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A RESERVA POLÍTICO-ESCATOLÓGICA DA IGREJA E A CRISE SOCIAL
The Political-Eschatological Reserve of the Church and the Social Crisis
La Reserva Político-Escatológica de la Iglesia y la Crisis Social
Interações, vol. 17, núm. 2, pp. 430-442, 2022
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Artigos



Recepción: 08 Octubre 2021

Aprobación: 12 Mayo 2022

Resumo: O artigo trata de acentuar o aspecto político da igreja como contribuição ao atual contexto político-social. Com o retorno da “teologia política” como aporte para se pensar os aspectos teológicos da política no espaço público, torna-se propício revisitar a igreja enquanto manifestação política com incidência social indelével, não obstante todos os problemas que acompanham a Igreja como instituição. Assim, a partir das contribuições de Jürgen Moltmann e Giorgio Agamben, pretendemos partir de dois pressupostos: (i) A igreja está dentro da perspectiva religiosa, ou seja, a igreja é parte de uma religião, a cristã, e, nesse sentido, está envolvida com a dinâmica político-social; (ii) Dentro desse aspecto, a igreja carrega uma espécie de reserva político-escatológica que está na sua gênese, sendo, assim, possível incidir socialmente diante da crise social que atravessamos com suas categorias messiânicas. Desse modo, esperamos dar maior atenção ao aspecto escatológico da igreja e sua relação não futurista com a sociedade.

Palavras-chave: Teologia Política, Escatologia, Messianismo, Crise Social, Igreja.

Abstract: The article tries to emphasize the political aspect of the church as a contribution to the current social-political context. With the return of "political theology" as a contribution to think about the theological aspects of politics in the public space, it becomes appropriate to revisit the church as a political manifestation with indelible social impact, despite all the problems that accompany the church as an institution. Thus, based on the contributions of Jürgen Moltmann and Giorgio Agamben, we intend to start from two assumptions: (i) The church is within the religious perspective, that is, the church is part of a religion, the Christian one, and, in this sense, is involved with the social-political dynamics; (ii) Within this aspect, the church carries a kind of political-eschatological reserve that is in its genesis, being, thus, possible to socially influence in the face of the social crisis we are going through with its messianic categories. In this way, we hope to give more attention to the eschatological aspect of the church and its non-futuristic relationship with society.

Keywords: Political Theology, Eschatology, Messianism, Social Crisis, Church.

Resumen: El artículo trata de acentuar el aspecto político de la iglesia como contribución al contexto sociopolítico actual. Con el retorno de la "teología política" como contribución a la reflexión sobre los aspectos teológicos de la política en el espacio público, se hace propicio revisar la iglesia como una manifestación política con incidencia social indeleble, a pesar de todos los problemas que acompañan a la iglesia como institución. Así, basándonos en las aportaciones de Jürgen Moltmann y Giorgio Agamben, pretendemos partir de dos presupuestos: (i) la iglesia está dentro de la perspectiva religiosa, es decir, la iglesia forma parte de una religión, la cristiana, y, en este sentido, está implicada con la dinámica socio-política; (ii) dentro de este aspecto, la iglesia lleva una especie de reserva político-escatológica que está en su génesis, siendo, así, posible influir socialmente frente a la crisis social que estamos atravesando con sus categorías mesiánicas. De este modo, esperamos prestar más atención al aspecto escatológico de la iglesia y a su relación no futurista con la sociedad

Palabras clave: Teología política, Escatología, El mesianismo, Crisis social, La Iglesia.

1 INTRODUÇÃO

Diante da crise do sentido do Estado e da própria democracia,[1] a procura por meios para se superar a crise encontrou no tema da Terceira Via um caminho viável. No Brasil, em ano eleitoral, a chamada Terceira Via busca um nome para romper a polarização que o País vive desde 2018.

Antes desse nome, Terceira Via ser alvo nos telejornais do país na corrida presidencial, autores como Anthony Giddens e Edgar Morin, por exemplo, enxergaram saídas para a crise social, política, econômica e planetária a partir da perspectiva política. A essa perspectiva chamavam “Terceira Via” ou apenas “Via”. Giddens (1999, p. 7), quando pensa na Terceira Via como uma saída para os dilemas e impasses pelo qual o mundo passa, entende que “a social-democracia pode não só sobreviver, mas também prosperar, tanto num nível ideológico quanto num nível prático”. Isso só será possível, para este autor, caso os social-democratas façam um exercício de revisitar seus pressupostos com maior meticulosidade e acuidade diante dos novos cenários que o mundo passa. Edgar Morin (2013, p. 53-54), aposta na política para que as coisas possam melhorar, ou seja, uma vez a política sendo uma arte e tendo no seu horizonte utópico o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade, a política teria condições de “abrir a Via que salvaria a humanidade do desastre”. Para que isso ocorra, a proposta de Morin (2013, p. 56) é colocar em processo uma regeneração do pensamento político, uma reforma do político, onde pudesse haver uma refundação política em chave trinitária do humano, indivíduo-sociedade-espécie, e dessa maneira preparar o indivíduo para “pensar a era planetária e preparar a Via da salvação comum”. Ambos, Giddens e Morin, partem da premissa de que o sistema econômico vigente tem papel preponderante na crise e atua para aprofundá-la ainda mais. A “fé no liberalismo” está esgotada. A partir disso, Giddens (1999, p. 75) vê na social-democracia a política da terceira via, em que se exigisse “o envolvimento da comunidade social mais ampla”. É premente “um novo relacionamento entre indivíduo e a comunidade, uma redefinição de direitos e obrigações” (GIDDENS, 1999, p. 75). Para ele, portanto, o caminho passa por uma educação política e esta poderia minorar os impactos da crise a qual estamos imersos. Já Morin (2013, p. 141), apostando na política, entende que a sua missão é se tornar mais humana e assim “visualizar as vias reformadoras que permitiriam a redução das piores desigualdades”. A política, nesse sentido, estaria à serviço da relação pessoas-economia, podendo, nesse sentido, diminuir as discrepâncias que há entre os mais vulneráveis e o mercado. Dessa maneira, a política é a via que poderia buscar meios, uma vez refundada, para dirimir o avanço da desigualdade social. Uma dessas refundações na política estaria na identificação de aspectos comuns a todos, como o destino comum de todos os habitantes do planeta (MORIN, 2013, p. 57).

As reflexões de Giddens e Morin tem seus méritos pelo que propõe diante da crise que o Ocidente passa e viu, depois da crise financeira de 2008, aprofundar ainda mais o fosso entre pobres e ricos. A proposta de se ter uma Terceira Via funciona como uma espécie de válvula de escape. É uma maneira de revisitar os fundamentos da sociedade ocidental e suas conquistas políticas e econômicas e fazer uma nova proposta de contrato social entre os indivíduos. No caso de Morin, por estarmos todos no mesmo planeta, deveríamos compartilhar dos mesmos desafios que se impõe a todos: a sobrevivência do planeta e dos indivíduos. A política seria a saída e funcionaria como uma catalizadora de perspectivas. Já com Giddens, tanto o socialismo quanto o liberalismo não funcionam diante da crise sistêmica que nos encontramos. Portanto, é preciso um caminho que seja viável e se coloque no meio termo. A social-democracia poderia cumprir esse papel por ser uma concepção política aberta aos desafios que o mundo apresenta em termos de convívio e sistema econômico.

Diante dessas duas percepções, perguntamos: e quando a política já foi capturada, há muito tempo, pelo poder econômico, seria possível ter na política uma válvula de escape como saída para a crise que nos encontramos? Quando a democracia é a chave para a política, é implícito a busca por superar as diferenças socioeconômicas de uma sociedade. A democracia como política, pressupõe igualdade de direitos e a prática da justiça. O demo está colocado como bem maior e a cracia é feita para todos, tendo como meta o bem comum. Ocorre que a democracia foi capturada pelo poder econômico e esta, a democracia, está à serviço do mercado financeiro que mantém as suas próprias regras, são sendo nenhum pouco equitativas. Quem assim conclui é a cientista política Wendy Brown (2019, p. 70) quando faz uma análise do poder econômico a partir do neoliberalismo e constata que o neoliberalismo “visa limitar e conter o político, apartando-o da soberania, eliminando sua forma democrática e definhando suas energias democráticas”. O resultado desse processo foi visível na crise financeira de 2008. Mais uma vez se demonstrou que há um poder mundial que controla nações que ninguém elegeu, mas detém o monopólio global da economia e os governos estão em situação de subserviência (DOWBOR, 2018).

Para alguns poderá parecer uma intromissão o que iremos compartilhar nesse texto a partir desse quadro de crise. Adiantamos que não se trata de uma tentativa de encontrar a solução para problemas que são sistêmicos. Também não tentaremos propor uma Terceira Via a partir da eclesiologia. Antes, trata-se de acentuar o aspecto político da igreja como contribuição ao atual contexto político-social.[2]

Com o retorno da teologia política como aporte para se pensar os aspectos teológicos da política no espaço público, torna-se propício revisitar a igreja enquanto manifestação política com incidência social indelével, não obstante todos os problemas que acompanham a Igreja como instituição.

Assim, pretendemos partir de dois pressupostos nesse texto:

(i) A igreja está dentro da perspectiva religiosa, ou seja, a igreja é parte de uma religião, a cristã, e, nesse sentido, está envolvida com a dinâmica político-social;

(ii) Dentro desse aspecto, a igreja carrega uma espécie de reserva político-escatológica que está na sua gênese, sendo, assim, possível incidir socialmente diante da crise social que atravessamos com suas categorias messiânicas.

2 O LUGAR DA IGREJA NO DEBATE POLÍTICO

Quando se pensa em discutir o lugar da igreja na atual conjuntura social, o tema da secularização é indispensável. Ainda há espaço para a igreja nesse cenário de privatização da religião?

Vejamos.

Sabemos que o conceito de secularização carrega no seu histórico polêmicas e uma carga semântica polissêmica. Ainda assim, não é possível abrir mão desse conceito para se pensar a relação que se estabelece entre a religião e a modernidade. Nesse sentido, ainda que o conceito tenha seus problemas e tenha sido revisto em seus pressupostos recentemente, persiste como um elemento importante para se apreender as consequências da modernidade para a religião.[3]

Com o surgimento da sociedade burguesa e as relações baseadas nas necessidades, o conceito de religião foi emancipado. Outrora, era dada a igreja certas tarefas/funções na sociedade e com o advento do modernismo isso foi suplantado. Vista como coração da sociedade, sustentadora e unificadora de interesses político-sociais no Império Romano, a igreja era tida como culto público, detentora da fé, da moral e da adoração a Deus. Com a chegada da modernidade, ela perde seu ideal moral e unificador e passa a ser um culto privado. A religião torna-se religiosidade individual. Dando ao indivíduo esta liberdade, a religião torna-se intimista e particularizada. Tem, a partir de agora, uma função consoladora diante da angústia existencial; é sua função dar às pessoas o sentido espiritual. Mas essa função marginalizou a igreja na sociedade secularizada e as novas funções eclesiológicas são consequências de mudanças econômicas e político-filosóficas decorrentes do consumismo e das relações pessoais baseada nas necessidades.

A partir disso não é surpresa afirmar que, “desde que a igreja se limitou ao perdão dos pecados morais e espirituais, a esperança pela justiça deixou a igreja e foi procurar abrigo nas revoluções por liberdade” (MOLTMANN, 1972, p. 58). Quando a igreja aburguesada encobriu a sua vocação, as forças políticas e econômicas secularizaram o legado escatológico da igreja e capturaram a sua mensagem, transformando-a em outra religião, a do progresso econômico ou social. Foi quando “a igreja se limitou à felicidade da alma no céu além, e se tornou doceta, é que a esperança concreta de salvação se retirou dela indo se abrigar nas utopias das mudanças sociais” (MOLTMANN, 1972, p. 57).

Quando a teologia política foi revisitada pela filosofia política (SCATTOLA, 2009), o cristianismo passou a ocupar um espaço onde havia ausência de utopia social. Não por acaso que o apóstolo Paulo passou a ser um personagem relido devido a sua perspectiva político-escatológica diante do Império Romano e seu horizonte utópico (AGAMBEN, 2016a; HINKELAMMERT, 2012; BADIOU, 2009; DUSSEL, 2016; TAUBES, 2007; ŽIŽEK, 2016). A releitura de Paulo pela ótica da filosofia política indica a ausência de categorias contemporâneas para lidar com problemas antigos.

Com a teologia política, a secularização passou por uma revisão metodológica. Assim, foi possível constatar que “durante a modernidade o pensamento liberal tentou criar um espaço social ‘livre de religião’, transformando-a em uma questão privada e tornando a esfera pública impermeável à sua influência” (SILVA, 2019, p. 25). Mas o que parecia ser um consenso, na verdade se demonstrou um engodo. Antes, ficou muito claro que “as próprias noções jurídicas que sustentavam essa esfera pública eram produto de um processo gradual de secularização de noções teológicas” (SILVA, 2019, p. 25). Não obstante as polêmicas suscitadas com as teses de Carl Schmitt (2005, p. 57), não foi mais possível ignorar o alcance da teologia na formatação política, qual seja, de que “todos os conceitos sobressalentes da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados”. Comentando essa máxima schmittiana, o filósofo Ramon Mapa da Silva ressalta que quem mais foi beneficiado com essa tese ao longo dos anos foi o liberalismo. Segundo o autor, “a gaiola com que o liberalismo pretendia conter a religião, separando-a das questões de Estado e governança, permitiu apenas que o capitalismo parasitasse essas formas religiosas marginalizadas pelo liberalismo” (SILVA, 2019, p. 25). Com Schmitt, foi possível “conhecer a origem teológica dos conceitos da moderna teoria do Estado” (SILVA, 2019, p. 51). Dessa forma, não se pode ignorar as assinaturas teológicas que a secularização carrega, dito de outro modo, “o conceito secularizado exibe como assinatura seu pertencimento passado à esfera teológica” (AGAMBEN, 2011, p. 16).

A partir desse contexto de teologia secularizada e secularização da teologia, não seria improcedente afirmar que pertence à igreja uma reserva política que permanece atrelada a sua concepção primária e, até mesmo, a igreja e suas estruturas institucionais não detém o seu monopólio, porque está para além dela enquanto constituição política. Essa reserva política que a igreja guarda não está coadunada com partido ou ideologia política, mas também não tem a pretensão de impor um modelo político preconcebido como se o mesmo fosse a solução da crise, antes a igreja participa da crise uma vez estando inserida na dinâmica social e, até mesmo, como parte inerente da crise que ela, a igreja, também contribuiu em algum grau (FLICKINGER, 2016, p. 40). Mas como parte da crise, a igreja também pode contribuir para pensar em soluções no seu enfrentamento. E antes que surja a crítica de que haveria uma espécie de clerização da política, esse risco não seria possível no atual contexto laico. Antes, a reivindicação da igreja como participante no processo de apontar soluções para a crise que todos estamos imersos, se dá pelo fato de que há uma compreensão contextualizada de que a religião, uma vez a igreja sendo parte de uma, tem “relevância social e pública nos debates éticos e do bem comum [...]. Trata-se simplesmente de uma nova arquitetura do espaço público em uma situação consagrada de autonomia democrática” (MARDONES, 2006, p. 220). O papel da igreja nesse processo não está na sua pretensa autoridade espiritual, mas sim na sua constituição política comunitária. Além disso, o que alimenta a constituição comunitária está para além da conjuntura política, qual seja, a percepção do transcendente, e essa condição alimenta as relações humanas com o sagrado. Portanto, a igreja carrega uma reserva política que tem por definição a heteronomia e assim joga um papel político importante, porque oferece laços de união entre as pessoas que está para além das divisões políticas ou separações ideológicas (MARDONES, 2006, p. 226). Isso significa um certo purismo político? De maneira nenhuma, antes significa que a igreja tem um elemento de agregação que ela mesma, a igreja, por diversos momentos, negociou com poderes estabelecidos quando em busca de certos privilégios, seja na sua face católica como também protestante. Ainda assim, a reserva que a igreja carrega consigo não está condicionada a face institucional da igreja, porque a igreja é um fruto dessa reserva e não a sua gênese.

3 A IGREJA MESSIÂNICA: RESERVA POLÍTICO-ESCATOLÓGICA

A igreja possui uma dimensão política, sendo ela um fator político-social que tem uma mensagem política para proclamar e o ajuntamento em comunidade é, certa maneira, uma afirmação política. Ainda que essa latência política tenha sido obnubilada em curtos e longos períodos, não foi possível anular essa potência por meio da institucionalidade eclesial, como também por meio de doutrinas, e, em diversas vezes, em conluio com o poder político-econômico. A igreja é a comunidade messiânica, proclama a mensagem da cruz e atua no tempo entre a memória e a esperança e aqui reside a sua reserva política.

A reserva política da igreja se dá entre a memória do Cristo crucificado e a esperança do ressuscitado. Dito de outro modo, a reserva política está no tempo entre esses dois polos indissociáveis. Uma vez a igreja, nesse tempo, sendo a presencialização da memória (a cruz) e a esperança (a ressurreição) de Cristo, ela está aberta para o futuro e a relação entre o tempo e a eternidade não é um problema. Isso se dá porque a igreja tem sua origem no feito escatológico do Cristo, portanto, a sua estadia nesse tempo não está condicionada a qualquer recompensa meritória, uma vez que essa recompensa já foi concretizada de modo escatológico na cruz-ressurreição. Nesse sentido, é possível afirmar de que “a igreja tem seu verdadeiro ser na atuação de Cristo [e isso] exclui uma ontologia autônoma da igreja” (MOLTMANN, 2013, p. 101-102). Aqui, a igreja tem algo que está para além da própria igreja, algo que a mantém, mas não a torna dona. Nessa constituição escatológica de ser igreja, ela carrega algo que ousa celebrar, mas que não possui, e ousa representar o que não é da sua propriedade, além de proclamar uma palavra que não é deste mundo (WESTHELLE, 2017, p. 147). É por essa razão, que a igreja pode estar envolvida politicamente com este tempo porque o que este tempo poderia oferecer a ela, igreja, não é compatível com aquilo que ela já tem, o que seja, um horizonte escatológico delineado pelo Cristo com a proclamação do Reino de Deus.

Seguindo Jürgen Moltmann (2013, p. 120), a igreja, enquanto originária da morte-ressurreição do Cristo, passa a participar da missão do Cristo e isso a torna comunidade messiânica quando esta assume a vocação profética que lhe é inerente a sua própria configuração. Entre a memória da cruz e a esperança da ressurreição, a igreja vivencia não um tempo de espera, mas sim de ação, porque o seu horizonte de atuação se dá a partir do Reino de Deus que está em fermentação. Nesse sentido, não se trata de uma escatologia de sala de espera, mas sim de movimento uma vez que “a esperança do cristianismo não está voltada para um ‘outro mundo’, mas sim para o mundo transformado dentro do Reino de Deus” (MOLTMANN, 2013, p. 219).

Por ter esse caráter de transitoriedade, mas ao mesmo tempo permanência enquanto presença no mundo, a igreja carrega uma condição que nenhuma perspectiva política poderia ter, qual seja, a capacidade de atuar na visualização de um mundo melhor a partir de categorias que estão para além do meramente contrato social, uma vez que a sua principal característica política, heteronomia, não está sujeita, em tese e na prática, ao ordenamento político-jurídico-econômico vigente. Nesse sentido é algo revolucionário.

Esse sentido transitório de percepção do tempo que a igreja carrega, foi trabalhado por Giorgio Agamben (2016) em um pequeno texto. O filósofo italiano proferindo uma palestra na Catedral de Notre-Dame (Paris) em 2009, tratou do tempo messiânico para a igreja e sua primeira intervenção foi fazer uma distinção e sanar um mal-entendido entre o messiânico e o apocalíptico. Enquanto este último “se situa no último dia, no dia da cólera: ele vê o fim dos tempos e descreve o que vê” (AGAMBEN, 2016, p. 14); o messiânico se dá de outro modo: “Não é o fim dos tempos, mas a relação de cada instante, de cada kairos, com o fim dos tempos e a eternidade” (AGAMBEN, 2016, p. 14). É dentro do tempo messiânico, esse tempo que se contrai e começa a terminar, que se dá “o tempo que resta entre o tempo e o fim” (AGAMBEN, 2016, p. 15). É este tempo, entre o tempo e o fim, que o messiânico se dá, ou, de outro modo, o tempo que se estabelece entre a cruz e a ressurreição na perspectiva moltmanniana. Em Agamben (2016, p. 16), o tempo messiânico é “um tempo que cresce e urge dentro do tempo cronológico, que o trabalha e transforma-o de dentro”. O tempo messiânico não nos torna espectadores do tempo cronológico, antes é o tempo messiânico que nos dá condições de captar o tempo que nós mesmos estamos. Isso significa que ao fazer a experiência do tempo messiânico no tempo cronológico, “implica uma transformação integral de nós mesmos e de nosso modo de viver” (AGAMBEN, 2016, p. 17). O tempo messiânico não imobiliza, antes provoca para viver de outra maneira as coisas penúltimas (AGAMBEN, 2016, p. 19). Daí que a igreja participa desse tempo messiânico quando ela é a comunidade messiânica. O horizonte escatológico é o horizonte de atuação da igreja, e isso não é facultativo para a igreja. O tempo messiânico se dá entre a memória da cruz e a esperança da ressurreição, e assim “viver o tempo do messias exige assim a capacidade de ler os sinais de sua presença na história, de reconhecer em seu curso a signatura da economia da salvação” (AGAMBEN, 2016, p. 21). Se há iniciativas teológicas secularizadas da política prometendo “salvação”, é porque em algum momento da história, a igreja abdicou da sua reserva política para se apresentar como participante do processo humano sem a noção messiânica do tempo. E quando a igreja abandonou a exigência escatológica que lhe pertence, essa mesma exigência escatológica foi secularizada, fazendo parte, assim, dos saberes profanos que transportou para o campo político-econômico o êschaton como um fim em si mesmo, fazendo com que a crise tivesse características apocalípticas (AGAMBEN, 2016, p. 23).

A igreja abrindo mão da condição de ser comunidade messiânica, ela abdica da sua mensagem escatológica. Quando assim o faz, ela fica restrita tão somente ao atendimento religioso das pessoas individuais, administrando o sentido religioso da sociedade, e assim perde sua força crítica e libertadora (MOLTMANN, 2013, p. 292). E dessa forma, a igreja não contribui para a solução do estado de crise que a sociedade se encontra. Até porque, o que é possível verificar é que “o estado de crise e de exceção permanentes que os governos do mundo proclamam pelos quatro cantos não é senão a paródia secularizada da atualização incessante do Juízo Universal na história da Igreja” (AGAMBEN, 2016, p. 23). A reserva política que a igreja detém por conta da sua condição messiânica e sua percepção do tempo messiânico, é escamoteada, abrindo espaço para forças já conhecidas que reivindicam devoção e sacrifício humano, colocando em risco a própria sobrevivência do planeta em função de um progresso que caminha para o caos social. É por isso que Agamben (2016, p. 24) ao final da sua palestra na Catedral de Notre-Dame, lembra que “o modelo da política atual, que pretende uma economia infinita do mundo, é assim propriamente infernal”. Uma vez sabendo disso e testemunhando isso no contexto global, a pergunta de Agamben (2016, p. 24) segue pertinente: “A Igreja irá decidir-se finalmente a captar sua ocasião histórica e a reencontrar sua vocação messiânica?”. Caso ela insista em não retomar o seu lugar neste tempo com sua mensagem messiânica e sua percepção do tempo messiânico, a igreja corre o risco de ser “arrastada na ruína que ameaça todos os governos e todas as instituições da terra” (AGAMBEN, 2016, p. 24).

A comunidade messiânica comunica sua mensagem messiânica em um tempo messiânico. O messiânico é a reserva político-escatológica da igreja para este tempo. Uma vez a comunidade assumindo a sua condição messiânica, isso dá a ela condições para exercer um papel preponderante enquanto participante da atividade social. A reserva política da igreja a torna capaz de proclamar a sua mensagem messiânica e isso ela faz de modo parresista, ou seja, diz o que realmente está acontecendo e como a coisa realmente é. A igreja parresista não está ligada a nenhum poder político-econômico; não propõe qualquer negociação com a sua mensagem; não diz algo para querer receber alguma coisa em troca (WESTHELLE, 2017, p. 195-196). A igreja parresista está imbuída da sua condição messiânica e assim exerce a sua fala neste tempo a partir do tempo messiânico que lhe é propício. Desse modo, não faz o menor sentido ser cooptada por forças políticas ou econômicas, uma vez que ela, de modo parresista, está aí para denunciar os causadores da crise em que a humanidade se encontra e pode assim fazer porque já participa da esperança que moveu o próprio Cristo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No atual momento em que nos encontramos, todas as alternativas viáveis para a crise social são bem-vindas. Assim, uma perspectiva baseada na Terceira Via é legítima dentro de um contexto que enxerga na política a salvação para a humanidade. Ocorre que a política, e sua mais significativa representação, a democracia, foi, já algum tempo, capturada pelo poder econômico que passou a controlar os Estado-nações a partir do mercado financeiro global. Com a crise financeira de 2008, ficou patente quando os países se apressaram para salvar as grandes instituições financeiras do seu colapso iminente e irreversível. A política quando à serviço do capital, a governança não passa pela democracia, mas sim pela economia. Isso é evidente nas eleições presidenciais das grandes potências econômicas do planeta. O candidato que melhor agrada o mercado financeiro tem maior chance na disputa. O termômetro é sempre os números favoráveis da Bolsa de Valores. Nesse sentido, não há mais cidadãos políticos, mas sim cidadãos consumidores. Estamos na era do homos economicus, onde a vida se resume a créditos e débitos e o progresso é medido pelo consumo.

Diante desse quadro que nos aproxima cada vez mais do esgotamento humano e do fim dos recursos naturais, onde o planeta dá sinais claros de que se as coisas continuarem nesse ritmo o planeta não terá outra alternativa senão expurgar o humano, é preciso sim haver mudanças de comportamento. Mas ao que parece, a política ainda está tateando para promover uma mudança significativa. Esse quadro fica ainda mais sensível quando acompanhamos o rumo que a política, na sua versão de extrema-direita, conseguiu promover nos EUA e, mais recentemente no Brasil, tornado o ódio o modus operandi do fazer política. Chegamos a uma conclusão que a crise democrática era muito mais séria do que o imaginávamos. Assim, concluímos que não há alternativas válidas o suficiente que possa nos conduzir para um tempo de refundação comunitária. É preciso outra força.

É dentro dessa conjuntura que a igreja se apresenta, ainda que haja a percepção de que também esta foi cooptada pelo poder político-econômico como no caso brasileiro, por exemplo. Mesmo assim, a igreja carrega uma reserva político-escatológica porque opera nesse tempo com categorias messiânicas. E mesmo que suas categorias teológicas tenham sido secularizadas, foi possível atestar a “virada teológica” da política nas últimas décadas. Isso demonstra que o espaço está vazio e há um vácuo de esperança.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 O Estado de bem-estar, determinante do pacto democrático que presidiu o capitalismo nos anos dourados, começou a ser desconstruído por uma crescente hegemonia neoliberal. Esta minou, juntamente com os direitos sociais, os requisitos que permitiam a efetiva alternância de programas de classe distintos no poder” (SINGER; ARAÚJO; BELINELLI, 2021, p. 209).
2 A igreja segue sendo uma força espiritual, política e cultural que não é possível desconsiderar no debate público, mesmo com ambiguidades quanto a sua atuação. Aqui acentuamos a já conhecida relação dos evangélicos com a política nacional, principalmente por meio da “Frente Evangélica Parlamentar” no Congresso Nacional, antes chamamos atenção para a natureza político-teológica da igreja e assim fazemos a partir do pressuposto de que a igreja tem uma força político-social quando empoderada da sua mensagem messiânica conferida pela morte-ressurreição de Jesus. Aqui se acentua a sua dimensão política e atuação no espaço público.
3 O conceito de secularização constitui um exemplo clamoroso de metamorfose de um vocábulo específico em uma das principais palavras-chave da era contemporânea. Surgida originalmente como termo técnico no âmbito do direito canônico (saecularisatio: de saecularis, saeculum), a expressão conheceu, no curso dos últimos dois séculos, uma extraordinária extensão semântica: primeiramente ao campo político-jurídico, depois ao campo da filosofia (e teologia) da história, enfim ao campo da ética e da sociologia. Através destes deslocamentos e ampliações de significado, ela ascendeu gradualmente ao status de categoria genealógica capaz de sintetizar ou expressar unitariamente o desenvolvimento histórico da sociedade ocidental moderna, a partir de suas raízes (judaico-) cristãs” (MARRAMAO, 1997, p. 15).


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