Resumo: Tomás, ao elaborar a sua terceira via, parte da existência dos seres que sofrem a dinâmica da geração e corrupção, isto é, dos seres contingentes; perpassa pelos seres atemporais, ou seja, ilesos à passagem temporal; até obter a asserção da existência do ser necessário por si. Esta última inferência é um dos argumentos usados por Tomás para afirmar que Deus é eterno. Assim, perante tais asserções, primeiramente, será refletida sobre a possibilidade de o tempo ser a base da terceira via tomásica. Em segundo lugar, investigar-se-á sobre uma possível relação da referida prova tomásica com o atributo divino da eternidade.
Palavras-chave: Tomás, Tempo, Terceira Via, Eternidade.
Abstract: Thomas, when elaborating his third way, starts from the existence of beings that suffer from dynamic generation and corruption, that is, of contingent beings; it passes through timeless beings, that is, unharmed by temporal passage; until obtaining the assertion of the existence of the necessary being by itself. This last inference is one of the arguments used by Thomas to assert that God is eternal. Thus, in the face of such assertions, first, it will be reflected on the possibility that time is the basis of the third thomasic way. Secondly, it will be investigated about a possible relationship of the mentioned Thomas test with the divine attribute of eternity.
Keywords: Thomas, Time, Third Way, Eternity.
Resumen: Tomás, al elaborar su terceira vía, parte de la existência de seres que sufren la dinâmica de generación y corrupción, esto es, de seres contingentes; pasa por seres atemporales, o sea, ilesos del paso temporal; hasta obtener la afirmación de la existencia del ser necesario por sí mismo. Esta última inferencia es uno de los argumentos que utiliza Tomás para afirmar que Dios es eterno. Así, ante tales afirmaciones, en primer lugar, se reflexionará sobre la posibilidad de que el tiempo sea la base de la tercera vía de tomás de aquino. En segundo lugar, investigaremos una posible relación entre la prueba de Thomas y el atributo divino de la eternidad.
Palabras clave: Thomas, Tiempo, Tercera vía, Eternidad.
Artigos
A POSSÍVEL BASE DA TERCEIRA VIA TOMÁSICA E A RELAÇÃO DESSA VIA COM A ETERNIDADE DIVINA
The Possibile Basis of the Third Thomasic Way and its Relation to Divine Eternity
La Possible Base de la Tercera Vía de Tomás de Aquino y la Relación de Esta Vía con la Eternidad Divina
Recepción: 05 Noviembre 2021
Aprobación: 18 Julio 2022
A existência divina fora uma temática importante na especulação filosófica da Idade Média. Pertencente a esse momento histórico e filosófico, Tomás de Aquino (1224-1275) construiu seu discurso acerca dela norteado por uma dinâmica ascendente, ou seja, por meio de elementos sensíveis, a posteori e através desses embasou as suas cinco vias, as quais constituem as suas provas da existência de Deus.
Na construção de sua terceira via sobre a existência divina, ao que tudo indica, Tomás principia sua argumentação aludindo ao tempo. Sob essa base, o Aquinate enfatiza, por primeiro, a existência dos seres que estão sujeitados à dinâmica da geração e corrupção, porque podem ser e não ser, e, portanto, são suscetíveis à passagem temporal.
A partir dessa asserção, Tomás prossegue sua elucubração, na referida via, até chegar à inferência de que há o necessário por si; o qual Aquino assevera que é Deus. Tal expressão - necessário por si -, usada pelo Aquinate para se referir a Deus, é, também, utilizada no capítulo 15 da Suma Contra os Gentios I para defender a ideia da eternidade divina. Semelhante constatação pode suscitar a hipótese de uma possível relação da terceira via tomásica com o atributo divino da eternidade.
Em vista dessas inferências, de o tempo ser a base da terceira via tomásica e de uma relação dessa com o atributo da eternidade de Deus, será, primeiramente, refletido sobre o uso do tempo como ponto de partida da terceira via tomásica. Depois, investigar-se-á acerca de uma possível relação da referida via com o atributo da eternidade divina.
O escopo tomásico, de construir uma argumentação acerca de Deus, é norteado pela razão, a qual, segundo a concepção do Aquinate, todos devem conceder o assentimento: “Portanto, é preciso recorrer à razão natural, a que todos são obrigados a dar o assentimento” (AQUINO, 2015a, p. 38).
A prerrogativa de a racionalidade ser inerente a todas as pessoas, na visão tomásica, faz com que a razão seja fundamental para a consecução do argumento sobre Deus. Por isso, Tomás pondera o imprescindível contributo da razão para o homem obter o conhecimento sobre a existência divina:
Há algumas verdades sobre Deus que superam toda a capacidade da razão humana, por exemplo, que Deus é uno e trino. Há outras que a razão natural pode alcançar, como a existência e a unidade de Deus, e outras semelhantes. Estas verdades, os filósofos a provaram por via demonstrativa, guiados pela luz natural da razão (AQUINO, 2015a, p. 38-39).
Conjuntamente com esse pensamento, o Aquinate, ciente da capacidade humana de apreender certo saber acerca de Deus por meio da racionalidade, considera que todo conhecimento começa com a experiência sensível, sobre a qual podem ser desdobrados vários graus de abstração. Aliás, o conhecimento que se pode ter de Deus é alcançado a partir de seus efeitos, uma vez que a substância divina não pode ser conhecida pelo homem:
Com efeito, o intelecto humano não pode, naturalmente, chegar a compreender a substância de Deus, uma vez que o nosso conhecimento intelectual, segundo o modo da vida presente, tem sua origem nos sentidos. E, portanto, o que não cai sob os sentidos não pode ser compreendido pelo intelecto humano, a não ser enquanto adquirido das coisas sensíveis (AQUINO, 2015a, p. 39).
Tomás, cônscio da impossibilidade humana de entender a essência divina por causa da inefável superioridade de Deus e do conhecimento humano ter sua gênese nos sentidos, visa empreender um discurso sobre Deus, norteando-se pelo que pode ser captado pelos sentidos.
Destarte, Aquino, ao elaborar seu discurso acerca das provas da existência de Deus, pelo que é perceptível aos sentidos, inicia sua argumentação pelo movimento: “Pode-se provar a existência de Deus, por cinco vias. A primeira e a mais clara, parte do movimento. Nossos sentidos atestam com toda a certeza, que neste mundo algumas coisas se movem. Ora tudo o que se move é movido por outro” (AQUINO, 2016, p. 166).
Possivelmente, Tomás principia o argumento acerca da existência divina pelo movimento por causa de que a mais simples observação da realidade física constata a mudança. Nesse viés, o Aquinate, seguramente, inferiu que se as coisas se movem é porque algo ensejou tal movimento.
Seguindo, decerto, essa linha, o Aquinate aponta na segunda via a questão da causalidade, pois o que é movido o é por ser efeito do que lhe move, de sua causa:
A segunda via parte da razão de causa eficiente. Encontramos nas realidades sensíveis a existência de uma ordem entre as causas eficientes; mas não se encontra, nem é possível, algo que seja a causa eficiente de si próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio: o que é impossível (AQUINO, 2016, p. 167).
O causador inicial de toda mutação, por ser o primeiro e não haver nenhum ser antes dele, não é movido. Logo, ele é, de forma consequente, a causa de todas as coisas. Assim, o Dominicano obtém duas importantes considerações a respeito da existência divina: motor imóvel e causa incausada.
Assim, é plausível inferir que Tomás, no prosseguimento de sua elucubração no que tange a existência divina, faz uso da quantificação do movimento, ou seja, do tempo[1], o qual é a medição do movimento: “o tempo nada mais é que o número do movimento segundo o antes e o depois” (AQUINO, 2016, p. 236).
Observando a constante mudança existente na realidade física, o Aquinate, ao que tudo indica, embasa sua próxima via, a terceira, no que pode ser considerado o mensurador da mutação, ou seja, no tempo.
Para verificar essa possível estratégia tomásica, de tomar por base o tempo, na consecução da sua prova da existência divina é fundamental apresentar a terceira via:
A terceira via é tomada do possível e do necessário. Ei-la. Encontramos, entre as coisas, as que podem ser ou não ser, uma vez que algumas se encontram que nascem e perecem. Consequentemente, podem ser e não ser. Mas é impossível ser para sempre o que é de tal natureza, pois o que não pode ser não é em algum momento. Se tudo pode não ser, houve um momento em que nada havia. Ora, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria; pois o que não é só passa a ser por intermédio de algo que já é. Por conseguinte, se não houve ente algum, foi impossível que algo começasse a existir; logo, hoje, nada existira: o que é falso. Assim, nem todos os entes são possíveis, mas é preciso que algo seja necessário entre as coisas. Ora, tudo o que é necessário tem, ou não, a causa de sua necessidade de outro. Aqui também não é possível continuar até o infinito na série das coisas necessárias que têm uma causa da própria necessidade, assim como entre as causas eficientes, como se provou. Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra alhures a causa de sua necessidade para os outros: o que todos chamam Deus (AQUINO, 2016, p. 167-168).
É aludido por primeiro aquilo que está à mercê da dinâmica da geração e corrupção, isto é, os entes contingentes, pois esses podem ser e não ser, a sua existência é carregado de imprevisibilidade, própria da temporalidade. Dessa forma, sofrem dos problemas relativos ao tempo. Partindo desse enfoque, fica patente que Tomás partiu da própria experiência inscrita na passagem do tempo para encetar sua argumentação.
O Aquinate usa o tempo na condição de base para sua terceira via pelo fato de que as consequências da passagem temporal e seus corolários são de conhecimento, senão teórico, ao menos experiencial de todas as pessoas. Haja vista que o Dominicano principia sua argumentação pelos efeitos: “Mas, como não conhecemos a essência de Deus, esta proposição não é evidente para nós; precisa ser demonstrada por meio do que é mais conhecido para nós, ainda que por sua própria natureza seja menos conhecido, isto é, pelos efeitos” (AQUINO, 2016, p. 163). Ademais, tendo em vista que o tempo na condição de quantificador, mensurador do movimento, poderia ser um prolongamento lógico da argumentação tomásica acerca da existência divina, a qual, segundo visto, na primeira via, enveredou pelo movimento.
Tomás possivelmente analisou a dinâmica da geração e corrupção inscrita na temporalidade. Assim, prosseguindo sua argumentação, o Dominicano concebe a inviabilidade da existência caso somente houvesse o contingente, ou seja, se todas as coisas sofressem o itinerário da gênese e fenecimento. Isto porque, caso tudo assim fosse, propenso a existir e a não existir, não haveria nenhuma coisa nesse momento. O que é implausível pela simples observação da existência do que há. Logo, não existe tão somente o contingente. Sendo, portanto, imprescindível a existência de algo necessário, ileso à dinâmica da geração e corrupção. Com efeito, é razoável pensar que o contingente proveio de algo que é. Isto porque, as coisas temporais, devido a instabilidade de sua existência, podendo ser e não ser, tiveram um momento que elas não existiam. Ora, o ser não pode provir do não ser. Logo, a existência só pode ter seu início pelo que é, por algo ileso à dinâmica da geração e corrupção; isto é, pelo necessário.
Com tal consideração, Aquino infere que há o necessário. Apesar de obter semelhante indicação, Tomás ainda não aponta que Deus existe, senão a existência do necessário por outro e do necessário por si.
O necessário por outro não poderia se referir a Deus, conforme advoga Kenny,
Tomás de Aquino não considera sua prova da existência de Deus concluída quando ele estabelece que existe um ser necessário. Por outro lado, ele imediatamente passa a considerar ‘seres necessários que têm a causa de sua necessidade fora de si’, uma descrição que não poderia ser aplicada a Deus (KENNY, 1969, p. 48, tradução nossa).[2]
Seguindo o propósito tomásico, de asseverar a existência divina, não seria razoável, conforme indica Kenny, apontar que Deus pode ser considerado como necessário por outro. Pois, se assim fosse as asserções já obtidas sobre Deus (motor imóvel e causa incausada) poderiam ser descartadas. Isto porque, Deus, ao receber sua necessidade de outro, seria movido por esse, o qual seria a sua causa. O que é contraditório e impensável na argumentação do Aquinate.
No número desses seres necessários por outrem, seres atemporais, fazem parte os anjos e os corpos celestes[3]. Por compartilharem semelhante aspecto são mensurados pelo evo, embora sejam distintos entre si: “Deve-se dizer que, embora os corpos celestes e as criaturas espirituais difiram na natureza, eles coincidem em que têm o ser imutável e por isso são medidos pelo evo” (AQUINO, 2016, p. 248).
Conforme a concepção do Aquinate, os anjos e os corpos celestes não estão restringidos e muito menos são impactados pelos efeitos temporais. Pelo contrário, ao compartirem o aspecto de imunidade em relação ao tempo, a sua existência é mensurada pelo evo. E o evo é entendido como distinto em relação ao tempo e à eternidade: “O evo difere do tempo e da eternidade, existindo como o meio entre eles” (AQUINO, 2016, p. 243). Contudo, embora podendo ser considerado intermediário entre o tempo e a eternidade, o evo não se configura como um interstício entre ambos. Pois, encontrasse mais perto do primeiro, do tempo. Isto porque, de algum modo os seres mensurados no evo têm mudança: corpos celestes mudam de local e os anjos, de pensamento (AQUINO, 2016, p. 244).
Desta forma, semelhantes seres necessários por outro não detêm a necessidade de sua existência em si, isto porque depende do necessário por si. Por isto, embora ilesos da passagem temporal, podem ser aniquilados, sem que isso cause algum demérito no necessário por si:
De maneira semelhante, Deus não produz as criaturas por necessidade de natureza, como se a potência de Deus estivesse determinada para ser da criatura, como se provou na outra questão. De modo semelhante, a bondade de Deus também não depende das criaturas, como se elas não pudessem existir, porque as criaturas nada acrescentam à bondade divina. Logo, segue-se que não é impossível que Deus reduza as criaturas ao não ser, já que não é necessário que Ele lhes forneça o ser, a não ser por suposição de sua ordenação e presciência, porque assim ordenou e preconcebeu, para manter a coisa perpetuamente no ser(AQUINO, 2014, p. 133).
A dependência desses seres necessários por outrem, que podem ou não vir a termo por meio da aniquilação, conjuntamente com a exposição da impossibilidade de se remontar ao infinito na série causal do necessário por outro, afirmada por Tomás (AQUINO, 2016, p. 167), traz consigo a imprescindibilidade da existência do necessário por si, ou seja, a assertiva: Deus existe[4]. Pois, Ele enseja a existência a tudo que há e também concede a imortalidade a alguns:
A eternidade, em seu sentido próprio e verdadeiro, só se encontra em Deus. Pois a eternidade corresponde à imutabilidade, como fica evidente pelo que precede. Ora, só Deus é totalmente imutável, como foi demonstrado. No entanto, à medida que dele recebem a imutabilidade, alguns participam assim de sua eternidade. Alguns recebem de Deus a imutabilidade pelo fato de que nunca cessam de existir, e é nesse sentido que se diz da terra no Eclesiastes: ‘A terra permanece para sempre’. Assim também certas coisas na Escritura são ditas eternas em razão de sua prolongada duração, ainda que sejam corruptíveis: como no Salmo se fala de montanhas eternas. E no Deuteronômio se fala mesmo dos frutos das colinas eternas. Outros participam mais amplamente da razão da eternidade, pois estão isentos de qualquer mutabilidade ou quanto ao ser, ou quanto ao agir, como os anjos e os bem-aventurados que fruem do Verbo. Pois, nesta visão do Verbo, não há nos santos pensamentos volúveis, como explica Agostinho. Por conseguinte, dos que veem a Deus, se diz, no Evangelho, que têm a vida eterna, de acordo com estas palavras de João: ‘A vida eterna é que eles te conheçam etc.’ (AQUINO, 2016, p. 239).
A existência de tudo que há advém de Deus. Aliás, a manutenção da vida de todas as coisas implica na permanência da vida divina, ou seja, na eternidade de Deus. Deste modo, não há início e tampouco término na existência divina, a qual, portanto, deveras, prosseguirá.
Por esse prisma, é notório que Deus não se mensura pelo evo e tampouco pelo tempo, senão pode ser medido pela eternidade:
Eis o que é preciso dizer: como a eternidade é a medida do ser permanentemente, na medida em que uma coisa se distancia da permanência no ser, nessa mesma medida se distancia da eternidade. Ora, há coisas de que tal modo se afastam da permanência do ser, que seu próprio ser é sujeito de mudança, ou mesmo consiste em mudança; e estas são medidas pelo tempo. É o caso de todo movimento, e também do ser das coisas corruptíveis. Outras se afastam menos da permanência do ser, pois seu próprio ser não consiste numa mudança e não é sujeito de mudança, mas têm anexa uma mudança, ou em ato, ou em potência. Isso fica claro nos corpos celestes, cujo ser substancial é imutável, mas conciliam o ser imutável com a mudança local. Do mesmo modo os anjos conciliam o ser imutável com a mutabilidade de escolha, pelo menos em razão de sua natureza, e com a mutabilidade de pensamentos e de suas afeições e, a seu modo, de lugares. Eis por que são medidos pelo evo, intermediário entre a eternidade e o tempo. Quanto ao ser que é medido pela eternidade, não é mutável, nem está associado à mutabilidade. – Concluindo: o tempo tem antes e depois; o evo não tem em si antes e depois, mas podem acompanhá-lo; enfim, a eternidade não tem antes nem depois, e não é compatível com eles (AQUINO, 2016, p. 244).
Destarte, nessa trilha argumentativa tomásica é possível inferir que a terceira via sobre a existência divina parte do temporal, perpassa pelo imaterial, a fim de contemplar o eterno, ou seja, das criaturas temporais, passando pelos entes imateriais, até Deus.
Deste modo, embora não textualmente, senão reflexivamente, o Dominicano aborda o tempo, o evo e a eternidade na referida prova da existência de Deus. Haja vista que, primeiramente, Aquino, na terceira via, inicia sua investigação pelo que é temporal. Após isso, ao refletir sobre o necessário por outro, Tomás perpassa pelos seres que são mensurados pelo evo. Por fim, visa contemplar a eternidade, culminando sua argumentação no necessário por si.
Tal expressão, por meio da qual Tomás refere-se a Deus, embora esteja presente na argumentação tomásica sobre a existência divina na Suma de Teologia I, não se encontra, segundo Dubra, presente no arrazoado acerca da existência divina que Tomás tece na Suma Contra os Gentios I, “mas, apenas, mais adiante, incluído num par de argumentações que demonstram que Deus é eterno e que é causa do ser de todas as coisas” (DUBRA Apud STORK; MOUTINHO, 2010, p. 81).
Assim, conforme aludido, a inferência de Deus na condição do ser necessário por si constitui um dos seus argumentos para defender, na Suma Contra os Gentios I, o asserto de que Deus é eterno.
Eis o trecho em questão:
Ademais, vemos no mundo algumas coisas que podem existir e não existir; a saber, as que se geram e as que se corrompem. Ora, tudo o que existe como possível tem uma causa; porque como se refere igualmente a uma e outra coisa, isto é, a existir e a não existir, é necessário que, se o existir lhe foi dado como próprio, que isso seja por uma causa. Ora, nas causas não se pode proceder ao infinito, como foi provado por Aristóteles. Logo, deve-se afirmar algo que necessariamente exista. Na verdade, tudo o que é necessário ou tem a causa de sua necessidade de outro, ou não; e assim é necessário por si mesmo. Ora, não se pode proceder ao infinito naquilo que é necessário e que tem a causa de sua necessidade de outro. Logo, é necessário afirmar um primeiro necessário. E este é Deus; uma vez que é a causa primeira, como foi demonstrado. Deus é, portanto, eterno, uma vez que todo necessário por si é eterno (AQUINO, 2015a, p. 72).
Tal argumento usado pelo Dominicano para advogar a eternidade divina, conforme se nota, já apresenta os passos presentes na terceira via tomásica: da existência dos seres temporais, os quais estão à mercê da dinâmica geração e corrupção; e dos seres necessários por outro, os quais, mesmo ilesos ao tempo, são suscetíveis ao aniquilamento; e do ser necessário por si. Este, segundo o asserto tomásico, é Deus. O Qual é eterno, porque “todo necessário por si é eterno” (AQUINO, 2015a, p. 72).
Semelhante inferência do Aquinate, aliada com a possibilidade de defender a ideia do tempo como base para a argumentação da terceira tomásica, pode levar à suposição de uma possível relação da terceira via com o atributo divino da eternidade.
A durabilidade da existência dos seres pode ser inferida como um ponto importante da terceira via. Nesse sentido, poder-se-ia notar uma possível relação da referida via de Tomás com o atributo da eternidade divina, sobretudo a tese instaurada por Aquino na Suma de Teologia I, mais precisamente na questão 10 A eternidade de Deus; na qual Tomás aborda literalmente, não tão somente a eternidade, mas também o tempo e o evo.
Seguindo essa linha de raciocínio, é razoável supor uma ligação da terceira via tomásica com o atributo da eternidade divina. Não obstante, um dos comentadores tomistas, Brian Davies, tem um posicionamento através do qual postula não haver qualquer conexão entre as vias e os atributos divinos:
Apesar de Tomás de Aquino conceber que as cinco vias são os argumentos que atestam a existência de Deus, elas não pretendem ser uma defesa exaustiva da crença na existência divina. Pois, contrariamente ao que geralmente se supõe, elas são apenas um primeiro estágio. Mais precisamente, elas não pretendem mostrar que Deus existe com todos os seus atributos tradicionalmente atribuídos a ele. Tudo o que as cinco vias argumentam é que há (1) 'alguma primeira causa de mudança que não é mudada por nada’, (2) ‘alguma primeira causa’, como também, (3) ‘algo que deve ser independentemente de qualquer coisa além de si mesmo [e é] a causa de outras coisas’; além do que deve existir (4) ‘algo que causa em todas as outras coisas o ser, ou seja, dá ensejo a tudo que há, levando-as à perfeição’; devendo haver, portanto, (5) ‘algo com entendimento, por meio do qual todas as coisas na natureza são direcionadas para o seu escopo’. Se entendermos as cinco vias nesse contexto, poderemos descobrir que Tomás de Aquino as constrói e as desenvolve a fim de mostrar o que pode ser verdadeiro a respeito de Deus, se à luz de questões e considerações posteriores. Seu objetivo é prosseguir o jogo e não terminá-lo nesse primeiro momento (DAVIES, 1993, p. 26, tradução nossa).[5]
Trilhando a indicação de Davies, o Aquinate, ao guiar-se pelos elementos sensíveis e a posteori por meio da razão, não quis fazer qualquer referência à crença cristã para afirmar a existência divina. Tomás toma semelhante norte para mostrar a todos a possibilidade de inferir o asserto da existência divina. Ademais, por ser ainda, segundo Davies, um estágio inicial no discurso tomásico sobre Deus, o Aquinate não teria feito nenhuma conexão das vias com os atributos divinos.
Por outro lado, outro comentador tomista, Paul O’ Grady, considera, mormente na terceira via, uma conexão entre a prova da existência divina e o atributo da eternidade de Deus:
O argumento mais próximo da terceira via encontra-se no SCG 1. 15, porém o objetivo desse argumento é mostrar que Deus é eterno. A relevância disso parece ser que a interpretação da terceira via, em meio à incompatibilidade da contingência com a eternidade, é apoiada pela metodologia da SCG, oferecendo uma prova sobre qual é o raciocínio que pode ser subentendido, o entimema, que está subjacente na apresentação da terceira via (GRADY, 2014, p. 110, tradução nossa).[6]
Já na visão de O’ Grady, haveria uma relação da terceira via tomásica com o atributo divino da eternidade. Segundo o apontamento do referido comentador, o Aquinate teria se servido de uma argumentação semelhante tanto na terceira via quanto no atributo da eternidade divina.
Fernand Van Steenberghen, outro comentador tomista, tem uma consideração semelhante à de O’ Grady: “No capítulo 15 da Suma Contra os Gentios I, S. Tomás desenvolve várias provas da eternidade divina. Uma delas parte da existência de seres contingentes e mostra que esse fato implica a existência de um ser necessário por si mesmo e eterno” (STEENBERGHEN, 1980, p. 126, tradução nossa).[7]
A consideração de Steenberghen, indo ao encontro da tese de O’ Grady, reafirma a existência de um argumento que se faz presente na referida via tomásica e no atributo da eternidade divina: Deus não recebe a causa de sua necessidade, pelo contrário, Ele é quem concede a necessidade aos necessários por outro; logo, ao não ter lhe sido concedida a sua necessidade, mas a possuindo por si, Deus é o necessário que detém a necessidade e que, por isso, enseja e mantém a existência de todos os seres; portanto, ao dar e sustentar a vida de tudo, Deus é eterno.
Perante essas duas posições pode-se questionar se de fato há, possivelmente, uma imbricada relação entre a terceira via tomásica e o atributo da eternidade divina?
Seguindo a pista de Erwin Panofsky (1983, p. 25), de que a Suma de Teologia é como uma catedral, é possível inferir que tal obra pode ser considerada como um edifício especulativo, em que uma parte suste a outra e, de forma consequente, a parte anterior alicerça a posterior. Haja vista que o Aquinate constrói seu discurso acerca de Deus em dois momentos importantes: primeiro, mostra que Deus existe; segundo, elabora um discurso sobre o que Deus é, apresentando seus atributos.
Sob esse viés, não haveria dissociação entre essas duas partes, da argumentação da existência divina e dos atributos divinos: “entre as duas [etapas] não há [propriamente] separação, visto que uma fundamenta a outra, e como que a principia” (PENIDO, 1946, p. 93).
Assim, o primeiro momento alicerça o segundo, ao mesmo tempo em que dispõe a esse o subsídio especulativo, no caso da terceira via e do atributo da eternidade divina: o tempo, o evo e a eternidade.
Aliás, para o Aquinate, primeiramente, deve-se afirmar a existência de algo:
O Apóstolo diz na Carta aos Romanos: ‘As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência, por suas obras’. Mas isso não aconteceria se, por suas obras, não se pudesse demonstrar a existência de Deus, pois o que primeiro se deve conhecer de algo é se ele existe (AQUINO, 2016, p. 164).
Pelo excerto tomásico, em primeiro lugar, é fundamental, para se elaborar uma abordagem sobre algo, apresentar argumentos que afirmem a existência do que se está abordando. Contudo, não se restringe a essa asserção, pois, outrossim, faz-se importante tecer um discurso sobre alguma característica desse algo: “Conhecida a existência de algo, falta investigar como é, a fim de saber o que ele é” (aquino, 2016, p. 169).
Após estabelecer a existência do que se está tecendo um arrazoado, faz-se oportuno verificar quais seriam as suas características, porque para o homem é essencial que se discorra sobre o que lhe é manifesto acerca desse algo investigado.
Com efeito, na Suma de Teologia I, num trecho já citado, o Aquinate menciona novamente dois elementos presentes na terceira via, a saber: o necessário por si e os seres necessários por outro. Tomás de Aquino faz tal alusão quando responde à indagação sobre se o Ser eterno é próprio de Deus (a qual se encontra no artigo 3 da questão X sobre a eternidade de Deus):
A eternidade, em seu sentido próprio e verdadeiro, só se encontra em Deus. Pois a eternidade corresponde à imutabilidade, como fica evidente pelo que precede. Ora, só Deus é totalmente imutável, como foi demonstrado. No entanto, à medida que dele recebem a imutabilidade, alguns participam, assim, de sua eternidade. Alguns recebem de Deus a imutabilidade pelo fato de que nunca cessam de existir (AQUINO, 2016, p. 239).
Tendo reafirmado que Deus é eterno, por não provir de outrem, ou seja, de que é necessário por si; o Aquinate assegura que algumas coisas geradas por Ele, além de receber a existência, recebem, também, a impassibilidade. Por não estarem sujeitas à corruptibilidade, são seres necessários que têm a causa de sua necessidade de outrem, de Deus.
Conquanto, a solução tomásica da questão - Ser eterno é próprio de Deus? - não faça referência direta aos entes contingentes, os quais sofrem invariavelmente a contínua dinâmica da geração e corrupção, é possível inferir que, embora ausentes textualmente, sua presença é reflexivamente percebida. Isto porque, quando Tomás de Aquino afirma que algumas coisas não são mutáveis, faz pensar que outras são.
Assim, todas as coisas discriminadas na terceira via são revisitadas na resposta do Aquinate, só que de uma forma inversa. Se na terceira via os entes contingentes eram os primeiros, seguido dos seres necessários que possuem a causa de sua necessidade de outro, até chegar ao necessário por si; agora este é o primeiro, depois os seres necessários que têm a causa de sua necessidade de outrem e por fim os entes contingentes.
Nesse viés, a ideia do ser necessário por si, Deus, de forma propedêutica e satisfatória, nortearia a construção e fundamentação do argumento da eternidade divina.
Nessa esteira, pode-se conceber que
Deus é sem partes, sem potencialidade, é absolutamente necessário, Ele é a sua própria existência, não provindo de outrem. Consequentemente, Ele é incausado. Por conseguinte, Ele não só existe, mas sempre existiu. Com efeito, Ele é isento de transitoriedade. Com efeito, o que é passível de mudança possui partes, as quais podem ser separadas – fundamentalmente a sua essência pode não conseguir se unir à sua existência ‑, fazendo com que estas possam existir ou não. Sendo assim, contingentes, não necessárias. Pelo fato de Deus não ter partes, ser ato puro, Ele é essencialmente necessário; Ele é a sua própria existência (não podendo em hipótese alguma perder a sua existência). Deveras, o que não surgiu de outrem, outrossim, não está à mercê da finitude e tampouco pode desaparecer, é eterno. Portanto, Deus é eterno (FESER, 2017, p. 200, tradução nossa).[8]
Conforme a ponderação de Feser, o ser originador da existência, concedendo-a para tudo que há, exceto Ele Mesmo, não pode ser aniquilado e tampouco fenecer. Não tendo sido originado de outro e nem podendo ter fim, dá e sustém a existência. Ora, Ele é sua existência e essência, igualmente simples, sem partes e sem transitoriedade. Logo, Deus é eterno.
De posse das argumentações apresentadas por Tomás de Aquino acerca da prova da existência divina inscrita na terceira via e do atributo da eternidade divina, e com base no conflito dos posicionamentos de Davies e de O’ Grady (similar à ideia de Steenberghen), é possível atinar que a terceira via pode ser considerada como o alicerce do atributo divino da eternidade.
O tempo pode ser considerado como a base usada pelo Aquinate na consecução de sua terceira via. Ao fazê-lo, decerto, Tomás pode ter lançado o fundamento para o atributo divino da eternidade. Isto porque, o discurso acerca de que Deus existe, inscrito na referida prova tomásica, enceta elementos que mais proficuamente serão investigados no atributo da eternidade de Deus.
Assim, Tomás, arvorando-se numa trilha ascendente, do sensível ao inteligível, parte, ao que tudo indica, da incessante dinâmica temporal, perpassando pelo evo, a fim de mirar o eterno.