ARTIGOS

Recepción: 18 Octubre 2021
Aprobación: 04 Mayo 2023
Resumen: Sensible a los gritos de auxilio de los vulnerables, que claman como los oprimidos de Israel: “¿Hasta cuándo, Yahvé, clamaré socorro y no escucharás, te gritaré: ¡Violencia! ¿Y tú no salvarás? (Hc 1.2), este artículo quiere traer la esperanza de una Teología, así como provocaciones para una Bioética. La pregunta guía es: ¿Qué tienen en común la Teología y la Bioética en la promoción de la Justicia Social? Frente a esta Teología que tiene sus pies en la realidad y en la Bioética intervencionista, este artículo tiene como objetivo identificar las comprensiones teológicas y la relación entre Teología y Bioética frente a la justicia social, especialmente en Brasil. Para ello, el artículo decodificará las convergencias entre Teología y Bioética con el fin de resaltar puentes; proponer la promoción de la justicia social a través de las convergencias. El abordaje se basa en una metodología deductiva, cualitativa y de revisión bibliográfica, trayendo una hermenéutica teológica y una sensibilidad bioética al clamor por la justicia social. El artículo apunta a una íntima relación entre Teología y Bioética, identificando en los reclamos de los agraviados, un desafío común para ambas.
Palabras clave: Justicia social, Teología contextual, Teología del dominio, Bioética, Bioética de la intervención.
Resumo: Sensível aos gritos de socorro dos vulneráveis que clamam como os oprimidos de Israel: “Até quando, Iahweh, pedirei socorro e não ouvirás, gritarei a ti: Violência! E não salvarás?” (Hc 1.2), este artigo busca trazer esperança em uma Teologia que promova a Justiça Social, bem como provocar reflexões em Bioética. A pergunta orientadora é: O que a Teologia e a Bioética têm em comum na promoção da Justiça Social? Este artigo pretende identificar as compreensões teológicas e a relação entre Teologia e Bioética frente à Justiça Social, especialmente no Brasil. Para isso, irá decodificar as convergências entre Teologia e Bioética, evidenciando suas pontes e propondo a promoção da justiça social por meio dessas convergências. A abordagem utilizada é dedutiva, qualitativa e baseada em revisão bibliográfica, trazendo uma hermenêutica teológica e sensibilidade Bioética diante do clamor por justiça social. O artigo destaca a relação íntima entre Teologia e Bioética, identificando nos clamores dos injustiçados um desafio comum para ambas as áreas.
Palavras-chave: Justiça social, Teologia contextual, Teologia de domínio, Bioética, Bioética de Intervenção.
Abstract: Sensitive to the cries for help of the vulnerable, who cry out like the oppressed of Israel: “How long, Yahweh, will I call for help and you will not listen, will I cry to you: Violence! And wilt thou not save?” (Hc 1.2), this article wants to bring the hope of a Theology, as well as provocations for a Bioethics. The guiding question is: What do Theology and Bioethics have in common in promoting Social Justice? Faced with this Theology that has its feet in reality and Bioethics of intervention, this article aims to identify the theological understandings and the relationship between Theology and Bioethics in the face of social justice, especially in Brazil. For this, the article will decode the convergences between Theology and Bioethics in order to highlight bridges; propose the promotion of social justice through convergences. The approach is based on a deductive, qualitative and bibliographical review methodology, bringing a theological hermeneutics and a Bioethical sensitivity in the face of the outcry for social justice. The article points to an intimate relationship between Theology and Bioethics, identifying in the claims of the wronged, a common challenge for both.
Keywords: Social justice, Contextual theology, Dominion theology, Bioethics, Intervention Bioethics.
1 INTRODUÇÃO
O estabelecimento da justiça social é um desafio persistente ao longo de tempos e espaços nas sociedades. As injustiças sociais parecem ter origens nas desigualdades criadas (RAWLS, 2000). Como explicava Rousseau, há duas grandes desigualdades, a natural e a política. A desigualdade natural é aquela que torna cada indivíduo único, já a desigualdade política é aquela criada ao proporcionar privilégios individuais ou para um grupo, em detrimento de outros (ROUSSEAU, 2008).
A justiça social pode ser entendida como ações reparatórias de desigualdades causadas por interesses individualistas em detrimento da coletividade. As injustiças sociais se dão em vários aspectos, não sendo uma exclusividade dos problemas econômicos (RAWLS, 2000). Nesse sentido, a justiça social está na raiz da bioética, como a causa originante de outros dilemas éticos, como o tráfico de pessoas, comércio de órgãos, acesso desigual à saúde e, principalmente, a qualidade de vida, tão discutida pela Bioética de Intervenção (TEALDI, 2008). Do ponto de vista da teologia, as correntes contextuais, especialmente as teologias latino-americanas, buscam dirimir essas desigualdades que maculam a comunhão cristã.
As narrativas bíblicas evidenciam que as marcas do pecado estão nas injustiças (cf. Is 59). Geralmente, a concupiscência e o poder em detrimento de outros eram as iniquidades sociais constatadas e denunciadas na literatura profética de Amós, Oséias, Isaías e outros profetas. A literatura profética constata que poucos líderes governaram para e pelo povo, a maioria governou em benefício próprio e/ou de sua família, causando iniquidades sociais. Essa constatação parece repetir-se em outros tempos e espaços. Várias realidades contemporâneas aparentam semelhança com o povo oprimido relatado no capítulo cinco do profeta Neemias. Considera-se que este artigo não pretende fazer uma exegese bíblica, mas identificar nos rostos vulneráveis desse tempo as correlações, sem anacronismo, com os oprimidos da literatura profética e evangélica.
Portanto, em meio aos gritos atuais de socorro, nas vozes de vulneráveis que clamam, como os oprimidos de Israel gritavam: “Até quando, Iahweh, pedirei socorro e não ouvirás, gritarei a ti: Violência! E não salvarás?” (Hc 1,2), que este artigo quer provocar a esperança de uma Teologia contextual latino-americana e a práxis da Bioética, principalmente a corrente da bioética de intervenção.
A Bioética, enquanto método de aplicação da ética, enfrenta desafios para colocar em prática seus múltiplos elementos de dever-deon em prol dos mais vulneráveis. Desde as primeiras projeções potterianas, a Bioética pretende ser uma ética da vida (TEALDI, 2008), abrangendo intervenções que implicam na percepção holística da vida humana. O bio em Bioética não se refere apenas ao biológico, mas à vida em si (POTTER, 2016). Isso geralmente implica em oportunidades deontológicas de justiça social.
A Teologia contextual, enquanto voz profética e de esperança, denuncia injustiças e traz esperança de que “Iahweh realiza atos justos, fazendo justiça a todos os oprimidos” (Sl 103,6a). Esta Teologia não se concentra apenas na esfera religiosa, mas é situada na história, social e geograficamente (REJÓN, 1999), com uma visão de religião integrada à ciência. “Existe um tipo humanístico de religião que inclui o humanismo científico, que procura maximizar os valores humanos e chegar à compreensão racional do mundo em que vivemos” (POTTER, 2016, p.104).
É em meio a uma dualidade teológica e dilemas sociais que a questão central deste artigo emerge: O que a Teologia e a Bioética possuem em comum e o que podem fazer para promover a Justiça Social? Do ponto de vista da Teologia contextual, uma resposta objetiva estaria no serviço, pois os versos do texto de Mateus 25 apontam para isso. No entanto, há uma profundidade maior e subjetiva a ser discutida. Por sua vez, a Bioética, especialmente a corrente de intervenção, traz consigo apontamentos importantes para a práxis, mas, na relação com a Teologia, há uma discussão que parece ampliar-se.
Partindo dessa Teologia contextual, que tem os pés na realidade (REJÓN, 1999), e da Bioética de intervenção, que vai além das delimitações clínicas, este artigo quer identificar as compreensões teológicas e a relação entre Teologia e Bioética frente ao problema das injustiças sociais. “Nesse cenário desfavorável, a bioética configura-se como uma espécie de ação afirmativa para corrigir o sistema e impedir ou diminuir as mortes evitáveis e precoces, conectando duas dimensões: ética e profética” (RICCI, 2017, p.7). O papel denunciante da Teologia e a ética evangélica parecem alinhar-se com essa Bioética.
Para percorrer esse caminho e responder à questão norteadora, este artigo utiliza a metodologia dedutiva e qualitativa de revisão bibliográfica para trazer um olhar teológico e bioético como resposta ao clamor por justiça social, decodificando as convergências entre Teologia e Bioética com o intuito de evidenciar essas relações e propor a promoção da justiça social por meio dessas convergências.
2 IDENTIFICANDO AS CORRENTES TEOLÓGICAS: AS DUAS GRANDES TEOLOGIAS
Em princípio, pode-se dizer que existem muitas mais de duas teologias, uma vez que a teologia, enquanto ciência Sui Generis, possui hermenêuticas variáveis. A Teologia não tem como objeto Deus, mas a sua revelação na história, de modo que algumas correntes estão mais próximas do Jesus dos evangelhos, enquanto outras acentuam os aspectos morais da doutrina paulina (CASTILHO, 2017).
No entanto, tratando-se de justiça social, saltam duas grandes teologias, “uma que está a serviço das estruturas de poder, domínio e opressão” (PY, 2020), enquanto outra está a serviço do Reino, rompendo com as desigualdades, promovendo esperanças e sendo uma voz profética na denúncia das iniquidades, como os profetas e Jesus fizeram em seu tempo.
Assim, é necessário observar que a Teologia do domínio, desconectada da realidade, possui uma definição de justiça baseada na vingança (Cf. I Rs 18,40) e, geralmente, justifica as injustiças com jargões moralistas que servem de instrumento para embasar determinados projetos de poder, políticas autoritárias e discursos que acentuam uma faceta da literatura paulina, enquanto o evangelho sucumbe (CASTILHO, 2017).
Por meio de um pseudomoralismo, por vezes com contribuições religiosas, construiu-se uma narrativa segregadora das classes minoritárias. Os reflexos disso evidenciam as injustiças sociais na pessoa da mulher inferiorizada, na homofobia, na má distribuição de renda, nas relações de poder entre denominações religiosas ditas cristãs e a política elitista, em vez de estar a serviço do bem comum, sobretudo daqueles que mais precisam.
Essa Teologia de domínio que justifica as estruturas de poder causa preocupações, sobretudo no aspecto da justiça social, pois os vulneráveis, sem voz, são entendidos como castigados por Deus. Essa Teologia sustenta uma classe elitizada que goza de privilégios em detrimento dos mais necessitados, quando a prática do evangelho é a partilha (REJÓN, 1999).
Por outro lado, este artigo, de modo qualitativo bibliográfico, reconhece que as correntes contextuais da Teologia bebem da autêntica religião, o amor (Tg 1,27). Seu compromisso com o Reino distancia-se das estruturas imperialistas de dominação e poder, aproximando-se da face de Cristo, desvelada nos rostos dos que sofrem as injustiças da fome, a xenofobia, as prisões injustas, os doentes e tantos outros (Mt 25,34-36) que nessas injustiças sociais revelam o rosto de Cristo em suas vulnerabilidades (PUEBLA, 31).
Geralmente, a Teologia de domínio se alinha com os poderes opressores ao revestir-se de um moralismo fundamentalista. Como ocorria com a velha religião denunciada por Jesus, constata-se ainda a existência de grupos que se apegam, como os fariseus, aos códigos legalistas desse modelo teológico, ao passo que ignoram o evangelho. Essa Teologia parece caminhar impondo o medo e a subordinação aos líderes (PY, 2020), usando, de forma enfática e, portanto, proposital, a afirmação paulina de que toda autoridade é constituída por Deus (Rm 13,1). Além disso, parece notável uma relação entre ministério e poder sob o argumento de que não se pode questionar os líderes, pois são os Ungidos do Senhor, e ai daqueles que tocarem em um ungido (Sl 105,15). Esse modelo teológico tem funcionado muito bem em sua limitação ao diálogo com outras ciências, principalmente a Bioética, pois cerceia a autonomia, um princípio da Bioética.
Além disso, a Teologia do domínio parece ignorar os problemas sociais com o argumento de que aqui não é o lugar dos seus adeptos, mas, em contrapartida, faz alianças com projetos de poder (PY, 2020). Sobre esse modelo, Cunha denuncia que há um número expressivo de cristãos que se alinham com políticas de armamentismo, valorização da tortura, segregação de negros e indígenas e outros projetos que se opõem aos valores do Evangelho (CUNHA, 2018). É nesse sentido que a ênfase moralista da literatura paulina passa a ser usada de modo sobreposto ao evangelho (CASTILHO, 2017).
Por sua vez, há outra Teologia, contextual, que manifesta a revelação de Deus na história, não apática à sua realidade, e que quer a efetividade das palavras de Jesus: “o Reino de Deus já está entre vós” (Lc 17,21). Desse modo, não ignora os rostos estranhos dos atuais samaritanos, reconhece as desigualdades políticas da dor, da fome e outras injustiças sociais. Essa Teologia age de modo profético, ao denunciar os meios e projetos de opressão na atualidade. Nesse sentido, ela propõe as compreensões comunitárias de igreja, do evangelho, vivenciadas pela comunidade de Atos 2:
Perseveravam eles na doutrina dos apóstolos, na reunião em comum, na fração do pão e nas orações. De todos eles se apoderou o temor, pois pelos apóstolos foram feitos também muitos prodígios e milagres em Jerusalém e o temor estava em todos os corações. Todos os fiéis viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e os seus bens, e dividiam-nos por todos, segundo a necessidade de cada um. Unidos de coração frequentavam todos os dias o templo. Partiam o pão nas casas e tomavam a comida com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo. E o Senhor cada dia lhes ajuntava outros que estavam a caminho da salvação. (ATOS 2,42-47)
É evidente o compromisso com a justiça social nessa comunidade. Assim, a Teologia contextual, oriunda da comunidade que vê Cristo no oprimido, doente, faminto, nu, enfim, nos mais variados vulneráveis, como aqueles descritos por Jesus no evangelho de Mateus, capítulo 25, é uma prática da justiça social que proclama a esperança aos que sofrem as mais variadas iniquidades sociais. Nesse sentido, a Teologia possui uma ética da vida bioética, ao propagar a abundância plena da vida (Mt 25,34-46; Jo 10,10).
Ainda que o termo justiça social não esteja explícito na literatura bíblica, seu conceito é implícito, de modo que a justiça de Deus é sempre em prol dos vulneráveis. Em documentos de caráter teológico, o termo justiça social parece ter aparecido pela primeira vez na encíclica de Pio XI, Quadragesimo anno, em 1931, com enfoque na distribuição de renda, mas também nas estratificações sociais: mulheres e crianças (QA, 46).
A preocupação social, garantindo a dignidade humana com qualidade de vida, parece inerente à proposta do evangelho. Desse modo, há evidências inegáveis, para os cristãos, de que Deus tem se inquietado com a plenitude da vida humana (Sab 11, 26), propondo uma ética da vida (Bioética), chamando pessoas para promoverem a justiça, a fim de que olhem para os oprimidos e os libertem. Sobre isso, a Laudato Sí evidencia que: “Quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo” (LS, 70).
O próprio Deus assumiu a humanidade (Fl 2,6), compreendendo-a e propondo-a o Seu Reino (Mt 10.7), onde impera a justiça do amor (DSI, 2005, §54). Portanto, a teologia comprometida com o Reino é provocativa, “apelando aos crentes para que sejam coerentes com a sua própria fé e não a contradigam com as suas ações” (LS, 200). Diante das teologias que justificam o poder opressor, será necessário insistir para que eles se “abram novamente à graça de Deus e se nutram profundamente das convicções sobre o amor, a justiça e a paz” (LS, 200).
2.1 Bioética: Passos e desafios
A Bioética possui várias correntes, o que ocorre devido à amplitude e às variáveis definições do termo (GRACIA, 1999). No entanto, de modo geral, pode-se dizer que a justiça social perpassa por todas as correntes da Bioética. Desde o surgimento do neologismo, cunhado por Van Potter, houve uma disputa e uma apropriação por parte de médicos do termo. Com isso, Potter ficou por muito tempo silenciado, e sua Bioética de abrangência global foi reduzida ao ambiente clínico. A Bioética de Potter pretendia envolver todas as esferas relacionadas à vida humana. Logo, ao se falar da Bioética como uma ciência, é inevitável o seu dever deontológico com a justiça social.
Desde a composição do neologismo bio-ética, Potter fez dela um método de aplicação da ética que galgou importantes passos para dirimir as iniquidades diante dos dilemas que cada contexto lhe impôs. Primeiramente, o próprio Potter enfrentou o desafio de abrir essa ciência em e para todas as áreas do conhecimento e da vida, evitando a permanência do reducionismo clínico que alguns queriam dar à Bioética. De acordo com Pessini:
Por um longo tempo, as ideias de Potter não ganham apreço e muito menos reconhecimento nos EUA. É uma voz que clama no deserto! Suas duas publicações clássicas Bioethics: Bridge to the future -1971, e Global Bioethics, - 1988 não são validadas pelos protagonistas da primeira hora da Bioética norte-americana, embevecidos pelo paradigma da Bioética principialista do instituto Kennedy de Bioética Georgetown University, Washington, D.C. e fechados nele. (PESSINI, 2019, p.31).
A luta de Potter para uma abrangência macro da Bioética reside em seu modo de ler o mundo. Ele entendia que o século XXI será ético ou simplesmente não existiremos (POTTER, 2016). Diante dos conflitos internacionais e da desigualdade social, a Bioética elaborou, desde a década de 70, normativas internacionais promovendo a justiça social a fim de proteger aqueles que vivem em vulnerabilidade. Essas normativas caminham em acordo com a proposta potteriana de uma Bioética voltada para o futuro, com o intuito de evitar desastres como guerras nucleares ou até mesmo catástrofes ecológicas.
A justiça social está na raiz da Bioética (TEALDI, 2008), pois as consequências da iniquidade social resultam nos maiores dilemas bioéticos, como o tráfico de pessoas, o comércio de órgãos, a péssima qualidade de vida decorrente da insegurança alimentar, a falta de saneamento e o acesso condicional ao atendimento médico (TEALDI, 2008). Para que a justiça social seja promovida, “torna-se necessário o desenvolvimento de visões positivas do futuro, a fim de promover a vivência longa e plena da humanidade” (PESSINI, 2019, p.14). Assim, em prol da vivência longa e plena da humanidade, em 2005, a UNESCO adotou a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, sendo um passo importantíssimo no alcance dessa Bioética global, tão defendida por Potter.
Reconhece-se na proposta de Potter que as vidas vulneráveis não estão estritamente condicionadas às situações clínicas, mas são também os injustiçados socialmente, ou seja, vidas que se inserem nas questões amplas e adversas do campo social, perpassando pelas estratificações sociais de etnia, gênero, religião e, também, a questão econômica. Nesse aspecto, a Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos sinaliza que:
Os Estados devem respeitar e promover a solidariedade entre Estados, bem como entre indivíduos, famílias, grupos e comunidades, com atenção especial para aqueles tornados vulneráveis por doença ou incapacidade ou por outras condições individuais, sociais ou ambientais e aqueles indivíduos com maior limitação de recursos. (Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos, 2005, art. 24, 3, tradução nossa1)
A sinalização universal é provocante, especialmente em 2005, quando vários países vivenciaram conflitos e desastres ambientais e naturais, como ondas de calor, furacões (como Katrina) e terremotos (como na Caxemira), eventos que tornaram muitas vidas vulneráveis, especialmente aquelas que já sofriam iniquidades sociais em vários países. É evidente a constatação da Igreja de que as mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade (LS. 25). Parece haver um desafio comum entre essa constatação e a declaração da Bioética em busca da justiça social.
No entanto, esses problemas ambientais evidenciam uma causa anterior que é a falta de políticas públicas e ambientais, especificamente no caso das ondas de calor, causadas principalmente pela poluição. Isso também está relacionado à justiça social. A constatação e a preocupação ecológica não são apenas da bioética, que busca uma qualidade de vida, mas também da Teologia contextual. Segundo a Igreja, a exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, e provoca milhões de mortes prematuras (LS, 1,20).
Além disso, enfrentamos a crise hídrica em contraposição às enxurradas que, na atualidade brasileira, repercutem nos dilemas dos mais injustiçados socialmente. Dessa forma, é necessário compreender que as condições e requisitos para a saúde incluem a paz, a educação, a moradia, a alimentação, a renda, o ecossistema estável, a justiça social e a equidade (BRUSTOLIN, 2010, p.81).
Ao retomar as raízes da Bioética, a ideia potteriana que foi por muito tempo ignorada parece mais concreta, abrangendo os dilemas globais:
Desde a virada do milênio, no entanto, uma perspectiva mais abrangente tem sido desenvolvida, reativando as ideias de Van Rensselaer Potter, que cunhou o termo “Bioética” em 1970. Sua intuição básica era que precisamos de uma “Bioética global”, abordando os atuais problemas éticos urgentes da humanidade: poluição e degradação ambiental, pobreza, injustiça social, desigualdades na saúde, guerra e violência. Estes problemas são uma ameaça à sobrevivência da humanidade e sua urgência nos deve tornar primordialmente preocupados em salvaguardar o futuro. (TEN HAVE, 2012, p. 60)
Ao considerar os dilemas que assolam o tempo, percebe-se a urgência e relevância desse conceito. A Bioética potteriana possui um Credo a confessar e praticar. O artigo 4 desse credo já dizia:
Creio na inevitabilidade do sofrimento humano que resulta da desordem natural das criaturas biológicas e do mundo físico, mas não aceito passivamente o sofrimento que é resultado da desumanidade do homem para com o próprio homem. Compromisso: enfrentarei meus próprios problemas com dignidade e coragem. Assistirei os outros na sua aflição e trabalharei com o objetivo de eliminar todo sofrimento desnecessário na humanidade. (POTTER, 2016, p.21)
Essa crença leva a ações, a um dever moral, em busca de uma sociedade mais justa, onde a fraternidade humana se manifesta no tratamento igualitário para todos (GRACIA, 1999). O credo bioético dialoga com a ideia de Rousseau sobre desigualdade natural e política, assim como com a Teologia, onde há o mal natural (Is 45.7) e o mal humano resultante do pecado, onde um ser humano impõe seu poder sobre o outro causando sofrimento. É nesse sentido que a justiça social aparece como uma desigualdade política, já que a diferença individual de cada um é natural e saudável para as relações de alteridade na sociedade.
A Bioética, enquanto ciência transdisciplinar, contempla diversas perspectivas e olhares, principalmente em relação à justiça social. Dessa forma, pode-se construir várias pontes, mas os fundamentos dessas pontes sempre estarão na plenitude da vida humana. Isso implica em relações, uma vez que “o comprometimento com o outro na vida em coletividade supõe abertura total às múltiplas dimensões da realidade, tanto do indivíduo como sujeito, quanto da realidade sociopolítica na qual ele está inserido e exerce seus papéis de pessoa e de cidadão” (SELLI e GARRAFA, 2006, p.249).
Portanto, pode-se afirmar que o objeto da Bioética e da Teologia contextual é o mesmo: a vida humana. É nessa relação que os impasses da outra Teologia são deixados de lado, pois a discussão não se pauta em questões de criação ou evolução, mas sim na dignidade do ser humano, que é a imagem de Deus, independentemente desse impasse.
O ser humano que sofre sempre precisará da ajuda de outrem que pratique a ética da vida. Nesse sentido, de acordo com Selli e Garrafa (2006, p. 243), a teologia da libertação, uma das teologias contextuais, entende que a verdadeira solidariedade é aquela que ocorre entre desiguais e que demanda transformações estruturais para corrigir as assimetrias existentes. Embora a base teórica da teologia da libertação seja religiosa, ela se relaciona facilmente com a Bioética laica, pois seu discurso teológico não está limitado à comunidade interna das igrejas (PORTO; GARRAFA, 2011). Desse modo, há uma ponte que supera as correntezas opressoras da injustiça, muitas vezes sustentadas por Teologias de Dominação (PY, 2020).
2.2 Justiça social sob o olhar da Bioética
Embora todas as correntes da Bioética possuam o dever - deon de dirimir as injustiças sociais, a corrente latino-americana da bioética de Intervenção é a que se apropria dessa questão de modo central. Porto e Garrafa definem que: “A Bioética de intervenção delineia- se a partir do reconhecimento da ideia de saúde como qualidade de vida, expandindo-se em direção ao reconhecimento do contexto social como campo legítimo de estudos e intervenção bioéticos” (2005, p. 111).
Atualmente, a Bioética parece ter encontrado na justiça social a raiz dos dilemas da vida humana. Não se pode mais pensar em uma Bioética estritamente clínica, sem levar em conta a dimensão social. A Bioética global, como defendia Potter, propõe o contemplar holístico da vida humana. Assim, a justiça social aparece:
A partir da conscientização de que os indivíduos são incorporados em relacionamentos, as comunidades e o resto do mundo estão levando a Bioética contemporânea para um contexto social mais amplo. O significado das condições sociais aumentou também a conscientização de que a promoção da saúde implica na promoção da justiça social, não apenas em âmbito local e nacional, mas globalmente. (TEN HAVE, 2012, p.50).
É evidente que muitas pessoas morrem em decorrência de injustiças sociais. Na América Latina, um espaço é aberto para o questionamento ético em razão de tantas mortes precoces e injustas, que poderíamos caracterizar como uma verdadeira mistanásia. (PESSINI, 2008, p. 507, tradução nossa2). A mistanásia é uma realidade que tem aumentado, principalmente, no continente latino-americano devido a desemprego, fome, falta de acesso aos direitos básicos e outros problemas. “A morte é comum a todos, contudo a desigualdade social pode antecipá-la, tornando-a desigual, com sérias implicações éticas” (RICCI, 2017, p.16).
Nesse sentido, em 2005, houve uma conquista da Bioética de Intervenção com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, “por meio da qual os conflitos em saúde na dimensão social, relativos às desigualdades sociais e econômicas, passaram a ser definitivamente reconhecidos como pertinentes à reflexão Bioética” (PESSINI, 2012, p.21).
A morte social parece ter se aflorado com a Covid-19, sobretudo no Estado brasileiro do Amazonas. A CPI da Covid-19 no Brasil parece evidenciar as injustiças sociais cometidas contra os mais de seiscentos e noventa mil mortos no Brasil. Há indícios de ter ocorrido uma seleção, pois a falta de leitos, respiradores, oxigênio e outros, para pacientes já internados, pode revelar aquilo que, em termos bioéticos, configura eutanásia social.
A condição social dos doentes, por mais injusta que pareça, pode definir seu destino, vida ou morte. De acordo com Ricci:
A eutanásia social situa-se no campo econômico-sanitário quando a sociedade decide a sorte do doente, considerando apenas os recursos econômicos administrados com critérios de custo-benefício. Refere-se, particularmente, ao risco permanente de morte antecipada e prematura nas camadas pobres da população por falta de condições mínimas de vida e inadequado atendimento sanitário.” (RICCI, 2017, p. 44)
Portanto, o fator social é determinante em muitos casos. O desafio diante do quarto artigo do credo bioético, mencionado anteriormente, também é uma bandeira do Reino de Deus, difundida pelas Teologias contextuais, especialmente a Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral. As características do Reino de Deus contemplam a Justiça, a paz e a alegria (Rm 14,17). Essas características parecem estar implícitas na oração do Pai Nosso, ensinada por Jesus, quando se pede: “Venha a nós o Vosso Reino” (Mt 6,10). Logo, ecoa um clamor para que a vontade de Deus (justiça) se faça presente no céu e na terra. A definição de Justiça, para as Teologias contextuais, está em consonância com a justiça social, pois é amor, partilha e atendimento à causa do vulnerável (Sl 82,3; Pv 31,9).
Em consonância com o Reino de Deus, o desafio do credo bioético reside na promoção da Justiça, trazendo paz e alegria aos vulneráveis, bem como “promovendo vida em abundância” (Jo 10.10). No entanto, a estratificação social é tão complexa que, de maneira pessimista, Porto acredita que: “a Bioética de intervenção é, em si mesma, uma utopia, haja vista que, por mais elaborada que seja, uma teoria social é capaz de exprimir apenas uma faceta da realidade, não podendo abarcar sua complexidade” (2012, p.111). Nesse sentido, a Teologia e outras correntes da Bioética se somam na práxis possível para a efetivação dessa justiça. Portanto, cabe aos bioeticistas e teólogos o dever de fazer tudo aquilo que for possível. Ainda que algumas constatações apontem para a utopia, parece possível um esforço para melhorar a qualidade de vida.
2.3 Decodificando as convergências entre Teologia e Bioética.
Por sua vez, a Teologia contextual, enquanto fidelidade ao apelo do evangelho, faz ecoar a revelação na atualidade, evidenciando as mesmas causas das injustiças sociais denunciadas no passado, como as formas tendenciosas da justiça civil que favorecem uma elite e os poderosos (Lv 19.15), o superfaturamento e os juros abusivos impostos pelos bancos (Ex 22.25-27), a má distribuição de renda e as remunerações baixíssimas (Jr 22.13; Tg 5.1-6), causando as maiores injustiças e, consequentemente, as desesperanças. A Doutrina Social da Igreja aponta para que seja buscada uma distribuição equitativa de renda, considerando a dignidade humana (DSI, 2005, § 303).
Diante das realidades iníquas da sociedade, em suas várias estratificações, urge a responsabilidade da Teologia em ser a voz denunciante como os profetas. “A teologia latino- americana é entendida como força libertadora e transformadora da realidade ao perceber e denunciar as injustiças que tornam a vida precária e produzem mortes precoces” (RICCI, 2017, p. 35).
A desigualdade social, especificamente a miséria, tem uma raiz, sim. Há um problema gerador de toda injustiça social: a ganância, o acúmulo em detrimento da escassez de outrem. Por isso:
porque oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo, construístes casas de cantaria, mas não as habitareis; plantastes vinhas esplêndidas, mas não bebereis o seu vinho. Pois eu conheço vossos inúmeros delitos e vossos enormes pecados! Eles hostilizam o justo, aceitam suborno, e repelem os indigentes à porta. (Am 5, 11-12)
Em consonância com a denúncia do profeta Amós, as palavras de Jesus parecem simples, mas extremamente carregadas de significado quando diz: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância” (Jo 10,10). Nesse sentido, a Teologia parece ter o dever de revelar o Cristo para a sociedade, levando essa vida em abundância. Vida em abundância parece implicar em qualidade de vida, condições básicas de sobrevivência, acesso à saúde e igualdade de direitos. Nesse sentido, parece residir aqui um dos pilares da ponte de encontro entre a Bioética e a Teologia.
É evidente que Teologia e Bioética possuem muitos pontos em comum e encontram- se na defesa dos seres humanos vulneráveis. A Teologia contextual já reconhece a necessidade de diálogo e estudo da Bioética em alguns documentos. Nesse encontro com a Bioética, ambas as ciências refletem sobre uma mesma essência. Enquanto a Bioética traz um chamado à práxis, a Doutrina Social3 da Igreja, do lado teológico, também resulta em prática, revelando a fé (Tg 2,18).
Qualitativamente, parece evidente que a Teologia de domínio, que está a serviço do poder, está longe de Deus. O desejo e propósito de Deus na literatura profética residem na Justiça (Am 5,24). Portanto, a Teologia contextual encontra-se com a Bioética nessa reflexão e releitura da realidade em defesa dos vulneráveis. Não se pode negar a dualidade entre a Teologia do domínio e a Teologia contextual.
Às vezes, as percepções da realidade podem trazer consequências. PY (2020) destaca que há uma operação de utilização da religião para legitimar e ampliar o autoritarismo. Como resultado da aliança entre alguns grupos cristãos e o poder político autoritário, estabelece-se o cristofascismo. “Esse cristofascismo fabrica intencionalmente uma ‘guerra dos Deuses’ a partir de uma ‘teologia do poder’ sustentada na memória do cristo europeu colonizador: sacrificialista e expiatório das minorias sociais” (PY, 2020, p. 25).
Para os teólogos, colocarem-se em defesa dos vulneráveis significa encarnar o carisma profético, principalmente em um país como o Brasil, que apresenta indícios de adesão aos discursos fundamentalistas. “Não colocar a teologia em pauta é perder de vista o poder existente em sua utilização política pela via do fundamentalismo cristão das grandes corporações” (PY, 2020, p.4).
É nesse sentido que a Teologia contextual deve ser colocada em pauta e em diálogo com outras ciências, especialmente a Bioética, na defesa daqueles que mais precisam. Essa parece ser uma atitude profética de afrontar as estruturas de poder. Para Márcio Fabri dos Anjos, essa relação entre Bioética e Teologia se verifica nos passos de “uma mediação socioanalítica que implica no diálogo entre a Teologia e as ciências que analisam e explicam os processos sociais na tentativa de revelar a trama das dominações do poder e as respectivas alternativas de reciprocidade e justiça” (ANJOS, in: Diccionario latinoamericano de bioética, 2008, p. 13, tradução nossa4).
2.4 Propondo a Justiça social como um desafio comum entre Teologia e Bioética
Embora a realização plena da práxis Bioética seja uma utopia e a Teologia contextual possa ter consequências, ainda é provocante e urgente a busca pela justiça social. Assim, a prática teológica deve ser encorajada a promover a vida em abundância (Jo 10,10). Para isso, deve, ao lado da Bioética de intervenção, discutir inclusive a má distribuição de renda, pois:
A economia deve se pautar para uma convivência solidária, sem misérias, sem discriminações, garantindo um mínimo de coisas necessárias para a sobrevivência digna de todos. O buen vivir expressa a afirmação dos direitos e garantias sociais, econômicas e ambientais. Todas as pessoas têm igualmente o direito a uma vida decente, que lhes assegure saúde, alimentação, água limpa, oxigênio puro, moradia adequada, saneamento ambiental, educação, trabalho, emprego, descanso e ócio, cultura física, vestuário, jubilação etc. (GARRAFA, 2009, p. 7-8)
Em um mundo capitalista/neoliberal, a justiça social, evidentemente, passa pelo problema econômico. “Sabe-se que no neoliberalismo a justiça comutativa é acentuada e aquela distributiva enfraquecida, senão esquecida. Parece não haver uma obrigação moral e social de cuidar dos fracos e vulnerados” (RICCI, 2017, p.30). De outro modo, o problema reside no acúmulo por parte de um em detrimento do outro, gerando a escassez. Assim, Teologia contextual e Bioética de Intervenção são convocadas a apresentarem esperanças. Se na Teologia há uma pregação contra o pecado da ganância (Is 56, 11; Ez 18, 8-13); bem como, um compromisso com a partilha, a Bioética é convidada a confrontar padrões sociais que causam a má distribuição de riquezas; promovendo a plenitude da vida humana.
Segundo TEALDI, no Dicionário Latino-Americano de Bioética, a América Latina é a região com as maiores desigualdades do mundo. Milhões de pessoas vivem na pobreza, indigência e exclusão social (2008). Em contrapartida, a riqueza, de modo crescente, é concentrada em uma pequena porcentagem de pessoas. “Se a ética é medida por seus fins, então o propósito da atenção primária de quem trabalha com bioética não pode ser outro senão buscar o progresso moral que significa justiça social” (TEALDI, 2008, p.56, tradução nossa5).
A injustiça é uma característica do pecado, segundo o Dicionário Latino-Americano de Bioética. De acordo com ele, “o pecado sempre será uma 'injustiça' porque, em sua raiz, reside ameaças a si mesmo, ao próximo, à comunidade, ao mundo criado e, a partir dessas dimensões fundamentais da existência, contra Deus” (YÁÑEZ, in: Dicionário Latino- Americano de Bioética, 2008, p. 385, tradução nossa). Portanto, é injusto acumular bens em detrimento de outrem, o que é pecaminoso. As riquezas só cumprem uma função benéfica quando são utilizadas em prol da coletividade. Segundo o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, “os bens, ainda que legitimamente possuídos, mantêm sempre uma destinação universal: é imoral toda forma de acumulação indébita, porque em aberto contraste com a destinação universal consignada por Deus Criador a todos os bens” (DSI, 2005, § 328).
A busca pela justiça social em prol da plenitude da vida deve ser um dos objetivos mútuos entre a Teologia Contextual e a Bioética de Intervenção. Esse desafio exige esforço recíproco. Assumir o desafio de promover a justiça social implica em assumir uma força libertadora e transformadora da realidade, percebendo e denunciando as injustiças que limitam a vida e produzem mortes prematuras (RICCI, 2017).
3 Considerações Finais
Diante da pergunta norteadora deste artigo - O que a Teologia e a Bioética possuem em comum e como podem promover a Justiça Social? - é possível observar que a Bioética transcende as questões de ordem biológica e é inerente a tudo aquilo que envolve a vida humana, visto que a vida é algo muito mais amplo do que um sistema biológico, alcançando diversas dimensões, especialmente a dimensão social.
A justiça é essencial para garantir a vida, já que quando a justiça é ausente, a vida se torna vulnerável (LS. 70). Ao ter a plenitude da vida como propósito, a Bioética, consequentemente, garante a justiça em todas as suas dimensões, especialmente na justiça social. A Teologia contextual, por sua vez, também se preocupa com a plenitude da vida, ou seja, a vida em abundância (Jo 10,10). Por ser a vida em abundância abrangente, a Teologia contextual e a Bioética de intervenção se encontram na promoção da justiça, especialmente a justiça social.
Como a vida é complexa e os problemas sociais são extremamente complexos, a Bioética não possui uma fórmula pronta e aplicável, mas busca estudar cada caso para promover a plenitude da vida humana em um contexto global. A Bioética é uma ciência transdisciplinar que pretende oferecer soluções para os grandes problemas, levando em consideração tudo o que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética social (LS. 110).
A Teologia contextual, reconhecida qualitativamente, é mais sensível aos valores do evangelho e, portanto, afetuosa aos vulneráveis. Essa Teologia possui conexão com a Bioética, especialmente a Bioética de intervenção. O artigo aponta possíveis pilares de aproximação entre a Teologia e a Bioética, destacando o credo bioético como um desses pilares. A Teologia contextual, por sua vez, cumpre o papel de denunciar as estruturas de poder defendidas por uma Teologia do domínio que justifica a dominação e o interesse. Além disso, a Teologia contextual tem a missão de fazer a revelação divina manifestar-se no tempo e no espaço, ou seja, ser a voz, a escuta, o abraço e o apoio que mantém a esperança dos mais vulneráveis.
Embora a Bioética não possua uma fórmula pronta e aplicável, ela busca estudar cada caso para promover a plenitude da vida humana em um contexto global, levando em consideração tudo o que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber. Já a Teologia contextual é mais sensível aos valores do evangelho e, por isso, afetuosa aos vulneráveis. Ela cumpre o papel de denunciar as estruturas de poder e fazer a revelação divina manifestar-se no tempo e no espaço, sendo a voz, a escuta, o abraço e o apoio que mantém a esperança dos mais vulneráveis.
É importante refletir sobre a situação dos vulneráveis no Brasil, que foi agravada em nome de um discurso moralista e segregador, alimentado pelas grandes corporações evangélicas com influência e sustentação do poder. Esse discurso parece ter sido alimentado pelas grandes corporações evangélicas com influência e sustentação do poder (PY, 2020), mesmo que isso signifique a destruição de vidas em todas as suas dimensões. Diante disso, a Teologia contextual e a Bioética de intervenção assumem um grande desafio social na promoção da justiça, especialmente a justiça social.
REFERÊNCIAS
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Notas