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O DISPOSITIVO MÍTICO-RITUAL DO NEOXAMANISMO: uma proposta de análise demartiniana
THE MYTHICAL-RITUAL DEVISE OF NEOSHAMANISM: a proposal of a demartinian analysis
EL DISPOSITIVO MÍTICO-RITUAL DEL NEOCHAMANISMO: uma propuesta de análisis demartiniana
Interações, vol. 18, núm. 1, e181t08, 2023
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS

INTERAÇÕES

Recepción: 12 Junio 2023

Aprobación: 08 Julio 2023

Resumo: A complexidade na configuração das religiões e formas de religiosidade contemporâneas tem desafiado os pesquisadores a buscarem parâmetros interpretativos, adequados ao estudo das recomposições inéditas entre práticas e saberes tradicionais com novos conteúdos. É este o caso do neoxamanismo, cujas práticas e conteúdos simbólicos ressignificam elementos do xamanismo ameríndio, com propósitos atuais, produzindo uma realidade simbólico-ritual com intenção de cura para as patologias da mente, do corpo e da alma. Amparado no ferramental teórico de Ernesto De Martino, expoente da Escola Italiana de História das Religiões, o presente artigo busca apresentar sua operacionalidade para a compreensão das práticas neoxamânicas, a partir de dois conceitos formulados pelo autor - a “crise da presença” e o “regime protegido” -, mediante os quais se pretende compreender a eficácia de tais práticas, enquanto dispositivo simbólico-ritual, na resolução de determinadas dores da existência humana na contemporaneidade. No caso estudado, além das técnicas performáticas, serão considerados contextos ritualísticos que fazem uso da ayahuasca: substância psicoativa capaz de induzir ao estado de dissociação psíquica dos participantes e sua reconstituição em contexto simbólico.

Palavras-chave: Neoxamanismo, Pluralidade religiosa, Cura alternativa, Regime protegido, Crise da presença, Ernesto De Martino.

Abstract: The complexity in the configuration of contemporary religions and forms of religiosity has challenged researchers to seek interpretative parameters, suitable for the study of unprecedented recompositions between traditional practices and knowledge with new contents. This is the case of neoshamanism, whose practices and symbolic contents reframe elements of Amerindian shamanism, with current purposes, producing a symbolic-ritual reality with the intention of curing the pathologies of the mind, body and soul. Supported by the theoretical tools of Ernesto De Martino, exponent of the Italian School of History of Religions, this article seeks to present its operability for understanding neoshamanic practices, based on two concepts formulated by the author – the “crisis of presence” and the “protected regime” –, through which it is intended to understand its effectiveness, as a symbolic-ritual device, in solving certain pains of human existence in contemporary times. In the case studied, in addition to performance techniques, will be considered ritualistic contexts that make use of ayahuasca: a psychoactive substance capable of inducing a state of psychic dissociation in the participants and its reconstitution in a symbolic context.

Keywords: Neoshamanism, Religious plurality, Alternative cure, Protective regime, Presence crisis, Ernesto De Martino.

Resumen: La complejidad en la configuración de las religiones y formas de religiosidad contemporáneas ha desafiado a los investigadores a buscar parámetros interpretativos, adecuados para el estudio de recomposiciones inéditas entre prácticas tradicionales y saberes con nuevos contenidos. Este es el caso del neochamanismo, cuyas prácticas y contenidos simbólicos replantean elementos del chamanismo amerindio, con fines actuales, produciendo una realidad simbólico-ritual con la intención de curar las patologías de la mente, el cuerpo y el alma. Apoyado en las herramientas teóricas de Ernesto De Martino, exponente de la Escuela Italiana de Historia de las Religiones, este artículo busca presentar su operatividad para la comprensión de las prácticas neochamánicas, a partir de dos conceptos formulados por el autor – la “crisis de presencia” y el “régimen protegido”-, a través del cual se pretende comprender su eficacia, como dispositivo simbólico-ritual, en la solución de ciertos dolores de la existencia humana en la contemporaneidad. En el caso estudiado, además de las técnicas performativas, se considerarán contextos rituales que hacen uso de la ayahuasca: una sustancia psicoactiva capaz de inducir un estado de disociación psíquica en los participantes y su reconstitución en un contexto simbólico.

Palabras clave: Neochamanismo, Pluralidad religiosa, Cura alternativa, Régimen protegido, Crisis de presencia, Ernesto De Martino.

1 INTRODUÇÃO

Um dos indicativos do crescimento de novas religiosidades no Brasil contemporâneo é a flexibilidade de práticas ritualísticas no espaço público. O religioso adquiriu novas formas de afirmar o sagrado na sociedade atual, configurando um contexto de pluralidade e simultaneidade das pertenças religiosas. Novas religiosidades podem ser consideradas formas alternativas de significar a vida, precisando ser reafirmadas para manterem-se presentes.

Perante a tempestuosa emergência de grupos religiosos na esfera pública e o concomitante crescimento de novos movimentos religiosos, não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo nas últimas décadas, a teoria clássica da secularização tornou-se alvo de algumas controvérsias. Esta reorientação analítica levou à contestação da tendência de se tomar a Europa Ocidental – ou melhor, determinados casos europeus – como modelo da secularização, conceito que, segundo o sociólogo José Casanova (2006), assumiu historicamente três conotações, que lhe emprestaram um caráter normativo e prescritivo sobre os rumos das sociedades modernas: 1) secularização como o declínio das crenças e práticas religiosas; 2) secularização enquanto a privatização da religião e 3) secularização enquanto diferenciação das esferas e emancipação das instituições e normas em relação à religião.

A constatação da insuficiência deste paradigma para se abarcar as experiências históricas plurais, que remetem às “múltiplas modernidades” (EISENSTADT, 2000) e às “múltiplas secularizações” (MONIZ, 2017), bem como para explicar a marcada presença pública das religiões na contemporaneidade, tem redirecionado o enfoque das pesquisas e demandado uma abordagem multidisciplinar sobre o tema. Desde o último terço do século XX, tornou-se comum falar em crise de sentido1, procurando sinalizar o mal-estar generalizado que o homem experimenta, num contexto em que as incertezas apontam para o esgotamento das verdades absolutas construídas pelas narrativas modernas, que prognosticavam um mundo perfeito, apresentado sempre como continuidade de si mesmo e regido pela razão. (BAUMAN, 1998, p. 21).

Neste cenário, se por um lado as religiões deixaram de fundamentar a sociedade, despindo-se do privilégio de verdade com relação a outros produtos da modernidade, por outro, é preciso admitir que as transformações observadas pelas sociedades ocidentais contemporâneas “produzem nos fiéis modificações de ideias e de desejos tais que os obrigam a modificar diversas partes do seu sistema religioso” (JULIA, 1976, p. 108). De tal forma que a presença pública das religiões e formas de religiosidade não nos autoriza a falar num simples retorno do religioso.

Segundo o cientista da religião Sebastião Hugo Brandão, a religião vem sendo ressignificada e adequada a uma nova demanda sociocultural, onde o sujeito religioso passou a se relacionar de forma distinta com Deus (BRANDÃO, 2016, p. 57), em busca do desenvolvimento de uma maior autonomia. Neste sentido, a tendência à proliferação de formas menos institucionalizadas de religião parece atender a esta demanda, tornando o indivíduo livre para construir sua própria identidade social e religiosa, proporcionando o que o autor denomina “emancipação individual”, na busca de sentido e de respostas às demandas e necessidades cotidianas.

Este fenômeno tem igualmente alargado o campo conceitual mobilizado pelos estudiosos para designar o fenômeno das novas religiosidades que afloram no Brasil, sobre o qual ainda não há um pleno consenso entre os estudiosos. O que se expressa na pluralidade de designações que recebe: campo religioso ampliado, religião difusa, religiosidade ou identidade religiosa flexível-flutuante, nova religiosidade sincrética, New Age, novas formas de religião, ou Novos Movimentos Religiosos. (SIQUEIRA, 2002, p. 25).

Apesar de sua grande variedade, estas manifestações contemporâneas compartilham caraterísticas comuns, dentre as quais a busca de autoconhecimento e do autoaperfeiçoamento, levando os atores religiosos a recorrem a práticas plurais e fracamente institucionalizadas. Movimento do qual deriva “não só o reavivamento de várias práticas, rituais e doutrinas religiosas”, mas, “o surgimento e o crescimento de um sem número de novas seitas e grupos centrados em visões milenaristas e apelos hedonistas (misticismo, esoterismo, xamanismo, movimentos ecumênicos, ufológicos, novos orientalismos)”. (SIQUEIRA, 2002, p. 197).

Seja qual for o caso, muitas das práticas religiosas contemporâneas estão atreladas ao propósito da cura. Estudioso do que vem sendo denominado por “Novos Movimentos Religiosos” (NMR), Silas Guerriero enfatiza que muitas vivências são identificadas pelos praticantes como busca de uma espiritualidade superior, sendo também esta uma nova e alternativa forma de se vivenciar a religiosidade (GUERRIERO,2018, p. 114). Pautados na compreensão de que mente, corpo e espírito estão interligados, os NMR não creditam qualquer justificativa para a busca da elevação espiritual se o corpo permanecer doente, fazendo surgir, assim, inúmeras vias de tratamento e cura pautadas numa concepção holística, que se desdobram em manifestações no mínimo curiosas da espiritualidade contemporânea. (GUERRIERO, 2018, p. 121)

É este o caso das práticas designadas como xamânicas, reapropriadas de diferentes maneiras por indivíduos e grupos urbanos. Neste cenário, torna-se pertinente problematizar como as práticas, os conteúdos discursivos e os propósitos inscritos no xamanismo contemporâneo - aqui denominado neoxamanismo - são hoje ressignificados e apropriados por diferentes grupos, de forma a se criar técnicas e táticas do fazer crer, seja do ponto de vista do investimento em novas modalidades narrativas, seja pela ritualidade criada. Especificamente, torna-se relevante indagar como e porque tais rituais funcionam (MANCINI, 2018). Ou seja: de que maneira, ao se apropriarem das matrizes americanas do xamanismo,tais técnicas produzem efeitos de cura sobre determinadas dores da existência humana, tanto do ponto de vista físico, quanto psicológico e espiritual?

Esta é a questão central que orienta o presente artigo, o qual busca apresentar uma proposta analítica às práticas aos movimentos contemporâneos designados como neoxamânicos, pautada no ferramental teórico-conceitual de Ernesto de Martino, expoente da Escola Italiana de História das Religiões (AGNOLIN, 2013, p. 68-77). Especificamente, apresentaremos algumas contribuições em nível conceitual e metodológico do aporte demartiniano, que se revelam operacionais na compreensão das práticas neoxamânicas na contemporaneidade, permitindo-nos entendê-las como produção ritual-simbólica que se dá em contexto culturalmente elaborado, designado por De Martino como “regime protegido”. Na visão do autor, ao representarem momentos produtores de “de-historizações”, as práticas e técnicas aí performadas instrumentalizariam os indivíduos para lidarem com o “drama histórico” no qual se encontram envolvidos: a “crise da presença”, que se traduziria no risco de perda do ser no mundo. (DE MARTINO, 2004).

No caso estudado, além das técnicas performáticas, serão considerados contextos ritualísticos que fazem uso da ayahuasca, substância psicoativa capaz de induzir o estado de dissociação psíquica dos participantes e sua reconstituição em contexto simbólico, com suposta eficácia na resolução de determinadas dores da existência humana, resultantes do que consideraremos parte do drama histórico da contemporaneidade.

2 O REFERENCIAL DEMARTINIANO

Na tentativa de nos aproximarmos de um enfoque teórico-metodológico e conceitual profícuo na compreensão do significado da ritualidade e da narratividade característico das práticas neoxamânicas, bem como de sua provável eficácia na cura das dores de sofrimento próprias à sociedade atual, tecemos inicialmente algumas considerações sobre o enfoque demartiniano.

Ernesto De Martino é um expoente peculiar da história intelectual italiana e considerado fundador da moderna antropologia cultural, além de historiador das religiões. O autor desenvolveu seus estudos em meados do século XX, com aproximação contextualizada em nível histórico e etnográfico das sociedades mágicas2. Sustentando uma perspectiva que buscava “abrir a etnologia à história a partir do campo específico do religioso, do mito e da magia” (POMPA, 2022, p. 325), suas pesquisas permitem-nos avaliar algumas estruturas mítico-culturais e destacar suas funções psicossociais - evolução, configuração, libertação e resolução dos conflitos psíquicos não resolvidos -, no âmbito do que designou como “sociedades mágicas”.

De Martino reivindica o método etnográfico como meio de historicização do mundo popular, identificando neste um repositório cultural alternativo à cultura hegemônica3. Segundo a antropóloga Teresa Tabucchi:

O que parece dar continuidade e unidade a todo o trabalho de De Martino é a sua vontade de individuar a forma como as diferenças de poder criam e mantêm as diferenças culturais nas sociedades estratificadas e, ainda, perceber como a produção intelectual se situa dentro dessas relações de poder e dentro de específicoscontextos históricos. (TABUCCHI, 2011, p. 8).

A ênfase num “historicismo absoluto”4 o levaria a se contrapor radicalmente aos pressupostos da fenomenologia da religião, no âmbito da qual “a multiplicidade dos fenômenos culturais torna-se a expressão de uma mesma essência religiosa” (AGNOLIN, 2013: 47)5. Embora focando objetos em princípio comuns, De Martino insiste em argumentar sobre a “gênese inteiramente humana, assim como as razões históricas que levam o homo religiosus a resolver o devir na repetição de um modelo meta-histórico” (POMPA, 2022, p. 329). Neste sentido, busca compreender a eficácia do simbolismo mítico- ritual das práticas mágicas não a partir de pressupostos fenomenológicos da “repetição do idêntico”: o mito do “eterno retorno”, de Mircea Eliade6. Tampouco, adere à noção de “repetição compulsiva”, formulada pela psicanálise freudiana, enquanto “impossibilidade de sair de uma situação traumática”. (POMPA, 2022, p. 329)

Contrariamente a estas perspectivas correntes à época, tal “eficácia simbólica” – nos termos formulados por Lévi-Strauss – é atribuída à capacidade das “práticas mágicas” de promoverem a reintegração do indivíduo no “mundo dos valores culturais” (POMPA, 2022, p. 230). Perspectiva que o remete às condições históricas que influenciam e ameaçam o psíquico dos indivíduos.

É assim que, dedicado ao estudo de um fenômeno presumivelmente obsoleto de doençae cura, na obra La terra del remorso, de 19617, o autor apresenta o campo da antropologia da saúde e doença. Além de considerar as conformações psicossomáticas como sendo influenciadas por fatores socioculturais e históricos, o autor reconhece as contribuições das ciências naturais e da medicina, ao oferecerem valiosas preliminares do pensamento moderno, como formas de interpretá-las.

Na sua visão, magia, superstição e mentalidade mítica apresentam imenso potencial energético. Assim, o recorrer às práticas mágicas - conjunto de representações e processos simbólicos ligados à doença e a sua cura - resulta da miséria social e cultural em que o individuo vive, as quais poderiam ser consideradas provedoras da miséria psíquica. Na compreensão destes fenômenos e a partir de documentação etnológica que reporta às sociedades mágicas, De Martino formula duas categorias centrais, que nos parecem operacionais na compreensão das manifestações contemporâneas das novas religiosidades e, em especial, das práticas neoxamânicas. São elas, o conceito de “crise da presença” e de “regime protegido”, os quais remetem ao drama histórico encenado pelas sociedades mágicas: a perda do ser no mundo e o seu “resgate”. (DE MARTINO, 2004).

Segundo De Martino, a presença é proveniente da construção do ser humano num mundo culturalmente estruturado. Embora o próprio autor reconheça em seus escritos filosóficos que a “presença” possa ser identificada no sentido de Dasein, formulado por Heidegger – como o “ser-no-mundo”, um ”ser aí”8 -, na sua formulação, a “presença” e o risco de sua “perda”, estão ligados “a condições históricas específicas de existência: aquilo que ele chama “o mundo mágico”. (POMPA, 2022, p. 332). Neste sentido, a “crise da presença” se refere à perda da capacidade de objetivação do mundo, ou seja: à incapacidade do indivídio estabelecer a diferença entre sua própria existência e o mundo, a fim de que possa “agir nele”, ao invés de ser “agido por ele”.

Trata-se, portanto, de um horizonte fundamentalmente histórico de abordagem. Em Sud e Magia (1959)9, o conceito de “perda” ou de “crise da presença” liga-se estritamente com o de momentos críticos da existência. Nestes, emergem condições históricas geradoras da “miséria psicológica”, mediante as quais “qualquer manifestação de negatividade comporta o risco de uma negatividade ainda mais séria: uma queda na própria energia moral de decisão e escolha, a perda da presença individual”. (DE MARTINO, 2015, p. 15, tradução nossa)10

Neste mesmo livro, debruçando-se sobre seu universo etnográfico de observação – a comunidade de Lucania, no Sul da Itália – o autor define as condições históricas da crise da presença, entre as quais identifica:

[...] a precariedade dos bens elementares da vida, a incerteza das perspectivas de futuro, a pressão social exercida sobre os indivíduos por forças naturais e sociais incontroláveis, a escassez de formas de assistência social, a dureza do trabalho numa economia agrícola atrasada, e a memória limitada de ações racionais e eficazes com as quais enfrentar realisticamente os momentos críticos da existência”. (DE MARTINO, 2015, p. 85, tradução nossa)11

Portanto, seria justamente nestes momentos em que “[...] a própria presença individual se perde como centro de decisão e escolha e se afoga em uma negação que atinge a própria possibilidade de qualquer ação cultural”12, que o complexo mítico-ritual representado pelas práticas mágicas -“aspecto que contem uma orientação suscetível de desenvolvimento cultural” (DE MARTINO, 2004, p. 138, tradução nossa)13 – é elaborado em resposta cultural à crise da presença.

Segundo De Martino, por mais que “a relação entre regime existencial e magia permaneça genérica e óbvia”, sem a averiguação de suas formas histórico-culturais concretas, é possível dizer que a raiz de qualquer forma de magia, ou seja, o que leva os indivíduos a buscarem tais práticas ancestrais de ritualização

[...] é o imenso poder do negativo ao longo da vida de um indivíduo, com seu rastro de traumas, bloqueios, frustrações, e a correspondente restrição e fragilidade do positivo por excelência da ação realisticamente orientada em uma sociedade que “deve” ser feita pelo homem e reservada ao homem, diante de uma natureza que “deve” ser incessantemente humanizada pelo trabalho demiúrgico da cultura. (DE MARTINO, 2015, p. 85, tradução nossa)14

Na obra El mondo mágico15 – publicada originalmente em 1948 - o autor faz alusão a uma época histórica em que o drama individual é inserido na cultura como um todo, propiciando técnicas de transformação, definidas de acordo com o acúmulo de experiências de gerações passadas. O magismo é, então, tido como “época histórica”, na qual a presença é garantida mesmo perante um mundo a ser fundado - no qual “o ser-no-mundo é uma realidade condenada” (DE MARTINO, 2004, p. 141)16 - mediante a ritualização do drama histórico imposto a cada ameaça de perdê-la. O rito, neste sentido, seria interpretado como a enunciação da própria doença, com vistas à cura. No caso: a doença que ataca o próprio centro decisional, da operatividade cultural, enquanto as técnicas, a ritualização do sintoma, promoveriam a reconstrução do seu significado em contexto performativo, de “regime protegido”.

Mediante tal conceito, De Martino se refere ao fato de as práticas mágicas representarem um conjunto de técnicas socializadas e tradicionalizadas, as quais são destinadas a proteger o indivíduo perante a “miséria psicológica” - resultante da miséria social e cultural - de forma a transformar o potencial energético negativo da crise (ser agido pelo mundo) em energia potencial positiva (agir no mundo), transpassando o sujeito de uma postura passiva para uma postura ativa - de modo a criar condições de presença. (DE MARTINO, 2015, p. 92)

A proteção mágica funciona como um lugar de de-historização, em que através da repetição ritualística operativa e pré-estabelecida, o regime protegido suspende a proliferação histórica dos fatos, das angústias (DE MARTINO, 2015, p. 95). Diferentementente da “noção de repetição de um modelo mítico” formulada pela fenomenologia eliadiana, “a reiteração do modelo mítico é apenas temporária, mediadora, instrumental à reabertura do tempo e dos valores profanos” (POMPA, 2022, p. 333). Conforme De Martino:

Em virtude do nível meta-histórico como horizonte da crise e lugar de de-historização do que está por vir, instaura-se um regime protegido de existência que, por um lado, resguarda das erupções caóticas do inconsciente e, por outro, vela o que está acontecendo e permite “estar na história como se ele não estivesse nela.” Em virtude dessa dupla função protetora complementar, a presença individual se mantém no mundo e passa por momentos críticos reais ou enfrenta as perspectivas reais incertas “como se” tudo já estivesse decidido no plano meta-histórico, segundo os modelos que ele exibe. No entanto, mesmo neste regime protegido de existência, reintegra-se o bem fundamental a proteger: a presença individual, que de facto atravessa um momento crítico ou enfrenta uma perspectiva incerta, abre-se a comportamento e valores profanos que a crise sem proteção mágica teria transigido em tais condições. (DE MARTINO, 2015, pp. 94-95, tradução nossa)17.

Na perspectiva demartiniana, portanto, a questão etnológica a respeito das práticas mágicas é resolvida historicamente. Tais eventos, segundo ele, não se fecham apenas a causas naturais mágico-animistas, mas são fundamentalmente fatos culturais, pertencentes a um determinado cosmos histórico (DE MARTINO, 2004, p.243), no âmbito do qual a eficácia simbólica do rito se deve ao fato deste representar “a própria condição da participação na vida cultural, por mais restrita que seja”, ajudando a presença a se reintegrar de suas crises.18 Num sentido conclusivo, o autor afirma ser “precisamente por isso que ainda hoje na Lucania são praticadas técnicas mágicas que ajudam a presença a se reintegrar de suas crises”. (DE MARTINO, 2015, p. 93, tradução nossa)19.

Nestes termos, o ferramental teórico-conceitual demartiniano nos parece uma profícua via de compreensão do significado de algumas práticas incorporadas pelos Novos Movimentos Religiosos na contemporaneidade e, em particular, daqueles que se denominam neoxamânicos. A eficácia da cura proporcionada pelas práticas mágicas, entendidas como técnicas capazes de criar um mítico quadro de forças, a partir da ritualização de um mito passado, estaria na sua possibilidade de encenar a doença, criando as prováveis possibilidades da “perda da presença” ser envolvida em sistemas definidos de influências, institucionalizando, assim, a figura de praticantes especializados na perspectiva de primeiros socorros.

A obra de De Martino vem ganhando intérpretes na contemporaneidade, inspirando desdobramentos empíricos e conceituais a partir de suas formulações pioneiras. É este o caso dos estudos da historiadora das religiões Silvia Mancini, que desenvolve uma análise da religião como técnica.

Em sua obra La Fabricación del Psiquismo (2008), originalmente publicada em francês, em 2006, a autora aborda a temática dos estados alterados de consciência e a psicotécnica da autotransformação. Ao fazê-lo, realiza um triplo diálogo entre ciências humanas e sociais (história das religiões, antropologia cultural, sociologia e filosofia), ciências da vida (biologia, fisiologia e física psíquica) e práticas psicoterapêuticas e médicas. A possibilidade da experiência a partir destas três dimensões é vista pela autora como estratégica, por permitir o alcance de objetivos culturais específicos. Desta forma, a ortopraxia aparenta ser adequada para corrigir disfunções e aprofundar a relação existente entre o sujeito e o mundo, auxiliando, assim, na integração individual dentro de seus quadros institucionais. (MANCINI, 2008, p. 9)

No Ocidente, práticas e representações (técnicas definidas por um determinado modus operandi particular) são vistas como mágico-religiosas. Por meio do simbolismo mítico-ritualístico, as culturas encenam e reproduzem significados com o objetivo de sustentar, em um infinito círculo hermenêutico, o sistema semântico referencial de um mundo mágico carregado de significado (MANCINI, 2008, p. 21). Segundo Mancini, se

As práticas e instituições mítico-rituais se sustentam em estados psicofisiológicos completamente naturais e espontâneos e se alimentam deles, é porque esses estados são portadores de considerável potencial criativo e autorreparador. (MANCINI, 2008, p. 23, tradução nossa)20.

A competência do mágico-religioso comparece conjuntamente com o dispositivo mítico-ritual – aquele que propicia a articulação de diversos registros psíquicos – e se encarrega, assim, da tentativa de resolução de disfunções críticas de exímia natureza (sociais, psíquicas ou orgânicas). De acordo com a autora, a ação ritual é considerada “(des)institucionalizada”, “(des)historizada”. É aí que o corpo se repara e é replasmado no contexto performativo do ritual, “colocando em operação desde o início um processo de desindividualização do objeto da ação ritual”. (MANCINI, 2008, p. 29, tradução nossa)21

Nestes termos, o rito passa a ser abordado como instrumento operacional, cujo modo de operação explora recursos intrínsecos do psiquismo humano, os quais procedem a reajustes e reprogramações. Para um reajuste efetivo, porém, o ato ritual deve produzir um estado psíquico indiferenciado, sem extinção entre o meio interno e externo. Mancini questiona:

Como é possível que o facto de convocar mitos e ritos em contextos culturais específicos possa conduzir a curas espetaculares, ao restabelecimento de um equilíbrio psíquico gravemente comprometido, à produção de marcas corporais visíveis? (MANCINI, 2008, p 33, tradução nossa)22

A autora cita diferentes respostas para a questão levantada. Dentre elas e com maior relevância para o presente estudo, os efeitos reais, mensuráveis e objetivos da cura xamânica, que são verificados em inúmeras culturas ameríndias e siberianas. Neste sentido, ao demonstrarem o quando o ferramental demartiniano vem desdobrando possibilidades empíricas de compreensão da religião como técnica, os estudos de Mancini corroboram o argumento central sustentado por este artigo: a operacionalidade deste aporte para a análise dos dispositivos mítico-ritualísticos das práticas denominadas neoxamânicas. Trata-se, em outros termos, de assumir um enfoque histórico-cultural ainda pouco conhecido no Brasil e praticamente inédito nas Ciências da Religião, que visa a desobjetivar e desnaturalizar o xamanismo como fenômeno que repousa num conjunto de traços supostamente ancestrais.

Ao contrário disso, sob a perspectiva demartiniana, impõe-se proceder à radical historicização das práticas mágicas contemporâneas, o que implica situar as demandas contingenciais relacionadas aos seus usos, os significados sociais nos quais se insere, as técnicas por ele mobilizadas e o modo como o são, em contextos ritualísticos que visam a cura das patologias do corpo, da mente e da alma, na contemporaneidade.

3 CONDIÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA “CRISE DE PRESENÇA”

Compreender algumas das características da sociedade contemporânea é essencial para identificarmos a natureza das dores de sofrimento que levam os indivíduos a adesões, muitas vezes simultâneas e efêmeras, às práticas religiosas de perfil holístico. Em outros termos: implica averiguar, em termos demartinianos, a natureza do “drama histórico” que representa, a “crise da presença” nestas sociedades e as características performativas criadas em contextos ritualísticos eficazes no “resgate da presença”.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em diversos de seus estudos, tem consagrado o termo “modernidade líquida”, para designar algumas caracterísitcas das sociedades atuais. O autor se refere à condição líquida e mutável do universo, onde as mudanças experimentadas pela sociedade contemporânea modificaram a forma de interpretar o mundo. O contemporâneo passa a ser marcado pelo fim dos padrões, da estabilidade, da segurança e das certezas, surgindo, assim, um tempo marcado pela indefinição, pela insegurança e pelo que Bauman denomina como “medo líquido”. O autor também empresta à contemporaneidade um caráter fluído, afirmando que “tudo, nesse mundo, está em movimento”, de forma aparentemente aleatória, dispersa e destituída de direção (BAUMAN, 1998, p. 121). Mas, na verdade, o que disso decorre seria uma visão reordenada da cultura, que vêm sendo modelada e ajustada à liberdade de escolha e responsabilidade individual proveniente desta escolha. Hoje, segundo ele, a cultura não consistiria mais em proibições e normas, mas sim em ofertas e proposições, que visa a atender uma constante demanda por mudança. (BAUMAN, 1998, p. 17).

Diante destas características dos tempos atuais, a realidade observada mostra uma sociedade transformada em objeto e um mundo que trouxe consigo uma multidão de patologias. Viver entre uma multidão de valores, normas e estilos de vida em competição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos, é perigoso e cobra um alto preço psicológico. (BAUMAN, 2001, p. 264). A doença na sociedade contemporânea, em vez de ser percebida como um evento excepcional - com um começo e um fim - passa a ser vista como companhia permanente da saúde, estando sempre presente e clamando por incessante vigilância.

É demasiado o número de pessoas que vem sentindo as ameaças do mundo, em função das crises econômicas sucessivas pelas quais passa a história recente do capitalismo, da evolução da tecnologia e da descentralização cultural, característica do multiculturalismo. Este cenário afeta os modos de crer e exercitar as crenças. Segundo a socióloga das religiões, Danièle Hérvieu-Léger, o fenômeno religioso contemporâneo pode ser caracterizando por sua tendência à individualização e à subjetivação das crenças, desdobrando-se na “singularidade das construções de crenças individuais, em seu caráter maleável, fluido e disperso”. (HÉRVIEU-LÉGER, 2015, p. 22)

As características atribuídas à contemporaneidade podem, assim, ser consideradas uma das causas do surgimento dos Novos Movimentos Religiosos (NMR), que ofertam ao homem um reordenamento de sua vida, dentro de uma sociedade materialista, competitiva e individualista23. Por efeito do crescimento dos NMR, algumas sociedades vivenciaram acaloradas controvérsias públicas, suspeitas e receios generalizados, além de reações de oposição da imprensa e outras mídias a tais movimentos, seja por tentarem “introduzir mudanças no interior das religiões estabelecidas”, seja por criarem “novas religiões”. (BECKFORD, 2019, p. 327).

Tais acusações e a concomitante expansão dos NMR suscitam o interesse de estudiosos pela compreensão dos motivos que sustentam, na contemporaneidade, tais crenças e formas de exercitar a fé, orientados por hipóteses como a busca de verdades espirituais e de segurança emocional. Para nossos interesses, cabe frisar que a complexidade instaurada na configuração das religiões e formas de religiosidade contemporâneas tem evidenciado o esgotamento dos modelos tradicionais de estudo sobre o tema, os quais tendem a reproduzir estruturas de sentido internas ao sistema ocidental e ocidentalizante, sendo incapazes de compreender a alteridade antropológica (AGNOLIN, 2013, p. 19). Neste sentido:

Ao romperem com estes parâmetros convencionais, as atuais manifestações do fenômeno religioso são capazes de revelar o quanto a religião (ou a busca por religiosidade) revela-se entretecida a outros campos do saber, perdendo em nitidez, mas ganhando em complexidade”. (SILVA; MANCINI, 2017, p. 146).

No âmbito das Ciências da Religião, a Antropologia tem contribuído para o avanço da compreensão dos mecanismos e simbolismos que envolvem o universo religioso, aumentando assim a profundidade das análises realizadas, de forma que as crenças, os rituais, os mitos e os símbolos passam a ser considerados elementos indispensáveis. Nestes termos, o ritual se apresenta como uma forma de comunicação que está além de ser um instaurador social ou uma simples forma de reafirmação de identidade dos membros de um grupo, englobando, também, a comunicação entre o mundo dos humanos e o dos deuses a partir da encenação mítica tomada como narrativa coletiva a partir de um discurso metafórico. Na perspectiva antropológica, os mitos são objetos privilegiados por permitirem a penetração ao universo cosmológico de povos diferentes. Passando então a serem vistos como “um sistema de códigos culturais da experiência ordinária dos povos tradicionais, indiferente às aparentes contradições lógicas internas”. (GUERRIERO, 2013, p. 254).

Dentre as práticas ritualísticas que caracterizam os Novos Movimentos Religiosos, algumas vêm chamando a atenção de pesquisadores, alimentando polêmicas que instituem o tema na qualidade não apenas de objeto, mas de problema a ser enfrentado. Inserem-se, aqui, os estudos acerca dos rituais praticados mediante a indução de estados alterados de consciência (EACs), os quais podem ser atingidos em contexto ritual,a partir de inúmeros mecanismos - como a redução ou aumento da estimulação sensorial, o aumento ou diminuição do estado de alerta e alterações químicas – provocados, ou não, pelo consumo ritual de algumas substâncias.24

O ambiente cultural apresenta importante papel nas características básicas dos EACs, devido à existência de variações histórica e socialmente construídas, acerca do que é normal, patológico, desejável, irrelevante ou sagrado (ZANGARI; MARALDI; MARTINS; MACHADO, 2013, p. 428). Conhecer tais diferenciações culturais implica a etnoepstemologia, ou seja, o composto de conhecimentos, crenças e papeis sociais que amparam a cosmovisão de um povo, direcionando o modo de interpretação das alterações de consciência. Entre as variáveis que atuam para a interpretação ou modelagem dos EACs, estão os sistemas de crença próprios de contextura, englobando as religiões.

Dentre as novas formas de afirmar o sagrado na sociedade contemporânea, dadas através da reconfiguração de algumas práticas antigas no ambiente urbano - ou seja, uma reelaboração mítico-ritualística – interessa-nos, particularmente, abordar aquelas provindas dos povos ameríndios e que incorporam o uso de substâncias psicoativas, denominadas, aqui, neoxamanismo.

4 O DISPOSITIVO MÍTICO-RITUAL NEOXAMÂNICO

Xamanismo é hoje um objeto de estudo controverso, irredutível a uma única definição, embora algumas palavras sejam comumente a ele associadas, tais como religião, crença e ritual. A dispersão, atualização, ressignificação e adequação de práticas advindas de xamãs, vêm sendo realizada pela sociedade contemporânea em centros urbanos, recebendo inúmeras nomenclaturas, dentre elas, neoxamanismo. Do ponto de vista das práticas neoxamânicas características da Nova Era, a despeito dos sentidos diferenciados que muitas vezes atribuem ao universo simbólico dos povos originários do continente americano e de sua ampla variedade - resultante da mescla de interpretações transculturais de cosmologias indígenas e de saberes contemporâneos -, dois traços característicos do xamanismo tradicional ainda podem ser reconhecidos: uma figura ativa central (referente ao xamã) e o uso de substâncias alteradoras dos estados de consciência, geralmente por ele ministrada com fins curativos.

Com base na vertente curativa, ritualísticas com o uso de plantas medicinais vêm sendo utilizadas por diferentes grupos na atualidade, extrapolando o universo das populações ameríndias. Apesar de se desenvolverem em contextos urbanos, tais práticas incorporam saberes xamânicos sobre variedades botânicas que foram conservados e adaptados a novas condições socioculturais. Ocorre, então, o uso controlado de substâncias psicoativas, dentro de uma estrutura social hierarquizada e vinculada a valores doutrinários, de tal forma que as regras de conduta e práticas rituais “produzem sistemas de ordem, frequentemente hierárquicos, expressando relações de poder”. (MACRAE, 2009, p. 27).

Dentre as substâncias utilizadas nos rituais designados como neoxamânicos, a ayahuasca tem sido uma das mais recorrentes e mencionadas pelos estudos sobre o tema. Do ponto de vista dos seus componentes bioquímicos, a ayahuasca é uma bebida psicoativa - substância que age no sistema nervoso central alterando a função cerebral - feita a partir da fervura de duas plantas: o cipó Banisteriopsis caapi e folhas do arbusto Psychotria viridis. Mecanismos enteógenos vêm recebendo atualmente uma atenção especial mediante o aumento do consumo de substâncias e plantas que produzem alteração na consciência. Extensa variedade de contextos culturais envolve o consumo ritual da ayahuasca, desde práticas xamânicas de comunidades indígenas localizadas na Amazônia, até ritos realizados em contexto urbano.

Na interpretação científica do uso de enteógenos e de estados alterados de consciência, ocorrem conflitos. Neste sentido, o psiquiatra e estudioso da religião, Paulo Dalgarrondo (2008), alega que o transe proporcionado por substâncias enteógenas faz parte do que ele denomina como alterações qualitativas da consciência, sendo possível, então, explicá-lo com amplo detalhamento:

Estado de dissociação da consciência que se assemelha a sonhar acordado, diferindo disso, porém, pela presença de atividade motora automática e estereotipada acompanhada de suspensão parcial dos movimentos voluntários. O estado de transe ocorre em contextos religiosos e culturais [...] O transe dito extático pode ser induzido por treinamento místico-religioso, ocorrendo geralmente a sensação de fusão do eu com o universo. (DALGARRONDO, 2008, p. 99).

No Brasil, as primeiras práticas terapêuticas ancestrais com o uso de substância enteógenas e adaptadas à realidade urbana são conhecidas por “Religiões Ayahuasqueiras”25. O início destas práticas se deu no Estado do Acre, por volta de 1930, com a fundação do grupo religioso sincrético Santo Daime. Posteriormente, outros grupos sincréticos foramfundados, como a União do Vegetal (UDV), em Rondônia, e a Barquinha, tambémno Acre. Estes grupos aperfeiçoaram algumas práticas tradicionais da população nativa da Amazônia, mesclando-as com práticas afro-brasileiras, espiritualistas e cristãs. Desde então, ocorreu uma expansão geográfica desses grupos, que hoje encontram adeptos por todo o Brasil. (LABATE, 2004). Os dirigentes de instituições, ou grupos legalizados para consumo ritual da ayahuasca são chamados por Labate (2004, p. 398) de “neo-xamãs”, os quais vêm promovendo inúmeras atividades holísticas ao se apropriarem de aspectos da cultura ameríndia, a partir do arcabouço simbólico do xamanismo ancestral.

A complexidade na designação de uma prática ritualística como neoxamânica leva ao dissenso estudiosos do tema. Na interpretação da antropóloga Sandra Lúcia Goulart (2019), a propósito das religiões ayahuasqueiras existentes no Brasil, seria possível classificá-las em três fases. Uma primeira, que se refere ao surgimento dos grupos, antes da sua dispersão para fora da região amazônica, representada por fundadores das religiões ayahuasqueiras e representantes políticos locais. A segunda, caracterizada pela expansão destas religiões para diversas regiões do Brasil, marcada pelo debate das políticas públicas sobre drogas, culminando na legalização do uso religioso da ayahuasca. E, finalmente, a terceira eatual fase, caracterizada por uma mudança radical nas estratégias de representação dessas religiões, ocorrendo a reivindicação do reconhecimento do uso da ayahuasca como patrimônio cultural brasileiro. (GOULART, 2019, p. 203).

A mudança radical provaca por esta atual fase nos remete à exploração dos comportamentos performados durante os rituais, abrindo novas possibilidades interpretativas do fenômeno aos pesquisadores, visto que é através das ações gestuais que se expressa o lado invisível da experiência. Dentre estas possibilidades, o referencial demartiniano se revela operativo, na medida em que o autor aborda algumas técnicas utilizadas em rituais com o objetivo de induzir o transe ou gerar um estado de dissociação psíquica nos participantes, eficaz no “resgate da presença”. Segundo ele: “A análise das técnicas mágicas para produzir as condições de transe parece, pois, ter como finalidade a debilitação ou a atenuação do ser-no-mundo, a dissolução da consciência como presença.” (DE MARTINO, 2004, p. 156, tradução nossa).26

Dentre os elementos fundamentais para a ação ritual mediante a indução do transe, alguns autores tem destacado, por exemplo, o uso de músicas, cânticos e vocabulários, além da consagração da ayahuasca e seus efeitos psíquicos e fisiológicos. Neste sentido, os estudos de Labate e Pacheco (2009) constituem importante referencial acerca da estreita relação entre música e ayahuasca:

[...] novos grupos urbanos que tem se formado recentemente, os neo- ayahuasqueiros, também se destacam pela criação de um repertório musical próprio, composto frequentemente por elementos oriundos das religiões ayahuasqueiras somados a novas referências musicais, como música new age e música indiana, entre outras. (LABATE; PACHECO, 2009, p.17).

São remotos os usos da medicina dos sons pelo ser humano. Mutz, em seus estudos de instrumentos rítmicos e religião, afirma que o uso de instrumentos rítmicos no xamanismo visa a “causar um efeito paradoxal sobre o cérebro do xamã, para que ele entre em transe”. (MUTZ, 1997, p. 100).

Quanto aos efeitos físicos da bebida, vão desde a aceitação de seu cheiro e sabor, até as sensações de mal-estar físico - tais como dormência, taquicardia ou bradicardia, vômitos, diarreias, viagens astrais -, sensação de morte e renascimento, angústia, prazer,visões belas, elucidativas e/ou terroríficas. (CEMIN, 2002, p. 349). Nestes rituais ayahuasqueiros, as manifestações fisiológicas – como o choro, vômito e diarreia - são comumente tidas como mecanismo de limpeza, por meio do qual os indivíduos colocam para fora suas fragilidades psíquicas, ou seja, medos, angústias, arrependimentos, mágoas, traumas, bloqueios e doenças. Em linguagem demartiniana, esses mecanismos são pertinentes e cabíveis ao proceso de “resgate da presença”.

A ayahuasca é tida não somente como um potente facilitador de acesso ao inconsciente. Através do seu uso ritualístico, os conteúdos trazidos à consciência, além de acessados, podem ser revividos. O estado alterado da consciência promovido por substâncias psicodélicas, em contextos apropriados, permitiria a ressignificação desses materiais e experiências, de forma que se possa “criar novas associações entre memórias e sentimentos ou resolução de problemas”. (FANHOFMANN, 2019, p. 25). Em termos demartinianos, ao se dar em contexto de “regime protegido”, cultralmente elaborado, o rito nexamânico permite que o drama histórico que constitui a crise da presença seja encenado e ressignificado, visando ao resgate do “ser-no-mundo”, aqui compreendido como cura.

É neste sentido que, a nosso ver, os conceitos demartinianos de “crise da presença” e “regime protegido” se revelam operativos para a compreensão da performance ritualística das práticas neoxamânicas, no sentido de apresentarem aparato teórico à busca de respostas para a questão sobre como e por que estas se revelam eficazes na cura de patologias individuais e coletivas, na sociedade contemporânea. Em outros termos, ao proporcionar aos indivíduos um lugar percebido como apropriado, amparado e seguro, os contextos ritualísticos criados por grupos urbanos adeptos das práticas neoxamânicas mediante o uso de substâncias alteradoras dos estados de consciência, permitem que se desenvolva um complexo de experiências e representações que, fora de um regime de proteção, poderiam ser percebidos como patologia, desequilíbrio, alucinação ou surto.

Nestes contextos, os sujeitos passivos diante da impossibilidade de agir no mundo – que caracteriza a perda da presença -, tornam-se sujeitos ativos, dotados de energia operativa, criando-se simbolicamente as condições para o “resgate da presença”. Ou seja: instrumentalizando os sujeitos, que ao vencerem a “miséria psicológica” instaurada pela crise, se sentem instrumentalizados para agirem nos contextos históricos definidos de suas existências.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais que um estudo empírico de casos situados, as reflexões propostas por este texto buscaram argumentar sobre a proficuidade do aporte teórico-conceitual de Ernesto De Martino, para os estudos das novas manifestações de religiosidade no mundo contemporâneo e, especificamente, para aqueles desenvolvidos no âmbito das Ciências da Religião. Neste sentido, ao perscrutar a natureza das carências e demandas da sociedade atual, procurou ancorar em condições culturalmente determinadas o “drama histórico” que constitui a “crise da presença”. Crise esta cujos sintomas se expressam em inúmeras patologias, levando os indivíduos a buscarem novas formas de religiosidades, práticas e performances capazes de significar suas vidas, guiados por expectativas de cura no âmbito físico, psíquico e espiritual.

Dentre as novas espiritualidades, priorizou-se aquelas que resgatam a simboligia e as práticas xamânicas e que, mediante o uso de indutores de transe – com destaque, no caso brasileiro, para a ayahuasca – visam a criar estados alterados de consciência, como um facilitador do acesso ao inconsciente e da ressignificação das carências e demandas. Mais que acessados, os conteúdos são trabalhados dentro do ritual através de seus inúmeros elementos, ordenados e culturalmente reelaborados. Neste sentido, o dispositivo ritual garante aos indivíduos um “regime de proteção”, um local adequado, seguro e acolhedor para que a “perda da presença” seja encenada e, mediante dispositivos ritualísticos performáticos, configurem-se as condições para o seu “resgate”, ou seja, da capacidade dos sujeitos de objetivarem o mundo e nele agirem (postura ativa) – vencendo o estado de serem agidos (postura passiva típica da crise) – atingindo, assim, a possibilidade da cura.

Desta forma, embora empiricamente desenvolvido a partir do “drama histórico” de sociedades pertencentes a uma “época mágica”, completamente afastadas no tempo e no espaço da civilização ocidental contemporânea, o instrumental teórico-conceitual de Ernesto de Martino representa uma possibilidade interpretativa pertinente, embora ainda pouco conhecida, nos estudos de religião. Isto porque, considerando as características assumidas pelas novas formas de religiosidades, é possível pensar que, também nestas, o rito comporta uma função histórica precisa. Aplicado à análise dos rituais neoxamânicos, ao mesmo tempo que nos oferece uma perspeciva investigativa historicamente situada acerca do risco de não ser-no-mundo, ancora a possibilidade de compreensão das adaptações e atualizações de dispositivos ritualísticos eficazes na cura do ser, que nos permitem tomar a “religião como técnica”. (MANCINI, 2018).

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Notas

1 Termo que, na formulação dos sociólogos Luckamann e Berger, atribuem a principal causa da crise de sentido na atualidade aos processos de modernização, plurarização e, principalmente nas sociedades européias, da secularização. (BERGER; LUCKAMNN, 2012).
2 A biografia e trajetória científica do autor pode ser encontrada na Enciclopédia Internacional de Histórias da Antropologia. Disponível em: https://www.berose.fr/?Etre-ensemble-dans-la-meme- histoire-l-oeuvre-vie-d-Ernesto-De-Martino&lang=fr.
3 Fortemente influenciado pelo aporte gramsciniano, que teria orientado a antropologia italiana para o estudo dos mecanismos de subalternidade e relações de poder, o recorte etnográfico eleito por De Martino concentrou-se na região mais pobre do Sul da Itália – a Lucânia – onde se aproximou “de camponeses que, ao lado da luta política pela terra, cultivavam os elementos mágicos “arcaicos” que constituíam um “escândalo” tanto para a burguesia conservadora quanto para a própria esquerda italiana”. (POMPA, 2022, p. 337)
4 Perspectiva que o levaria a sustentar uma postura crítica em relação ao “naturalismo’ e ao “anti-historicismo” presentes tanto na sociologia francesa, quanto na escola histórico-cultural alemã. Seu alvo principal, contudo, será a fenomenologia clássica - a qual promoveria uma “substancial identidade entre o objeto e o sujeito do conhecer” -, à qual De Martino oporia um “historicismo absoluto”. (POMPA, 2022, p. 329).
5 Segundo Pompa (2022, p. 328), tal crítica à fenomenologia religiosa o levaria a uma “profunda reflexão sobre as raízes culturais dessa corrente de estudos”, a qual, na visão da autora, sustenta-se ainda hoje, dada a influência marcante do aporte fenomenológico na antropologia da religião no Brasil. Consideração, a nosso ver, também pertinente à área das Ciências da Religião e Teologia, no âmbito da qual há uma considerável apropriação do referencial fenomenológico.
6 Um dos principais intérpretes de religião, mito e símbolo, Mircea Eliade foi pioneiro em considerar a religião como algo sui generis no âmbito das Ciências Humanas, exigindo, portanto, uma metodologia própria, perspectiva esta cunhada em seu Tratado de História das Religiões, de 1949. O objeto religião era aqui caracterizado pelos elementos simbólicos que remeteriam à categoria crucial do Sagrado (elementos arquetípicos por detrás das suas hierofanias), sendo o papel das disciplinas empíricas fornecer dados e interpretações que auxiliam na configuração do objeto mas que por si só falseariam caráter da religião. (PRADO; SILVA JR., 2014, p. 13-14)
7 Utilizaremos aqui a tradução para o espanhol - La tierra del remordimiento -, edição de 1999.
8 Utilizo aqui as traduções elaboradas por Cristina Pompa, que reconhece no termo “Esserci”, utilizado por De Martino, o “ser aí”, heideggariano. A autora chama a atenção, contudo, para o fato de que, ao mesmo tempo que incorpora tal referencial, De Martino já o supera, na medida em que se pauta numa “multiplicidade de referências filosóficas (como, evidentemente, o historicismo de Croce) e histórico-religiosas (como Pettazzoni), ou até fenomenológicas (Van der Leeuw, Eliade) mediadas, sobretudo, pelo trabalho etnográfico realizado nos anos de 1950 e 1960”. (POMPA, 2022, pp. 331-332).
9 Estaremos usando a tradução para o inglês, Magic, datada de 2015.
10 In conditions of psychological misery, any manifestation of negativity bears the risk of an even more serious negativity: a drop in the very moral energy of decision and choice, the loss of individual presence. (DE MARTINO, 2015, p. 15).
11 [...]the precariousness of life’s elementary goods, the uncertainty of prospects for the future, the pressure exercised on individuals by uncontrollable natural and social forces, the dearth of forms of social assistance, the harshness of toil in a backward agricultural economy, and the limited memory of rational, efficacious actions with which to realistically face the critical moments of existence”. (DE MARTINO, 2015, p. 85)
12 [...] the individual presence itself gets lost as a center for decision and choice, and drowns in a negation that strikes the very possibility of any cultural action at all. (DE MARTINO, 2015, p. 87).
13 [...] aspecto que contiene una orientación susceptible de desarrollo cultural. (DE MARTINO, 2004, p. 138).
14 [...] is the immense power of the negative throughout an individual’s lifetime, with its trail of traumas, checks, frustrations, and the corresponding restrictedness and fragility of the positive par excellence of realistically-orientedaction in a society that “must” be made by man and reserved for man, faced with a nature that “must” ceaselessly be humanized by the demiurgic work of culture”. (DE MARTINO, 2015, p. 85).
15 Obra original: Il mondo magico: Prolegomeni a una storia del magismo. Torino: Einaudi, 1948.
16 el ser-en-el-mundo es una realidad condenda. (DE MARTINO, 2004, p. 141).
17 By virtue of the metahistorical level as a horizon of the crisis and place for the de-historification of what is coming to be, a protected regime of existence is instituted that on the one hand shelters from chaotic eruptions of the unconscious, and on the other veils what is happening and allows one to “be in history as if he weren’t in it.” By virtue of this double complementary protective function, individual presence is maintained in the world and goes through real critical moments or faces the real uncertain prospects “as if ” everything were already decided on the metahistorical plane according to the models that it exhibits. Yet even within this protected regime of existence, the fundamental good to protect is reintegrated: the individual presence, which in fact goes through a critical moment or faces an uncertain prospect, opens itself to realistic behavior and profane values that the crisis without magical protection would have compromised under such conditions. (DE MARTINO, 2015, pp. 94-95).
18 Num sentido conclusivo, De Martino afirma ser “precisamente por isso que ainda hoje na Lucania são praticadas técnicas mágicas que ajudam a presença a se reintegrar de suas crises”. (DE MARTINO, 2015, p. 93).
19 It is precisely for this reason that even today in Lucania magical techniques are practiced that help the presence to reintegrate itself from its crises”. (DE MARTINO, 2015, p. 93).
20 Prácticas e instituciones mítico-rituales se apoyan em estados psicofisiológicos totalmente naturales y espontâneos y se alimentan de éstos, es porque esos estados son portadores de um considerable potencial creativo y autorreparador". (MANCINI, 2008, p. 23).
21 [...] poniendo en funcionamento desde el comienzo un processo de desindividualizacción del objeto de la acción ritual. (MANCINI, 2008, p. 29).
22 ¿Cómo es posible que el hecho de convocar mitos y ritos en contextos culturales específicos pueda dar lugar a curaciones espectaculares, a la restauración de un equilibrio psíquico gravemente comprometido, a la producción de marcas corporales visibles? (MANCINI, 2008, p 33).
23 O sociólogo Ricardo Mariano alega que tal nomenclatura tem sido adotada pelos sociólogos desde a década de 1970, como um recurso utilizado para evitar a conotação teológica como “seita”, ou a conotação normativa como “cult”. (MARIANO, 2013, p. 237).
24 Algumas características básicas de tais estados são mencionadas por alguns autores que contribuíram com a obra Compêndio de Ciência da Religião, constituindo uma das primeiras sistematizações sobre o tema no âmbito desta área no Brasil. Destacam-se dentre elas: a “alteração do pensamento”, a “atemporalidade”, a “perda de controle consciente”, a “alteração na expressão emocional”, a “alteração na imagem corporal”, a “distorção perceptiva”, a “alteração na significância de experiências subjetivas”, o “sentido do inefável”, a “renovação da esperança” e a “hipersugestionabilidade”.(ZANGARI; MARALDI; MARTINS; MACHADO, 2013, p. 425).
25 Um balanço sobre estas variedades de “religiões ayahuasqueiras”, acompanhado de seu histórico no Brasil, de um exaustivo levantamento dos estudos acadêmicos sobre o tema e das pesquisas sobre os efeitos e comprovações científicas sobre os usos da ayahuasca, encontra-se na obra elaborada em co-autoria Religiões Ayahuasqueiras: um Balanço. (LABATE, ROSE, SANTOS, 2008).
26 No original: “El análisis de las técnicas mágicas para producir las condiciones de trance parece, pues, tener como finalidad el debilitamiento o la atenuación del ser-en-el-mundo, la disolución de la conciencia como presencia”. (DE MARTINO, 2004, p. 156).


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