Dossiê

O ASSISTENCIALISMO ESPÍRITA

The Spiritist Assistencialism

El Asistencialismo Espírita

José Pedro SIMÕES
Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro., Brasil

O ASSISTENCIALISMO ESPÍRITA

Interações, vol. 17, núm. 2, pp. 358-375, 2022

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 24 Julio 2021

Aprobación: 11 Enero 2022

Resumo: O artigo aborda o tema do assistencialismo nas propostas e práticas espíritas. A despeito do esforço realizado por esse grupo religioso para superar as marcas assistencialistas, os argumentos apresentados reforçam a sua manutenção tanto nas concepções quanto nas atividades realizadas. Para demonstrar esse argumento, primeiro, o assistencialismo é abordado teoricamente, para em seguida, recorrer aos documentos da Federação Espírita Brasileira, que estabelecem diretrizes na área assistencial e a duas pesquisas realizadas em Santa Catarina. Com esse conjunto de dados foi possível observar que, no conteúdo e na forma, os trabalhos assistenciais espíritas continuam predominantemente orientados por diretrizes e conceitos religiosos, não se afastando das marcas assistencialistas.

Palavras-chave: Assistência Social, Assistencialismo, Espiritismo, Religião, Sociologia da Religião.

Abstract: The paper approaches the theme of assistencialism in the spiritism proposals and practices. Despite the effort of this religious group to overcome the assistencialist label , the arguments presented reinforce its maintenance both in the conceptions and in the activities carried out. To show this argument, first, the assistencialism is approached theoretically, to then resort to the documents of the Brazilian Spiritist Federation, which establish guidelines in the assistential area, and two surveys carried out in Santa Catarina. With this set of data, it was possible to observe that, in content and form, the Spiritist assistance work continues predominantly oriented by religious guidelines and concepts, not straying from the assistencialist label.

Keywords: Social Assistance, Assistencialism, Spiritism, Religion, Sociology of Religion.

Resumen: El artículo aborda el tema de lo asistencialismo en las propuestas y prácticas espíritas. A pesar del esfuerzo realizado por este grupo religioso por superar las marcas asistencialistas, los argumentos presentados refuerzan su mantenimiento tanto en las concepciones como en las actividades realizadas. Para demostrar este argumento, primero se aborda teóricamente el asistencialismo, luego se recurre a los documentos de la Federación Espírita Brasileña, que establecen pautas en el área asistencial y a dos encuestas realizadas en Santa Catarina. Con este conjunto de datos, se pudo observar que, en contenido y forma, las obras de asistencia espírita continúan predominantemente orientadas por pautas y conceptos religiosos, sin apartarse de las marcas asistencialistas.

Palabras clave: Asistencia social, Asistencialismo, Espiritismo, Religión, Sociología de la Religión.

1 INTRODUÇÃO

O movimento espírita tem realizado esforços para adequar suas práticas assistenciais às diretrizes estabelecidas pela Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS, 1993) e pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS, criado em 2004). No entanto, os espíritas, ao buscarem estabelecer vínculos e conexões entre as normativas legais estabelecidas pelo Estado brasileiro e as concepções de caridade estabelecidas pelo espiritismo, terminam incorporando elementos de assistencialismo para suas propostas de assistência social.

Esse elemento não é exclusivo das práticas assistenciais espíritas[1]. Ao contrário, até a criação do SUAS, as próprias ações assistenciais públicas eram tidas como assistencialistas, clientelistas e paternalistas. Essas características são muito presentes na história da assistência social, exatamente quando ainda havia uma expressiva mediação religiosa nas práticas assistenciais.

O lema Fora da Caridade não há Salvação, contido como título do capítulo 15 de O Evangelho Segundo o Espiritismo (KARDEC, 2016), é inspirador para que os adeptos dos centros espíritas se mobilizem para as práticas de assistência social. Desse modo, é preciso refletir em como essas práticas têm sido realizadas, seja do ponto de vista conceitual, seja em sua implementação.

O objetivo aqui é demonstrar que, a despeito dos esforços realizados pelos espíritas de adequação das suas práticas aos ditames legais e de sua vinculação à rede socioassistencial pública, as atividades e formulações desse grupo religioso permanecem no campo assistencialista.

Nesse sentido, o propósito não é analisar se a proposta de assistência social contida na doutrina espírita (livros de Allan Kardec) expressa ou não características assistencialistas em sua proposta de assistência social. Não se busca aqui, portanto, fazer uma teologia espírita. Dois textos, entretanto, são a base para a estruturação das formulações dos espíritas nessa área: o primeiro é o Serviço de Assistência e Promoção Social Espírita (SAPSE), em sua terceira edição, publicada em 2013. Portanto, esse já é um documento relativamente recente. Elaborado pela Federação Espírita Brasileira (FEB), o SAPSE foi reproduzido pelas federações regionais sendo, portanto, a referência sobre assistência social espírita no Brasil ao longo da década de 10 do século XXI.

Em 2018, um novo documento foi elaborado com o nome Orientação à Assistência e Promoção Social Espírita (OAPSE), editado também pela FEB. Portanto, essa publicação é a nova referência a ser seguida, estando disponível tanto no site da Federação Espírita Brasileira quanto em suas regionais (Federações Espíritas estaduais). Essa nova edição foi um esforço de revisão e atualização do SAPSE.

Esses dois documentos são a tradução de como os espíritas, cujas instituições que frequentam estão filiadas à Federação Espírita Brasileira (FEB) ou às suas representantes estaduais, interpretam a mensagem doutrinária sobre esse tema e, igualmente, buscam adequá-la às normas legais instituídas. Tendo esses dois documentos como referência, para a análise que segue, discutiremos ainda dados coletados em Santa Catarina, conforme a metodologia a seguir.

2. METODOLOGIA

Para demonstração que as práticas e concepções assistenciais espíritas não deixaram o campo assistencialista, a despeito dos esforços realizados nessa área, o artigo inicia-se por um levantamento de artigos e textos que tratem especificamente do assistencialismo. Embora muito abordado nos trabalhos específicos sobre assistência social, como uma forma negativa desse tipo de prática, há poucos trabalhos que se debruçam em discutir esse tema teoricamente. Sem o objetivo de tratar essa discussão de forma exaustiva, busca-se tão somente recuperar as noções básicas desse conceito de modo a balizar a análise sobre as práticas assistenciais espíritas.

Em um segundo momento, serão recuperados os manuais produzidos pela FEB. Embora o OAPSE seja a última versão das orientações da federação, sua publicação é relativamente recente e há ainda instituições que utilizam o SAPSE como guia para suas práticas. Esses dois manuais são muito semelhantes, havendo pequenas variações entre eles. Por isso, o SAPSE é utilizado neste artigo, somente nos pontos em que exista uma efetiva e significativa diferença entre eles.

A discussão dos textos da FEB não é exatamente uma garantia de sua efetivação nas atividades assistenciais e, portanto, o terceiro momento desse artigo recai-se sobre as práticas desenvolvidas pelos centros espíritas. Para isso, alguns dados serão recuperados e apresentados a seguir. Todos os dados, entretanto, referem-se preferencialmente ao estado de Santa Catarina (SC), já que não há referências recentes para outros estados. Como os manuais analisados anteriormente são nacionais, há uma hipótese de que as práticas que serão analisadas, embora ocorram dentro do âmbito estadual, possam ser inferidos para a realidade nacional.

As práticas assistenciais espíritas em Santa Catarina, já apresentados em pesquisas anteriores, serão recuperados para os fins desse artigo. O primeiro conjunto de informações advém da pesquisa, publicada em 2015 por Simões (2015), contou com 72 questionários sobre o trabalho assistencial nos centros espíritas e 30 entrevistas com os dirigentes das atividades, em um total de 150 instituições. O segundo, é derivado de um Censo, realizado em 2017, pela Federação Espírita Catarinense (FEC), também com dados sobre o estado, organizados por Sarmento e Simões (2020), abarcando 92 instituições em um universo de 159[2]. A diferença entre as duas pesquisas, para além das diferenças temporais, está em que, a primeira foi realizada com um propósito acadêmico, enquanto a segunda, foi realizada pelos nativos, representantes da Federação Espírita Catarinense (FEC). Assim, embora tratem do mesmo objeto – assistência social espírita em Santa Catarina – os resultados foram significativamente diferentes.

Esse conjunto de dados, portanto, será a base para a análise a seguir. É importante ressaltar que, sendo instituições ligadas à FEB, os resultados aqui encontrados restringem-se a esse segmento do espiritismo. A FEB é um o órgão central e aglutinador da unidade entre os espíritas. Entretanto, muitos centros espíritas não seguem diretamente suas diretrizes e outros ainda, não chegam mesmo a serem a ela filiados. Por outro lado, há aqueles que, ao contrário, mesmo não sendo filiados à FEB, terminam utilizando os materiais produzidos pela federação. Assim, não há como estimar o quanto essas publicações foram ou são apropriadas pelos centros espíritas. No entanto, elas são a voz do dono, ou seja, como dito, a FEB é o órgão oficial representativo do espiritismo kardecista no Brasil e, ainda que existam outras interpretações possíveis para este tema, é sobre o espiritismo oficial que tratam essas análises.

Por fim, será realizada uma reflexão: afinal, a quem interessa esse debate? Questiona-se, assim, a pertinência do debate sobre assistencialismo para uma proposta religiosa de assistência social[3]. Vejamos, então, cada uma das partes do argumento desse artigo.

3. DEFININDO O ASSISTENCIALISMO

O assistencialismo é uma forma pejorativa de qualificação de algumas práticas assistenciais. Sua utilização perfaz vários sentidos que serão aqui tratados. Historicamente, essa concepção é derivada da passagem de uma forma de assistência sem estado para o momento de construção de um sistema de seguridade social os chamados Estados de Bem-Estar Social (Welfare State). Nesse sentido, o assistencialismo é uma crítica as práticas assistenciais que não se adequaram, na forma ou no conteúdo, aos princípios dos direitos sociais e nas políticas sociais utilizadas para garantia dos primeiros. Algumas críticas de viés marxista, incluíram as políticas compensatórias de alívio a pobreza também como prática assistencialista, como decorrência de sua forma reiterativa.

Castel (1998) retrata esse período do social sem estado. É nesta fase que os problemas sociais crescem, mudam de configuração já em um contexto de capitalismo iniciante (a chamada nova questão social), mas ainda não há políticas sociais públicas que amparassem aqueles que estivessem em necessidade. É nesse contexto que iniciam os principiais dilemas da ação assistencial e que tem sido, reiteradamente, objeto de discussões. Entre esses dilemas estão a questão da dependência do assistido, a (in)eficiência das ações assistenciais, os valores e a pessoalização da assistência social, entre outras (ver Himmelfarb, 1991; Tocqueville, 2003; Simmel e Jacobson, 1965).

O debate do assistencialismo ganha proeminência no Brasil no contexto das discussões sobre a Constituição de 1988, quando se inicia o desenho do que seria depois concebido como o Sistema Único de Assistência Social, tendo como parâmetro a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, 1993).

O que ocorre nesse período? A assistência social passa a ser um direito social e passa a fazer parte do tripé da seguridade social, sendo operada profissionalmente. Com isso, as necessidades da população pobre ou em vulnerabilidade deixam de estar à mercê da compaixão alheia, sendo parte de um sistema que garante a todos cidadania, e sendo operada por agentes remunerados e treinados tecnicamente para tal.

Importante ressaltar que o campo assistencial foi historicamente ocupado pelas instituições religiosas que operaram de moto-próprio, a partir de seus recursos ou em convênios operados ad-hoc pelo estado (Mestriner, 2001 e Burity, 2006). Essa política, ou ausência dela, é que deu margem para as críticas às políticas do favor, ao clientelismo e ao apadrinhamento. O trabalho de Raichelis (1998) mostra que o Estado desenvolveu formas de isenção e favorecimento das instituições que operavam no campo assistencial, sem operar, ele mesmo, uma política efetiva nessa área. Este quadro só se alteraria com a implementação do SUAS, em que o estado forma uma rede de assistência social, com os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência da Assistência Social (CREAS), além de a implantação de alguns benefícios sociais como o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Outro aspecto das políticas de assistência social é que, antes desta ser considerada um direito e operada de forma profissionalizada através do Estado, esse foi viabilizada por agentes voluntários e profissionais (de diversas profissões) que atuavam nas instituições assistenciais, com os mais variados repertórios técnicos, motivados para valores cívicos ou religiosos. Mesmo após a implantação do SUAS o campo assistencial ainda é permeado de profissionais de diferentes matizes e com agentes voluntários provenientes de instituições cívicas ou religiosas. É, portanto, a partir deste conjunto de elementos que a crítica ao assistencialismo se forma.

Uma das primeiras concepções sobre o assistencialismo, então, trata de concebê-lo como as práticas que operam para a manutenção da pobreza. O ponto aqui é que assistência social, mesmo quando organizada em políticas públicas, e tendo como finalidade superar a pobreza, termina por mantê-la. Supõe-se que existe uma exploração do trabalho e que a acumulação de riquezas, tal como verificamos após a Revolução Industrial e a instauração de relações capitalistas de produção e trabalho, e se pressupõe que setores da população sejam empobrecidos e se mantenham enquanto tal, mesmo sendo objetos da assistência social. O importante, de acordo com essa visão que está sendo criticada, é que os pobres sejam educados, aceitem as regras instituídas e trabalhem, em geral, nos serviços mais duros e pesados. Neste caso, o importante é exercer uma ação moral junto ao pobre para dociliza-lo, mesmo em um contexto de destituição social.

Sposati et. al. (1985) tenta fazer uma separação entre o que seria propriamente a assistência em contraposição ao assistencialismo. O primeiro traço estabelecido pelos autores é o trabalho voluntário (não profissional), operando “ao nível do senso comum” (SPOSATI et. al., 1985, p. 56) (sem qualificação técnica) exercido na rede filantrópica ou no estado, atuando de forma tutelar nas suas circunstâncias imediatas (paliativo, de caráter superficial e de urgência), reiterando os ciclos de pobreza. Todas essas formas de atuação terminam desconhecendo a assistência como um direito do cidadão. E ainda afirma: “ O assistencialismo (...) é o acesso a um bem através de uma benesse, de doação, isto é, supõe sempre um doador e um receptor. Este é transformado em um dependente, um apadrinhado, um devedor” (SPOSATI et. al., 1985, p. 7).

Alayon (1989) aborda essa concepção afirmando:

O assistencialismo é uma das atividades sociais que historicamente as classes dominantes implementaram para reduzir minimamente a miséria que geral e para perpetuar o sistema de exploração. (...) A sua essência é sempre a mesma (à margem da vontade dos agentes intervenientes): oferecer algum alívio para relativizar e travar o conflito, para garantir a preservação de privilégios em mãos de uns poucos (ALAYON, 1989, p. 48)

Ainda segundo o autor,

... além de não serem erradicadas as causas geradoras da pobreza e suas sequelas, a própria ação paliativa sempre foi muito insuficiente e sequer chegou a equilibrar a quantidade de problemas criados com a atenção que lhes é oferecida. (ALAYON, 1989, p. 48)

Nessa perspectiva, mais do que uma forma de manutenção da pobreza, há uma forma também de dominação de classe. Por outro lado, o autor considera que há também uma forma de luta dos despossuídos “para conseguir encaminhamentos progressivos que deem respostas às suas enormes necessidades” (ALAYON, 1989, p. 49). Nesse embate de interesses, sobressai o fato de os dominantes “oferecerem o mínimo possível para que não verem afetados os seus próprios interesses” (ALAYON, 1989, p. 49).

Uma outra forma de o autor tratar o assistencialismo, ainda nessa mesma perspectiva está em sua afirmativa:

se acreditamos que a simples implementação de algumas atividades de bem-estar social, sem considerar a erradicação das causas profundas do atraso e da dependência, é a ‘fórmula’ e a panaceia para solucionar os problemas sociais, estaremos, sem dúvida, imersos no cretinismo do assistencialismo (ALAYON, 1989, p. 53-4)

Esta forma de compreensão do assistencialismo, embora bastante recorrente, além de utilizar as categorias reducionistas de dominantes e dominados, ainda contém um grave limite: dentro da própria argumentação marxista, base da análise do autor (ainda que ele o faça criticamente), toda a ação assistencial é, por definição uma forma de remediação dos males sociais que não contribui para a superação da pobreza e das contradições mais fundamentais da sociedade capitalista. Assim, no limite, toda a ação assistencial seria assistencialista, mesmo que, como o autor aborda, atenda a necessidades vitais dos despossuídos.

Em 1993, Yasbek publica o livro Classes Subalternas e Assistência Social em que analisa “algumas distorções” nas “ações públicas de enfrentamento da pobreza na sociedade brasileira” (YASBEK, 1993, p. 50). Essas distorções, embora não tenham sido atribuídas ao conceito do assistencialismo, a ele se refere. A síntese que a autora faz sobre os limites acima mencionados recai sobre três pontos: 1. Opera sobre a matriz do favor, do apadrinhamento, do clientelismo e do mando; 2. Está relacionada com o trabalho filantrópico voluntário e solidário, tendo a ação paternalista como uma de suas marcas; 3. O caráter desarticulado das ações, incluindo as ações do estado. Seu argumento principal é que, nesse contexto, as ações assistenciais são formas de dominação de classe, de não politizar o campo da assistência e de ser uma forma de ação compensatória, de alívio, de ajuda, sem alterar as relações de classe da sociedade.

Em 2012, Milanizzi, Nishijima e Sarti ao discutirem a passagem do assistencialismo para o Sistema Único de Assistência Social, os autores utilizam, entre outras referências, a definição de Kahn (1984), para assistencialismo que afirma: o assistencialismo é

uma construção histórica equivocada de assistência social baseada em um viés pejorativo que considerava os beneficiários dos serviços sociais como indivíduos carentes, necessitados e desfavorecidos, ou seja, receptores passivos das benesses ofertadas pelo Estado, uma situação que nega ao indivíduo seu papel de sujeito de direitos, capacitado a gerenciar os próprios problemas (KAHN, 1984, p. 7).

Netto (2013), na mesma linha de Alayon, assim define o assistencialismo:

marcado pelo caráter emergencial, pelos traços manipuladores, pela ideologia da benemerência e do favor, pela incidência do clientelismo (“caciquismo”), pelo pragmático enfrentamento de expressões da “questão social” com a objetiva ignorância do seu sistema de causalidades; (...) uma ação assistencial liberada do imediatismo e do voluntarismo do pronto-socorro social (NETTO, 2013, p, 17-8).

A busca de se romper com o assistencialismo passava por: organizar a assistência social “de forma menos aleatória, mais sistemática, procurando delimitar com nitidez as suas práticas mediante a adoção de instrumentos e modalidades interventivos providos de racionalidade pretendidamente científica” (NETTO, 2013, p. 17). Este último ponto eliminava, ao menos em princípio, que a assistência fosse realizada somente por indivíduos mobilizados generosamente por motivações de natureza ética.

Netto (2013) ainda analisa que com a crise dos Estados de Bem-Estar social e a adoção, por parte dos governos, de políticas neoliberais, há um retorno de práticas assistencialistas, ou seja, formas de intervenção social que operam no limite do pronto-socorro social. É nesse contexto, principalmente no início dos anos 1990, que há um retorno ao fomento do voluntariado e um novo fortalecimento das instituições que operam a partir de tradicionais valores ético-religiosos.

A partir dessas referências, é possível identificar algumas características marcantes do assistencialismo: a primeira, como visto, é a de remediar a pobreza, sem alterar de forma substantiva suas razões de ser, ou seja, seu sistema de causalidades. Essa remediação se faz de forma emergencial e imediatista, como um pronto-socorro social. Além disso, esta investida da ideologia da benemerência, da tutela e do favor, atuando de forma clientelista.

Tudo isso se contrapõe a concepção de que a assistência social é um direito do cidadão e deve constituir, entre outros serviços, como base de uma rede de proteção social. Essa distinção, que comporta um atendimento profissionalizado, é o marco mais significativo que demarca a diferença entre uma ação assistencialista e outra assistencial.

Desse modo, a concepção, apresentada por Alayon (1989), que o assistencialismo remedia a pobreza, mas não afeta suas causalidades fundamentais, termina ficando em segundo plano, quando se observa que, mesmo como um direito, a perspectiva de eliminação da pobreza não se coloca no espectro de, nem de médio, nem de longo prazo no Brasil e que mesmo nos países centrais há um recrudescimento do empobrecimento dos cidadãos.

É possível colocar essas distinções entre assistencialismo e prática assistencial em outros termos. Há, de um lado, a forma como as políticas assistenciais são construídas. Elas podem, independente da intencionalidade de seus agentes, comportar um viés assistencialista, pelo seu caráter tópico, emergencial e paliativo.

Por outro lado, há a forma como os próprios agentes percebem e atribuem sentido à ação. Quando aqueles que são os agentes que viabilizam as ações assistenciais a percebem como um favor, uma dádiva, um ato de compaixão, atuando com base no senso comum, em uma relação de poder, em que há um lado que está em vantagem contra outro em desvantagem, então, estamos também em uma ação assistencialista. Compreender a assistência como um direito social[4] é entender que não é a minha caridade que deve ser mobilizada para o fim proposto, mas que, como cidadão, há um sistema social que deve proteger seus integrantes contra os infortúnios e, para isso, são criadas instituições e, principalmente, um conjunto de políticas tributárias, fiscais, de incentivo ao trabalho, enfim, de modo a contemplar a integração de todos na sociedade. Essa é uma perspectiva de igualdade social e não se baseia em uma hierarquia.

Há um outro elemento muito recorrente nas críticas ao assistencialismo e que está implícito nas análises de Netto e Alayon. Todas as ações pontuais e emergenciais terminam provocando dependência entre os beneficiários dos trabalhos assistenciais. Essa crítica é forjada desde os séculos XVIII - XIX, dentro de uma lógica liberal, quando ainda não havia políticas públicas assistenciais e se estabelecia um vínculo direto (e não intermediado por instituições) entre aquele que ajuda e aquele que é ajudado. Os primeiros tinham receio que a ajuda regular geraria dependência entre os últimos (MARSHALL, 1967 e TOCQUEVILLE, 2003).

Pensadores liberais acreditavam que o trabalho tiraria as pessoas da condição de pobreza e eliminariam as formas de dependência social através da assistência. No entanto, passados mais de dois séculos, embora essa fórmula já seja bem conhecida, ela não foi capaz de eliminar formas de pobreza absoluta e relativa (ROCHA, 2003) que observamos no mundo e no Brasil, em particular. As razões para isso escapam o escopo deste trabalho e uma explicação pormenorizada destas causas nos levaria para caminhos que nos desviariam do nosso objetivo.

Então, a ação assistencialista é aquela que é pontual - emergencial, causa dependência e reproduz a pobreza. Em geral, essas características podem estar separadas ou associadas. O importante, neste caso, é saber se as concepções apresentadas no SAPSE e no OAPSE contém elementos de assistencialismo.

4. ANÁLISE DO SAPSE E DO OAPSE

Antes de iniciar a análise das propostas assistenciais contidas tanto no SAPSE quanto no OAPSE, no que tange ao assistencialismo, é preciso mencionar que, em ambos os documentos, há referências críticas a esse conceito. No SAPSE, há uma referência em que encontramos: “Já não vivemos no tempo em que auxiliar era fazer pelo próximo, criando dependência” (SAPSE, 2013, p. 36). Embora não haja a menção direta ao assistencialismo, esta é uma concepção dele. Desse modo, pode-se pressupor que o conteúdo das propostas apresentadas não reforce este tipo de prática. No OAPSE encontramos: “é uma nova concepção de assistência. Supera a tradicional filantropia, que atravessou os séculos no Brasil, em sua prática assistencialista, e adquire o enfoque da promoção social” (OAPSE, 2018, p. 79)

Observa-se, portanto, que há o reconhecimento por parte dos autores dos documentos de elementos que compõe o assistencialismo. Com isso, há um esforço de se posicionar contrário a esta posição. Nos dois documentos considerados a LOAS é citada, bem como a concepção de assistência social como um direito. Além disso, considera-se que o Espiritismo, mais ainda que a concepção espírita de assistência social, afirma uma concepção cidadã já que:

conforme expressa a questão 880 de O livro dos espíritos (o primeiro de todos os direitos naturais do homem é o de viver), porque o homem é um Espírito que reencarna, e reencarna para progredir. Portanto, tudo o que lhe seja necessário para assegurar a existência corpórea é direito natural. Ainda que seja direito de usufruto, não de propriedade, no sentido restrito do termo (SAPSE, 2013, p. 19).

Tudo isso demonstra um conhecimento mínimo do campo das políticas públicas e sociais, ou seja, os autores dos dois documentos são informados de algumas das características do assistencialismo, como visto. Note, entretanto, que mesmo para afirmar uma ação cidadã, o documento busca um fundamento religioso para fazê-lo. Essa é uma marca destes documentos: subordinar às menções da ação pública às diretivas religiosas. No item a seguir, este ponto será detalhado.

4.1. Concepção Religiosa de Assistência Social

Tanto o SAPSE quanto o OAPSE são documentos redigidos pelos espíritas para o qualificar e orientar o movimento espírita no que tange às ações assistenciais. Portanto, em ambos, há o uso de uma linguagem religiosa em que os conhecimentos da doutrina espírita perpassam todo o documento e, principalmente, os objetivos e propósitos centrais da ação assistencial proposta. Assim, as diretrizes observadas são religiosas, pois que estão fundamentadas nos princípios espíritas.

Esse fundamento religioso confere um caráter confessional às propostas em questão. Isso acarreta uma dificuldade de diálogo entre espíritas e os trabalhadores de outras religiões e, mesmo, entre os agentes públicos que não encontram, nas propostas espíritas, uma intercessão com aquelas realizadas por outras agências públicas e privadas. De acordo com a legislação vigente, as iniciativas privadas, incluindo aí as agências de assistência religiosa, integram, de forma complementar, a rede de serviços socioassistenciais. Entretanto, para que essa integração fosse efetiva, era preciso que a proposta espírita fosse secularizada, adotando parâmetros públicos e profissionalizados. A manutenção de suportes religiosos termina por isolar e criar um limite à plena integração das instituições espíritas, na área assistencial, com outras instituições.

Esse é um primeiro aspecto que vincula a proposta espírita ao assistencialismo: ela opera na base de um ensino religioso que está fora do âmbito profissional. Não parece, entretanto, que com esses documentos, os espíritas queiram instituir um fazer profissional em suas atividades, ao contrário. O objetivo é mesmo trazer fundamentos religiosos (e não discutirei aqui se o faz de forma apropriada) para embasar suas iniciativas assistenciais.

Vejamos alguns exemplos, apenas de forma ilustrativa, deste conteúdo religioso. No SAPSE encontramos: “Trabalho assistencial, sob a ótica espírita, significa envolver fraternalmente o irmão e a irmã em exclusão social, auxiliando-os a compreenderem, à luz da lei de causa e efeito, os motivos dos seus sofrimentos atuais” (SAPSE, 2013, p. 34). No OAPSE temos, como finalidade do trabalho assistencial espírita: “conjugando-se a ajuda material, socorro espiritual e orientação moral-doutrinária, com vistas à sua promoção social e crescimento espiritual” (OAPSE, 2018, p. 17).

O trabalho de Oliveira[5] (2020), ao colocar estes princípios em prática, denomina esses elementos de ação sociorreligiosa. Em sua formulação, o atendimento sociorreligioso se materializa no atendimento fraterno[6] e, somente após a deliberação dos trabalhadores espíritas é que o caso será (ou não) encaminhado para a equipe de assistentes sociais. Portanto, há uma subordinação do trabalho social ao religioso.

Além desses exemplos, os documentos ainda utilizam a concepção de caridade, já que não há referências claras na codificação kardequiana sobre assistência social. No entanto, são inseridos nos documentos analisados alguns outros conceitos do vocabulário espírita, como espírito perfectível e imortal, ao tratar dos indivíduos assistidos ou dos espíritos; e outros nem tanto, como ser interexistente (SAPSE, 2013, p. 33) e constelação familiar (SAPSE, 2013, p. 34).

Por fim, mas não menos importante, os documentos se valem da parábola do bom samaritano como modelo de atuação espírita. De fato, essa passagem da cultura cristã é um símbolo da assistência social para os cristãos em geral, servindo de referência para iniciativas nessa área. No entanto, ao contrário de agir sob o viés do direito, a parábola opera no campo da compaixão e no atendimento imediato da necessidade na forma de um pronto-socorro, conforme visto na crítica ao assistencialismo.

Ambos os documentos acrescentam à concepção de assistência social espírita um conteúdo educacional e promocional, ausentes nos textos codificados por Allan Kardec. Sobre a educação, encontramos: “a assistência e promoção social à luz do Espiritismo apresenta uma peculiaridade que poderíamos chamar de diferencial educativo” (OAPSE, 2018, p. 27); “todas as criaturas são passíveis de educação por trazerem em si o gérmen da divindade, com amplas condições de aprender para progredir” (OAPSE, 2018, p. 28).

Sobre a promoção social:

Promover o ser humano é fazê-lo sentir-se livre e responsável pelo próprio destino, descortinando-lhe as imensas possibilidades adormecidas dentro de si mesmo e que precisam ser trabalhadas por meio do esforço próprio, para que ele adquira tudo o de que necessita não só em termos materiais, mas, principalmente, espirituais. (SAPSE, 2013, p. 33).

Essas passagens estão no mesmo diapasão religioso já comentado. Além disso, o caráter educativo, em verdade, ratifica uma relação de poder em que se utiliza a assistência social como forma de evangelização. Já o discurso da promoção social, não deixa de trazer também um sentido religioso, embora sua origem esteja, como mostram Netto (2013) e Sposati et. al. (1985), no debate sobre a superação do subdesenvolvimento e do desenvolvimentismo.

Dois outros elementos ainda demarcam uma perspectiva assistencialista nos documentos analisados. Em ambos há uma recuperação da história sem que exista uma clara clivagem entre as formas tradicionalistas e caritativas de prática assistencial, derivadas do período pré-capitalista e a necessidade de se operar com novos parâmetros, frente à nova questão social derivada das relações salariais em um ambiente urbano-industrial. Em ambos os documentos há um sequenciamento, no item “Assistência Social através dos Tempos” iniciando nas formas de assistência “antes do Cristo”, “com o Cristo e depois dele” e “com o Espiritismo”, seguido por um outro item, denominado “Assistência Social – da esmola à promoção integral do ser humano”[7]. Ao não operar essa demarcação, o estatuto das intervenções e o próprio objeto das mesmas, terminam sendo unificados, como se a história da assistência fosse um contínuo linear, igualando caridade e assistência, ação voluntária e profissional.

Por fim, os dois documentos apresentam vários instrumentos técnicos, como roteiro para triagem, entrevista, visita com a família, entre outros, para qualificação do voluntariado. Portanto, prepara-se o voluntariado para atuar tecnicamente, com um embasamento religioso, tendo como objetivo principal a evangelização (educação religiosa) dos assistidos[8]. Com isso, criou-se um agente que não é, nem o religioso clássico operando a caridade, nem o profissional atuando na assistência, mas um religioso que se sente habilitado a agir como profissional. É o resultado deste tipo de ação que demarca, novamente, o assistencialismo.

Uma vez identificados esses elementos iniciais, os dados pesquisados em Santa Catarina, verificando se há elementos de assistencialismo em suas práticas.

5. RESULTADOS DAS PESQUISAS EM SANTA CATARINA

Em duas oportunidades e por mecanismo distintos, foram realizadas pesquisas em Santa Catarina sobre o tema da assistência social. A primeira, em 2014 (SIMÕES, 2015), no âmbito do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina. A segunda, organizada pela Federação Espírita Catarinense (FEC), na forma de um Censo Institucional.

A primeira pesquisa foi conduzida pelo professor Pedro Simões e teve seus resultados publicados no livro Dá-me de Comer (2015); na segunda, os dados foram analisados pelo professor Helder Boska Sarmento e pelo professor Pedro Simões, sendo publicados, na forma do capítulo do livro Dimensões Identitárias e Assistenciais do Espiritismo (SARMENTO e SIMÕES, 2020). Neste sentido, alguns dados dessas pesquisas serão aqui analisados, para os fins da explicitação do assistencialismo.

Na pesquisa de 2015 foi possível identificar que os responsáveis pela assistência social nos centros espíritas, somente em 37% dos casos tratava-se de um assistente social, os demais advinham desde outras profissões de nível superior (jornalista, médico, engenheiro, entre outras), profissionais de nível médio, autônomos e do lar. A média de tempo desses trabalhadores em seus centros era de 19 anos, sendo, em média, 13 anos na área assistencial[9]. Esses trabalhadores voluntários, em 40% dos casos, atuavam sem nenhum preparo prévio e os demais tiveram suas formações dentro dos centros espíritas, com exceção de apenas e 2 casos, em 30 entrevistados. Não é de estranhar, então, que a concepção do que seja a assistência social e quem sejam os assistidos, desses dirigentes, é eminentemente religiosa, permeada pela concepção de caridade.

As 72 instituições pesquisadas contavam com 1451 voluntários (88%), atuando na assistência social, contra apenas 200 profissionais (12%). Os trabalhos que contam com mais profissionais são aqueles voltados para crianças (professores), para a área de saúde (enfermeiros), para os serviços administrativos e para a limpeza (serventes). Portanto, os profissionais estão em atendimentos específicos, somente quando se necessita de um trabalho qualificado. O trabalho com a população em geral, com as famílias, com a população em situação de rua, por exemplo, é realizado, sobretudo pelos voluntários espíritas.

O trabalho de 2017 revelou que os trabalhos desenvolvidos pelos centros espíritas catarinenses são, sobretudo, pequenos, envolvendo, em 47,9% dos casos, somente uma ou duas atividades; trabalhos de médio porte (três ou quatro atividades), perfazem 34% e os grandes trabalhos (cinco atividades ou mais) somam 17,8% do total. As atividades foram subdivididas em 5 tipos: 1. atividades assistenciais fins; 2. serviços e cursos; 3. rede e apoio institucional; 4. Evangelização; 5. outras atividades.

Ao observar os tipos de atividades realizadas, duas atividades fins se sobressaem: a distribuição de roupas e alimentos (realizado por 80,8% das instituições) e a confecção e distribuição de enxovais (42,5%). Todas as demais atividades são realizadas, no máximo, por pouco mais de 20% das instituições (ou seja, em apenas uma de cada 5 instituições). No que tange a serviços e cursos, atividades como corte de cabelo, reforço escolar, atendimento médico, entre outros são realizados por 23% dos centros; a atividade de rede só é operada em 11% das instituições; atividades de evangelização, em 15%; e outras, como trabalho de convivência, em 8%.

Chama atenção, não só a predominância dos trabalhos de distribuição de roupas e alimentos, atuando, desse modo, de forma emergencial, mas também a inclusão, por parte dos espíritas, das atividades de evangelização (dos filhos dos assistidos) como próprias à assistência social. Essas duas pontuações revelam, de um lado, o amadorismo das iniciativas e, de outro, seu caráter confessional (já destacado no item anterior).

O que os dados aqui apresentados revelam? O assistencialismo espírita não está apenas nas concepções expressas nos manuais oficiais. Ele está também na forma como os espíritas se organizam para o trabalho assistencial e como ele próprio é executado. A grande capacitação para atuar na área assistencial espírita não é uma formação profissional, mas religiosa; os voluntários são movidos por ideias de compaixão e caridade, sendo os profissionais contratados somente em casos específicos e excepcionais; os trabalhos mais executados são aqueles que não demandam uma qualificação prévia (a não ser a religiosa) e operam na faixa da emergência social; por fim, os trabalhos são majoritariamente pequeno ou médios, sem ações de acesso a rede socioassistencial.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto nesse artigo, os espíritas não abrem mão do seu aporte religioso nas práticas assistenciais. Com isso, não se torna difícil identificar suas ações dentro do âmbito do assistencialismo. Como dito, não há o propósito de se fazer uma apreciação teológica dessas abordagens, mas questioná-las do ponto de vista sociológico-político.

O questionamento proposto no início do artigo é: afinal a quem interessa esse debate? Para os agentes públicos, lidar com agentes que se dispõe a atuar na assistência social com um enfoque claramente religioso, pode ser uma questão do ponto de vista da laicidade do estado e não de liberdade religiosa (TAVARES, 2009). Isto significa que não se trata de questionar a liberdade de crença daqueles que se dispõe ao trabalho assistencial, mas de resguardar a ação pública como aquela em que a ação dos seus agentes ocorre independente das crenças religiosas, tanto de quem opera os serviços públicos quanto daqueles que o recebem. Essa independência é, portanto, a base a laicidade, importante de ser preservada.

Para os agentes privados (religiosos) caso se deseje, de fato, uma integração dos seus trabalhos assistenciais com os serviços públicos, então, suas iniciativas podem ser questionadas. Cabe ressaltar que não são apenas entre as iniciativas dos espíritas que esses dilemas se colocam, mas igualmente com as iniciativas de católicos e evangélicos. A ferir o princípio da laicidade, a ação assistencial termina impondo os princípios religiosos dos agentes a todos aqueles que buscam o atendimento institucional.

Por outro lado, se o propósito dos espíritas é somente de buscar e fundamentar suas ações a partir dos seus textos sagrados (codificação kardequiana), então, qual o sentido de se preocuparem se essas ações caritativas são ou não assistencialistas? Essa preocupação só passa a fazer sentido quando se quer, de fato, ir além da esfera moral e da caridade. Esse dilema é, outrossim, endógeno aos membros deste credo, mas os obriga a ir além dos mesmos.

Os manuais federativos evidenciam, sobretudo, que os espíritas se preocupam com esta interlocução entre ações públicas e privadas. As práticas observadas em Santa Catarina, no entanto, demonstram que há mais práticas autônomas das iniciativas espíritas do que de articulação com o setor público.

Enquanto as referências para as práticas assistenciais espíritas continuarem a ser baseadas no voluntariado, fundamentadas a partir de textos doutrinários; e enquanto as práticas dos trabalhadores espíritas forem baseadas na cesta básica, na distribuição de roupas e enxovais, nas ações pontuais, então, será difícil superar a marca assistencialista de suas ações.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Para ver esse debate no catolicismo, ver Joaquim (2012).
2 Entre a primeira e a segunda pesquisas houve um crescimento de 9 instituições.
3 O debate da literatura das ciências sociais sobre as práticas assistência espíritas foi realizado em Simões (2015).
4 Dentro da lógica liberal, o direito à assistência não é do assistido, mas da população produtiva que, em certa medida, sustenta os pobres (SIMMEL e JACOBSON, 1965, e CASTEL, 1998). Portanto, não é pacífico que aqueles reconhecidos como pobres sejam portadores destes direitos
5 Edvaldo Roberto de Oliveira é assistente social e espírita. Realizou várias assessorias técnicas a instituições assistenciais espíritas ou não. Tem destaque em realizar palestras nos centros espíritas sobre esse tema. Somente em Santa Catarina sua atuação é reconhecida desde 2009, tendo atuado todos os anos subsequentes em eventos na região. Foi um entrevistado de destaque na pesquisa de Giumbelli (1995 e 1996) pela posição que exercia em frente à União das Sociedades Espíritas do Estado do Rio de Janeiro (USEERJ). Seus trabalhos subscrevem tanto as formulações encontradas no SAPSE quanto no livro de Parolin, Pontes e Sarmento (2013) sobre os Centros de Convivência. Em sua dissertação de mestrado, transformada no livro citado, Oliveira descreve e analisa sua assessoria técnica em uma instituição de assistência social espírita localizada na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Em sua análise, seu trabalho foi bem-sucedido ao associar o atendimento sociorreligioso ao atendimento social.
6 O atendimento fraterno é uma entrevista realizada por um trabalhador espírita com todos aqueles que chegam ao atendimento da casa espírita. O fundamento dessa ação é inteiramente religioso.
7 No SAPSE (2013), estes itens estão no capítulo 1 e, no OAPSE (2018), no capítulo 2.
8 A proposta de evangelização através da assistência social tem como ponto de partida o trabalho de Mario da Costa Barbosa, tal como apresentado no livro de Parolin, Pontes e Sarmento (2013).
9 Dados semelhantes foram encontrados no trabalho de Oliveira (2020) na análise dos trabalhadores em uma instituição de assistência social espírita no Rio de Janeiro. Os trabalhos de Giumbelli (1995 e 1996) também fornecem dados específicos para esta mesma cidade.
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