Resumo: Neste artigo, procuramos contribuir com as reflexões sobre a polêmica existência do Ensino Religioso (ER) em um Brasil laico e envolto historicamente em diversas crises sociais, políticas e econômicas. Por meio de um estudo bibliográfico, problematizamos o ER na escola pública, dialogando com as discussões trazidas pelas proposições legislativas, educacional e científica, abordando brevemente o contexto da pandemia que atinge o país desde 2020, agravada pelas decisões políticas do governo brasileiro no período. Nesses anos pandêmicos observamos as dificuldades enfrentadas pela educação em geral, uma vez que a necessidade do ensino remoto e virtual promoveu novos contornos às relações de ensino-aprendizagem. Em relação ao ER, o novo normal permitirá ainda que algumas reflexões acerca da religião, das religiosidades e da espiritualidade sejam atualizadas, uma vez que, em contextos de crise, há um maior apelo às religiões e experiências religiosas podem ser aprimoradas. Na literatura, as propostas recentes para o ER abordaram não só questões sobre legitimidade, legislação, e o confronto com a laicização no ambiente educacional, mas procuram recuperar também o âmbito emocional e afetivo da religião que, em contextos graves como o da recente pandemia, poderá – e deverá – ser abordado em sala de aula.
Palavras-chave: Ensino Religioso, Laicização, Legislação, Crise sanitária, Brasil.
Abstract: In this article, we reflect on the controversial existence of Religious Education in a secular Brazil, historically involved in social, political and economic crises. Through a bibliographic study, we problematize Religious Education in public schools, dialoguing with the discussions brought by the legislative, educational and scientific literature, briefly addressing the context of the pandemic that has affected the country since 2020, and aggravated by Brazil's political decisions in the period. In these pandemic years, we observe the difficulties faced by education in general, since the need for remote and virtual teaching has promoted new contours to teaching-learning relationships. Regarding Religious Education, the new normal will also allow some reflections on religion, religiosity and spirituality to be updated, since, in contexts of crisis, the need for religion and religious experiences can be improved. In the literature, recent proposals for the RE address not only questions about legitimacy, legislation, and the confrontation with secularization in the educational environment, but also seek to recover the emotional and affective scope of religion that, in serious contexts such as the current pandemic, may – and should – be addressed in the classroom.
Keywords: Religious education, Laicization, Legislation, Health Crisis, Brazil.
Abstract: In this article, we reflect on the controversial existence of Religious Education in a secular Brazil, historically involved in social, political and economic crises. Through a bibliographic study, we problematize Religious Education in public schools, dialoguing with the discussions brought by the legislative, educational and scientific literature, briefly addressing the context of the pandemic that has affected the country since 2020, and aggravated by Brazil's political decisions in the period. In these pandemic years, we observe the difficulties faced by education in general, since the need for remote and virtual teaching has promoted new contours to teaching-learning relationships. Regarding Religious Education, the new normal will also allow some reflections on religion, religiosity and spirituality to be updated, since, in contexts of crisis, the need for religion and religious experiences can be improved. In the literature, recent proposals for the RE address not only questions about legitimacy, legislation, and the confrontation with secularization in the educational environment, but also seek to recover the emotional and affective scope of religion that, in serious contexts such as the current pandemic, may – and should – be addressed in the classroom.
Keywords: Religious education, Laicization, Legislation, Health Crisis, Brazil.
Palabras clave: Educación religiosa, Secularización, Legislación, Crisis de salud, Brasil
ARTIGOS
CRISES DE UM BRASIL LAICO, CRISES DO ENSINO RELIGIOSO
CRISES OF A SECULAR BRAZIL, CRISES OF A RELIGIOUS EDUCATION
CRISIS DEL BRASIL LAICO, CRISIS DE LA EDUCACIÓN RELIGIOSA

Recepción: 24 Octubre 2022
Aprobación: 01 Agosto 2023
Oficialmente, o Brasil é uma república laica. A Constituição de 1988, no capítulo sobre Direitos e Garantias Fundamentais, estipula ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias” (Brasil, 1988, artigo 5º, VI). A laicização – conceito em que um Estado é oficialmente imparcial às questões religiosas e tem sua legitimidade radicada na soberania popular – e a separação entre Igreja e Estado encontram no Brasil seu termo jurídico bastante cedo, na Proclamação da República:
Com a Proclamação da República, as tendências secularizantes existentes no Império ganham como que um escoadouro natural. A secularização era uma meta presente em vários partidos e movimentos. Para o Partido Republicano e mesmo para o Partido Liberal, a laicidade era uma meta, o mesmo acontecendo com o Positivismo, a Maçonaria e grupos protestantes (Cury, 1993, p. 23).
Contudo, essa separação parece nunca ter atingido sua plenitude no país, o que se traduz em um importante espaço de negociações com a Igreja, o que, é claro, não se limitará ao contexto inicial de entendimento do Brasil como um país laico, a partir do decreto de separação da Igreja do Estado, em 07 de janeiro de 1890. Essas negociações ocorrem firmemente até hoje, nos espaços políticos, sociais, jurídicos, midiáticos e, sobretudo, no espaço educacional público.
Em relação ao Ensino Religioso (ER), propriamente, a primeira manifestação no âmbito legal é datada de 15 de outubro de 1827, no artigo 6º da Constituição Imperial, que diz que os professores ensinarão – a ler, escrever, a aritmética, a geometria, a gramática da língua nacional e – “os princípios da moral christã e da doutrina da religião catholica e apostolica romana” (Cury, 1993, p. 22).1 Claramente, com o decreto de separação, 63 anos depois, o posicionamento contrário da Igreja em relação à laicidade seria bastante contundente e as disputas pelo campo educacional, baseado em um modelo moral e, por vezes, doutrinador, continuamente em destaque.
É a partir da última década do século XIX que as negociações entre Igreja e Estado para o ER aparecem com diversas formas de flexibilização, desde seu acolhimento em horários alternativos às demais disciplinas, à sua característica facultativa dentro da grade escolar.2 As discussões jurídicas prosseguem por meio de decretos, projetos, dispositivos, diversas alterações dos textos constitucionais (federais, estaduais), encerrando no artigo 133 da Constituição de 1937, que
[...] o ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de freqüência compulsória por parte dos alunos (Brasil, 1937, grifos nossos).
A partir dessa inserção, o ER esteve em todos os textos constitucionais subsequentes.
Passados os períodos críticos da redemocratização e os anos de ditadura (cf. Cury, 1993; 2004), em que a presença do ER nos textos legais passa por diversas modulações e negociações, chegamos à Constituição Federal de 1988, que dará a seguinte redação para a regulamentação do ER nas escolas públicas, no parágrafo 1º do artigo 210: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.” (Brasil, 1998). Ou seja, mantém-se com outras palavras a mesma ideia já publicada no texto de 1937: que o ER será ministrado de maneira facultativa no ensino público. Além disso, o texto sacramenta o ER como a única disciplina explicitamente mencionada na Constituição.
As diversas redações nos artigos legais que delimitam a existência e permanência do ER no contexto educacional público, a forma com a qual essa disciplina deverá ser ministrada, algum direcionamento quanto a formação de docentes e a participação de discentes, não mudam o fundamento principal que liga o ER à formação (moral) do cidadão. Contudo, no âmbito das ciências humanas, o texto pode deixar de respeitar uma formação plena do cidadão, pois contradiz o artigo 5º, que garante a liberdade de consciência e de crença, o que deveria incluir não apenas outras modalidades de linhas religiosas – além das cristãs – mas também posições não-religiosas, como o agnosticismo e o ateísmo. Portanto, a regulamentação do ER opera como um mecanismo de regulação da religião na esfera pública educacional, e provoca diversas tensões no que tange à laicização do Estado.
Em 20 de dezembro de 1996, há uma nova redação do art. 33 da Lei 9.394 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – que evidencia o veto a qualquer forma de proselitismo e ao caráter confessional que sempre esteve atrelado ao ER. A lei diz que:
O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo (Brasil, 1997, grifos nossos).
Embora essa redação proponha uma nova perspectiva ao romper com o proselitismo e caracterizar o ER como parte integrante da formação cidadã, concordamos com Leonardo Ramos e Érica Ramos que essa contribuição virá apenas na medida em que o ER se torne “capaz de refletir sobre os diversos valores sociais e morais que favorecem o bem comum, a participação e convívio social solidário, uma vez que a isonomia, na sociedade contemporânea, implica em conviver com as diferenças” (Ramos; Ramos, 2022, p. 12).
Observando a legislação a partir dos anos 2000, e como diversas questões educacionais, sociais, políticas e econômicas passam a ser compreendidas pela sociedade brasileira do século XXI, procuraremos aqui contribuir com algumas reflexões sobre as crises, polêmicas e discussões acerca do Ensino Religioso na escola pública de um país laico, incluindo um novo fator: os últimos anos pandêmicos, em que o ensino remoto e virtual deram novos contornos às relações de ensino-aprendizagem.
Não há a intenção de desenvolver uma nova revisão da produção científica em relação ao ER e as normativas educacionais, uma vez que há outros bons e recentes artigos com esta perspectiva (Setton; Valente, 2016; Vargas; Pinho, 2020; Ramos; Ramos, 2022), além de uma grande produção acadêmica em diversas áreas do conhecimento. Mas atualizações bibliográficas serão obrigatoriamente feitas ao longo do texto, seguindo não só a historiografia publicada em artigos especializados em Educação e legislação, Ciências da Religião e Ensino Religioso (ER), em periódicos de acesso livre, como também inserindo as discussões trazidas pela bibliografia dedicada ao Ensino Religioso no atual contexto da crise sanitária que atingiu o país desde 2020.
Como as demais disciplinas, o ER sofreu os impactos do caos pandêmico no cotidiano escolar que, após uma série de desencontros nas orientações governamentais de todos os níveis, precisou investir em, ao menos, medidas como flexibilização do calendário escolar, e a adoção de atividades pedagógicas não presenciais.
Ainda, deve-se considerar que, com a pandemia,
[...] complexidades foram evidenciadas, tais como: a desigualdade social, a diversidade religiosa e a parte emocional, que, na educação, tornam-se pontos positivos ou negativos dependendo da forma como serão conduzidas as estratégias de ação, nesse momento de incertezas, medo e angústia (Oliveira et al, 2020, p. 899).
Dessa maneira, procuraremos conjugar a legislação, as abordagens das Ciências da Religião (que aliam a reflexão acadêmica para a constituição de uma área de conhecimento (Soares; Stigar, 2016), da discussão e fomentação científica para formação de docentes especializados, e da caracterização da disciplina no ensino escolar), e como as crises causadas pelo período de isolamento social reconfiguraram – ou não – as discussões e polêmicas sobre a existência e o currículo do Ensino Religioso em um país laico.
Em 2010, um acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé revitalizou a discussão sobre a laicidade do Estado. No artigo 11 do Decreto nº 7.107, lê-se:
A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação (Brasil, 2010, grifos nossos).
Segundo Walter Salles e Maria Augusta Gentilini (2018, p. 859), o “decreto causou não só um desconforto entre os grupos de múltiplas pertenças religiosas no país, como também uma distorção legal complexa ao confrontar as orientações das diretrizes e mesmo a própria Constituição”. Assim, a Procuradoria Geral da União (PGR) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439) pedindo a suspensão de qualquer interpretação “que autorize a prática do ensino religioso em escolas públicas que se paute pelo modelo não-confessional, bem como se permita a admissão de professores da disciplina como representantes de quaisquer confissões religiosas” (Supremo Tribunal Federal, 2010). A tese defendida pela PGR dizia ainda que
[...] a compatibilização do ensino religioso nas escolas públicas e o estado laico corresponde à oferta de um conteúdo programático em que ocorra a exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões, incluindo as posições não religiosas, “sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores” (Supremo Tribunal Federal, 2017, grifos nossos).
Embora o STF tenha indeferido a ADI, e entendido que o ER poderia ter natureza confessional,3 os pontos evidenciados pelos autores do documento nos inspiram duas importantes reflexões: uma, claramente, como é complexo o entendimento do ER pela legislação (Lourenço; Guedes, 2017) e, também, como podem ser contraditórias suas relações com a laicidade do Estado brasileiro.4 A outra, em que concernem de maneira prática a matéria, a forma e conteúdo para o ER, e a formação adequada do docente especialista na área.
Não começamos bem: segundo Daniela Amaral et al., nem o Ministério da Educação (MEC) orienta sobre os conteúdos do ER enquanto disciplina, nem o Conselho Nacional de Educação (CNE) fala sobre a formação docente (Amaral et al., 2017, p. 272). Ainda, para o caso do Ensino Religioso, são os sistemas estaduais e municipais que possuem legitimidade para definir conteúdos e os critérios para admissão de professores.5
Stela Caputo apresenta um estudo sobre a gestão, formação e avaliação do ER no Estado do Rio de Janeiro – existem outros estudos que abordam particularidades no sistema educacional estadual brasileiro (Melo; Silva, 2021; Amaral et al, 2017; Alves, 2015) – e destacamos em seu texto discussões importantes sobre a legislação estadual, que estabeleceu, ainda em 2000, um ER confessional na rede estadual de ensino fluminense (Caputo, 2012, p. 202),6 e a supremacia da confissão cristã – em uma importante “aliança tática entre católicos e evangélicos” – para a definição dos conteúdos ministrados nas escolas estaduais. 7
Na pesquisa feita ao longo de encontros de formação de professores de ER realizados pela Secretaria de Educação, em espaços hegemonizados pela Igreja Católica, e a partir de entrevistas, Caputo evidencia uma percepção da moral que vemos permeando os textos jurídicos: “a necessidade do ER é também apontada como uma solução para problemas de gestão, já que a maioria [dos entrevistados] associa o mau desempenho escolar com o que entendem por „falta de valores‟” (Caputo, 2012, p. 200). Logicamente, essa falta de valores recairá sobre a parcela de alunos que não se relaciona à doutrina religiosa direcionada por esta formação docente e pela temática curricular da disciplina. Para a autora, ainda, “professores e professoras dessa disciplina estão sendo preparados pelo Estado para uma „missão‟ na escola: catequizar e evangelizar alunos e alunas” (Caputo, 2012, p. 200).
O caso do Estado do Rio de Janeiro é um dos exemplos claros daquilo que Mirinalda Santos comenta sobre o entendimento do ER no meio educacional: ainda, uma ferramenta de “doutrinação de uma determinada religião, legitimando de forma unânime o cristianismo como um conhecimento único a ser ensinado nas escolas, persistindo assim, o confessionalismo e o proselitismo nas práticas pedagógicas” (Santos, 2017, p. 56).
Nesse sentido, a inexistência de uma diretriz nacional comum sobre a disciplina, o currículo e a formação docente para o Ensino religioso tornam imprescindíveis os debates da área das Ciências da Religião (CRE), campo acadêmico/científico marcado pela interdisciplinaridade, que tem como objeto de estudo a religião. O objetivo das CRE é inventariar, historicizar e identificar os fatos do mundo religioso, observando as particularidades de cada linha, crenças, práticas, e ritos, e compreender suas inter-relações com as demais áreas da vida. Entendendo a importância da religião na sociedade brasileira, relevante ainda para o entendimento da cultura, Faustino Teixeira diz que as CRE “constituem um canal importante para possibilitar este exercício reflexivo: de aperfeiçoamento da compreensão do religioso como „objeto de cultura‟, ou fenômeno de cultura” (Teixeira, 2011, p. 853).
Para Elisa Rodrigues, a área de conhecimento das CRE “ultrapassou o estágio da construção, avançou a fase da legitimação no Campo das Humanidades e, atualmente, caminha pela senda da consolidação” (Rodrigues, 2020, p. 78), e o que tem contribuído para essa consolidação é, justamente, a área da educação, onde as discussões e produções científicas das CRE encontram espaço para serem colocadas em prática.
A formação em CRE, segundo Rodrigo Santos, “conta com quase quatro décadas na pós-graduação, duas décadas de formação inicial na graduação, assim como nas propostas curriculares” (Santos, 2018, p. 31), contudo, o autor reforça que “não se reconhece ainda a cidadania teórico-metodológica da CR para a formação dos professores [de ER]” (Santos, 2018, p. 46). A discussão principal do texto de Santos é justamente a transposição didática do que se desenvolve cientificamente nas pesquisas acadêmicas da área de CRE para o cotidiano escolar, o que contribui também para o desenvolvimento do currículo escolar e a formação de professores de ER:
[...] o que geralmente é denominado de Ensino Religioso é, na verdade, a transposição didática, ou melhor, a aplicação para o cotidiano da sala de aula dos resultados dessa Ciência, possibilitando aos estudantes da educação básica a compreensão da(s) cultura(s) das diferentes comunidades que formam determinado país/nação (Soares, 2015, p. 46, grifos nossos).
Em 2018, foram homologadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para as Licenciaturas em Ciências da Religião (DCNs das CRE), pelo MEC,8 documento que tem dupla importância nessa discussão, pois caracteriza o Ensino Religioso como uma disciplina mais ética, crítica e reflexiva, cujas práticas pedagógicas são fundamentadas no reconhecimento das alteridades e diversidades, no respeito aos indivíduos e suas identidades (Gonçalves, 2019) e, muito importante, de caráter laico, uma vez que reconhece a liberdade de crença, posicionando-se frente às intolerâncias ou discriminações religiosas (Resolução 5, IV-VI). Além disso, segundo Caputo, o documento “legitima a associação entre Ciências da Religião e Ensino Religioso, pois afirma esse componente curricular como área de aplicação das CRE e essa ciência como referência para a formação de profissionais da educação.” (Caputo, 2020, p. 92).
Contudo, volta-se sempre às questões práticas que demonstram que nem tudo que está nas resoluções e nas leis é correspondente ao mundo real, seja no ensino básico, no superior, e nas especializações.
Para Tomas Tadeu Silva, na obra O currículo como fetiche (1999),
[...] a tradição crítica em educação nos ensinou que o currículo produz formas particulares de conhecimento e de saber, que o currículo produz dolorosas divisões sociais, identidades divididas, classes sociais antagônicas. As perspectivas mais recentes ampliam essa visão: o currículo também produz e organiza identidades culturais, de gênero, identidades raciais, sexuais [...] (Silva, 1999, apud Caputo, 2012, p.203).
Nesse sentido, a situação e currículo do ER e a formação dos professores dessa disciplina para o ensino público não devem ser desassociadas das pluralidades culturais e sociais e, tampouco, das disputas nos campos político e religioso. Há que se compreender o ER como uma “concepção verdadeiramente pluralista e não proselitista da disciplina, fundamental para a efetivação do direito à liberdade de crença de todos os cidadãos garantida pelo princípio da laicidade do Estado” (Amaral et al., 2017, p. 285). Contudo, há que se observar currículo, disciplina, docentes e discentes inseridos no sistema educacional público que, por si só, apresenta uma série de problemas de ordem material, financeira e estrutural, de maneira geral.
Sérgio Junqueira e Edile Rodrigues (2014) refletem sobre a formação do professor de ER e quais os impactos dessa formação na consolidação desse componente curricular específico na escola pública. Além do que já discutimos sobre políticas públicas, a legislação e currículo, percebe-se quão fundamental é avaliar o processo da construção da identidade do docente, pois
[...] a socialização e a carreira dos professores não são somente o desenrolar de uma série de acontecimentos objetivos. Ao contrário, sua trajetória social e profissional ocasiona-lhes custos existenciais (formação profissional, inserção na profissão, choque com a realidade, aprendizagem na prática, descobertas de seus limites, negociação com os outros etc.). [...] Ora, é claro que esse processo modela a identidade pessoal e profissional deles. (Tardiff, 2002, apud Junqueira; Rodrigues, 2014, p. 589).
Os autores lembram, ainda, que a construção da identidade do docente é extremamente complexa pois além das questões particulares nas relações sociais, há a necessidade de constantes reciclagens, qualificações, adaptações e aprimoramentos que nem sempre são devidamente contemplados, seja por questões de interesse pessoal, prioridades econômicas ou mesmo de gestão do tempo do profissional.
A partir da segunda metade da década de 1990, foram implementadas diversas reformas educacionais que trouxeram “definições inovadoras no que concerne à gestão e à avaliação da educação básica e à definição de mecanismos para uma maior responsabilização da escola e de seus profissionais pelos resultados dos alunos”. Contudo, essas reformas também contribuíram para a intensificação do trabalho docente e em demandas que se referem aos “processos de ensino-aprendizagem e ao maior dispêndio de tempo” em funções burocráticas e administrativas e, também “novas exigências acerca da formação [que] passaram a requerer a atualização contínua dos profissionais que atuam na escola” (Silva; Souza, 2013, p. 775).
O artigo de Andréia Silva e Antônio Souza (2013) versa sobre as questões de infraestrutura e as condições do trabalho docente no sistema escolar público (tanto estadual quanto municipal), que possuem diferenças significativas quando comparadas nas diferentes regiões do país: em várias instituições, há uma carência de serviços básicos (como acesso à energia elétrica, água tratada, coleta de lixo).
Segundo o Resumo Técnico do Censo Escolar de 2011,
A infraestrutura disponível nas escolas tem importância fundamental no processo de aprendizagem. É recomendável que uma escola mantenha padrões de infraestrutura necessários para oferecer ao aluno instrumentos que facilitem seu aprendizado, melhorem seu rendimento e tornem o ambiente escolar um local agradável, sendo, dessa forma, mais um estímulo para sua permanência na escola (Brasil, 2011, apud Silva; Souza, 2013, p. 779).
Contudo, o mesmo documento revela que há uma falta de estrutura física, de recursos e de equipamento, mas
[...] além dos desafios relativos à dimensão infraestrutural, muito relacionada à condição material do desenvolvimento econômico-social em que se situam as escolas, existem outros desafios, também de natureza material, mas que envolvem uma dimensão pedagógica de formação docente, de planejamento e de coordenação dos processos escolares. São questões específicas do trabalho escolar, cujo processo tem no docente um dos sujeitos centrais ... O sucesso escolar, em termos de plena realização de sua função social e de garantia do direito à educação, depende muito da forma pela qual as questões relativas ao trabalho docente são tratadas (Silva; Souza, 2013, p. 779).
Procuramos aqui nos apropriar dessas informações sobre estrutura, formação do professor, sucesso escolar, questões materiais e desenvolvimento econômico-social para incluir e atualizar as reflexões sobre o Ensino Religioso, contextualizado em mais um momento de crise: a sanitária, com o início da Pandemia da Covid 19, em 2020.
Não são poucas as publicações relativas à educação no contexto da pandemia; diversas abordagens e temas aparecem em pesquisas básicas nos portais online de acesso a periódicos científicos (Scielo e Periódicos CAPES), com busca simples pelos termos educação e pandemia, ou refinamentos com os termos ensino, prática docente, ensino- aprendizagem, infraestrutura e recursos escolares, normativas para escola pública, entre outros. Interessa-nos, aqui, observar se essas discussões atingiram particularmente as produções sobre o Ensino Religioso e as Ciências da Religião, e de que maneira.
Algumas reflexões aparecem publicadas em Anais de Encontros, Congressos e Seminários da área dos Estudos de Religião, como os textos de Constantino de Melo e Maria Aparecida Silva (2021), sobre o impacto do coronavírus na formação de professores do ER em Pernambuco; Jacqueline Souza (2021), sobre a avaliação no ER em tempos de pandemia, e além dela; Alysson Antero e Marinilson da Silva (2022), sobre o currículo prioritário para o ER no Estado do Amapá; Alysson Antero e Joelson Pontes (2022), sobre o ER no contexto da pandemia na Amazônia; e Ana Claudia Santos et al. (2022), sobre a formação de professores de ER com foco na apresentação de recursos digitais como metodologias didáticas. Os textos conversam diretamente com as problemáticas da área de Educação durante a pandemia, sobretudo em relação à organização e reorganização do calendário escolar, do ensino remoto durante o isolamento social, das diretrizes e normas de orientação para escolas e universidades determinadas pelo MEC e outros órgãos, aplicados aos casos particulares de cada estado, e em relação às questões pertinentes ao Ensino Religioso.
Percebemos que não houve ações muito específicas em relação ao currículo dessa disciplina, mudanças significativas nos temas gerais ministrados em sala de aula, ou alguma modificação no quesito de formação ou atuação de professores – a não ser, é claro, a passagem do ensino presencial ao remoto, que atingiu a todos os docentes e discentes, sobretudo no que diz respeito à estrutura e material (falta de computadores, acesso à internet, material didático, entre outros).
Mas uma abordagem particular nos pareceu muito interessante a partir desses levantamentos: a questão da religiosidade na educação, durante esse período de crise. Com base na literatura especializada sobre o currículo, a temática, questões teóricas sobre as religiões e a formação docente no Ensino Religioso, Rafael Oliveira et al. (2020) buscam refletir sobre “a inteligência emocional como ação propositiva relacionada a religiosidade do indivíduo social” que asseguraria as “atitudes de confiabilidade e segurança, indispensáveis para a manutenção de um status saudável junto aos professores/as e alunos/as no cotidiano do contexto educacional.” (Oliveira et al., 2020, p. 896).
Ironicamente, segundo Gabriela Valente, “a interface entre religião e escola não é tratada de forma aprofundada, ou seja, não há uma recuperação histórica do debate ou um olhar atento às características culturais dos professores e dos alunos brasileiros, nem à sua subjetiva religiosidade.” (Valente, 2018, p. 108). É importante retomar essa reflexão, uma vez que observamos, até o momento, o quanto se discute sobre leis, sobre os jogos de poder, sobre a política, sobre tudo que procura delimitar o espaço do Ensino Religioso e dos Estudos sobre a religião, sobre crenças, sobre alteridade e diversidade, mas quão pouco isso é aplicado verdadeiramente na sociabilidade escolar – ou do ensino em geral (incluindo aqui a formação acadêmica e a pesquisa científica).
Para Junqueira e Rodrigues “a estruturação do Ensino Religioso é recente, mas precisa focar os processos de ensino-aprendizagem que surjam de uma boa conceituação sobre o que é próprio da disciplina” e na “efetivação da prática docente fundamentada num olhar pedagógico, e não religioso.” (Junqueira; Rodrigues, 2014, p. 607, grifos nossos).
Os estudos sobre o Ensino Religioso no contexto de crise sanitária parecem ainda estar sendo estabelecidos; algumas reflexões têm aparecido em encontros, eventos e publicações da área da Educação, com foco nas experiências de formação continuada de professores do ER, mas ainda não foi possível observar discussões pormenorizadas sobre a disciplina de maneira individualizada para questões curriculares, material didático ou mesmo abordagens diferentes das empregadas em contextos do velho normal. De toda forma, essa situação nos parece compreensível dadas as condições problemáticas no ambiente escolar, ensino e educação em geral no momento.
Na área das CRE, encontramos importantes reflexões sobre religião, religiosidades, espiritualidade, e o conjunto religião e política durante a pandemia – são muitas as publicações, especialmente dossiês sobre Religião e Pandemia, em revistas e livros desde 2020. Mas, particularmente para o contexto educacional, e sobre o ER em específico, as informações ainda são incipientes.
Acreditamos que, passado este primeiro momento em que as escolas têm retomado as atividades presenciais, a relevância, legitimidade e a prática do ER passem a ser novamente abordadas, sobretudo porque ainda nos encontramos frente a problemas como a evasão escolar, a recuperação de conteúdos e uma nova prática de ensino após um longo tempo de distanciamento social, permeado por perdas importantes nos ambientes familiar e social de alunos, professores e demais agentes do contexto escolar.
Isso toca particularmente nos aspectos socioemocionais: além da insegurança em relação à saúde, as adaptações pelas quais passaram alunos e professores – primeiro do ensino presencial ao remoto, depois do remoto à presença física na escola novamente – levarão ainda um tempo de reflexão sobre essas novas dinâmicas no cotidiano escolar.
Nesse sentido, o Ensino Religioso pode ser uma ponte para conversas importantes sobre os medos, as perdas durante o período mais complexo da pandemia, sobre o isolamento social, uma vez que essa disciplina traz discussões que valorizam uma dimensão mais profunda, que toca o transcendente, e que pode apaziguar alguns sofrimentos mesmo para aqueles que não desenvolvem práticas ou crenças particulares.