crítica à metafísica, Nietzsche dá por certa a inexistência de uma ordenação metafísica geral, mas não apresenta senão justificativas ad hoc para essa suposição. Ao mesmo tempo, no entanto, defende a positividade das ciências, inclusive das ciências humanas (a psicologia, a antropologia, ...), na descrição eficaz e verídica da realidade, o que só faria sentido se as ciências fossem suportadas por uma metafísica realista e/ou pragmatista bem mais robusta.

Essa interpretação das condições gerais da filosofia e da cultura é o que justifica a segurança com que o filósofo do martelo condena o culto religioso, por exemplo, como eco do pensamento mágico, do “instinto pré-racional” de explicar algo sem referência a leis naturais ou princípios de causalidade (NIETZSCHE, 1899, V, p.326-327), o que soa e destoa como mais simplório do que a análise crítica do cristianismo feita por Hegel cinquenta anos antes.[10] Igualmente falha é a crítica à filosofia de Kant, quando ele insinua que o reconhecimento dos limites do entendimento é um ato de restrição do saber (NIETZSCHE, 1920, V, p.10).

A torção do significado aqui é evidente, Nietzsche quer fazer parecer que Kant toma a decisão de restringir o saber de maneira arbitrária e dogmática, ao passo que o conceito kantiano de limite é consequência da força persuasiva de uma longa tradição de argumentos céticos que Kant incorpora a seu próprio criticismo, bem como decorrente da estrutura a priori (para ele inalterável) do entendimento.

A crítica ao cristianismo não procede, contudo, porque é literária, seja quando parte do cientificismo não fundamentado seja quando parte da “crítica da cultura”. Em ambos os casos, o que se vê é integral e exclusivamente o perfilar dos juízos de valor subjetivos endossados por não mais que narrativas militantes contra a natureza da religião e um espantalho do “cristianismo opressor” (TROELTSCH, 1913, p.27-29).

Sendo a metafísica a ciência primeira, a principiologia das ciências e das artes em geral, é muito significativo que o conceito de Deus seja o elemento dominante da história da metafísica, igualando, ao menos quanto ao fundamento, as mais diferentes culturas e matrizes religiosas. São teocentradas as metafísicas pagã, hindu, muçulmana e cristã, e é defensável que a metafísica budista seja vista como subscrevendo o problema do Absoluto, com ‘a’ maiúsculo. A história da metafísica não nos ofereceu elemento destoante do processo de recondução da unidade absoluta a Deus.

A história da filosofia, porém, é rica de insurreições antimetafísicas, notadamente relativistas e/ou materialistas, as quais começam e dependem da negação do projeto metafísico básico de integração da realidade. Isto se dá porque, desde Sócrates, a pergunta sobre o conhecimento e sobre o que é real mostrou-se visceralmente ligada ao modo como a mente e o discurso formatam a realidade, acarretando na percepção idealista de que o real concreto depende do intelecto mais do que este daquele.

Metafísica não é muito mais do que um nome técnico para essa constatação transcendental-idealista e o esforço para aclará-la. Ademais, esta perspectiva transcendental-idealista é a única capaz de oferecer fundamentação para a ética, tarefa reconhecidamente malfadada nos períodos anteriores ao surgimento da metafísica por influência de Sócrates. Não por acaso, pensadores anti-metafísicos que pretendem erradicar o fundamento absoluto da realidade (Nietzsche; Heidegger em certa medida) são também comprometidos com a diluição ou negação da ética, o que ajuda a aclarar a excessiva admiração com que enxergam o período pré-socrático.

O niilismo, conseguintemente, depende da ausência de possibilidades de fundamentação de discursos e juízos objetivos, racionalmente estabelecidos. Na presença de critérios de escolha, julgamento e análise, o niilismo imediata e automaticamente decai em alguma forma abrandada de pessimismo ou relativização agnóstica dos valores e padrões (Schopenhauer, Camus?). Um niilismo de convicção depende de um relativismo dogmático e radical o bastante para determinar toda eleição de valores como não mais que arbitrária; não apenas injustificada como também injustificável.

A discussão do século XX sobre Nietzsche, por exemplo, polariza-se entre a aceitação de um relativismo pleno ou, por outro lado, uma transvaloração com substituição dos princípios platônico-cristãos, supostamente revelados como culturalmente construídos, por valores nietzschianos, supostamente naturais e livres de qualquer condicionamento. Na primeira opção, do relativismo pleno, a transvaloração é interpretada como abertura para a infinita variedade de opções, todas elas intrinsecamente desprovidas de sentido último e apenas subjetiva ou comunitariamente válidos na medida de uma temporária adesão por gosto. A segunda proposta, contudo, contém em si uma semente relativista oculta que esmaece a distinção entre as duas propostas. Após a destruição dos critérios racionais (platônicos) de estabelecimento de princípios, todo e qualquer outro princípio acabará por evidenciar-se como dogmático e arbitrário. Em outras palavras, a puxada de tapete que visava derrubar a tradição metafísica e a possibilidade de fundamentação racional dos discursos é eficaz, mas derruba também aquele que puxou o tapete, se e quando ele quiser justificar sua posição ou princípios de qualquer outra maneira.

Objetivamente, a forma como Nietzsche justifica seus valores vitais ou naturais é (1) a partir de uma narrativa ficcional sobre dois tipos psicológicos: o dionisíaco e o apolínio; (2) através de uma aposta no reducionismo antropológico da psicologia ou da fisiologia nascentes, ou ainda, (3) através de simples alegações aforísticas sem qualquer suporte discursivo. Só as duas primeiras formas de justificação são minimamente dignas do nome. A primeira só seria válida se a narrativa ficcional do dualismo psíquico apolínieo/dionisíaco se mostrasse absoluto e universal, não cultural. É questionável, porém, se essa tipologia é sequer uma boa descrição da cultura helênica, muito mais psiquicamente diversa e rica do que o dualismo poético do livro quer sugerir, mas o fato de limitar-se a esta já impediria a generalização do diagnostico que nela se baseia.[11] A segunda tentativa de justificação padece dos mesmos vícios das abordagens psicologizantes e sociologizantes também muito populares na virada para o século XX e responsáveis pela euforia “antimetafísica” que dominou o cenário intelectual entre 1850 e 1950 aproximadamente.

O problema com abordagens psicologizantes, sociologizantes ou de outros tipos, os quais resumi como “antropologizantes” (Coelho, 2013), é que elas prometem solapar a metafísica a partir de uma abordagem externa, geralmente derivada de uma ciência, que inevitavelmente se sustenta em princípios metafísicos escamoteados.

Tudo isso foi suficientemente demonstrado, à época, por W. Dilthey, E. Husserl, W. James e outros, e a estratégica básica seria revelada como pseudocientífica a partir da crítica de Popper, que identificou a ausência de critério de falibilidade em discursos desse tipo e a forma como essa fraqueza tão facilmente pode criar uma ilusão de virtude.

Longe de embaraçar-se diante da ausência de argumentos ou evidências em favor de uma de suas teses principais, no entanto, Nietzsche admite tais condições como reflexo inevitável das teses irracionalistas, nas quais via contestações suficientes da metafísica. O autor não está, portanto, preocupado em esconder a natureza poética e profética de seus ataques contra a “nobreza altiva” da racionalidade e moralidade a partir de um discurso antitético (NIETZSCHE, 1899, II, p.2), ou seja, não racional e amoral.

4. A OUTRA MARGEM DA CRISE FILOSÓFICA DO SÉCULO XIX, O ESPIRITUALISMO MODERNO

De origem ainda mais complexa e difícil de rastrear do que o par materialista-niilista, o espiritualismo ressurge com força total em uma Modernidade marcada pela crítica à religião institucional, mas que nem por isso deixou de ser um momento histórico pautado pelo sentimento religioso e místico. São extremamente piedosos alguns dos maiores filósofos iluministas, como J. Locke, G. Leibniz e I. Kant, e pensadores como J. Rousseau, M. Mendelssohn, H. Pestalozzi, Madame de Staël, G. Lessing, B. Constant e um vagalhão de puritanos britânicos e pietistas alemães ajudam a formar um cenário em que a intervenção divina, a imortalidade da alma e até elementos esotéricos e iniciáticos da Antiguidade e da Idade Média são discutidos conforme o rigor e o criticismo modernos (COELHO, 2022).

A própria ideia de separação entre religião e Estado, e a progressiva racionalização, secularização e purificação da religião de elementos dogmáticos levou esses e dezenas de outros intelectuais a buscarem as bases naturais do sentimento ou da experiência religiosa,[12] o que culminaria no surgimento da filosofia da religião e, logo depois, da ciência da religião – termo já usado por Fichte.

Concomitantemente ao esforço em direção a um diagnóstico histórico, natural e racional dos fundamentos da religião, relatos de videntes e médiuns como E. Swedenborg e a vidente de Prevorst instigavam a imaginação coletiva. A ortodoxia cristã, fosse católica ou protestante, já estava profundamente abalada pela paixão despertada no público pelos relatos extraordinários de faquires, yogues, monges budistas e xamãs americanos e africanos (HAZARD, 1961). O século XVIII, longe de ser um período de desencantamento completo, viu crescer o descrédito apenas da doutrina cristã oficial.

O abalo da doutrina cristã, porém, só fez crescer nos séculos XVIII e XIX o otimismo platônico-cristão quanto à perfectibilidade da alma humana. Talvez em nenhum outro momento o mundo tenha visto tantas celebridades comprometidas com a ideia de progresso e evolução do indivíduo e da sociedade. Isso só torna mais difícil a reconstrução histórico-cultural do ambiente, que também foi responsável por produzir Schopenhauer, Leopardi, Byron e o Marquês de Sade, entre dezenas de outros ícones do cinismo e do pessimismo.

Em meio ao desconforto e insegurança de um mundo intelectual e espiritual em rápida transformação, uma grande quantidade de intelectuais e crentes passou a tratar os elementos observáveis da vida religiosa e espiritual com as ferramentas do método científico, dando origem ao que posteriormente alguns chamaram Espiritualismo Moderno, e outros Espiritismo.[13] A controvérsia terminológica é de somenos importância, pois culturalmente os nomes passaram a designar respectivamente o espiritualismo empirista do mundo anglófone e o do continente europeu. Ambos partilhavam de uma acentuada antipatia para com a metafísica, ou o que na época se tomava como tal, e nisso também estavam muito próximos dos materialistas-niilistas.

5. O ESPIRITISMO DE ALLAN KARDEC COMO REAÇÃO FILOSÓFICA AO MATERIALISMO

Conquanto voltassem aos fenômenos espirituais anteriormente tidos por milagres e feitos maravilhosos de santos e videntes com atitude científica, e alegando serem esses fenômenos abundantes naquele momento específico, não raro os modernos espiritualistas viam nessa aparente ou suposta abundância um sinal de uma atuação transcendente e revelatória para a instrução da humanidade.[14] Alguns eram também céleres em extrair dessas pesquisas conclusões teológicas, o que naturalmente levanta suspeitas quanto à suposição de espontaneidade dos mesmos fenômenos. A maioria esmagadora dos espiritualistas, porém, entendia ser onerosa a associação com a tradição metafísica, fosse porque esta sofria o bombardeio do materialismo cientificista naquela mesma época, tornando-se companhia indesejável para ideias que justamente pretendiam se apresentar como progressistas, ou fosse porque, de fato, a tradição metafísica esteve frequentemente embaraçada em hipóteses infrutíferas e de nenhum apelo ao vulgo.

Nos textos de Allan Kardec, por exemplo, a metafísica aparece sempre vinculada à ideia de “sistema”, o que na época adquirira conotação fortemente pejorativa pelo fato de que os maiores pensadores produziram grandes e intrincados sistemas filosóficos, contraditórios entre si, mas, ironicamente, guardando todos a pretensão de reter a verdade final sobre a essência da realidade e as respostas para praticamente todas as questões.

Como sempre, entretanto, essa desmoralização cultural da palavra ‘metafísica’ não impediu que princípios metafísicos menos totalizantes continuassem a atuar em todas as obras filosóficas sem exceção, incluídas aí as propostas antimetafísicas. No caso de Allan Kardec, essa aplicação surge já no primeiro parágrafo do livro que haveria de fundar o espiritismo: O Livro dos Espíritos. “Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais que matéria, é espiritualista” (KARDEC, 2003, p.13). A sentença não trata de uma ideia ou conclusão possível a partir da observação empírica, pois se refere à totalidade da realidade, da qual nunca teremos senão uma perspectiva parcial e número finito de observações. Da mesma forma, é evidente que a crença oposta, de que não há nada em nós além da matéria, é igualmente impossível de se firmar apenas a partir dos fatos. Ambas as crenças são extrapolações teóricas sobre o número e tipo de experiências de que os seus propositores dispõem, além, é claro, de tendências teóricas prévias de vários tipos. Correta, esta distinção entre materialistas e espiritualistas enquadra ambas as propostas como essencialmente... metafísicas.

É sugestivo que o projeto “não-metafísico” de Kardec dê ênfase absoluta à ideia de Deus, que domina o primeiro capítulo do primeiro como do último livro escritos pelo codificador do espiritismo. Ambas as obras parecem, com isso, insinuar que a fundação e o ápice de todo o projeto é a mais metafísica de todas as ideias: a de um espírito absoluto, criador e ordenador do universo, garantidor de nossas esperanças morais e pretensões de compreensão da realidade.

O problema se evidencia ainda em usos menos pejorativos do termo ‘metafísica’, como quando Kardec alega que “As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas” (KARDEC, 2003, p.20). Kardec claramente emprega a palavra para denominar os fenômenos que ultrapassam a esfera física, o que não é uma boa definição de metafísica, porque esta trata de princípios e essências, não de fenômenos ou ocorrências, ainda que puramente psíquicos. Este uso viciado do termo ajuda-nos a compreender que os espiritualistas estavam tão comprometidos quanto os materialistas com a ideia de que a metafísica deveria tratar de elementos invisíveis e ignotos da realidade. Em outras tantas passagens, Kardec limita-se à expressão mais correta de que o estudo dessa classe de fenômenos deve constituir uma nova ciência.

Outra importante semelhança entre a visão de Kardec e do materialismo-cientificista é a de que a eleição entre materialismo e espiritualismo, exatamente por não dever ser metafísica, isto é, puramente teórica e especulativa, tem de basear-se não apenas nos fatos observados, mas com igual força sobre as consequências morais e práticas para a vida. Dito ainda mais diretamente, enquanto materialistas extraiam de seu modelo filosófico o niilismo por consequência, não sendo raros os casos que vêm na contramão, nos quais indivíduos chegavam ao materialismo por não admitirem sentido e fundo moral para a existência; espiritualistas, por sua vez, podiam partir tanto da convicção na realidade espiritual em direção às ideias de transformação moral e sentido para a vida quanto fazer o percurso reverso, exigindo uma realidade espiritual por sentirem a urgência de fundamento para a moralidade, a esperança e a felicidade.

É quase inteiramente existencial o julgamento de Kardec a respeito do materialismo, isto é, ele condena-lhe a consequência, o niilismo:

Triste consequência, se fora real, porque então o bem e o mal nada significariam, o homem teria razão para só pensar em si e para colocar acima de tudo a satisfação dos seus apetites materiais; quebrados estariam os laços sociais e as mais santas afeições se romperiam para sempre. [...] Uma sociedade que se fundasse sobre tais bases traria em si o gérmen de sua dissolução e seus membros se entredevorariam como animais ferozes. [...]

O homem tem, instintivamente, a convicção de que nem tudo se lhe acaba com a vida. O nada lhe infunde horror. [...] Pois que! depois de mim, nada, nada mais, senão o vácuo, tudo definitivamente acabado; mais alguns dias e minha lembrança se terá apagado da memória dos que me sobreviverem, nenhum vestígio, dentro em pouco, restará da minha passagem pela Terra; até mesmo o bem que fiz será esquecido pelos ingratos a quem beneficiei. E nada para compensar tudo isso, nenhuma outra perspectiva, além da do meu corpo roído pelos vermes! (KARDEC, 2003, p.110).

Léon Denis, para muitos o legítimo continuador de Kardec, se expressará de maneira ainda mais enfática, condenando sempre as consequências do materialismo como nefastas. Na virada do século XX, Denis já está habituado ao termo ‘niilismo’ e o usa quase tão frequentemente quanto ‘materialismo’, frequentemente reconhecendo a relação causal entre ambas as posturas.

Em sua obra-prima O problema do ser, do destino e da dor, Denis recorta o seguinte fragmento de Raoul Pictet:

Esses pobres moços admitem que tudo quanto se passa no mundo é efeito necessário e fatal de condições primárias, em que a vontade não intervém; consideram que a própria existência é, forçosamente, um joguete da fatalidade inelutável, à qual estão entregues de pés e mãos ligados.

Esses moços cessam de lutar logo às primeiras dificuldades, não crêem em si mesmos. Tornam-se túmulos vivos, onde se encerram, promiscuamente, suas esperanças, seus esforços, seus desejos, fossa comum de tudo o que lhes fez bater o coração até o dia do envenenamento (DENIS, 2009, p.10).

Menos otimista que os espiritualistas da geração anterior, Denis dá por certo que o niilismo tornou-se força dominante da cultura de seu tempo, prognosticando terríveis convulsões sociais em decorrência (DENIS, 2009, p.12-15).

Em O porquê da vida, Léon Denis pontua a ligação direta – que neste trabalho tentamos enfatizar – entre a concepção de mundo e a conduta:

O que importa para o homem saber, acima de tudo, é o que ele é, de onde ele vem, para onde ele vai, quais são seus destinos. As ideias que fazemos do Universo e de suas leis, do papel que cada um de nós deve desempenhar neste vasto teatro, essas ideias são de uma importância capital. É de acordo com elas que dirigimos nossos atos. É consultando-as que determinamos um objetivo para nossa vida e caminhamos para esse objetivo. Aí está a base, a verdadeira motivação de qualquer civilização. Tal é o ideal, tal é o homem. Para as coletividades, como para o indivíduo, é a concepção do mundo e da vida que determina os deveres; fixa o caminho a seguir, as resoluções a adotar (DENIS, 2018, p.31).

A crença no nada, ao mesmo tempo que arruína qualquer sanção moral, deixa sem solução o problema da desigualdade das existências, no que toca à diversidade das faculdades, das aptidões, das situações e dos méritos (DENIS, 2018, p.34).

A conceituação feita no primeiro parágrafo bem poderia ser uma definição da metafísica e de seu impacto sobre as disciplinas especializadas, sobretudo a ética. Mas esse como os textos de outros espiritualistas aponta para o insucesso das religiões e da tradição metafísica em assegurarem um fundamento metafísico que fomentasse o dever moral, um senso de justiça sereno, não revoltado, e o sentido da vida. Em consequência de tal (suposto) fracasso, o moderno espiritualismo quase integralmente dedicar-se-ia a comprovar, ou ao menos a coletar sólidas evidências em favor da imortalidade da alma.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A posição espírita a respeito do niilismo, concluímos, é a de que, para evitar seus males, há que se resgatar a todo custo através dos métodos das ciências aquilo que ancestralmente fora reconhecido como papel da metafísica, da filosofia.

De uma forma peculiar, portanto, a “reação espírita” ao problema principalmente existencial imposto originalmente pelo niilismo, na medida em que este último é uma consequência existencial do materialismo, tinha – na mentalidade da época – de confrontar esse niilismo com as mesmas armas usadas por ele. Com certo excesso de descrédito à tradição teológica e metafísica, e com uma crença algo ingênua no poder da ciência em garantir evidência suficiente até para questões existenciais, éticas e espirituais, os intelectuais espíritas e espiritualistas em geral apresentaram contra o niilismo uma nova abordagem do espiritualismo nos termos impostos pelo materialismo filosófico. Alguns poucos – se algum – pesquisadores podem ter percebido o custo dessa manobra, mas a convicção de que o jogo poderia ser vencido nesses termos levou aquela geração a dobrar seguidamente as apostas na abordagem empírica. As diversas consequências dessa decisão culturalmente orientada, naquele momento específico, ainda merecerão também uma visita mais cuidadosa por parte de futuros estudos.

Uma das mais claras consequências culturais desse processo tem a ver com a intensa recepção de ambos os movimentos no ambiente ibero-americano, marcado por um relativo anti-intelectualismo e um destaque peculiaríssimo ao saber de salvação (MARGUTTI, 2013). Tanto o niilismo quanto o espiritismo puderam prosperar nesses ambientes exatamente pelos enfoques dados por ambos à primazia do aspecto existencial sobre outros aspectos filosóficos. A pesquisa mais recente vem mostrando que não apenas o espiritismo assumiu feições claramente brasileiras (GOMES; CUNHA, PIMENTEL, 2019), como também o niilismo se enraizou no Brasil e em outras culturas ibéricas a partir de variadíssimas referências autóctones, que vão desde Matias Aires até Augusto dos Anjos.

Se nossa associação dialética entre niilismo e espiritismo estiver correta, o niilismo mereceria mais atenção por parte de filósofos da religião, teólogos e cientistas da religião brasileiros, na medida em que esta nação concentra uma imensa fatia da comunidade espírita mundial. A pesquisa brasileira sobre essas duas tendências, portanto, tem muito a ganhar com a associação entre elas dentro do contexto da tensão entre ciência e religião, seja a partir de suas origens na Europa, seja em relação a seus desdobramentos em culturas como a brasileira.

REFERÊNCIAS

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COELHO, Humberto S. A insuficiência do sujeito na metafísica da subjetividade. Theologica 48, 2013. (157-169)

COMTE, Auguste. The Positive Philosophy of Auguste Comte. Translated by Harriet Martineau in 1896. Kitchener: Batoche Books, 2000.

DENIS, Léon. O porquê da vida. O que somos, de onde viemos, para onde vamos? Solução racional dos problemas da existência. Rio de Janeiro: CEDL, 2018.

DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor. Rio de Janeiro: FEB, 2009.

DÜSING, Klaus. Modelos de autoconsciência: Críticas modernas e propostas sistemáticas referentes à subjetividade concreta. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

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HAZARD, Paul. La crise de la conscience européene, 1680-1715. Paris: Fayard, 1961.

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HYSLOP, James. Proceedings of the Society for Psychical Research. Vol XVI, Part XLI. London: Kegan Paul, Trench, Trübner, 1901.

MARGUTTI, Paulo. História da filosofia do Brasil. 1ª parte: O período colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Lisboa: Edições 70, 2008.

KARDEC, Allan. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 1999.

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SAWICKI, Diethard. Leben mit den Toten: Geisterglauben und die Entstehung des Spiritismus in Deutschland, 1770-1900. Paderborn: Schöningh, 2002.

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TROELTSCH, Ernst. Gesammelte Schriften. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1913.

Notas

1 Johann Wolfgang von GOETHE. Faust. p. 145.
2 Johann Wolfgang von GOETHE. Faust. p. 172.
3 Para Heidegger, remonta a Platão a história do “ocultamento” do Ser, mas é efetivamente com Aristóteles que começa a tradição ontoteológica, isto é, a fusão da metafísica com a teologia.
4 Interpretação que levará Heidegger, por exemplo, a considerar Aristóteles um continuador e reforçador do processo de abstração da realidade iniciada por Platão. Ver (HEIDEGGER, 1978, GA 26).
5 Essa a matéria dos icônicos textos de Nietzsche: Genealogia da Moral e Para além do bem e do mal.
6 Fundamentalmente, a proposta de O mundo como vontade e representação inverte o argumento supracitado da República, afirmando que, se não há ordem moral do mundo, a vida humana não pode encontrar sentido intrínseco e justificação, e felicidade ou sentido na vida seriam mais acidentais do que propriamente naturais. É claro, Schopenhauer é um semi-niilista ou um niilista muito peculiar, pois ele é também um idealista metafísico convicto de que a razão é capaz de apreender a realidade última das coisas e encontrar correspondência entre essa realidade e a natureza do sujeito que a tenta apreender. Ao separar aparência e representação da essência, contudo, e apontar para a essência como algo diverso da aparência formal representável pelo entendimento, a segunda parte do livro constata a irracionalidade do fundamento último. A vontade é fundamento enquanto conteúdo passível de “intuição obscura” por parte do intelecto, tendo o corpo como medium, e subordinado ao fluxo inconstante dos desejos e estímulos, que não se permitem categorizar de forma estanque como a forma (em medidas, quantidades, relações objetivas etc). Enquanto podemos medir as formas das coisas representadas, não podemos calcular ou compreender os móveis da vontade, pois esta tem primazia sobre o intelecto. O homem é racional no sentido da organização do pensamento, mas não é racional no sentido ético, como mestre que impõe à própria vontade o cânone da escolha racional. Não apenas surge uma clivagem entre o intelecto e o fundamento da realidade, como esse fundamento é afirmado como amoral (porque irracional) desautorizando o argumento metafísico sobre o qual descansa toda a ética positiva: a conformidade possível com uma ordem cósmica que garanta a transcendência do bem. Ver (SCHOPENHAUER, 1859, p. 217-222; 262-269).
7 Esse tanto foi completa e detalhadamente exposto por Klaus Düsing (DÜSING, 2006).
8 Agradeço aos meus dedicados ex-alunos Rodrigo Carvalho, Leonardo Costa, Fagner Concolato e Pablo Giorgio Lima por me auxiliarem nos estudos sobre a visão de Kant a respeito da moral, da religião e de outras definições de sua filosofia.
9 Três exemplos de autores que afirmam esta incompatibilidade sem apresentar qualquer razão substancial para ela além de uma narrativa histórica sobre o suposto conflito entre ciência e religião são Auguste Comte, Ludwig Feuerbach e Johann Herbart, mas a atual historiografia sobre o desenvolvimento da ciência moderna aponta para uma relação de mútuo estímulo entre os dois campos, atribuindo o mito da guerra entre ciência e religião à campanha propagandística em favor da independência das universidades, do laicismo e/ou anticatólicas. Ver (NUMBERS, 2009)
10 Hegel foi tão crítico da doutrina cristã quanto se pode filosoficamente justificar, e as razões pelas quais ele valoriza ou deprecia elementos da doutrina cristã são rigorosamente expostas nas Preleções sobre Filosofia da Religião
11 Em O nascimento da tragédia não se encontra uma única tentativa de justificação da tipologia apolíneo/dionisíaca através de argumentos. Confuso, em estilo ensaístico, o texto tenta guiar o leitor entre figuras poéticas e sugestões a acontecimentos históricos. Não há exposição de fontes que confirmem a tese principal ou as subordinadas, e os juízos de valor abundam. O próprio prefácio à segunda edição elaborado pelo autor admite tratar-se de um exercício criativo e interpretativo sobre a estética grega
12 Allan Kardec está indubitavelmente inserido nesta classe de pensadores. Religiosíssimo, chegou a escrever no primeiro capítulo de A Gênese que “Infelizmente, as religiões hão sido sempre instrumento de dominação”. (KARDEC, 1999, p.17)
13 Embora comum em países de língua inglesa, o termo Espiritualismo Moderno não é adotado senão por historiadores na Europa Continental, onde se usa mais genericamente o termo Espiritismo para designar, inclusive, autores anteriores a Kardec (SAWICKI, 2002). Mesmo no ambiente de língua inglesa, o lógico James Hyslop, por exemplo prefere caracterizar a ideia geral de que há espíritos e de que eles podem entrar em contato ou se manifestar como sendo a “hipótese espírita” (HYSLOP, 1901, p.5-21).
14 Muito de acordo com as ideias de progresso da consciência através de etapas, ora desvendadas pela razão ora reveladas por Deus, como se apresentaram provavelmente pela primeira vez em A educação do gênero humano, de G. E. Lessing. Posteriormente, a escola historicista de Herder e Hegel viria a popularizar muito a ideia de um progresso contínuo e algo providencial da raça humana
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