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UM PSICANALISTA VISITA A CABANA: ponderações frommianas sobre a noção de experiência mística na obra de William P. Young
A PSYCHOANALYST ON A VISIT TO THE SHACK: frommian considerations on the notion of mystical experience in the oeuvre of Willian P. Young
UN PSICOANALISTA VISITA LA CABAÑA: reflexiones frommianas sobre la noción de experiencia mística en la obra de William P. Young
Interações, vol. 18, núm. 1, e181t05, 2023
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS

INTERAÇÕES

Recepción: 10 Marzo 2022

Aprobación: 18 Diciembre 2022

Resumo: Este artigo visa apresentar a noção de ressignificação existencial advinda da experiência mística, a partir de uma análise psicanalítica frommiana da obra de ficção A cabana. Segundo o psicanalista Erich Fromm, a experiência mística, pode instaurar no indivíduo profundas mudanças e aprimoramentos em sua personalidade. Essa reorientação existencial pode, inclusive, fornecer ao sujeito uma nova maneira de compreender e de lidar com as contingências da vida, como é o caso da perda e do sofrimento advindo dela. Como recurso metodológico, este estudo irá se utilizar de uma leitura teórico-bibliográfica das seguintes obras A cabana, de autoria de William P. Young; e O espírito de liberdade, Psicanálise e religião . A linguagem esquecida; todas de Erich Fromm. Além destas obras, também recorremos a comentadores do psicanalista supracitado. Por fim, pretende-se mostrar que a experiência mística pode promover no indivíduo um despertar interior, libertando-o assim de um ciclo de sofrimento existencial.

Palavras-chave: A cabana, Experiência mística, Sofrimento, Cura, Erich Fromm.

Abstract: The present paper aims to present the concept of existential resignification through the mystical experience from a Frommian psychoanalytic analysis of the fictional work The shack. According to psychoanalyst Erich Fromm, the mystical experience can bring about profound changes and improvements in one's personality. This existential reorientation can even provide the subject with a new way of understanding and dealing with the contingencies of life, as it would be the case of loss and suffering arising from that. As a methodological resource, this study will use a theoretical and bibliographic reading of the following works: The shack, by William P. Young; You shall be as Gods; Psychoanalysis and religion, and, finally, The Forgotten language; all of them by Erich Fromm. In addition to these works, the commentators of the aforementioned psychoanalyst will also be used. Finally, it is intended to show that the mystical experience can promote an inner awakening in the individual, thus freeing him/her from a cycle of existential suffering.

Keywords: The shack, Mystical experience, Suffering, Cure, Erich Fromm.

Resumen: Este artículo pretende presentar la noción de resignificación existencial que surge de la experiencia mística, a partir de un análisis psicoanalítico frommiano de la obra de ficción La Cabaña. Según el psicoanalista Erich Fromm, la experiencia mística puede provocar profundos cambios y mejoras en la personalidad del individuo. Esta reorientación existencial puede proporcionar al sujeto incluso una nueva forma de entender y afrontar las contingencias de la vida, como es el caso de la pérdida y el sufrimiento que se deriva de ella. Como recurso metodológico, este estudio utilizará una lectura teórica y bibliográfica de las siguientes obras La cabaña, de William P. Young; y Seréis como dioses, Psicoanálisis y religión y El lenguaje olvidado; todas ellas de Erich Fromm. Más allá de estas obras, también hemos recurrido a los comentaristas del psicoanalista mencionado anteriormente. Por último, pretendemos mostrar que la experiencia mística puede promover un despertar interior en el individuo, liberándolo así de un ciclo de sufrimiento existencial.

Palabras clave: La cabaña, Experiencia mística, Sufrimiento, Curación, Erich Fromm.

1 INTRODUÇÃO

A cabana é uma obra de ficção de autoria do escritor canadense William P. Young. Originalmente publicada no ano de 2007 nos Estados Unidos, a sua tradução para a língua portuguesa ocorreu um ano depois, em 2008, alcançando grande popularidade no território brasileiro. O livro é considerado um best seller, foram vendidas cerca de 15 milhões de cópias ao redor do planeta, fato que impulsionou a temática sobre o amor e o poder do perdão. Young (2008), pontua – desde o início da trama – que os dogmas religiosos às vezes impedem o indivíduo de alcançar o seu aprimoramento existencial. Esse pensamento do autor se refere à ideia de que em algumas correntes religiosas o discurso não se encontra condizente com a práxis.

O pensamento expresso por Young (2008) – referente a influência da religião na vida de uma pessoa – se aproxima da cosmovisão do psicanalista alemão Erich Fromm, que salienta que a religião tem o potencial para aprimorar as potencialidades do indivíduo (religiões humanistas), como também de paralisá-las (religiões autoritárias) (FROMM, 1966). Contudo, o psicanalista adverte que o viés humanista ou autoritário (de uma determinada corrente religiosa) está diretamente vinculado à figura da autoridade religiosa, autoridade esta que pode disseminar tanto um discurso de paz, de amor e de fraternidade quanto de intolerância e de alienação. Fromm (1966) também esclarece que no seio de uma tradição humanista pode haver uma corrente autoritária e vice-versa. Assim, a dominância de um contexto humanista ou autoritário em uma determinada ramificação religiosa estará em consonância com o discurso e com as atitudes adotadas e encorajadas pelo líder religioso daquela comunidade. Nesse sentido, quando Fromm sistematiza a diferenciação entre uma tradição de cunho humanista e outra tradição de viés autoritário, o principal fator a ser analisado deve ser a sua praxiologia, isto é, o seu modo de agir no mundo.

De modo resumido, na perspectiva frommiana, se uma tradição ou corrente religiosa visa a difusão do amor, da compaixão, do respeito à alteridade do outro, expressando esses valores em sua práxis, estamos diante de uma tradição humanista. Porém, se uma determinada corrente religiosa nutre a intolerância religiosa, dogmas autoritários e a alienação de seus adeptos, ela se configura como uma ramificação religiosa autoritária (FROMM, 1966).

Segundo Fromm (1966, p. 60-61), outra forma produtiva de cultivo da dimensão espiritual1 se manifesta na experiência mística. Diferentemente de Freud, para Fromm, a experiência mística não representa uma neurose infantil, nem se refere ao chamado sentimento oceânico; para o psicanalista humanista, a experiência mística se constitui como uma demonstração da maturidade espiritual do indivíduo.

A trama de A cabana, de modo sucinto, gira em torno do sofrimento existencial do protagonista Mack, sofrimento este oriundo da perda de sua filha caçula Missy. Uma das principais questões presentes no enredo do livro diz respeito a capacidade de perdoar, um ato que liberta a pessoa da amargura e, que, possibilita uma renovação interior. Neste viés, a obra desenvolve a ideia de que o perdão é também um ato de amor, que reverbera tanto naquele que pede o perdão quanto naquele que perdoa. Nas palavras de Young (2008): “[...] todas as vezes que você perdoa, o universo muda; cada vez que estende a mão e toca um coração ou uma vida, o mundo se transforma [...]” (YOUNG, 2008, p. 219).

Como recurso metodológico, este artigo se utiliza de uma leitura teórico-bibliográfica do livro A cabana em interface com obras frommianas que tratam de temas como o perdão, o amor entre pais e filhos, a experiência mística e a ressignificação existencial. Como recurso metodológico auxiliar, recorremos à interpretação artística subjetiva. De acordo com a historiadora da arte Yolanda Silva, uma obra de arte – qualquer que seja sua natureza ou técnica – pode ser interpretada sob três perspectivas, a saber: a objetiva, a subjetiva e a formal também chamada de estética (SILVA, 2022).

Em termos gerais, a interpretação objetiva descreve os elementos que podem ser visualizados na obra; a interpretação subjetiva está associada a exposição dos sentimentos experienciados pela pessoa que contempla a obra e, por fim, a interpretação formal analisa a obra como um todo, se atentando ao contexto histórico, temática escolhida pelo artista, dentre outros aspectos (SILVA, 2022).

Assim, a partir destas ponderações, a análise artística e de modo mais específico a interpretação subjetiva (que contempla os impactos psíquicos e emocionais gerados no sujeito, decorrentes do seu contato com a obra de arte), nos permite visualizar a presença de temas sensíveis em A cabana; temas estes que acabam despertando no leitor uma série de reflexões existenciais e de cunho emocional. Dessa forma, utilizaremos a interpretação subjetiva da arte – em conjunto com a teoria frommiana – para tratar da análise de um sonho fictício presente em A cabana, sonho este que será tratado no próximo tópico deste manuscrito.

Neste viés, a partir da narrativa da obra A cabana, este manuscrito pretende elucidar que, na visão frommiana, a experiência mística é capaz de instaurar o despertar espiritual do indivíduo, que o conduz a uma existência mais harmoniosa. Assim, o nosso primeiro tópico analisará a linguagem simbólica dos sonhos, dos mitos e da literatura sob o paradigma frommiano; apontando que, a simbologia expressa em uma estória – como no caso de A cabana – pode suscitar novos insights e reflexões profundas sobre o sofrimento humano e suas manifestações no inconsciente. O segundo tópico se debruçará sob a trama de A cabana, sublinhando o sofrimento vivido pelo protagonista ao perder a sua filha, contexto em que, sua fé em Deus é abalada. O tópico seguinte tratará da noção de encontro consigo mesmo, que no contexto da psicanálise humanista, se refere à conscientização [por parte do sujeito] da causa do sofrimento, sendo esta conscientização o primeiro passo para a cura. Por fim, o último tópico, se destinará a apresentação da ideia de liberdade advinda do perdão a partir da interface analítica entre a psicanálise humanista e a obra A cabana.

A seguir, será tratada a noção frommiana sobre a linguagem simbólica que se encontra inscrita nos sonhos e na literatura. O objetivo do próximo tópico visa aclarar a visão de Erich Fromm sobre a contribuição da linguagem simbólica no que se refere ao processo de autoconhecimento.

2 A LINGUAGEM ESQUECIDA: a análise frommiana dos simbolismos expressos nos sonhos e na literatura

No intuito de realizar uma análise psicanalítica humanista satisfatória sobre a noção de experiência mística ficcional2 presente na obra A cabana, é necessário primordialmente elucidar, mesmo que de modo geral, os conceitos psicanalíticos referentes a interpretação dos sonhos e dos contos. Neste viés, este tópico se utilizará essencialmente do arcabouço teórico proveniente da psicanálise humanista de Erich Fromm; apresentando os principais elementos que perpassam a teoria frommiana acerca do mundo simbólico presente nos sonhos e na literatura, além de apontar os efeitos dessa linguagem sobre a psique humana.

A partir da leitura e do estudo de textos históricos e também de obras sagradas de determinadas tradições religiosas – como o judaísmo e o cristianismo –, é possível verificar que os conteúdos inscritos nos sonhos são objetos de fascínio do humano desde os tempos antigos. Na antiguidade, a interpretação dos sonhos era restrita à análises religiosas, místicas ou esotéricas, fato que, de certo modo, ainda conservava as tentativas de explicação (do conteúdo onírico) no espectro não-científico. Todavia, no fim do século XIX a interpretação dos sonhos seria novamente revisitada, só que agora sob uma nova abordagem interpretativa: a psicanalítica (PEREIRA, 2012).

Com base no escopo teórico deste manuscrito, é de suma relevância salientar a figura de Sigmund Freud (1856-1939). O pai da psicanálise instaurou uma nova forma de interpretação dos sonhos, cuja metodologia é fundamentada em conceitos de sua abordagem psicológica. Em sua obra A interpretação dos sonhos, publicada originalmente em 1900, Freud pontua que os sonhos expressam variados aspectos do inconsciente (FOULKES, 1970, p. 13-14).

De acordo com Freud [1900]/(1969, p. 619)3, a interpretação dos sonhos é de suma importância no tratamento psicanalítico, pois o conteúdo onírico (manifesto ou latente4) é repleto de elementos simbólicos que se originam no inconsciente do paciente. Dessa forma, quando o analisando se dá conta dos elementos inconscientes de seu sonho, tornando-os conscientes, ocorre um melhor conhecimento de si mesmo, possibilitando um processo terapêutico mais produtivo.

Os sonhos são igualmente objeto de estudo do psicanalista alemão Erich Fromm, que compreende os aspectos simbólicos presentes no estado onírico como mensageiros do estado da alma humana. Em termos sintéticos, a compreensão dos sonhos no paradigma da psicanálise humanista5 é entendida da seguinte forma:

[...] quando estamos dormindo, despertamos para uma outra forma de existência. Sonhamos. Inventamos estórias que nunca aconteceram, e que, muitas vezes, não tiveram precedente na realidade. Às vezes somos o mocinho, outras o bandido; às vezes vemos as mais belas cenas e sentimo-nos felizes, mas amiúde ficamos extremamente aterrorizados. Qualquer que seja o papel que desempenhamos no sonho, porém, nós somos o autor, o sonho é nosso, nós inventamos o enredo. (FROMM, 1962, p. 12).

O fragmento citado anteriormente nos esclarece que o conteúdo dos sonhos é proveniente do inconsciente do sujeito, ou seja, o enredo presente durante o estado onírico é singular para cada pessoa. Por esta razão, para uma interpretação satisfatória e mais assertiva dos sonhos, é necessário um conhecimento prévio do analisando. Além disso, vale sublinhar que os sonhos expressam tanto desejos quanto aspectos conflituosos da psique do indivíduo.

Vale explicitar que, o método de interpretação dos sonhos é um processo conjunto de decifração – realizado pelo analista e pelo analisando (sonhador) – do conteúdo inconsciente, processo este que se desenvolve a partir do relato do conteúdo onírico (acontecimentos, personagens, lugares, clima emocional, dentre outros aspectos). No caso da obra A cabana, propomos uma interpretação a partir do relato onírico do narrador da estória, que é puramente ficcional. Dessa forma, em vista de realizar a interface entre a teoria frommiana e a obra supracitada, sublinhamos que o conteúdo de um sonho – mesmo em um contexto ficcional – é relevante por mostrar que o simbolismo onírico revela muito sobre o estado psíquico de um indivíduo. O sonho é em última instância, uma comunicação interna, uma mensagem codificada cujo remetente é o nosso inconsciente.

A utilização da interpretação artística subjetiva nos possibilita visualizar três temas de grande estima para o autor de A cabana e, que são abordados na referida obra: 1) a ideia de que os traumas do passado impactam negativamente a vida de uma pessoa; 2) a reflexão acerca do poder libertador e regenerativo do perdão e; 3) a possibilidade de uma experiência mística que promova uma ressignificação existencial. A interpretação subjetiva da arte também evidencia a presença de uma mensagem implícita que permeia o enredo de A cabana, a saber: a existência é permeada por reveses, mas que, enquanto há vida haverá esperança. Esta mensagem implícita adverte sobre a importância do cultivo da esperança, que por sua vez, nutre a alegria de viver de uma pessoa. Todavia, para experimentar essa alegria renovada, é necessário, primeiramente tratar/curar os traumas e as feridas do passado.

Este último aspecto – traumas do passado – é ressaltado no fragmento referente ao sonho perturbador do protagonista, que aponta para o seu estado de sofrimento psíquico, o qual iremos interpretar por intermédio do paradigma psicanalítico frommiano. No referido sonho, Mack voava sem auxílio de asas ou de qualquer tipo de aparelho:

[...] Mack voou alto na noite estrelada, através do ar límpido e frio, sem qualquer desconforto. Sobrevoou lagos e rios, atravessou um litoral oceânico e várias ilhotas cercadas de recifes. [...] Enquanto planava à vontade sobre montanhas escarpadas e praias de um branco cristalino, usufruía a maravilha do sonho de voar. Subitamente, algo o agarrou pelo tornozelo e o puxou para baixo. Em questão de segundos foi arrastado das alturas e jogado violentamente, de cara, numa estrada lamacenta e muito esburacada. O trovão sacudia o solo e a chuva o encharcou instantaneamente até os ossos. E tudo veio de novo, raios iluminando o rosto de sua filha enquanto ela gritava “Papai!” sem emitir nenhum som e se virava e corria para a escuridão, o vestido vermelho visível apenas por alguns clarões breves e depois sumindo. Mack lutou com todas as forças para se soltar da lama e da água, mas foi sendo sugado para mais fundo. No momento em que estava submergindo, acordou ofegando. (YOUNG, 2008, p. 105-106).

A partir de uma análise psicanalítica humanista do fragmento anterior, é possível elencar alguns elementos importantes presentes no estado psíquico6 de Mack. O primeiro diz respeito ao ato de voar, que está associado à busca pela liberdade e pela superação de seu sofrimento. Em um primeiro momento, ao voar Mack sente-se em paz e em plenitude, todavia, esse sentimento é interrompido por algo que lhe agarra e lhe traz subitamente ao chão. O segundo elemento é justamente a queda, que reflete-se na visão de sua filha desaparecida pedindo ajuda na escuridão. Assim, percebe-se que, a queda, manifesta o sofrimento ainda não superado pelo protagonista. O terceiro elemento do sonho está atrelado ao fato de Mack não conseguir se desvencilhar da lama enquanto sua filha vai se distanciando na escuridão. Este terceiro elemento está associado ao sentimento de impotência do protagonista diante do rapto da filha, ou seja, Mack ainda não havia se perdoado pelo fato de não ter alcançado êxito em proteger sua filha. Além disso, a escuridão, representa a angústia do protagonista, referente ao desconhecimento do paradeiro de Missy. A partir desta breve análise do sonho de Mack, é possível visualizar muitos aspectos da interioridade do protagonista, desde os seus anseios por paz e felicidade até as suas angústias e frustrações.

Neste paradigma, Fromm (1962) adverte que, a linguagem simbólica deve ser compreendida como uma língua universal do ser humano, com tamanha importância que, segundo o autor, deveria ser ensinada nas escolas como disciplina complementar. Para o psicanalista alemão a linguagem esquecida (simbólica) é ampla e abarca o entendimento dos símbolos inscritos nos sonhos, nos mitos, nos contos de fadas e na literatura. Deste modo, o nosso autor esclarece que a linguagem simbólica se refere ao:

[...] meio da qual exprimimos experiências interiores como se fossem experiências sensórias, como se fosse algo que estivéssemos fazendo ou que fosse feito com relação a nós no mundo dos objetos. A linguagem simbólica é onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e de nossas mentes. (FROMM, 1962, p. 18).

Segundo a perspectiva frommiana, é de suma importância que o sujeito entenda o significado da linguagem simbólica, pois essa compreensão é acima de tudo experiencial e produtiva. Em termos gerais, esta afirmação quer dizer que, o sujeito poderá aprimorar a percepção de si mesmo e do mundo que o cerca mediante a sua capacidade de interpretação da linguagem simbólica (PEREIRA, 2012, p. 68-69).

Quanto à similaridade entre os sonhos e os mitos enquanto criações humanas e inseridos no espectro da linguagem simbólica, o pai da psicanálise humanista elucida que:

[...] no mito, igualmente [aos sonhos], ocorrem acontecimentos dramáticos de todo impossíveis em um mundo governado pelas leis de tempo e espaço: o herói abandona o lar e a pátria para salvar o mundo; ou foge de sua missão e vive dentro do ventre de um grande peixe; morre e ressuscita; o pássaro místico é queimado e renasce das cinzas mais belo do que antes. Evidentemente, povos diferentes criam mitos diferentes, tal como diferentes pessoas têm sonhos diferentes. Porém, a despeito destas diferenças, todos os mitos e todos os sonhos tem uma coisa em comum: são escritos na mesma língua, a linguagem simbólica. (FROMM, 1962, p. 13-14, grifo do autor).

Baseado no trecho supramencionado, entende-se que a linguagem simbólica perpassa a psique humana como forma de elaboração da realidade interior. Isto é, no pensamento frommiano os sonhos, os mitos e a literatura se apresentam sob roupagens diferentes, mas possuem como seu núcleo essencial a tentativa simbólica do ser humano de responder e de atribuir sentido a certas contingências da existência. Como exemplo dessas contingências pode-se citar: a perda de um ente querido, o adoecimento, o sofrimento, dentre outros. Em termos gerais, a interpretação da linguagem simbólica possibilita ao indivíduo tornar-se consciente de seu mundo interior. Como síntese da importância da interpretação da linguagem simbólica, o pai da psicanálise humanista sublinha que:

[...] o Talmude diz “Um sonho não interpretado é como uma carta não aberta”. Com efeito, sonhos e mitos são comunicações importantes de nós para nós mesmos. Se não entendermos a língua em que são escritos, perderemos grande parte do que sabemos e nos dizemos a nós mesmos, durante as horas em que não estamos ocupados com o mundo exterior. (FROMM, 1962, p. 16).

Por fim, vale frisar que o enredo da obra A cabana, apresenta vários elementos que convidam o leitor a realizar uma reflexão de sua própria existência. Aspectos como o amor, o sofrimento e o perdão são apresentados no enredo de forma humanística, ou seja, não há um discurso autoritário de como se deve agir diante de certas contingências da vida. A obra abarca o sofrimento vivido por Mack como uma situação que pode ocorrer com qualquer pessoa e, que, pode levar o indivíduo à uma postura destrutiva. Neste viés, o tópico seguinte visa apresentar o background, um breve histórico da vida do protagonista de A cabana, desde o seu relacionamento conturbado com seu pai até o momento traumático da perda de sua filha, fato que desencadeou o seu sofrimento.

3 SOBRE O SENTIR E O SOFRER: Mack e a grande tristeza

Para analisar o sofrimento vivenciado pelo protagonista da obra, faz-se necessária uma breve contextualização da trama, para que, posteriormente, possamos realizar as ponderações psicanalíticas humanistas. Neste sentido, vale ressaltar que a narrativa de sofrimento do protagonista de A cabana se inicia em sua infância. A infância conturbada de Mackenzie Allen Phillips, também conhecido como Mack, se origina no relacionamento problemático com o seu pai, que era alcoólatra. Mackenzie por diversas vezes presenciou demonstrações de violência física e emocional praticadas por seu pai, demonstrações estas que geralmente eram dirigidas a ele ou a sua mãe.

Diante das problemáticas de seu contexto familiar, o jovem Mack decidiu procurar ajuda externa com o propósito de dar um fim naquele ciclo nocivo de violência. Com este objetivo em mente, Mack decidi ir a um encontro de jovens na igreja cristã-protestante em que frequentava. Neste encontro, o protagonista relatou à um dos dirigentes daquele evento os problemas que estava vivenciando com sua família, e: “[...] confessou chorando que nunca fizera nada para ajudar a mãe nas várias vezes em que testemunhara o pai bêbado lhe dar uma surra até deixá-la inconsciente. O que Mack não pensou foi que o seu confessor frequentava a mesma igreja que seu pai.” (YOUNG, 2008, p. 10).

Após esse trecho, a obra nos relata que o pai de Mack, ao saber da confissão do filho a um dos dirigentes do encontro religioso, amarrou o garoto em uma grande árvore que ficava no quintal de sua propriedade e o agrediu fisicamente enquanto recitava versículos bíblicos. Passado algum tempo, o nosso protagonista decidiu abandonar a sua casa, mas antes “[...] colocou veneno de rato em cada garrafa de bebida que conseguiu encontrar na fazenda.” (YOUNG, 2008, p. 10). Diante desses relatos, pode-se verificar que o sofrimento de Mack se iniciou ainda em sua infância e, que, o sentimento de culpa pelo fato de ter colocado veneno nas bebidas do pai (fato que culminou na morte do mesmo), o acompanharia por longos anos.

Vale ressaltar que, no âmbito da psicanálise, o espectro de traumas gerados a partir de questões não resolvidas e/ou pela ausência [física ou emocional] da figura paternal é nomeado de ferida paterna (LEVY; KUPFERBERG, 2009, p. 178). Este tipo singular de trauma, arraigado na alma do protagonista de A cabana, nos revela que, a ferida paterna impactou fortemente a cosmovisão de Mack, sobretudo no que tange à sua visão religiosa/espiritual acerca de Deus.

A partir da narrativa apresentada até aqui, é possível perceber ao menos dois elementos que são essenciais para a compreensão do sofrimento psíquico e emocional7 vivido por Mack: 1) o amor primário e 2) o sentimento de culpa. Nesse sentido, em vista de analisar os conceitos supramencionados, cabe elucidar mesmo que de modo breve, as compreensões frommianas acerca do amor primário e sobre o sentimento de culpa.

Segundo Fromm (1971, p. 71-72), o amor se constitui como uma ação, uma atitude da pessoa em relação ao outro e a si mesmo. Na perspectiva psicanalítica humanista o amor é compreendido por intermédio de tipologias, isto é, são as várias formas em que a pessoa pode direcionar o seu amor à um determinado objeto. Como exemplos dessa tipologia do amor, vale citar: o amor erótico, o amor fraterno, o amor a Deus, o amor entre pais e filhos, dentre outros (COTTA; CAMPOS, 2020).

De acordo com o pai da psicanálise humanista, o amor entre pais e filhos se configura como a primeira interação amorosa da pessoa com o mundo exterior. Também chamado de amor primário, a relação de amor entre pais (responsáveis ou tutores) e filhos é de suma importância na psique da criança devido em grande parte ao processo de interação socioafetiva. Após passar da fase narcísica8 (característica dos primeiros anos de vida), mais especificamente por volta dos oito anos de idade, a criança tende a começar a demonstrar o seu amor através de pequenos gestos, como por exemplo: o de dar à mãe ou ao pai um desenho, um poema, dentre outras formas de externalização do seu amor (COTTA; CAMPOS, 2020).

Contudo, quando a criança não recebe amorosidade por parte de seus pais, pode ocorrer o que chamamos de desestruturação psíquica e emocional. Essa desestruturação é extremamente destrutiva, e acaba por instaurar sérios problemas de cunho interpessoal na vida da criança. Questões como a violência e a prática de delitos na juventude, podem estar relacionadas com a desestruturação do vínculo familiar. A incapacidade dos pais em expressar amor gera uma série de cicatrizes emocionais na vida do(a) filho(a) e, que, poderão desencadear na fase adulta uma gama de patologias como: o comportamento antissocial, as parafilias (pedofilia, zoofilia, necrofilia), o alto grau de perversidade (sadismo), dentre outros (FROMM, 1987, p. 477-483).

Na obra A cabana, nos é relatado que o relacionamento entre o jovem Mackenzie e seu pai não era saudável. Além da ausência de amor no vínculo entre pai e filho, a agressividade da figura paterna foi evidenciada de forma acentuada. A violência física e psíquica sofrida por Mack no decorrer dos anos o levou a uma medida extrema: inserir raticida nas bebidas de seu pai.

No pensamento psicanalítico freudiano, em termos gerais, a culpa é instaurada no sujeito através do sentimento de medo do Superego (Super-eu) e pelo temor da autoridade externa. Em outras palavras, segundo Freud, a imagem da autoridade externa (pai, sacerdote, policial) e a instância do Superego estão interligadas pelo medo, um contexto que acaba por instituir a infelicidade interna no sujeito. Neste viés, “[...] o primeiro [medo da autoridade] nos obriga a renunciar a satisfações instintuais, o segundo [medo do Super-eu] nos leva também ao castigo, dado que não se pode ocultar ao Super-eu a continuação dos desejos proibidos.” (FREUD, 2011, p. 73).

Dito de outra forma, o sentimento de culpa está interligado ao conflito gerado entre a necessidade de prazer de um lado e as interdições do superego9 de outro (SINGH, 2005). Esse estado de insatisfação interior entre as instâncias psíquicas gera o sentimento de culpa no indivíduo, que para não perder o amor da autoridade externa acaba optando pela infelicidade interna. A noção de sentimento de culpa também é evidenciada na obra freudiana Totem e Tabu (1912-1913), na qual Freud realiza uma análise do mito do pai primevo. O estado de insatisfação interior frente a autoridade externa pode ser exemplificada pelo mito do pai primevo. De modo geral, o mito nos relata que o pai primevo era o líder de uma horda primitiva. Ele mantinha a posse de todas as mulheres do clã, impedindo dessa forma, que seus filhos pudessem se relacionar com qualquer uma delas. Posteriormente, os filhos:

[...] são expulsos da horda quando crescem, no intuito de evitar conflitos com o pai primordial. Acontece que, ‘certo dia’ esses mesmos irmãos se juntam e voltam ao clã com o objetivo de matar o pai primitivo. Após executar o parricídio do pai invejado, os filhos o devoram, com a finalidade de absorver o que admiravam nele. (GODOI; NOÉ, 2018, p. 75).

A partir do fragmento anterior, é possível perceber o elemento que fomentou o assassinato do pai primevo, a pretensa conquista da liberdade. Entretanto, conforme nos adverte Freud (1974, p. 171), o assassinato do pai lhes garantiu a liberdade, porém lhes infligiu posteriormente o sentimento de culpa. Essa ponderação freudiana nos permite analisar o sofrimento psíquico vivenciado pelo protagonista de A cabana. Assim como no mito do pai primevo, Mack ao assassinar seu pai (por meio do envenenamento), não alcançou a liberdade interior nem mesmo a almejada paz de espírito, ao contrário, essa ação instaurou um profundo sentimento de culpa em seu ser.

Na abordagem psicanalítica humanista, o sentimento de culpa é entendido como algo nocivo, que impede o indivíduo de viver com saúde e harmonia interior. Para Fromm (1975, p. 139-141), o sentimento de culpa provoca um ciclo de sofrimento existencial em que a pessoa se aliena de si mesma. De acordo com o nosso autor, o sofrimento oriundo do sentimento de culpa pode acompanhar uma pessoa por toda a sua vida, destituindo-a da alegria de viver.

No livro A cabana, o amor entre pais e filhos e o sentimento de culpa são abordados como aspectos que permeiam a vida do protagonista e, que, de certa maneira acabam por impactar a forma como Mack se relaciona com sua família. A partir do enredo da trama, é possível perceber que o protagonista se esforça para ser uma figura paterna amorosa e presente na vida de seus filhos. Ou seja, a figura paterna desempenhada por Mackenzie é exatamente oposta à do seu pai.

O sentimento de culpa, por outro lado, se apresenta com um dos elementos que permeiam o estado de sofrimento do personagem principal. A culpa vivida por Mack é proveniente de dois eventos distintos: o primeiro se refere à ação de colocar veneno nas bebidas de seu pai; o segundo por ter falhado em sua tarefa como protetor de sua filha Missy. O evento que aborda o desaparecimento de Missy, será tratado a seguir, ao darmos continuidade a uma breve contextualização do enredo de A cabana.

De acordo com a trama de A cabana, após alguns anos decorrentes da fuga de Mackenzie de sua casa, ele se casou com Nannete A. Samuelson, chamada carinhosamente por ele de Nan. Desse enlace matrimonial nasceram três meninos (Jon, Tyler e Josh) e duas meninas Katherine (Kate) e Melissa (Missy). Além do núcleo familiar de Mack, o livro apresenta um grande amigo do protagonista chamado Willie, que assume a posição de narrador da referida obra (YOUNG, 2008, p. 12-13).

Um dos pontos centrais de A cabana gira em torno de A grande tristeza. Este evento se refere ao motivo do grande sofrimento existencial de Mack: a perda de sua pequena filha Missy. A grande tristeza ocorreu durante um acampamento realizado por Mack com os seus três filhos mais novos: Josh, Kate e Missy. O destino do acampamento era o parque estadual do lago Wallowa, localizado no Estado americano do Oregon (YOUNG, 2008, p. 35-36). Na ocasião desse passeio, a esposa do protagonista não estava presente. Durante este acampamento, em um momento de distração de Mack, Missy desaparece, fato que leva o protagonista a recorrer ao auxílio das autoridades policiais. Depois de algumas horas de investigação, os policiais localizaram em uma cabana nas proximidades do parque estadual, indícios de que a pequena Missy havia sido mais uma vítima de um procurado serial killer, conhecido como Matador de Meninas. Ao chegar à referida cabana, acompanhado pelos policiais e pelos agentes do FBI, Mack se depara com vestígios de sangue na roupa de sua filha, esse é o início da chamada A grande tristeza10.

Diante dos acontecimentos mencionados anteriormente, é possível entender os motivos que originaram o sofrimento do protagonista e a sua relação ambivalente (amor e ódio) para com Deus. De acordo com a obra, após o período de cerca de três anos e meio após o desaparecimento de Missy, Mack recebeu uma pequena carta em um dia frio e gelado do inverno canadense. A carta datilografada dizia simplesmente “[...] Mackenzie, Já faz um tempo. Senti sua falta. Estarei na cabana no fim de semana que vem, se você quiser me encontrar. Papai.” (YOUNG, 2008, p. 19). O termo papai chamou a atenção de Mack, pois era a forma como a sua esposa se referia carinhosamente a Deus em suas orações. O protagonista depois de muito pensar e de conversar com o seu amigo Willie, resolve voltar à cabana, com o objetivo de descobrir quem era o verdadeiro autor da carta. O próximo tópico pretende sublinhar a noção frommiana de encontro consigo mesmo e a sua interface com a premissa mística ficcional presente no enredo de A cabana.

4 A CABANA COMO UM LOCAL DE ENCONTRO CONSIGO MESMO: breves considerações frommianas sobre experiência mística

Dando continuidade à análise do livro ficcional, a trama revela a chegada de Mack à cabana, o local em que foram encontradas evidências do assassinato da filha mais jovem do protagonista, a pequena Missy11. Assim, logo ao chegar na referida cabana, Mack a encontra em um estado de abandono, sem a presença de seu suposto anfitrião. Naquele momento, tomado pela frustração, Mack se deita no assoalho da cabana e adormece.

Após acordar, o protagonista se dirige ao seu automóvel com a intenção de voltar para casa. Mack estava convencido que aquele bilhete (o convidando a voltar à cabana) havia sido fruto de uma brincadeira maldosa, possivelmente do assassino de sua filha e realizada com o intuito de vê-lo sofrer ainda mais. No entanto, no percurso em direção ao seu automóvel, Mack se depara com um homem jovem, detentor de traços semitas, e decide segui-lo. Para a surpresa do protagonista, o homem desconhecido estava se dirigindo à cabana. Porém, algo havia mudado, quando Mack retornou a cabana, o seu aspecto estava totalmente diferente, ela se mostrava aconchegante e revitalizada, repleta de flores e de ornamentos.

A visão da cabana revitalizada parecia aos olhos de Mack, um sonho ou um delírio oriundo de seu estado de dor e de desespero. Porém, conforme ia se aproximando da cabana, Mack experimentou o chamado tremendun et fascinans12 (temor e fascínio) diante do mistério que, aos poucos ia se revelando a ele. Esse sentimento misto de temor e de encantamento não o impediu de continuar se locomovendo em direção a entrada da pequena casa, pelo contrário, ele se sentia bem-vindo, acolhido. No momento em que Mackenzie se aproximou da porta principal da cabana, a mesma se abriu sozinha e o protagonista se deparou com três figuras distintas, que eram a personificação da trindade sagrada do cristianismo13.

A partir dos acontecimentos da trama citados até o momento neste tópico, a saber, o encontro de Mack com a trindade cristã, faz-se necessário elucidar o conceito de experiência advindo da psicanálise humanista. Segundo o psicanalista alemão Erich Fromm, a experiência é algo subjetivo e intransferível, não se repete, é um evento único. Ainda de acordo com o autor, mediante as experiências, o sujeito pode inclusive modificar a sua percepção de mundo através da incorporação de novos insights (FROMM, 1974, p. 53).

Neste estudo compreendemos a experiência de Mack como uma experiência mística, que detém como seu núcleo o encontro consigo mesmo14. Porém, antes de analisarmos a vivência supramencionada, é mister esclarecer, mesmo que de modo sintético, a definição de experiência mística. Em termos gerais, a experiência mística se constitui por intermédio de três elementos indissociáveis: o místico, o mistério e a mística. A tríade de elementos que compõe a experiência mística pode ser entendida da seguinte forma:

[...] o místico é o sujeito da experiência, o mistério, seu objeto, a mística, a reflexão sobre a relação místico-mistério. A derivação etimológica desses termos vem de myein (fechar os lábios ou os olhos), donde, por uma transposição metafórica, “iniciar-se”, do qual deriva-se o complexo vocabular: mýstes, iniciado, mystikós, o que diz respeito à iniciação, tà mystiká, os ritos de iniciação, mistikôs (advérbio), secretamente e, finalmente, mystérion, objeto da iniciação. (VAZ, 2000, p. 17).

Mediante as considerações do trecho supracitado, é possível perceber que a mística envolve a busca pelo mistério. O místico busca o contato com a divindade, e é nessa experiência que o indivíduo vivencia algo único e intransferível. Na perspectiva frommiana, durante a experiência mística (teísta) o ser humano estabelece uma relação de amor e de liberdade para com Deus. De acordo com Fromm (2014, p. 58-59), pelo fato de não se prender aos dogmas das religiões institucionalizadas, a experiência mística se fundamenta como uma das manifestações do modo Ser15 de existência.

Dando prosseguimento a análise de A cabana, o enredo nos apresenta o encontro do protagonista com a trindade cristã, cada qual com suas peculiaridades físicas singulares. Deus se apresenta sob a aparência de uma mulher negra de meia-idade; o espírito santo sob a forma de uma jovem de etnia asiática e Jesus é retratado sob a aparência de um homem jovem de traços semíticos. A trindade cristã é apresentada na obra com o intuito de salientar a relação de unicidade entre Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo (YOUNG, 2008).

Sintetizando o encontro do protagonista com a trindade cristã, vale destacar alguns aspectos essenciais que foram abordados durante os diálogos estabelecidos entre Mack, Jesus Cristo e o Espírito Santo. Durante os diálogos com Jesus, Mack entende sobre a necessidade de se confiar em Deus e que a religiosidade só se torna relevante se for expressa pelo coração. A partir do encontro com o espírito santo, também chamado de Sarayu16 na obra, o nosso protagonista percebe que deixar rolar as lágrimas de vez em quando é terapêutico e, que, o nosso coração deve ser compreendido como um jardim (YOUNG, 2008, p. 125).

Em A cabana, o jardim é uma metáfora que simboliza a alma humana, uma dimensão que necessita ser cultivada pelo indivíduo com o intuito de alcançar a harmonia interior. De acordo com os aprendizados e insights obtidos, Mack se deu conta da importância da prática da interiorização, isto é, de voltar-se para as necessidades da alma17. A interiorização do protagonista se inicia quando ele percebe que sua alma necessitava de atenção, de cuidado.

O tema sobre o cultivo da alma de Mack é desenvolvido no capítulo nove da obra, intitulado Há muito tempo, num jardim muito, muito distante. Neste capítulo, é abordado um trabalho de jardinagem realizado conjuntamente entre Mackenzie e Sarayu (Espírito Santo). Durante o referido trabalho, o protagonista percebeu que no centro daquele jardim (localizado nos arredores da cabana) haviam crescido uma série de ervas daninhas que prejudicavam a sua ornamentação. Após notar o incômodo de Mack, Sarayu disse-lhe algo que iria impacta-lo a respeito da desarmonia daquele jardim: “[...] Não é de espantar, Mackenzie, porque esse jardim é a sua alma. Esta confusão é você! Juntos, você e eu estivemos trabalhando com um propósito no seu coração.” (YOUNG, 2008, p. 125-126).

O fragmento citado anteriormente é de grande importância para a análise da trama, pois se refere ao momento de tomada de consciência do protagonista. Neste trecho da obra, é sublinhada a necessidade de se conhecer a origem do sofrimento para que assim seja possível tratá-lo. No caso de Mack, o jardim serviu como uma metáfora para a condição de sua alma, metáfora esta que permitiu ao personagem descobrir que a sua dor (simbolizada pela erva daninha) era proveniente de seu estado de desarmonia interior. Com base nestas colocações, pode-se dizer que estar ciente da causa do sofrimento é o passo inicial para o processo de cura (FROMM, 2014).

Na abordagem psicanalítica humanista, a interiorização se constitui como um dos elementos mais importantes no tratamento da alma, é um processo o qual podemos denominar de cultivo da harmonia e do vigor interior. Segundo Fromm, este processo é produtivo e potencializa a orientação biófila18 da pessoa, ou seja, aprimora a capacidade humana referente ao amor à vida. Segundo a comentadora frommiana Joan Braune19, a orientação biófila da pessoa é estimulada e se desenvolve com a prática.

Na perspectiva frommiana, o cultivo da harmonia interior também é o momento de se defrontar com o seu verdadeiro eu, com suas falhas e imperfeições. Além disso, é o contexto oportuno para o desenvolvimento do atributo da humildade. Para o psicanalista alemão, a humildade deve ser entendida como uma atitude emocional por traz da razão, isto é, “[...] usar a razão, só é possível quando se consegue uma atitude de humildade, quando se emerge dos sonhos da onisciência e onipotência que se tem quando criança.” (FROMM, 1971, p. 156). Uma das possibilidades de aprimoramento da humildade ocorre quando a pessoa se utiliza da sensibilidade e da empatia para compreender que a limitação do outro é um aspecto essencialmente humano.

No livro A cabana, Mackenzie após uma certa relutância inicial, percebeu que possuir um coração humilde é o primeiro passo para perdoar o outro e a si mesmo. O personagem também compreendeu que o amor é uma força poderosa, capaz de transformar por completo a percepção de mundo de uma pessoa. Pelo intermédio dos diálogos estabelecidos com Deus durante a trama, o nosso protagonista se tornou consciente de suas potencialidades para amar e para perdoar. Todavia, apesar de compreender que o perdão era uma atitude libertadora, Mack ainda não havia perdoado verdadeiramente o assassino de sua filha, essa ferida emocional ainda seria tratada em seu coração.

Neste viés, no próximo tópico, iremos abordar a representação feminina de Deus no livro A cabana em interface com a noção frommiana de amor materno e a sua relação com o desenvolvimento psíquico do indivíduo. Além disso, também será descrito o conceito de perdão, entendido como uma atitude que possibilita a saída de um sofrimento existencial.

5 A CABANA E A ETERNIDADE: a face materna de Deus e a liberdade advinda do perdão

Esse manuscrito compreende a vivência do protagonista de A cabana como uma experiência mística que o possibilitou encontrar-se consigo mesmo. Como nos adverte Fromm, a experiência mística é capaz de promover uma ressignificação existencial no indivíduo que a vivencia (místico), e é sobre esta premissa que este tópico dirige a sua análise.

Para Fromm (1966, p. 60-61), por intermédio de uma experiência mística, os indivíduos não estabelecem uma relação de submissão a Deus, mas uma relação pautada pelo amor e pela afirmação de seus próprios poderes humanos20. Vale ressaltar que o nosso autor compreende a mística das tradições judaico-cristãs como humanista21, mas não reduz este pensamento somente ao contexto teísta. Ainda segundo o psicanalista alemão, a experiência mística pode ser visualizada em âmbitos religiosos teístas e não teístas, como é o caso da tradição zen budista, que não trata do conceito de Deus.

A partir destes pressupostos, vale sublinhar um fato relevante para a compreensão da experiência mística vivenciada pelo protagonista de A cabana: a cosmovisão de Mack foi sendo modificada produtivamente. Como nos adverte Fromm, uma das principais características de uma experiência mística, é a sua capacidade de potencializar a ideia de que a essência da vida está no cultivo do Ser, ou seja, no aprimoramento interior que se reflete em uma ressignificação existencial produtiva (FROMM, 2014, p. 98).

Outro aspecto relevante para a análise da experiência mística do protagonista de A cabana é evidenciado no diálogo estabelecido entre Deus e Mack no decorrer da trama. A personificação de Deus retratada na obra não elege nenhuma tradição religiosa como a sua preferida ou escolhida, pelo contrário em várias ocasiões de diálogo com Mack, a divindade relata que todos os caminhos22 (se referindo as religiões) conduzem o ser humano até Ele.

Ainda sobre a experiência vivida por Mack, há um outro elemento que merece toda a atenção: a personificação de Deus na trama. Na obra A cabana, Deus é retratado como uma mulher negra, uma figura maternal. De acordo com o enredo do referido livro, a primeira impressão que Deus causou em Mackenzie foi a de surpresa. O protagonista esperava encontrar uma representação masculina de Deus, um homem de cabelos e barba branca, no entanto, a figura que ele encontrou era a de uma sorridente e amável mulher negra que lhe advertiu:

Mackenzie, eu não sou masculino nem feminina, ainda que os dois gêneros derivem da minha natureza. Se eu escolho aparecer para você como homem ou mulher, é porque o amo. Para mim, aparecer como mulher e sugerir que você me chame de Papai é simplesmente para ajudá-lo a não sucumbir tão facilmente aos seus condicionamentos religiosos. (YOUNG, 2008, p. 83).

A personificação materna de Deus tinha um objetivo, trabalhar as couraças emocionais de Mack descontruindo conceitos religiosos pré-estabelecidos. Na obra, Deus optou por adotar a figura de uma mulher com o intuito de mostrar a Mack o seu amor incondicional por ele e por toda a humanidade. Deus também afirmou a Mack que a sua aparência feminina era a mais apropriada naquela ocasião, devido ao seu relacionamento conturbado com seu pai.

Com base no fragmento anterior da trama, é possível estabelecer uma interface entre os conceitos frommianos de amor paterno e de amor materno, com o intuito de aclarar a noção de amor incondicional expresso pela personificação feminina de Deus em A cabana. Assim, mediante a diferenciação dessas duas tipologias de amor, será possível compreender de uma forma mais satisfatória, os efeitos emocionais provocados em Mack através de sua experiência com Deus.

Para Fromm (1971, p. 63-70) o amor paterno e o amor materno possuem características singulares, e essa singularidade é passada ao(s) filho(s) do casal através da assimilação dessa experiência primária de amor. De modo geral, é necessário sublinhar que, apesar de apresentar uma noção tipológica padrão sobre o amor paterno e o amor materno, Erich Fromm entende que cada família possui um relacionamento único e, portanto, cada caso deve ser analisado a partir de seu próprio contexto.

Segundo Fromm (1971), o amor paterno possui como sua principal característica a sua condicionalidade, ou seja, para se beneficiar do amor do pai, o filho deve cumprir certos objetivos e metas estipulados pelo seu progenitor. De forma sintética, o filho deve ser obediente aos desígnios do pai para ser amado por ele. De modo diferente, o amor materno, possui a incondicionalidade como a sua principal característica, isto é, o amor materno não precisa ser conquistado pelo filho.

E é justamente por intermédio do amor incondicional que a personificação de Deus em A cabana demonstra todo o seu afeto pelo protagonista. É possível notar pelo enredo da obra que, Mack, aos poucos vai abandonando as suas resistências e seus traumas do passado. O amor incondicional de Deus por Mack é expresso em vários diálogos e por meio de atitudes de carinho, como o preparo de refeições prediletas do protagonista. Essa série de atitudes amorosas de Deus, possibilitaram a construção de um caminho para ressignificação existencial de Mackenzie, um caminho que só poderia ser trilhado se o protagonista conseguisse superar a sua dor através do perdão.

Como foi dito no início deste manuscrito, o protagonista de A cabana era detentor de um forte sentimento de culpa, pelo fato de ter inserido veneno nas bebidas de seu pai. Esse acontecimento marcou negativamente a vida de Mack e para que ele pudesse superar esse sofrimento era necessário se defrontar com este fantasma do passado. No capítulo quinze, intitulado Um festival de amigos, Deus concede a Mack a capacidade de ver o mundo espiritual, onde estavam os anjos e algumas pessoas que haviam falecido. Nessa experiência o protagonista visualizou diversas almas, cada uma delas com um padrão de cor e de luzes únicas que representavam as emoções daqueles seres. Após um curto intervalo de tempo, Mackenzie observou que uma daqueles pessoas caminhava em sua direção, era o seu pai. Ao ir ao encontro de seu pai, Mack lhe pediu perdão e disse que o amava. Nesse momento:

[...] a luz de suas palavras pareceu explodir, afastando a escuridão das cores do pai, transformando-as em vermelho-sangue. Os dois trocaram palavras soluçantes de confissão e perdão. E um amor maior do que qualquer um dos dois os curou. Finalmente se levantaram juntos, o pai abraçando o filho como nunca pudera fazer antes. Foi então que Mack notou a onda de uma canção passando sobre os dois, como se penetrasse no lugar sagrado onde ele estava com o pai. Abraçados, incapazes de falar em meio às lágrimas, eles ouviram a canção de reconciliação no céu noturno. (YOUNG, 2008, p. 200).

O trecho acima apresenta com toda a sua carga emocional, um dos principais elementos para a cura da alma de Mack, a saber, o perdão. A reconciliação com seu pai foi fundamental para que o protagonista encontrasse o caminho para a sua redenção. Nessa ocasião, o protagonista teve a oportunidade de experienciar a paz oriunda do perdão, Mackenzie começava a se livrar do fardo pesado da culpa.

Como nos adverte Erich Fromm, o perdão genuíno é capaz de romper com o ciclo de sofrimento existencial gerado pelo sentimento de culpa. Ao elucidar o viés terapêutico do ato do perdão, Fromm (1981) relembra o discurso do mestre hassídico Isaac Meier de Ger proferido no Yom Kipur23 e, que, pode ser resumido no seguinte fragmento:

Quem fale e reflita acerca duma coisa má que haja praticado, está pensando na baixeza perpetrada, e quem pense fica preso ai – com a alma inteira a pessoa fica presa completamente naquilo em que pensa, e por isso fica presa à baixeza. E por certo não será capaz de mudar, pois seu espírito endurecerá e seu coração apodrecerá, e, além disso, um ânimo triste pode apoderar-se dela. O que faria você? Remexa na imundície deste jeito e daquele, e ela continua a ser imundície. Ter pecado ou não ter pecado – de que nos adiante isso no céu? Durante o tempo em que estou matutando sobre isso eu poderia estar enfiando pérolas para a alegria do céu. Por isso é que está escrito: “Afaste-se do mal, e faça o bem” – afaste-se completamente do mal, não fique ruminando dessa maneira, e pratique o bem. Você agiu mal? Então compense isso agindo bem. (GLATZER, 1946 apud FROMM, 1981, p. 143-144).

Em poucas palavras, Fromm esclarece que a culpa pode nos levar ao estado patológico de autopunição. Diferentemente de uma reflexão ética, a autopunição não traz benefícios para o sujeito, pelo contrário, pode até mesmo desencadear severas patologias como a compulsão, o transtorno obsessivo compulsivo, dentre outras psicopatologias. Desse modo, baseado na reflexão ética do hassidismo, o psicanalista humanista pontua que atitudes como a solidariedade e a compaixão, podem auxiliar o sujeito a restaurar a sua harmonia interior e, assim, perdoar a si mesmo.

Por fim, cabe salientar uma última questão sobre a noção de perdão desenvolvida na obra A cabana e que diz respeito ao assassino da filha de Mack. Mesmo após experienciar os sentimentos de alegria e de paz durante o momento de perdão mútuo com seu pai, Mackenzie não estava disposto a perdoar o assassino de sua filha.

O capítulo dezesseis da obra, chamado Manhã de Tristezas, se inicia apresentando um diálogo entre Deus (agora sob uma aparência masculina24) e Mack à respeito de uma longa e difícil caminhada que os aguardava naquele dia. Durante o caminho, Deus mostrava a Mack vários sinais na floresta, sinais estes que foram feitos pelo serial killer que raptou sua filha. Durante a caminhada, o protagonista continuava relutante em perdoar o assassino, mesmo sabendo que esse era o desejo de Deus.

Diante daquele contexto, a trama nos relata que Deus se dirigiu ao protagonista e lhe disse: “[...] perdoar não significa esquecer, Mack. Significa soltar a garganta da outra pessoa.” (YOUNG, 2008, p. 209). A fala de Deus nesse momento cria em Mack uma nova percepção sobre o conceito de perdão. Isso nos remete a ideia de que o perdão genuíno deve ser compreendido como um processo que demanda tempo para ser elaborado pelo indivíduo. O enredo nos esclarece que perdoar não se refere à um estado de amnésia, mas sim à uma atitude que visa a libertação de uma carga emocional destrutiva. Assim, com o objetivo de libertar Mack daquele sofrimento destrutivo, Deus lhe adverte: “[...] o perdão existe em primeiro lugar para aquele que perdoa, para liberá-lo de algo que vai destruí-lo, que vai acabar com a sua alegria e capacidade de amar integral e abertamente.” (YOUNG, 2008, p. 209).

Dando continuidade ao enredo, Mack compreende que perdoar não significa esquecer e nem tampouco demanda um relacionamento com a pessoa que lhe causou o sofrimento e a dor, perdoar era não sucumbir ao ódio e a vingança. A partir desse diálogo com Deus, o nosso protagonista se deu conta que somente quando perdoasse o assassino de sua filha e abandonasse o ódio em seu coração, seria livre para viver com alegria novamente. Além de tratar da ferida emocional do protagonista e sanar de uma vez por todas o seu sentimento de culpa, havia um outro motivo para a caminhada de Deus e Mack naquela trilha da floresta: trazer Missy para casa. O corpo da filha de Mackenzie foi encontrado com a ajuda de Deus, e por fim, foi enterrado no jardim da cabana, sob uma cerimônia muito bela, encerrando dessa forma o sofrimento vivido por anos pelo protagonista (YOUNG, 2008, p. 115-119).

Neste ponto da trama, pode-se associar o sentimento de Mack com a noção frommiana de amor à vida. O protagonista de A cabana, por intermédio de sua experiência mística e da reflexão existencial advinda dela, encontrou forças internas para perdoar, abdicando da vingança contra o assassino de sua filha. Nesse sentido, Fromm (1981, p. 28- 29) nos esclarece que, a pessoa imbuída pelo amor à vida não busca a vingança, ela até pode pensar em se vingar, mas não cultiva a destrutividade em seu coração. A pessoa biófila – personalidade orientada pelo amor à vida – busca superar as amarras da vingança, pois compreende que a destrutividade dirigida ao outro acaba por aniquila-la interiormente.

Por fim, cabe ressaltar um último aspecto de suma importância em A cabana, aspecto este desenvolvido no capítulo final da obra, intitulado: Ondulações se espalhando. Este capítulo nos apresenta um plot twist (uma reviravolta no enredo) e que se refere a toda a experiência vivida por Mack na cabana. O capítulo se inicia com o protagonista despertando em um hospital, e fica ciente que havia sofrido um grave acidente a caminho da cabana e, assim, não havia sequer chegado em seu destino. Toda a experiência com Deus, Jesus e o Espírito Santo haviam sido parte de um sonho de Mack, sonho este ocorrido durante o seu estado de coma. Mackenzie ficou espantado com aquela descoberta, só que algo havia mudado em seu interior, os momentos vivenciados por ele na cabana eram tão reais como o ar que ele respirava (YOUNG, 2008, p. 223).

Após se inteirar de sua condição física, Mackenzie contou toda a experiência que vivenciou naquele final de semana na cabana para a sua esposa Nan. Para Mack, a ideia da sua experiência ter sido fruto de um sonho não era relevante, para ele o fator mais importante foi a cura de seu sofrimento. Vale ressaltar que, neste capítulo final, nos é revelado que após restabelecer a sua saúde, Mack guiou alguns policiais e peritos até a caverna em que havia sido encontrado o corpo de Missy (durante o seu sonho) e para a surpresa de todos, o corpo da menina estava naquele local.

Esse fato evidencia que, a experiência de Mackenzie de certo modo transcendeu a ideia de um mero sonho. De acordo com a análise da trama, a vivência do protagonista o permitiu comprovar no plano real uma informação proveniente de seu estado onírico, que de certo modo, fortalece a ideia mística de que uma parcela da alma25 de Mack esteve de fato na cabana com Deus, enquanto seu corpo26 repousava no hospital.

Em suma, para este estudo, a questão principal que permeia a análise da experiência mística do protagonista de A cabana se refere aos efeitos positivos provocados em sua psique. Nesses termos, a experiência mística deve ser entendida como algo singular e intransferível, que infunde naquele que dela participa (o místico) uma profunda reverência pela vida, pautada por uma transformação interior. É em outras palavras, uma ressignificação existencial que se manifesta exteriormente nas atitudes do místico para com o mundo que o cerca. Nestes termos, pode-se dizer que a experiência mística vivida pelo protagonista de A cabana instaurou o que se nomeia como despertar interior.

6 CONCLUSÃO

A obra de ficção A cabana apresenta aos seus leitores mais do que uma narrativa dramática e envolvente. Assim como toda boa obra, ela nos convida à reflexão. A cabana não se apressa em fornecer respostas rápidas e genéricas sobre as revezes da condição humana, a trama visa salientar que a superação de traumas psíquicos e emocionais, na maioria dos casos, é um processo que demanda tempo.

Mediante a análise psicanalítica humanista da obra é possível compreender que, o sentimento de culpa pode privar uma pessoa de uma vida saudável e harmoniosa. Isto quer dizer que, o recalque de traumas do passado não é uma solução definitiva, eles [os traumas] sempre voltam em diferentes roupagens, as vezes aparecem nos sonhos ou em determinadas situações que se tornam gatilhos psíquicos, sempre nos lembrando que ainda estão por ali e, que, precisam ser tratados.

Já a experiência mística segundo a perspectiva frommiana, está intrinsecamente associada ao despertar interior. É uma vivência que transforma a percepção da pessoa que a experimenta e, sobretudo, é uma experiência de amor com o todo. Isso não significa que o místico se torna indiferente as mazelas da vida, o que se modifica é a forma como ele percebe e lida com esses acontecimentos. Essa reorientação existencial pode ser entendida pelo exemplo de Mack, o protagonista de A cabana, que após a sua experiência mística (imbuída pelo amor incondicional de Deus) conseguiu superar a dor que o afligia ao liberar o perdão.

Os trechos finais da obra relatam a transformação interior de Mack, que se manifestou pela sua renovada alegria de viver, pela difusão do seu amor à todos a sua volta e, por uma nova compreensão acerca de Deus. No pensamento de Mack, Deus não representava mais a figura de um pai severo e punitivo, mas sim o de uma fonte de amor inextinguível, amor este que, assim como o perdão genuíno, tem a capacidade de curar as enfermidades da alma.

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YOUNG, William Paul. A cabana. São Paulo: Arqueiro, 2008.

Notas

1 De modo sintético, na perspectiva da psicanálise humanista, a dimensão espiritual está relacionada à necessidade existencial de um sentido para viver (FROMM, 1992, p. 13-14). Segundo Fromm (2013, p. 37-38), além de se constituir como a esfera antropológica responsável pela busca do sentido da vida, a dimensão espiritual também abarca elementos que integram o fenômeno religioso como: a religião, a experiência religiosa, a espiritualidade e a mística.
2 Convém aclarar que a noção de experiência mística vinculada à obra A cabana é ficcional, dada a ideia de que, a obra se configura na categoria de romance dramático. Dessa forma, a experiência mística de Mack (protagonista do referido livro), analisada neste manuscrito está atrelada a acontecimentos fictícios, sem associação com as vivências retratadas por místicos e místicas de variadas tradições religiosas. Isso significa que, a nossa análise sobre a experiência mística (contato íntimo com Deus) do referido personagem, possui como meta a interpretação de elementos simbólicos presentes na narrativa, dentre eles: as potencialidades internas do ser humano, a importância da cura das feridas emocionais e o poder regenerativo do perdão.
3 A data entre colchetes indica a data de publicação original do livro e a data entre parênteses se refere a data da publicação consultada.
4 O conteúdo manifesto é o relato descritivo do sonho feito pelo sonhador e o conteúdo latente é o conjunto do que vai sendo revelado a partir da análise. Em outras palavras, o conteúdo manifesto é o produto do trabalho do sonho que consiste em não deixar aflorar na consciência algo proibido pela censura; enquanto o conteúdo latente é o produto da interpretação conjunta entre analisando e analista em busca do verdadeiro significado do sonho (RESENDE, 2017, p. 1).
5 Em termos gerais, a psicanálise humanista, desenvolvida por Erich Fromm, é uma abordagem psicológica (escola psicanalítica) que se distingue da psicanálise freudiana pelo fato de não corroborar com a ideia de que a teoria da libido seja a força motivadora da estrutura psíquica do sujeito. Para Fromm (1970), as mais poderosas energias motivadoras da conduta do indivíduo são provenientes de sua condição humana, condição esta detentora de carências existenciais. Além disso, Fromm (2011) sublinha que a constituição psíquica do sujeito – seu caráter e sua personalidade – é desenvolvida mediante a sua relação com o elo social, ou seja, para o nosso autor, o indivíduo é em si um animal social. Para um maior aprofundamento dessa temática, recomendamos a leitura de nosso artigo O cultivo da sabedoria interior: o encontro entre a espiritualidade humanista e a educação nos escritos de Erich Fromm, de maneira específica o tópico intitulado: A compreensão da condição da existência humana na psicanálise humanista: o humano como um ser de carência.
6 A análise do sonho do protagonista da obra A cabana neste manuscrito é baseada nos acontecimentos de vida do personagem. Assim cabe reiterar que toda interpretação psicanalítica dos sonhos tem como base o histórico de vida relatado pelo paciente no setting analítico. Ou seja, sem esse conhecimento prévio da vida e da cosmovisão do analisando, o psicanalista não realizará uma interpretação assertiva.
7 Na psicanálise humanista, o ser humano é entendido em sua integralidade, isto é, em sua dimensão corpórea, psicossocial e espiritual. Assim, cabe sublinhar que o estado psíquico e emocional do protagonista de A cabana também está interligado a sua esfera espiritual. Essa última colocação pode ser verificada na trama da obra mencionada anteriormente, por intermédio da relação (inicialmente) conflituosa entre Mack e Deus. A figura de Deus, para o protagonista, está associada a visão de um pai celestial, visão esta que o remete ao seu relacionamento problemático com seu progenitor. Ou seja, para o protagonista, pensar em Deus como uma pai celestial era algo penoso e enfraquecia ainda mais a possibilidade de algum tipo de proximidade com a Divindade.
8 Também chamado de narcisismo primário, é o estágio em que o bebê/criança pequena se encontra em uma relação simbiótica com a mãe. A mãe nessa fase se constitui como a fonte de calor, de alimento e de segurança para o recém-nascido (FROMM, 1971, p. 75-78).
9 Segundo a perspectiva psicanalítica freudiana, a instância psíquica nomeada de Superego é constituída pela incorporação das leis, das normas, dos dogmas religiosos, dentre outros elementos que, representam a parte moral e os valores da sociedade (COTTA, 2020).
10 Devido à densidade e à riqueza do enredo da obra analisada não será possível descrever de forma mais detalhada certos eventos da mesma. Assim, o recorte analítico deste artigo será direcionado aos elementos que propiciaram o estado de sofrimento do protagonista e, posteriormente, a sua experiência mística que lhe concedeu a liberdade e a alegria provenientes do perdão.
11 É válido aclarar que o corpo de Missy não foi encontrado pelas autoridades policiais, impossibilitando assim, a realização de um momento de despedida (funeral), fato que ampliou ainda mais o sofrimento de Mack e de sua família.
12 Cabe ressaltar que o termo tremendun et fascinans é utilizado como expressão do temor e do fascínio humano diante de uma experiência de maior proximidade com a divindade (PANASIEWICZ, 2013, p. 593).
13 De acordo com o recorte teórico deste artigo, não iremos abordar o conceito da trindade cristã, o foco de análise está direcionado à noção da face materna de Deus e ao processo de perdão vivenciado pelo protagonista da obra A cabana.
14 A noção de encontro consigo mesmo deve ser entendida como um processo de profunda reflexão. É um momento em que a pessoa se defronta com o seu verdadeiro eu, percebendo as suas capacidades e também aquilo que a impede (traumas psíquicos e emocionais) de alcançar a paz e a harmonia interior.
15 Na teoria frommiana, o modo Ser de existência se refere a uma cosmovisão e a uma praxiologia orientada pelo altruísmo e pelo amor à vida. Em um polo oposto se encontra o modo Ter de existência, caracterizado pelo consumismo, pela cobiça e pelo egocentrismo (FROMM, 2014, p. 21).
16 O nome Sarayu na obra A cabana está associado ao vento, ao sopro do espírito de Deus (YOUNG, 2008, p. 101).
17 Na cosmovisão frommiana, o conceito de alma não possui uma conotação metafísica. A noção de alma na perspectiva psicanalítica humanista se refere aos aspectos humanos mais elevados como: “[...] o amor, a razão, a consciência e os valores éticos.” (FROMM, 1966, p. 9).
18 Na teoria frommiana, a biofilia e a necrofilia referem-se às tendências existenciais produtivas e improdutivas da personalidade humana, respectivamente. Vale mencionar que todas as pessoas são detentoras das duas tendências em seu âmago. Todavia, a diferenciação entre o indivíduo considerado biófilo ou necrófilo ocorre quando uma tendência se sobressai à outra, moldando assim a conduta do sujeito (FROMM, 1981 apud COTTA; CAMPOS, 2022, p. 115).
19 De acordo com Braune (2011, p. 5), o encontro entre o psicanalista Erich Fromm e o monge trapista Thomas Merton acabou por criar um elo de amizade entre ambos. Os diálogos entre Fromm e Merton culminaram na publicação de uma obra organizada pelo monge trapista intitulada Ofensiva de Paz. Tanto o monge quanto o psicanalista dialogavam a respeito da necessidade de aprimoramento das potencialidades para a difusão do bem e da paz. A principal influência de Merton sobre o pensamento de Fromm está relacionada a noção de encontro autêntico.
20 A expressão frommiana poderes humanos refere-se ao protagonismo do indivíduo enquanto agente construtor de sua própria história – ênfase humanística – e detentor de potencialidades.
21 O conceito de humanismo na perspectiva frommiana, de modo geral, está associado ao entendimento que o humano é um ser carente de necessidades existenciais e detentor de inúmeras potencialidades como o amor, a fraternidade, a compaixão, dentre outras. No contexto da mística, esse humanismo se manifesta, sobretudo, pela liberdade do sujeito em relação ao seu objeto de devoção (no contexto monoteísta o objeto de devoção está associado à figura de Deus). Isto é, para Fromm, o místico teísta estabelece um relacionamento de amor com a divindade caracterizado pela liberdade (FROMM, 2014).
22 Cabe destacar que a perspectiva de vários caminhos que convergem rumo a Deus é similar ao pensamento de estudiosos da mística e do diálogo inter-religioso como Raimon Panikkar (1918-2010) e Thomas Merton (1915-1968).
23 O termo em hebraico transliterado se refere à celebração mais sagrada do calendário judaico, conhecida como o Dia do Perdão (SHUA, 1994, p. 121).
24 Vale frisar que, essa transformação ocorre nesse trecho da narrativa, devido ao estabelecimento do perdão mútuo entre o protagonista e seu pai.
25 Vale ressaltar que de acordo com a tradição judaica, todas as noites ao dormir, uma parcela da alma da pessoa deixa seu corpo e se mantém no plano espiritual até o momento em que ela desperta, momento em que alma retorna ao corpo (SHUA, 1994).
26 É válido mencionar que a corrente mística judaica conhecida como hassidismo, é detentora de variados contos que descrevem as viagens espirituais do místico Baal Schem Tov (1698-1760). Nessas viagens espirituais, Baal Schem abandonava seu corpo físico, enquanto a sua alma se aventurava no paraíso (BUBER, 2019).


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