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OLHARES SOBRE O ESPIRITISMO: aproximações entre os escritos de Cesare Lombroso e João do Rio
Vanda Fortuna SERAFIM; Gabriela Harumi ARAKI
Vanda Fortuna SERAFIM; Gabriela Harumi ARAKI
OLHARES SOBRE O ESPIRITISMO: aproximações entre os escritos de Cesare Lombroso e João do Rio
Views on Spiritism: approaches between the writings of Cesare Lombroso and João do Rio
Perspectivas Sobre el Espiritismo: enfoques entre los escritos de Cesare Lombroso y João do Rio
Interações, vol. 17, núm. 2, pp. 297-2316, 2022
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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Resumo: O presente artigo analisa dois olhares de intelectuais, o italiano Cesare Lombroso (1835-1909) e o brasileiro João do Rio (1881-1921), que no início do século XX, produziram discursos sobre a presença do espiritismo nas cidades de Milão, Itália e do Rio de Janeiro, respectivamente, que renderiam duas obras de referência para o estudo das religiões mediúnicas: Hipnotismo e Mediunidade, de 1909 e As religiões no Rio, de 1904, aqui tomadas enquanto fontes históricas. A opção teórica-metodológica privilegiou a noção de campo em Pierre Bourdieu (2004) constando aproximações nas visões médicas e literárias. Concluiu-se que o espiritismo foi pensado por ambos a partir de duas vertentes: superior e inferior. Sendo o primeiro associado a grupos intelectuais e o segundo a grupos sociais lidos como inferiores e subalternizados, consideradas as especificidades históricas de cada autor. São marcantes as referências evolucionistas e as noções de civilização em voga no período.

Palavras-chave: Cesare Lombroso, João do Rio, Espiritismo.

Keywords: Cesare Lombroso, João do Rio, Spiritism

Palabras clave: Cesare Lombroso, João do Rio, Espiritismo

Carátula del artículo

Dossiê

OLHARES SOBRE O ESPIRITISMO: aproximações entre os escritos de Cesare Lombroso e João do Rio

Views on Spiritism: approaches between the writings of Cesare Lombroso and João do Rio

Perspectivas Sobre el Espiritismo: enfoques entre los escritos de Cesare Lombroso y João do Rio

Vanda Fortuna SERAFIM
Docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá., Brasil
Gabriela Harumi ARAKI
Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá (2020)., Brasil
Interações, vol. 17, núm. 2, pp. 297-2316, 2022
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 13 Septiembre 2021

Aprobación: 18 Agosto 2022

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva apresentar uma análise comparativa entre os discursos intelectuais elaborados, na passagem do século XIX para o século XX, pelo médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), na obra póstuma Hipnotismo e Mediunidade (1909), e pelo jornalista brasileiro, João do Rio (1881-1921), em As religiões no Rio (1904). As duas obras trazem, dentre as suas temáticas, uma preocupação em compreender o Espiritismo. Apesar de situados em localidades geográficas diferentes, os autores compartilham do mesmo contexto temporal de fins do século XIX e início do século XX, e elaboraram narrativas acerca de práticas religiosas, especialmente as mediúnicas.

Do ponto de vista teórico-metodológico, a pesquisa orientou-se pela discussão realizada por Pierre Bourdieu (2004, p. 17) em Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico, ao afirmar que os campos, em especial, o científico, existem a partir de uma lógica própria do mundo científico e sobre a forma particular que essa lógica assume. Na perspectiva do autor, trata-se de um microcosmo relativamente autônomo – isto é, opera a partir suas leis próprias – mas que jamais escapa às coerções do mundo social que consiste no macrocosmo, a estrutura estruturante em que os sistemas simbólicos disputam pela autonomia de suas leis à medida que colaboram para a manutenção da estrutura (BOURDIEU, 2004). Tem-se assim, Lombroso enquanto um representante do campo médico e João do Rio, vinculado ao campo artístico/literário brasileiro.

Apesar de objetivos, especialidades e trajetórias distintas, é possível perceber como certas ideias perpassam os discursos produzidos por ambos os autores, isso porque “os campos são os lugares de relações e forças que implicam tendências imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se orienta totalmente ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível em cada momento” (BOURDIEU, 2004, p. 27). Em ambos os discursos podemos notar, ainda que enviesados em perspectivas diferentes, que os referidos intelectuais buscaram apresentar uma clivagem acerca das práticas e crenças mediúnicas, a partir da pressuposição de um Espiritismo superior e de um Espiritismo inferior. E, constatou-se que, em grande parte, o que determina a classificação de cada um está vinculado a seus praticantes.

2 JOÃO DO RIO: O ESPIRITISMO ENTRE OS SINCEROS E OS EXPLORADORES

João do Rio é a forma como ficou conhecido o escritor Paulo Barreto (Rio de Janeiro, 05/08/1881 – 23/06/1921), um dos mais proeminentes jornalistas de seu tempo, com vasta obra jornalística e literária. De acordo com Julia O’Donnell (2008), com sua escrita inovadora na forma e no conteúdo dentro do campo literário brasileiro, João do Rio foi um autodidata com curta passagem pela escola, mas detentor de larga erudição, a ponto de conseguir se utilizar do jornalismo como uma profissão, ao invés de complemento financeiro, prática comum a outros escritores de sua época. Passou as duas primeiras décadas do século XX publicando artigos, geralmente na forma de crônicas, que registravam suas atividades como correspondente internacional, observador do cotidiano da cidade e crítico teatral e literário.

Mas falar em Paulo Barreto não significa fazer menção apenas a sua prolixidade profissional. Para além de sua (merecida) fama como jornalista que, como veremos mais adiante, alterou muitos padrões da profissão no país, sua figura era parte da paisagem social da belle époque carioca, numa presença sempre marcada pela polêmica. Mulato, calvo, gordo e homossexual, a personagem João do Rio descolou-se de sua matriz biográfica (Paulo Barreto) e garantiu espaço no inventário de seu tempo. Com seus fraques sempre verdes, sua presença era indisfarçável e seu público jamais era neutro. Odiados ou amados, respeitados ou desprezados, João do Rio e sua obra devem ser analisados em termos de simbiose. (O’DONNEL, 2008, p. 14-15).

Vida e obra de João do Rio imbricam-se aos processos de urbanização do Rio de Janeiro e das sociabilidades que caracterizavam a capital brasileira da Primeira República. É notável em suas narrativas o estranhamento em relação ao observado, o que fez com que a modernidade tivesse traços humanizados, expressivos e intersubjetivos. Para além da exaltação das virtudes, há ainda a exaltação dos vícios da metrópole, revelando indivíduos e modelos de interação (O’DONNEL, 2008). Em meio às percepções de João do Rio, tornam objetos de curiosidade etnográfica às crenças religiosas variadas, em especial o espiritismo. As religiões no Rio, aqui tomada como fonte histórica, trata-se de uma coletânea de reportagens publicadas entre 22 de fevereiro de 1904 e 21 de abril de 1904 no periódico Gazeta de Notícias. Sua primeira reunião em livro foi editada e produzida pela Tipografia da Gazeta de Notícias em dezembro de 1904, reeditado em 1906, edição aqui utilizada. A versão em livro anexou-se uma introdução e um prefácio escritos pelo jornalista. Ou seja, remonta ao final do século XIX e início do século XX, o interesse dos intelectuais brasileiros, pelas práticas mediúnicas.

A obra foi reconhecida nacional e internacionalmente e João do Rio a viu receber novas edições ainda em vida pois a primeira versão teve vendagem recorde no país de 8 mil exemplares até 1910, quando já haviam sido lançadas oito edições da obra. Convém destacar aqui, o similar interesse entre João do Rio e Lombroso em visitar médiuns, centros e locais de culto espírita. Lombroso, todavia, por ter sua obra publicada de forma póstuma, não alcançou o público leigo em vida, mesmo assim, sua obra posteriormente recebeu várias edições e foi traduzida em diversas línguas, no Brasil, inclusive, está na quinta edição, pela editora da Federação Espírita Brasileira.

João do Rio ao apresentar o espiritismo traz suas subdivisões: o espiritismo praticado “entre os sinceros” (RIO, 2008, p. 267) e o espiritismo praticado entre “os exploradores” (RIO, 2008, p. 282). Essa forma de representar o espiritismo no Brasil, a partir de seus contatos no Rio de Janeiro, certamente dialoga com as suas visões de mundo[1] e se constrói a partir da sua bagagem cultural[2].

A distinção aparece de forma visível na obra de João do Rio, ao se referir ao espiritismo entre os sinceros, onde de início já evidencia a crença compartilhada por um amplo grupo de pessoas em um mundo invisível, associando tal premissa ao “estado mental” (RIO, 2008, p. 268) dos brasileiros. Interdiscursivamente, percebemos aqui as marcas de um pensamento positivista e evolucionista, que reduz as experiências sensíveis aos limites de um discurso empírico e racionalista, subalternizando o que entende como a ótica de um pensamento selvagem/bárbaro, primitivo, no qual os ditos estados teológicos são entendidos como um estágio ainda infantil do desenvolvimento humano[3].

Ainda assim, João do Rio identifica nesse meio o que considera “cérebros mais lúcidos pela ciência da revelação” (RIO, 2008, p. 268), consequentemente a esse grupo verdadeiro e sincero pertenceriam:

A Marinha, o Exército, a advocacia, a medicina, o professorado, o grande mundo, a imprensa, o comércio têm milhares de espíritas. Há homens que não fazem mistério da sua crença. Os generais Girard e Piragibe, o major Ivo do Prado, o almirante Manhães Barreto, Quintino Bocaiúva, Eduardo Salamonde, os Drs. Geminiano Brasil, Celso dos Reis, Monte Godinho, Alberto Coelho, Maia Barreto, Oliveira Menezes, Alfredo Alexander proclamam a pureza da sua fé. A Federação tem 800 sócios e ainda o ano passado expediu 48 mil receitas. (RIO, 2008, p. 268).

Uma vez praticado pela alta sociedade, intelectualizada, educada e civilizada, João do Rio identifica com bons olhos a prática espírita, em oposição àquela praticada entre os ditos exploradores: mulheres, negros, mulatos, portugueses (aqui lidos como imigrantes) e homossexuais (aqui referidos como sinetas).

Assim, há uma tropa de mulheres, a Galdina da rua da Alfândega, a negra Rosalina da rua da América, a Aquilina da rua do Cunha, a Amélia do Aragão, a Zizinha Viúva da rua Senhor de Matozinhos, a Augusta da rua Presidente Barroso, a Tomásia da rua Torres Homem, n.0 14, que estabelecem o comércio com consultas de 500 réis para cima e praticam coisas horrendas, abortos, violações a preço fixo e têm trabalhos em que são acompanhadas de secretárias; há espíritas ambulantes, como o negro Samuel, que já foi cozinheiro, mora na rua Senador Pompeu, n° 157, e vai de casa em casa fazer passes; há mulatos pernósticos, o Zizinho da rua de S. Januário, o Claudino da rua de Santana, o Joãozinho da rua Sorocaba, com consultas noturnas; há portugueses como um tal Sr. Carneiro, da Praia Formosa, e o Simões, da rua Visconde de Itaúna, que exigem 20$000 por consulta e mandam os doentes comprar uma vela de cera e tomar um banho de cevada. Há de tudo, até sinetas, rapazes de passinho rebolado, que quando não prestam mais para o comércio público estabelecem-se nas ruas do meretrício com adivinhações espíritas! (RIO, 2008, p. 285-286).

Observamos que a legitimidade da prática espírita está vinculada aos grupos que a realizam, sendo que o primeiro grupo é reconhecimento como detentor de um intelecto superior, assegurado pelo hábito de leitura e escritas, a ponto de João do Rio se encantar com a presença de biblioteca na Federação Espírita do Rio de Janeiro e com a prática da psicografia, que sugerem e pressupõe do domínio culto da leitura e da escrita, sendo um grupo, portanto, capaz de estudar de forma adequada o fenômeno psíquico em diálogo com as sociedades espíritas londrinas e parisienses. É o “espiritismo científico” (RIO, 2008, p. 269), percebido como uma ciência/filosofia, que João do Rio admira.

Já o espiritismo associado a religião, é lido como supersticioso e fadado a sucumbir no processo evolutivo das sociedades, mesmo assim, sua ampla existência na sociedade brasileira, caracteriza mais um entrave à civilização da mesma. Em tom de desanimo afirma que:

Nunca se viu uma crença que com tal rapidez assombrasse crentes. Se o Figaro dava para Paris cem mil espíritas, o Rio deve ter quase igual soma de fiéis. O Brasil, pela junção de uma raça de sonhadores como os portugueses com a fantasia dos negros e o pavor indiano do invisível, está fatalmente à beira dos abismos de onde se entreve o além. A Federação publicou uma estatística de jornais espíritas no mundo inteiro. Pois bem: existe no mundo 96 jornais e revistas, sendo que 56 em toda a Europa e 19 só no Brasil. (RIO, 2008, p. 270).

Essa expansão da crença espírita, ao contrário do espiritismo científico, se deveria a degeneração do brasileiro enquanto um povo compósito[4], cujas consequências da miscigenação atingiram não apenas níveis físicos e biológicos, mas também mentais.

O Rio está minado de casas espíritas, de pequenas salas misteriosas onde se exploram a morte e o desconhecido. [...] O espiritismo difundiu-se na populaça, enraizou-se, substituindo o bruxedo e a feitiçaria. Além dos raros grupos onde se procede com relativa honestidade, os desbriados e os velhacos são os seus agentes. Os médiuns exploram a credulidade, as sessões mascaram coisas torpes e de cada um desses viveiros de fetichismo a loucura brota e a histeria surge. Os ingênuos e os sinceros, que se julgam com qualidades de mediunidade, acabam presas de patifes com armazéns de cura para a exploração dos crédulos; e a velhacaria e a sem-vergonhice encobrem as chagas vivas com a capa santa do espiritualismo. Quando se começa a estudar esse mundo de desequilibrados, é como se vagarosamente se descesse um abismo torturante sem fundo. (RIO, 2008, p. 283, grifos nossos).

É visível na citação acima, destacados os nossos grifos, a forma denunciante pela qual João do Rio se refere ao espiritismo praticado pelas camadas sociais menos favorecidas, lhe atribuindo definições que perpassam patologias como a loucura e a histeria, fetichismos e outras formas de enganação e exploração possível.

É notável ainda como as narrativas se distinguem ao tratar de certas características igualmente presentes no espiritismo entre os ditos sinceros e os ditos exploradores, tais como a mediunidade, a caridade, a voz, o ambiente, a cura e a própria credibilidade/legitimidade atribuídas por João do Rio.

A Federação fica na rua do Rosário, 97. É um grande prédio, cheio de luz e de claridade. Cumprem-se aí os preceitos da ortodoxia espírita; não há remuneração de trabalho e nada se recebe pelas consultas. A diretoria gasta parte do dia a servir os irmãos, tratando da contabilidade, da biblioteca, do jornal, dos doentes. A instalação é magnífica. No primeiro pavimento ficam a biblioteca, a sala de entrega do receituário, a secretaria, o salão de espera dos consultantes e os consultórios. Seis mediuns psicográficos prestam-se duas horas por dia a receitar, e as salas conservam-se sempre cheias de uma multidão de doentes, mulheres, homens, crianças, figuras dolorosas com um laivo de esperança no olhar. (RIO, 2008, p. 272, grifos nossos).

Enquanto na federação, que pratica “todas as virtudes do espiritismo” (RIO, 2008, p. 272) o prédio é cheio de luz e claridade, há os espiritismos que se tratam de “exploração”, “falsidade” e “crendice ignorante” (RIO, 2008, p. 282), esses centros também percorridos por João do Rio são “focos dessa tristeza” (RIO, 2008, p. 283).

No morro do Pinto a feitiçaria impera. Numa sala baixa, iluminada a querosene, assentam-se os fiéis, mulheres desgrenhadas, mulatinhas bamboleantes, negras de lenço na cabeça com o olhar alcoólico, homens de calças abombachadas, valentes com medo das almas do outro mundo, que ao sair dali ou ali mesmo não trepidariam em enfiar a faca nas entranhas do próximo. As luzes deixam sombras nos cantos sujos. (RIO, 2008, p. 287, grifos nossos).

Percebemos inicialmente a oposição quanto aos ambientes, o primeiro é modesto, mas bem iluminado, limpo e bem frequentado. O segundo é sujo, sem energia elétrica e frequentado por afrodescendentes. A situação não é diferente quanto às descrições dos médiuns: “o médium, em chinelas, é presa de um tremor convulso” (RIO, 2008, p. 287) e mais ainda

O médium é um tipo de hébèté, de quase cretino. Lourinho, de um louro de estopa, com a face cor de oca e as gengivas sem dentes, é carteiro de 2.ª classe dos Correios. Tem a farda suja e a gravata de lado. Durante todo o tempo em que o mulato nos conta as suas curas, ele sopra monossílabos e remexe a cabeça, dolorosamente, como se lhe estivessem enterrando alfinetes na nuca. (RIO, 2008, p. 282).

A alusão a sujeira, a pele não branca, a pobreza escarada na ausência dos dentes, os movimentos do corpo mediúnico são tratados com grande desprezo por João do Rio. É o contrário do que ele descreve de um médium na Federação Espírita: “O seu semblante espiritualiza-se em atitudes extáticas, a sua voz é a blandícia mesma que nos acaricia a alma pregando a bondade e a demolição das vaidades. As senhoras ouvem-no ansiosas; ao nosso lado dizem-no inspirado, atuado pelos espíritos” (RIO, 2008, p. 276). Aqui tem-se sutileza, a voz do médium é meiga, terna, branda. Entre os ditos exploradores “ouve-se uma voz de palhaço” (RIO, 2008, p. 287).

Ao falar do que vivenciou em sua visita a Federação, João do Rio destaca, sem questionar que eles realizam muitas curas, milhares de curas, mesmo assim, nem se preocupam em tomar nota das curas realizadas. Rio (2008) não desdenha da fé das pessoas curadas e afirma que a própria fé parece bastar a eles. Ao se referir às práticas de cura entre os ditos exploradores, no entanto, o escárnio conduz a narrativa:

O nosso homem cura tudo: dartros, feridas más, constipações, amores mal retribuídos, ódios. É fantástico! As mulheres têm-lhe uma fé doida. O espiritismo para elas é o milagre, a intervenção dos espíritos junto de um poder superior. Antes de ir à consulta, ajoelham no oratório e vão com todos os seus bentinhos, as figas de Guiné, o espanta mau-olhado das negras minas. (RIO, 2008, p. 289).

Tratados em termos patológicos, fetichista e de enganação, a forma como o espiritismo é praticado fora dos meios intelectuais é descredibilizado constantemente. Se no espiritismo verdadeiro divulga-se que não há salvação fora da caridade; entre os populares, eles seriam o próprio objeto da caridade. Enquanto João do Rio não questiona as práticas da federação, ao visitar um centro espírita faz questão de ressaltar a enganação, exemplificando com uma mãe que presenciou buscar ajuda para saúde do filho, enquanto a criança morria em casa, desamparada dos espíritos que supostamente deveriam ajudar.

O modo como João do Rio representa o espiritismo se constitui em duas vertentes: a científica (os sinceros) e a religiosa (os exploradores). No primeiro caso, o espiritismo é compreendido como o estudo do fenômeno da mente humana; no segundo trata-se de patologias raciais, podendo levar à degeneração e ao crime.

Na chave da religião, se o espiritismo pôde ser aceito como crença foi porque ao atender pobres e doentes não evidenciava intenção de dolo. Já as práticas de negros, uma vez centradas em possessão, batuques e danças “diabólicos”, não podiam ser percebidas como ritos religiosos, derivando, pois, para a categoria inversa, a magia, voltada para o mal e francamente ameaçadora. (MONTERO, 2006, p. 74).

Do mesmo, nos escritos de João do Rio, que traz marcas em seu pensamento das políticas higienistas e do controle disciplinar do espaço público, as práticas espiritas, especialmente as praticadas por negros, foram associadas ao crime, a histeria, a degeneração e, portanto, fortemente combatidas.

3. CESARE LOMBROSO: O ESPIRITISMO ENTRE OS PRIMITIVOS E OS MODERNOS

Cesare Lombroso foi um médico psiquiatra italiano, nasceu em 6 de novembro de 1835, em Verona, Itália, e faleceu em 18 de outubro de 1909, na cidade de Turim, Itália. Em sua formação médica, passou pelas universidades italianas de Pádua e Pavia, e pela Universidade de Viena, na Áustria. Dentre suas publicações mais conhecidas, destacam-se os estudos que resultaram em O Homem Delinquente, em que o intelectual se debruçou sobre o problema do crime em uma perspectiva inovadora que passou a concebê-lo como um fenômeno natural, ou uma característica atávica, isto é, primitiva, presente nos indivíduos delinquentes (GIBSON, 2013).

Ainda em 1876, Lombroso foi nomeado professor da Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade de Turim, pelo Decreto Real de 4 de janeiro de 1876, para lecionar as disciplinas de Medicina Legal e Higiene Pública (VILLA, 2013). Vale pontuar que inicialmente a teoria de Lombroso do criminoso nato não havia sido bem recebida na Itália, sendo somente a partir da década de 1880 que o médico passa a ganhar seguidores que partilhavam das convicções evolucionistas e materialistas. Conforme destacou Villa (2013), o patologista Giulio Bizzozero, o fisiologista Angelo Mosso e o político Giacinto Pacciotti tornaram-se próximos de Lombroso e foram importantes para a consolidação da Escola Positiva de Antropologia Criminal.

Embora o legado de Cesare Lombroso tenha se construído em grande parte às contribuições e a fundação da Escola Positiva de Antropologia Criminal, consideramos importante apontar que o italiano se dedicou também à estudos sobre as prostitutas, a fisiologia e o comportamento das mulheres, à pelagra, aos ferimentos por armas de fogo, aos anarquistas e, nos últimos anos de sua trajetória, se debruçou sobre os fenômenos mediúnicos, hipnóticos e ao Espiritismo. A publicação italiana de Hipnotismo e Mediunidade, em 28 de outubro de 1909, ocorreu cerca de onze dias após o falecimento do autor, sendo, portanto, uma publicação póstuma e um de seus estudos mais eclipsados pela historiografia que atribuiu, durante décadas, este último trabalho à vida pessoal do autor (YSTEHEDE, 2013).

No ano de 1892, Lombroso assistiu às sessões mediúnicas da médium italiana Eusapia Palladino (1854-1918) entre os meses de setembro e outubro, acompanhado de seus pares intelectuais. Entre os anos de 1906 e 1909, Lombroso trabalhou na organização da obra Hipnotismo e Mediunidade[5], publicada em 28 de outubro de 1909, pela União Tipográfica – Editora Torino, pertencendo à coleção do Polo de Bibliotecas de Humanidades da Universidade de Turim[6] . A obra, em sua primeira edição, contava com 329 páginas, divididas em duas partes: a primeira, intitulada Hipnotismo, com sete capítulos dedicados aos resultados de pesquisa, anotações, casos específicos de premonições, polarização dos sentidos, prática da hipnose clínica e um capítulo dedicado aos sonhos, com base nos estudos do psicólogo Frederic William Henry Myers (1843-1901); a segunda, por sua vez, foi intitulada Espiritismo, em 15 capítulos Lombroso (1943) se debruçou a coletar informações sobre fenômenos espíritas, a crença nos espíritos dos mortos, casas assombradas, fotografias espíritas, religiões e crenças de diferentes sociedades antigas e também aos fenômenos de Eusapia Palladino.

Em Hipnotismo e Mediunidade, o psiquiatra não se limitou apenas em trazer ao campo discursivo as descrições sobre os fenômenos espíritas produzidos na Europa, como também inclui em sua reconstrução antropológica destes as práticas antigas que objetivavam a comunicação com os mortos, obtenção de respostas por meio de oráculos, profecias que eram proferidas por sacerdotes e indivíduos cuja condição social religiosa era superior aos demais. Ao estabelecer uma apresentação variada de diferentes formas das práticas relacionadas ao Espiritismo, Lombroso (1943) dispôs de uma bibliografia rica em relatos e de informações obtidas por meio das tecnologias médico-científicas do século XIX, baseada em descrições precisas do ambiente em que ocorriam as sessões Espíritas e das inferências dos fenômenos na fisiologia da médium.

Esta preponderante ação dos médiuns, nos fenômenos espiritistas, está confirmada pela observação de que todos os povos primitivos e selvagens, e também o nosso vulgo, especialmente o dos campos, veneram alguns seres, magos, feiticeiros, santarrões e profetas que são verdadeiros médiuns, os quais, segundo esse vulgo, se crê hajam transformado as leis comuns do tempo, do espaço e da gravidade: ver à distância, predizer o futuro, elevar-se no ar, passar através dos corpos opacos, transportar-se num relâmpago a milhares de quilômetros, etc., estar em comunicação com seres extraterrenos, diabos, santos e, acima de tudo, com as almas dos mortos. (LOMBROSO, 1943, p. 173).

Importante destacar que Lombroso (1943) não estava pensando o Espiritismo praticado em sua contemporaneidade como religião, mas como uma prática que, se estudada cientificamente, poderia colaborar para o desenvolvimento dos saberes médico-psiquiátricos sobre os fenômenos mentais (como a telepatia, os sonhos premonitórios, as materializações espirituais etc.). Esse seria o Espiritismo entre os ditos modernos. Haveria, no entanto, ao longo da história humana, a presença de fenômenos Espíritas em distintas sociedades.

Que nossos mais antigos progenitores acreditavam, se não na imortalidade da Alma, ao menos em sua existência temporária depois da morte, – é opinião comum dos antropólogos, os quais observam, com Figuier, que os víveres, as lâmpadas, as armas, as moedas, os objetos de ornamento depositados, até nas épocas pré-históricas, nas tumbas, ao lado de cadáveres, mostram claramente a crença em uma vida futura. E essa mesma crença nós a encontramos ainda junto de todos os povos selvagens, mesmo entre aqueles que têm de Deus uma ideia extremamente vaga, ou não têm de maneira alguma. (LOMBROSO, 1943, p. 379).

Essa citação apresenta os pressupostos do que seria o Espiritismo entre os ditos primitivos e o que, para Lombroso, “torna-nos propensos a aceitar a hipótese espiritista” (LOMBROSO, 1943, p. 379), retomando a ideia da sobrevivência destas ocorrências por meio da manifestação atávica.

Se existiu no mundo um homem, por educação científica e quase por instinto, contrário ao Espiritismo, esse fui eu, que, da tese: Ser toda força uma propriedade da Matéria e a Alma emanação do cérebro –, havia feito a preocupação mais tenaz da vida, eu, que havia zombado por muito tempo dos Espíritos das mesinhas... e das cadeiras! Mas se sempre nutri grande paixão pelo meu lábaro científico, tive outra ainda mais fervorosa: a adoração da verdade, a constatação do fato. Ora, eu que era assim hostil ao Espiritismo, ao ponto de não aquiescer por largo tempo em ao menos assistir a uma experiência, deveria, em 1882, presenciar, na qualidade de neuropatólogo, fenômenos psíquicos singulares, que não encontravam nenhuma explicação na Ciência, salvo a de ocorrerem em indivíduos histéricos ou hipnotizados. (LOMBROSO, 1943, p. 69)

O Espiritismo entre os modernos, conforme entendido por Lombroso (1943) seria constatado por meio de um estudo pautado no pensamento científico e constituído pelo método experimental da Antropologia Criminal[7]. Por meio do estudo das formas que o Espiritismo adquiria em distintas sociedades antigas e contemporâneas, Lombroso (1943) utilizou-se de relatos em cartas que recebia, estudos etnográficos e de viajantes disponíveis nas bibliotecas da Universidade de Turim, das porcentagens e médias aritméticas, fotografias, experimentos com substâncias químicas e aparelhagens médico-científicas para construir este saber sobre os fenômenos espíritas e mediúnicos em inícios do século XX.

Ao tratar do Espiritismo, Cesare Lombroso reiterou sua posição com relação à permanência do primitivismo hereditário nos povos à emergência do centro da civilização: a Europa. Ao considerar a existência destes povos primitivos no século XIX, Lombroso (1943) buscou demonstrar que as crenças espíritas estavam presentes na história da humanidade desde a antiguidade clássica. Nos povos primitivos, Lombroso argumentou que também podiam ser observadas práticas religiosas espíritas e mediúnicas, neste sentido, elencou diferentes sociedades em que a religião apresentava algum aspecto tangente às comunicações com os mortos das mais variadas formas, premonições, convulsões e aparições dos mortos. Conforme destacou Castro (2005) sobre os primitivos na visão dos evolucionistas culturais:

Como decorrência da visão de um único caminho evolutivo humano, os povos “não ocidentais”, “selvagens” ou “tradicionais” existentes no mundo contemporâneo eram vistos como uma espécie de “museu vivo” da história humana — representantes de etapas anteriores da trajetória universal do homem rumo à condição dos povos mais “avançados”; como exemplos vivos daquilo “que já fomos um dia”. Para Frazer, “o selvagem é um documento humano, um registro dos esforços do homem para se elevar acima do nível da besta”. (CASTRO, 2005, p. 24)

Vale destacar, que para Lombroso (2016), os povos primitivos compartilhavam uma característica que poderia ser passada pela bagagem hereditária: o atavismo. O atavismo significava, para o médico italiano, uma regressão no estágio evolutivo de nossa espécie, e mais ainda: o atavismo também significava a propensão às patologias mentais e ausência da régua moral que condicionava os indivíduos a conviver em sociedade.

Em um discurso que privilegiou as diferenças notadas nos outros povos às igualdades ou semelhanças, Cesare Lombroso (1943, 2016) estabeleceu para além da diferença temporal e espacial, as diferenças bioantropológicas que definiam, em sua concepção, a mulher, os selvagens, bárbaros e primitivos. “A Antropologia possui como questão fundadora determinar o critério fundamental que distingue o sujeito do discurso antropológico de tudo aquilo que não é ele, isto é, tudo aquilo que não é ‘nós’: o não ocidental, o não moderno, ou o não humano.” (CASTRO, 2010, p. 15)

Dentre os povos ditos bárbaros e selvagens, o autor tratou no quinto capítulo da segunda parte de Hipnotismo e Mediunidade dos Árabes habitantes da Argélia, dos Batas, na Indonésia e dos Peruanos, na América do Sul. Embora seja um artifício discursivo da narrativa antropológica, o método comparativo por ele utilizado não se tratava de realizar uma comparação equivalente, mas de uma tentativa de apresentar como eram organizadas as crenças mediúnicas em diferentes sociedades e, posteriormente, inferiorizá-las sob o estigma de práticas mágicas e religiosas. A leitura dos ditos modernos, por sua vez, privilegiava a análise e compreensão dos fenômenos mediúnicos a partir da ciência e do desenvolvimento médico e tecnológico do século XIX.

Atentemos a algumas descrições realizadas por Lombroso sobre a forma como o Espiritismo estaria organizado entre os primitivos. Ao se referir aos Árabes argelinos, o autor descreveu que a Seita dos Aissaua apresentava insensibilidade da cútis, podendo “comer carvões em brasa e vidro, transpassam-se de lado a lado um membro do corpo com uma espada, sem que resulte cicatriz sequer, etc” (LOMBROSO, 1943, p. 177). Além disso, os Aissaua vendiam amuletos e curavam doenças por meio do magnetismo e praticavam o exorcismo para tornar espíritos malvados em impotentes.

Os Batas, habitantes da Indonésia, mais especificamente na província de Riau, segundo Lombroso (1943, p. 177-178), “quando encontram um homem possuído de gênio mau, respeitam-no profundamente e olham por oráculo. Mostram-me – diz célebre viajante –, com respeito, uma jovem dita filha do demônio – porque o pai é louco”. Interessante notar como se mantém no discurso de Lombroso a prevalência de informações acerca dos laços familiares que remetem à hereditariedade dos traços psicológicos e também físicos.

Na América do Sul, os peruanos habitantes da Patagônia chamaram a atenção do médico italiano por comportarem além de sacerdotes, as virgens sagradas, magos e profetas que “improvisavam profecias, chamados ‘Hecheloc’, em meio de convulsões e contorções terríveis, e eram venerados pelo povo e desprezados pela classe mais culta” (LOMBROSO, 1943, p. 179). Lombroso destacou, ainda, os Índios Carajás do Brasil, que segundo o autor, “elegem como médico-mago qualquer integrante da tribo que tenha nascido dispostos à nevrose, epilépticos e nervosos” (LOMBROSO, 1943, p. 179).

Também vale notar o que Lombroso (1943, p. 180) apontou sobre os chamados “Cafres”, de linhagem banto, na região da África do Sul, não-muçulmanos, descritos como extremamente supersticiosos e a religião deste povo, segundo o autor, consiste na veneração dos Espíritos dos Mortos. A forma como Lombroso pensa o Espiritismo, o remete a uma prática bastante antiga, presente ao longo da história da humanidade. E, ele se esforça em encontrar nas narrativas que colheu sobre outros povos, indícios de práticas e crenças espíritas.

Esse olhar primitivo, todavia, para Lombroso (1943), não era algo que ficava por conta das sociedades do passado. Ele entendia que no século XIX, com o desenvolvimento do moderno espiritualismo, houve a reinterpretação da necromancia, isto é, o estabelecimento de comunicação com os espíritos dos mortos a fim de que estes lhes predizerem o futuro que os aguarda, de maneira semelhante ao que ocorria com os oráculos dos romanos e a crença nos fantasmas dos mortos. Em função disto, o autor adota a terminologia vulgos modernos, para se referir a sociedades camponesas do século XIX, nas quais

...] os campesinos adoram as Almas dos condenados; crêem que elas defendem os débeis contra os ladrões noturnos, diminuindo as forças destes, e isso especialmente perto do rio Oreto, onde estão enterrados. [...] A Alma dos justiçados, suicidas, mortos nos hospitais, etc., ou ficam encarceradas no corpo de animais, sapos, lagartos, ou reaparecem num mundo, pela vontade de Deus ou por seu capricho; a dos assassinados vagueiam no sítio onde caíram e se lamentam durante todo tempo que deviam permanecer vivos, e depois se precipitam no Inferno. Para se subtraírem deste viver, procuram entrar no corpo dos vivos, nas proximidades da meia noite. (PITRÉ apud LOMBROSO, 1943, p. 398-399).

É interessante ressaltar que os “vulgos modernos” situam-se no capítulo treze da segunda parte de Hipnotismo e Mediunidade, capítulo este intitulado “A crença nos Espíritos dos Mortos entre os selvagens e os bárbaros” (LOMBROSO, 1943, p. 379). Neste sentido, confirmou-se que o primitivismo, na concepção lombrosiana, não existiu apenas entre os povos antigos, mas permaneceu em seus contemporâneos, que pela bagagem hereditária retornavam ao estado primitivo. Não se restringindo apenas às culturas antigas, Lombroso (1943) classificou-os como selvagens/bárbaros pela organização de suas crenças ainda se basearem em “costumes folclóricos” tais como Pitré (1889) os descreveu. Outra questão relevante a se levar em conta sobre os discursos dos evolucionistas culturais do século XIX, de acordo com Castro, é que durante a: “[...] reconstituição do processo geral da evolução cultural do homem, a antropologia evolucionista não demonstrava grande preocupação com aspectos mais específicos de povos particulares, nem com a exigência de alta confiabilidade nos relatos etnográficos”. (CASTRO, 2005, p. 27).

Destacamos que as discussões acerca da cultura popular e folclore se desenvolveram primordialmente no século XX, quando a Antropologia e as ciências humanas se dedicaram a compreender a vida e ações sócio-históricas baseadas no relativismo cultural. No período do século XIX, esta terminologia ainda era utilizada a fim de ressaltar as bases evolucionistas e racialistas de populações camponesas e não-europeias. Neste sentido, Castro destacou que:

Exemplos de sobrevivências seriam, em nossas sociedades “modernas”, os muitos costumes, superstições e crendices populares dos quais não se percebia a racionalidade ou a função social. Vistos pelo olhar evolucionista, no entanto, eles ganhavam sentido ao se transformarem em “sobrevivências” de um estágio cultural anterior, vestígios através dos quais se poderia, num trabalho semelhante ao de um detetive, reconstituir o curso da evolução cultural humana. O estudo científico das “sobrevivências” autorizava o antropólogo a recorrer, portanto, não apenas às sociedades “selvagens”, como também à sua própria sociedade. Tal procedimento ampliava enormemente o campo de investigação, permitindo que se incorporasse à antropologia aquilo que se costumava designar como “folclore”. (CASTRO, 2005, p. 26)

Neste sentido, percebeu-se que embora tenha citado uma diversidade de povos, Lombroso não havia saído do continente europeu, como destacado em suas biografias (FERRERO, 2009), e, portanto, sua sistematização foi realizada apenas com base nos autores que apresentou como referência, além das várias menções à relatos e cartas recebidas. Por meio das informações que pode encontrar, foi possível para Lombroso (1943) organizar a partir do princípio da evolução da cultura humana, as vivências religiosas de modo a enfatizar três proposições: a primeira, que em grande parte dos povos pode-se reconhecer práticas e crenças espíritas e mediúnicas; a segunda, de que estas crenças religiosas estão presentes, principalmente, nos povos que considerava primitivos; e a terceira, em consequência às anteriores, era possível operar por meio da comparação entre primitivos e modernos.

4. BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS: APROXIMAÇÕES ENTRE LOMBROSO E JOÃO DO RIO.

Frente ao exposto quanto à expansão do movimento espírita a partir do século XIX, as obras de João do Rio e Cesare Lombroso são importantes indicativos para compreender as leituras intelectuais organizadas tanto no Brasil quanto na Itália. Embora enviesados em perspectivas diferentes, uma literária e outra de cunho médico-científico - o que por si só evidenciam não apenas distintos estilos de narrativas, mas também a forma como se utilizam de determinados conceitos e categorias explicativas, além das preocupações diretas de cada um – é visível a forma como compartilham crenças e ideias acerca de um Espiritismo superior e um Espiritismo inferior, e em grande parte a definição de cada um deve-se aos grupos sociais e/ou humanos que os praticam e à capacidade intelectual do observador para definir/atestar sua veracidade.

Embora a obra em tela de Lombroso acerca do Espiritismo seja posterior a de João do Rio e, muito provavelmente o médico italiano não tenha tido acesso à As religiões no Rio, é inegável, a visibilidade e divulgação que as obras anteriores de Lombroso encontravam entre os intelectuais brasileiros neste momento. As discussões lombrosianas sobre a Antropologia Criminal, e sujeitos marginalizados, os ditos criminosos, as prostitutas, as mulheres, os loucos, e a forma com a qual estes grupos afetavam o funcionamento dos projetos civilizatórios, certamente faziam parte do universo republicano brasileiros, encontrando terreno fértil nas leituras sociais realizadas por João do Rio.

Ambos os discursos são marcados pelas teorias evolucionistas e antropológicas[8] tão marcantes na época. Todavia, Lombroso parte da Europa moderna e civilizada para pensar os ditos povos primitivos ao redor do mundo, é como sistematiza o seu estudo. A presença de povos não civilizados na Europa - ou seja, que adoram os mortos e desenvolvem práticas religiosas e de adoração - é lida como uma anomalia no processo de evolução humana. João do Rio, por sua vez, tem diante de si a difícil tarefa de pensar o Brasil enquanto um território miscigenado que congrega a existência de três raças: europeus, africanos e indígenas. Ou seja, três grupos em diferentes estágios evolutivos forçados a conviver no mesmo território. A partir desta premissa, observar as práticas religiosas torna-se um importante termômetro para João do Rio avaliar a situação do Brasil.

De acordo com Christina de Rezende Rubim (1999, p.2), no artigo “A constituição e o ser da Antropologia: problemática e método”, neste estágio embrionário da consolidação da Antropologia, a operação da alteridade “relega à natureza todo aquele que é diferente”. No caso em tela, os diferentes são as mulheres, os não europeus, os criminosos, os loucos e em última instância, os espíritos, que por natureza não são necessariamente humanos de carne e osso, mas de consciência (LOMBROSO, 1943).

Conforme nos destacou Eduardo Viveiros de Castro (2010), no artigo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, intitulado “O Anti-Narciso: lugar e função da Antropologia no mundo contemporâneo”, não podemos esquecer que inicialmente, a “Antropologia é o estudo do homem, mas, ao mesmo tempo, do homem mais diferente possível daquele que enuncia o discurso da Antropologia: o selvagem, o primitivo” (CASTRO, 2010, p. 15).

Ao se distanciar ou se aproximar das crenças e sujeitos que encontra e narra em suas pesquisas/andanças pela cidade carioca, no início do século XX, é possível captar a leitura que João do Rio realiza de si mesmo: homem intelectualizado, distinto, conhecedor de obras clássicas, as quais faz questão de citar no decorrer de seus escritos, simpatizante do Positivismo e da Ciência, enfim, o típico homem civilizado. A ponto desta classificação aparecer em sua narrativa literária: “Diante dos meus olhos de civilizado” (RIO, 2008, p. 54) em oposição aos povos africanos. Processo parecido ocorre com Lombroso, “Se existiu no mundo um homem, por educação científica e quase por instinto, contrário ao Espiritismo, esse fui eu” (LOMBROSO, 1943, p. 69), todavia, seu discurso não se dirige àqueles que praticam o Espiritismo em si, mas àqueles que teriam a legitimidade em atestar a veracidade, ou não, do mesmo. O que encontramos em Lombroso, especialmente nas discussões italianas sobre quem é autorizado a realizar hipnoses e processos magnetizadores, é a busca pela autoridade científica e a legitimação do campo médico.

O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado. (BOURDIEU, 1983, pp. 122-123)

A forma como João do Rio, por sua vez, constrói a sua narrativa sobre o que considera ser um espiritismo verdadeiro versus a falsificação do mesmo, coadunam com os processos de identificação do que é socialmente aceito ou almejado para a recente República brasileira e o que poderia ser entendido como um entrave à civilização. Cabe lembrar que no processo de instauração da República no Brasil, como bem observou Paula Montero (2006, p. 52), “uma das dimensões históricas fundamentais da conformação das práticas religiosas no Brasil diz respeito ao processo de constituição do Estado republicano e às leis penais e sanitárias que visavam disciplinar o espaço público”. De certo modo, a preocupação ainda que em outros moldes, também se faz presente na Itália. De acordo com Pimentel (2014), as crenças espiritualistas na França se difundiram nas várias classes sociais, não sendo restrita apenas aos intelectuais, letrados e aristocratas. O mesmo processo ocorre na Itália e no Brasil e João do Rio e Lombroso assumem em suas obras a preocupação em distinguir esses movimentos.

A forma como o combate à feitiçaria e ao curandeirismo estão presente nas representações[9] que João do Rio (2008) estabelece em sua obra, pelo modo como hierarquiza o espiritismo, traz marcas de referências[10] do esforço da jovem República em transformar as naturezas brutas de negros, mulatos e índios (e imigrantes) em uma só sociedade civil, para isso, era necessário produzir sujeitos passíveis de serem submetidos à normatividade das leis e a moralidade da religião cristã/católica. Nesse sentido, o diálogo com as teorias científicas Lombrosianas se tornam relevantes na medida em que a absorção e reinterpretação deste conhecimento criminal/antropológico disponível oportunizaria discernir, de forma mais clara, os grupos que poderiam ser objeto da normatividade legal: feiticeiros, curandeiros, charlatões, exploradores da credulidade pública ou simples vítimas. (MONTERO, 2006, p. 51). A obra de João do Rio, não de forma isolada, mas conjuntamente a jurisprudência brasileira, evidencia o exercício classificatório empreendido ao esquadrinhar “espaços públicos e privados para que os hábitos da população fossem conhecidos, classificados e disciplinados ou tipificados criminalmente”. (MONTERO, 2006, p. 51). Ao se distinguir o que era religião daquilo que era magia, estabelecia-se o que teria direito a proteção legal, das práticas antissocial e anômica e que deveriam ser combatidas. E, em grande parte, os estudos de Lombroso contribuem significativamente para esse processo classificatório, inicialmente dos grupos a serem disciplinados e, posteriormente, do próprio Espiritismo, na medida em que a sua prática por povos não europeus, é lida como primitiva, sendo moderna apenas aquela que compartilha da sua mesma visão de cientificidade.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 O termo “visão de mundo” é tomado por Chartier de empréstimo à Lukács, definido como “conjunto de aspirações de sentimentos e de ideias que reúnem os membros de um mesmo grupo (de uma classe social, na maioria das vezes) e os opõem aos grupos”, ele permite fazer uma tripla operação: atribuir um significado e uma posição social aos textos literários e filosóficos; compreender os parentescos existentes entre obras de forma e natureza opostas e; discriminar no interior de uma obra individual os textos “essenciais”, constituídos como um todo coerente, com o qual cada obra singular deve ser relacionada. (CHARTIER, 1990).
2 “[...] mesmo sendo um processo individual, brotado como uma experiência única, a sensibilidade não é, a rigor, intransferível. Ela pode ser também compartilhada, uma vez que é, sempre, social e histórica.” (PESAVENTO, 2007, p. 13-14).
3 Ver SCHWARCS (1979), CORRÊA (2001) e SERAFIM (2013).
4 Ver Nina Rodrigues (1935).
5 No Brasil, a obra foi traduzida para a língua portuguesa em 1943 por iniciativa da Federação Espírita Brasileira (FEB) no início da gestão presidencial de Antônio Wantuil e Hipnotismo e Mediunidade conta atualmente com cinco edições brasileiras, uma reimpressão, no ano de 2011, e cerca de 23.500 exemplares produzidos.
6 No original: Unione Tipografico – Editrice Torinese, Pollo dele Biblioteche Umanistiche dell’Università degli studi di Torino.
7 De acordo com Gibson (2013), o método experimental da Antropologia Criminal lombrosiana teria como objetivo sistematizar as informações anatômicas, fisiológicas e psíquicas de acordo com os objetos de seu estudo (o criminoso, as mulheres, histéricas e histéricos, bem como loucos e desviantes), ou seja, das tipologias pautadas no racismo científico do século XIX.
8 Vide Celso Castro (2005).
9 A opção pelo conceito de “representação” é porque este nos permite pensar o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos, bem como as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social; além das formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns representantes (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, por meio através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam (CHARTIER, 1990, 2002).
10 Ou seja, determinadas estruturas que mesmo intactas nelas mesmas, se inscrevem em outras trajetórias sociais, obedecem a critérios, classificam-se segundo categorias, visam objetivos que mudam (CERTEAU, 1982).
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