EDITORIAL

ESTUDOS DE RELIGIÃO E CIÊNCIA DA RELIGIÃO

RELIGIOUS STUDIES AND STUDY OF RELIGION

ESTUDIOS DE RELIGIÓN Y CIENCIA DE LA RELIGIÓN

Flávio SENRA
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil

ESTUDOS DE RELIGIÃO E CIÊNCIA DA RELIGIÃO

Interações, vol. 18, núm. 1, e181e01, 2023

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ESTUDOS DE RELIGIÃO E CIÊNCIA DA RELIGIÃO RELIGIOUS STUDIES AND STUDY OF RELIGION ESTUDIOS DE RELIGIÓN Y CIENCIA DE LA RELIGIÓN

Desde 1995, na PUC Minas, os estudos da religião fazem parte dos esforços formativos e de pesquisa na universidade. Esse trajeto vem sendo construído na interface entre disciplinas como Teologia, Filosofia, Pedagogia, História, Letras e Ciência da Religião.

Em seu primeiro momento, a abordagem multidisciplinar em estudos de religião, fizeram da Universidade um polo formativo para a docência em Ensino Religioso, tendo atraído pessoas de diferentes partes do país através de Programas de formação especializada como o PREPES – PUC Minas. Destaque-se a formação em nível de graduação como o Aprofundamento em Ensino Religioso oferecido pelo Departamento de Educação, que já formou inúmeros quadros de docentes para o Ensino Religioso Escolar de perfil não confessional para as escolas mineiras.

Nos últimos 15 anos1, a Universidade qualificou os seus esforços de pesquisa e produção de conhecimento através do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião (PPGCR PUC Minas). Distribuída atualmente em três linhas de pesquisa, a saber, a Linha de Pesquisa “Pluralismo religioso, diálogo e linguagens”; a Linha de Pesquisa “Religião e contemporaneidade” e a Linha de Pesquisa “Religião, educação e política”, a área de concentração do Programa, nomeada como Religião e Cultura, compreende o fato religioso em sua produção histórica, social, psicológica e cultural.

A multidisciplinaridade que marca a sua composição docente, não sem razão faz jus ao que se apresenta como um Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião. Esta opção pelo termo Ciências da Religião revela o caráter multidisciplinar com que os estudos da religião se desenvolveram no país e também nesse Programa. Compreende-se ser uma opção consciente do significado da expressão como a tradução de Estudos de Religião.

A escolha, contudo, neste e em outros casos, não é isenta de controvérsias. Nem sempre o uso do termo Ciências da Religião expressa de forma inequívoca o sentido de estudos de religião em nosso país. A proximidade com o termo Ciência da Religião confunde o campo de estudos da religião como sinônimo da disciplina ciência da religião.

Iniciamos dessa forma o presente editorial porque é sabida a tensão entre os que defendem o singular e os que defendem o plural no modo de nomear a disciplina Ciência da Religião no Brasil. Curiosamente, até chegarmos ao termo consagrado internacionalmente, seja com o Religionswissenschaft alemão, seja com o Religious Studies ou o Study of Religion de língua inglesa, os modos de compreensão da disciplina variam conforme nacionalidades, escolas e períodos. É inútil querer traçar um padrão linear e homogêneo para esta ou quaisquer disciplinas acadêmicas, como já bem ponderou a Prof.a Dilaine Soares Sampaio no artigo Ciências da Religião e Teologia como área autônoma, publicado na revista Horizonte, em 2019. Seja como for, não seria oportuno aqui listar as várias opções que se apresentam no meio acadêmico, mas o leitor e a leitora certamente terão um exemplo em mente quando pensa as variações em torno da disciplina. Contudo, não devemos minimizar essa questão e o que aqui trazemos é uma breve reflexão para reconhecer a validade de cada termo conforme sua orientação de princípio teórico e metodológico. Para tanto, não trataremos mais do que o par Ciência da Religião e Ciências da Religião. Certamente há que se considerar o complexo que o radical latino religio implica para os estudos em nossa disciplina, a Ciência da Religião, tema sobre o qual o Prof. Frederico Piepper Pires refletiu com maestria, em 2019, no artigo Religião: limites e horizontes de um conceito, publicado na revista Estudos de Religião, da UMESP.

Ciência da Religião e Ciências da Religião implicam possibilidades distintas no cômputo dos estudos de religião e esse tem sido um ponto sobre o qual compreendemos ser necessário refletir com atenção, pois tal decisão teórico-metodológica revela o modo como pesquisamos o nosso objeto. O caso brasileiro inspira atenção, pois, como revelam as pesquisas e os documentos acadêmicos, convivemos com a diversidade nas formas de nomear Programas, Cursos, Área de avaliação, aparentemente de forma irrefletida. Nem mesmo a inclusão de um indicador na ficha de avaliação serviu para um enfrentamento consistente do problema. Se houvesse maior consciência das implicações metodológicas nessas escolhas, algo do que suspeito não ser o caso, estaríamos apenas disputando perspectivas. Porém, na falta dessa consciência, faz-se passar compreensões distintas como se fossem parecidas, senão idênticas.

Em nossa história, a se considerar os primeiros movimentos ocorridos na Universidade Federal de Juiz de Fora, nosso marco fundador que tem o seu gérmen lançado na segunda metade dos anos 1960, assistimos a uma profusão de iniciativas em torno de ciências religiosas, ciência e ciências da religião ou das religiões. Chegou-se à criativa fórmula jamais vista em qualquer outra ciência, a de se nomear uma área acadêmica como Ciência(s) da(s) Religião(ões).

Manter inativo esse debate tem servido para sustentar o uso do rótulo para fins pouco confessáveis, embora não faltem interesses confessionais em muitas das nossas escolhas. Tomar um rótulo para fazer passar algo diferente do que está previsto para uma disciplina de perfil não normativo não é um problema pequeno.

Não bastasse termos de conviver com essa mini Babel de nomenclaturas e sentidos sobrepostos, com seus problemas correlatos, cabe a nós que decidimos produzir conhecimento acadêmico e cientificamente fundado sobre religião, religiões, tradições de sabedoria, espiritualidades e regimes de conhecimento, já passados quase 60 anos de quando Newton Sucupira decidiu por nós o nome do primeiro Departamento na Universidade brasileira, conversarmos abertamente sobre nossas diferenças e propostas.

Aos longo dos últimos 13 anos, participando da gestão político-acadêmica da Associação Nacional de Pesquisa e de Pós-graduação em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE) e, na sequência, da Coordenação da área de avaliação Ciências da Religião e Teologia na CAPES, precisei conviver e administrar esse conflito junto de colegas que atuaram com muita qualidade e dedicação. Formamos comissões e instigamos reações até mesmo através de fichas de avaliação de Programa para a Avaliação Quadrienal 2017-2020. Acompanhamos com atenção a contribuição de pesquisadoras e de pesquisadores da área que através de traduções, obras autorais, coletâneas, dicionário, teses e dissertações, artigos, eventos, seminários, disciplinas, etc. mantém o debate ativo e sempre aberto. Todo esse processo demonstra o quanto a nossa comunidade está viva e atuante nesse debate!

Confesso que mantenho certa inquietação pelo que avançamos nesse debate, apesar de tudo, e considerando tanto o que foi feito. Nesse sentido e com essa inquietação, manifesto aqui minha percepção como modestíssima contribuição.

Por Ciências da Religião eu acolho, em primeiro lugar, o que politicamente foi decidido para nomear a área de avaliação no Sistema Nacional de Avaliação, conforme proposição da ANPTECRE, em 2012, e através de posterior deliberação do Conselho Superior da Capes, em 2014, como área de avaliação Ciências da Religião e Teologia. O documento de área, desde a versão anterior ao reconhecimento da área de avaliação como área autônoma já sinalizava que esta área aglutinava duas disciplinas, podendo receber propostas de outras disciplinas do espectro de estudos da religião, a saber, Ensino Religioso, História das Religiões, Sociologia das Religiões, Psicologia da Religião, Filosofia da Religião e Teologia. Esse plural parece ter sempre refletido a opção por um campo de Estudos de Religião – uma opção que esteve posta como alternativa, mas que foi preterida na Assembleia da ANPTECRE em 2012. Ciências da Religião não é a tradução nacional do Study of Religion, tampouco da Religionswissenschaft alemã. Parece mais a expressão dos estudos religiosos ou estudos de religião, o Religious Studies. É o termo para nomear os diferentes estudos sobre o objeto religião, não propriamente uma disciplina como é o caso da Ciência da Religião. Do ponto de vista metodológico, as Ciências da Religião abarcam mais adequadamente o método multidisciplinar ou transdisciplinar.

Se pensarmos em termos disciplinares, necessariamente seremos levados ao termo Ciência da Religião ou Study of Religion. A Ciência da Religião tomada como disciplina autônoma, é academicamente reconhecida por uma abordagem de perfil não normativo, que se funda em uma abordagem empírica, podendo, a partir desse material inventariado, elaborar considerações de tipo sistemático. O esforço por uma delimitação teórico- metodológica no estudo de religião, faz com que essa disciplina não permita redução do seu objeto a quaisquer espectros disciplinares outros. O método interdisciplinar não exclui a disciplinaridade da Ciência da Religião, antes, é a sua condição.

Mas enfim, como falar de Ciência da Religião em um Programa de Ciências da Religião, em uma área de avaliação que traz o mesmo plural em sua nomenclatura?

Tendo a compreender que o projeto de consolidação da disciplina Ciência da Religião terá de conviver com algo que propriamente não se assume disciplinarmente, mas como um campo de estudos.

Onde leio e escuto falar em Ciências da Religião só posso entender que não se trata da disciplina, como destacou com propriedade Tatiane Almeida em sua tese doutoral. defendida em 2022. O que se criou com esse termo foi uma forma de nomear a um conjunto de disciplinas que estudam religião, disciplinas de diferentes áreas do saber, mas não propriamente nomeia a uma disciplina com sua delimitação e métodos próprios. Isso não estaria longe nem difícil de ser assumido. Curioso é não o fazer, assumindo o que essa opção representa. Não há demérito algum nessa opção. O problema é o nível de inconsciência.

A proposta multidisciplinar das Ciências da Religião convive com os esforços das pesquisadoras e pesquisadores que se empenham pela consolidação da disciplina Ciência da Religião. O campo multidisciplinar, que poderia ser identificado como Estudos de Religião, uma proposta rejeitada em 2012 pela assembleia reunida de coordenadoras e coordenadores de Programas associados da ANPTECRE, reúne diferentes abordagens sobre o objeto de estudo. Com tal liberdade, pode colocar em diálogo, abordagens teológicas, filosóficas, sociológicas, antropológicas, psicológicas, etc. Trata-se de considerar diferentes abordagens sobre a religião.

A Ciência da Religião, contudo, não é uma proposição multidisciplinar. Ela é uma proposta disciplinar. Aqui me parece residir, ao menos em parte, as propostas de Ciência e Ciências da Religião.

Enquanto proposta disciplinar não abdica a Ciência da Religião da necessária compreensão que metodologicamente é constituída pela multi, inter ou transdisciplinaridade. Mas o método, nesse caso, trabalha a favor de uma disciplina própria. Para a Ciência da Religião, os saberes sobre o objeto não estarão reduzidos aos interesses de outras disciplinas. O interesse pelo objeto é o seu foco de interesse único. Sua abordagem não será de cunho normativo, razão pela qual apenas poderá tratar empiricamente o seu objeto. O intangível e o imaterial das experiências analisadas, aquilo a que se considera sagrado ou transcendente nas religiões, serão acessíveis apenas pela mediação das pessoas, comunidades, instituições e suas produções em imagens, documentos, cultos, relatos. A Ciência da Religião não produzirá abordagem sistemática de cunho substancialista ou essencialista. Portanto, seu saber sistemático estará indissociavelmente atrelado aos dados da realidade observável e empírica manifestados pelos dados que compõem o seu objeto de estudo. Com todos esses diferenciais, a Ciência da Religião se distingue fundamentalmente de disciplinas academicamente constituídas como Filosofia da Religião ou Teologia, mas em outros aspectos também das demais disciplinas, igualmente valorosas, que também se dedicam ao estudo da religião como meio para compreensão da história, da sociedade, da psique.

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