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TEM FOLIAS DE REIS NOS TERREIROS DE UMBANDA DO RIO DE JANEIRO: sincretismo religioso alimentando a devoção aos Santos Reis

There are Folias de Reis in Umbanda Terreiros in Rio de Janeiro: religious syncretism feeding devotion to the Santos Reis

Hay Folias de Reis en Umbanda Terreiros en Rio de Janeiro: el sincretismo religioso alimenta la devoción a los Santos Reis

Zuleica Dantas Pereira CAMPOS
(UNICAP), Brasil
Verônica Inaciola Costa Farias da CRUZ
UNICAP, Brasil

TEM FOLIAS DE REIS NOS TERREIROS DE UMBANDA DO RIO DE JANEIRO: sincretismo religioso alimentando a devoção aos Santos Reis

Interações, vol. 18, núm. 2, e182t02, 2023

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 08 Marzo 2023

Aprobación: 17 Julio 2023

Resumo: As Folias dos Santos Reis, assim como outras devoções oriundas do catolicismo medieval, que adentraram no Brasil e passaram a compor o repertório sagrado, imposto aos povos originários e, mais tarde, aos negros africanos acometidos pela diáspora para aqui serem escravizados, ganharam contornos próprios pelo povo que se formava. Dessa forma, buscamos compreender como um auto devocional que foi entronizado pelo catolicismo popular, ainda na Colônia, se aproxima das religiões afro-brasileiras, principalmente da umbanda, sem negar o mito que a gerou. Um conjunto de fatores, como a deslegitimação pela religião que entronizou a devoção, a chancela de um catolicismo popular que reinventou as práticas devocionais e a saída do campo para as cidades, aproximou esses devotos dos Santos Reis aos cultos da umbanda.

Palavras-chave: Folias de Reis, Umbanda, Sincretismo, Catolicismo Popular.

Abstract: The Folias dos Santos Reis, as well as other devotions originating from medieval Catholicism, entered Brazil and began to compose its sacred repertoire – imposed on the native peoples and later the black Africans affected by the diaspora to be enslaved here – gaining its own contours by the people who here formed itself. Hence, we seek to understand how a devotional act that was enthroned by popular Catholicism, still in the colony, approaches Afro-Brazilian religions, mainly Umbanda, without denying the myth that generated it. The set of factors such as the delegitimization by the religion that enthroned devotion, the endorsement of a popular Catholicism that reinvented devotional practices, the departure from the countryside to the cities, brought these devotees of Santos Reis closer to Umbanda cults.

Keywords: Folias de Reis, Umbanda, Syncretism, Popular Catholicis.

Resumen: Las Folias dos Santos Reis, así como otras devociones provenientes del catolicismo medieval, entraron en Brasil y pasaron a componer el repertorio sagrado, impuesto a los pueblos originarios y luego a los negros africanos afectados por la diáspora para ser esclavizados aquí, ganaron su propio contorno por las personas que se graduaron. De esta manera, buscamos comprender cómo un yo devocional que fue entronizado por el catolicismo popular, aún en Colonia, se acerca a las religiones afrobrasileñas, principalmente a la umbanda, sin negar el mito que la generó. El conjunto de factores como la deslegitimación por parte de la religión que entronizaba la devoción, el aval de un catolicismo popular que reinventaba las prácticas devocionales, la salida del campo a las ciudades, acercaron a estos devotos de los Santos Reyes a los cultos de la Umbanda.

Palabras clave: Folias de Reis, Umbanda, Sincretismo, Catolicismo Popular.

1 INTRODUÇÃO

Nas multiplicidades que permeiam as crenças brasileiras, buscamos compreender como um auto devocional1 que foi entronizado pelo catolicismo popular, ainda na Colônia, se aproxima das religiões afro-brasileiras, principalmente da umbanda, sem negar o mito que a gerou. Estamos falando das Folias de Santos Reis.

O nascimento de Jesus é o fato histórico que traz inúmeras narrativas sobre a visita dos Magos ao local onde se encontrava o menino, a partir do Evangelho de Mateus 2:1-12, que conta que Jesus nasceu em Belém quando Herodes era rei de Israel. Com o nascimento de Cristo, alguns magos do Oriente viram uma estrela, a Estrela de Belém, e foram guiados por ela até o local onde estava o menino Jesus em sua manjedoura. De acordo com Brandão,

há indícios de que no Brasil o culto à figura popular dos Três Reis do Oriente é quase tão antigo quanto o dos padroeiros dos primeiros conquistadores. Os missionários jesuítas costumavam catequisar os índios com o recurso de autos e dramas litúrgicos, que faziam traduzir inclusive para a “língua geral”, falada em quase toda a Colônia (Brandão, 1985, p. 143).

Através da pedagogia catequética dos padres jesuítas essa narrativa foi ganhando contornos diferenciados entre os devotos que têm, na figura dos Três Reis Magos, o santo milagroso. Brandão (1985), sinaliza que eles os veem como se fossem apenas uma pessoa. É esse imaginário que vai assumir a lógica das representações verbo-icônicas em torno dessa passagem bíblica e vai atravessar séculos protagonizando a cena do que chamamos Folia dos Santos Reis, também denominadas reisados, dentre outras nomenclaturas hoje vistas como autos populares ou pertencentes à cultura popular.

De acordo com Renato Silva:

O processo de popularização do culto aos Santos Reis do Oriente se prolifera desde a Europa Medieval, passando pela Península Ibérica e firmando tradições no Brasil após o processo migratório em tempos coloniais. Jesuítas portugueses se apropriaram da dança, do canto e das representações teatrais, como elementos no processo de catequização, desta forma, a participação do povo nos cultos católicos e as (re)interpretações que dão origens às Folias de Reis se configuram também no processo de valorização das imagens e dos objetos rituais (Silva, 2012, p. 1).

O percurso histórico, exercido por leigos, feito pelo catolicismo no Brasil, gerou muitos tipos de devoção, principalmente nos interiores, conforme os poderes conferidos pelo próprio Estado que, legitimamente, gerenciava essa religião.

O catolicismo que adentra o interior do Brasil no séc. XVI, como bem sinalizou Hoornaert (1974), não foi apenas o catolicismo dos proprietários de terras, mas um catolicismo popular, dos moradores das terras alheias que, por aqui, adquiriu formatos bem peculiares, causados pelo encontro de culturas distintas.

Para Oro (2013), o catolicismo popular no Brasil começa a ganhar forma no período colonial nas mãos dos portugueses imigrantes pobres. A causa da expansão foi o regime do Padroado, a partir do qual somente seria dono de terras rurais quem fosse católico. O centro do catolicismo popular no Brasil Colônia eram os santos, e os devotos populares não entendiam a imagem como uma representação, mas, sim, como o próprio santo ali presente; dessa forma, a bênção era concedida pela imagem e os devotos apreendiam o santo como um parente próximo.

Para o autor, o catolicismo está intrínseco à singularidade da sociedade brasileira através da junção de pessoas das mais diversas origens e estratos sociais, as quais desenvolveram uma infinidade de linhas, crenças, correntes e práticas católicas. Esse catolicismo desenvolvido no Brasil Colonial está baseado no culto aos santos, dividido em três categorias:

a) o culto doméstico, constituído de um oratório e uma oração liderada por um membro da família; b) o culto local, em uma capela da comunidade conduzido por um rezador; c) regional, em um santuário, conduzido por um ermitão, local de romaria e peregrinação. Explica também que uma vez que o santo está na casa do indivíduo e na capela todos os dias, uma vez por ano era necessário visitar a casa do santo, o santuário (Oro, 2013, p. 122).

A prática do catolicismo no Brasil é heterogênea. Ser católico faz parte de um costume e existe muitas maneiras de praticá-lo. Os santos detêm um domínio – que perpassa a vida cotidiana – e preenchem um lugar de destaque na vida do povo, garantindo a proteção de seus fiéis.

Assim, as Folias dos Santos são uma prática do catolicismo popular, com predominância rural em sua origem, sem a necessidade de um sacerdote para a realização dos seus rituais. Elas representam, em outros tempo e espaço, a viagem dos Reis Magos, conforme consta no evangelho de Mateus, embora simbolicamente construídas pelos foliões e mestres reiseiros2 que saem para o giro da noite de Natal até o dia de Reis (no Rio de Janeiro, ela segue até o dia do padroeiro, 20 de janeiro), visitando seus devotos em missão.

É importante lembrarmos que a religião popular é produto simbólico de grupos sociais historicamente situados; dessa forma, não se trata de uma realidade em si. Há uma multiplicidade de práticas tanto do ponto de vista morfológico e semiótico (representações, mitos, crenças, ritos), como do ponto de vista sociorreligioso, cultural, social e histórico. Esse contexto religioso, que é forma coletiva, expressa de maneira ímpar as necessidades, angústias, esperanças e anseios do grupo (Parker, 1996).

No caso aqui estudado, tratamos de comunidades cujo exercício religioso pode ser denominado de catolicismo popular. Assim, nos referimos a um conjunto de práticas religiosas não reconhecidas ou não efetuadas pelo clero oficial, que são vividas pelos leigos (Schneider, 1996).

A celebração da Folia de Reis, portanto, chegou ao Brasil através da colonização portuguesa e da evangelização católica; ela é intensa no Estado do Rio de Janeiro. Os grupos de Folia visitam as casas, entre os dias 25 de dezembro e 06 de janeiro, perfazendo uma jornada de 13 dias. Os devotos os recebem e esperam receber bênçãos.

Foliões esperam colher dos devotos, também oferendas materiais tais como um lanche ou uma refeição, assim como dinheiro. Este é usado para suprir necessidades da jornada, e para uma festa anual que a maioria dos grupos realiza fora do calendário natalino, conhecida na região como Baile de Reis, e que em outras regiões é referida por Festa de Arremate ou Festa de Remate. Esse encontro festivo, para o qual é comum convidar outros grupos de Folia, devotos e amigos, destina-se a celebrar o sucesso da última jornada (Magno, 2016, p. 38-39).

No entanto, apesar de em um primeiro momento aparentarem estar vinculados à Igreja Católica, pela passagem descrita no Evangelho de Matheus, a prática ganhou novas interpretações na medida em que o seu percurso no tempo absorveu outras formas de crer. Ao que nos parece, o exercício ritualístico não é sustentado isoladamente por ela, uma vez que vamos apresentar aqui um forte processo de miscigenação e de influências das macumbas e posteriormente das tradições umbandistas3.

É importante lembrar que o percurso histórico feito pelo catolicismo no Brasil – que gerou tanta devoção – foi exercido por leigos, principalmente nos interiores, conforme poderes conferidos pelo próprio Estado. Isso não seria possível se esse catolicismo já não fosse sincrético, ou seja, não tivesse tido contato com um vasto repertório religioso, principalmente com as crenças dos povos originários e, mais tarde, com as culturas dos povos africanos escravizados que sofreram a diáspora. Como afirma Pierre Sanchis: “o catolicismo que aqui adentra mata e selva pelo português já é constitutivamente sincrético.” (Sanchis, 2001, p. 24).

Tais cosmovisões fundamentam esse formato brasileiro de crer que originou tantas devoções, festas, procissões e rezas, permitidas em alguns momentos e proibidas em outros, mas que atravessam séculos, dentro ou fora da Igreja.

Se na contemporaneidade observamos grupos como as Folias de Reis, os Congados e diversos outros que mantêm essa estrutura religiosa dentro de uma tradicionalidade, não podemos nos furtar, portanto, a aceitá-los também como fruto de um sincretismo.

Primeiramente, as Folias de Reis, assim como outras práticas devocionais que se originaram no catolicismo medieval trazido pelos colonizadores, apesar do seu ritual próprio, pautado na viagem dos magos têm, na maioria dos seus seguidores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, devotos da Umbanda.

Os fluxos migratórios provocados pelo crescimento das cidades atraíram a mão de obra do campo e fizeram com que muitos devotos, em busca desses atrativos, ressignificassem a Folia de Reis, que transitou de culto camponês para culto operário nas periferias de grandes cidades. Esses rituais devocionais e festivos, tradicionalmente dirigidos aos Santos Reis, encontraram acolhimento nas macumbas, origem da Umbanda que, mesmo perseguidas, atraíam pessoas que buscavam curas por elas promovidas através do transe, das ervas e das benzeduras.

É importante lembrar que a Umbanda passava por processos de legalização e não descartava o cristianismo da sua configuração teológica, o que a aproximou dos devotos dos Santos Reis. Dessa maneira, passaremos aqui a descrever a forma como a encontramos no município de Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

2 A FOLIA DE REIS NOS TERREIROS DE UMBANDA

Faremos aqui um recorte para descrever a relação do Mestre Claudio com a Umbanda, uma vez que os rituais de Folia de Reis são práticas do Catolicismo Popular. Para tanto, realizamos uma entrevista narrativa4 levando em consideração que as experiências humanas podem ser expressas em forma de narrativa, conforme ponderou Barthes (1993), onde o seu interlocutor narra histórias em que a sua vida está permeada por fenômenos sócio-históricos específicos onde as suas biografias se enraízam.

Podemos contextualizar a duplicidade da crença herdada por Mestre Claudio, do seu pai, Mestre Bento, que por sua vez herdara a bandeira do seu avô, ainda no interior. Mestre Claúdio herdou também do seu pai o terreiro de Umbanda. Assim, o Sr. Claudionir Francisco de Oliveira (Mestre Claudio) exerce uma dupla atuação religiosa com um sincretismo bastante peculiar: é pai de santo ou zelador de santo no terreiro de Umbanda e mestre reiseiro.

Essa característica do Mestre Claudio aponta para um achado importante de nossa pesquisa, pois não conhecemos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, outro mestre reiseiro que também exerce a função de pai de santo. O que vamos reconhecer nos demais integrantes do seu grupo Bandeira Estrela do Oriente 2 e nos integrantes de outros dois grupos por nós estudados em outro trabalho5 é que nas subjetividades de suas crenças, transitam de forma contígua entre a Umbanda e o Catolicismo popular.

Pai Francisco da Bahia é o nome de um Preto Velho de Umbanda que, há aproximadamente 35 anos, recebe a Folia de Reis Bandeira Estrela do Oriente II, no município de Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Pai Francisco é uma entidade, autodenominada Preto Velho, que, em vida, foi escravizado no Estado da Bahia. Ele chega no terreiro através do médium Claudionir Francisco de oliveira, de 52 anos, que exerce a profissão de rodoviário. Segundo o médium, que também é o mestre da folia há quatro anos, essa bandeira foi herdada do seu pai, o Mestre Bento, que com ela saiu por aproximadamente cinquenta anos. Com o seu falecimento, o encargo foi passado para ele que, desde criança, acompanhava o pai nas jornadas6 e giros7.

Devoto dos Santos Reis, já ocupou várias funções dentro do grupo, inclusive a de palhaço. Dentro do contexto narrativo dos foliões, o palhaço representa o soldado de Herodes, que foi acompanhando os reis para ver onde estava escondido o menino8. Os palhaços, em versões mais contemporâneas, segundo Cruz (2018), representam os zombadores, os que despistavam os soldados, configurando uma analogia com as religiões afro-brasileiras, particularmente com o orixá ou a entidade Exu.

Pai Francisco da Bahia recebendo os foliões
Foto 1
Pai Francisco da Bahia recebendo os foliões
arquivo pessoal 9

Assim, o mestre da bandeira também é o médium que incorpora o Pai Francisco e o zelador, pai de santo, do terreiro. De acordo com sua narrativa, comemora o dia dos Santos Reis, ainda no período da jornada, no terreiro Centro de Caridade Nossa Senhora Aparecida.

O senhor Claudionir, em sua narrativa, esclarece:

Desde os meus 15 anos de idade trabalho com o preto velho Pai Francisco da Bahia. Ele é o administrador espiritual dessa casa, eu sou o zelador, não sou pai de santo, porque o santo não precisa de pai, então eu zelo pela casa e pelos médiuns. Meu pai, senhor Bento Francisco de Oliveira, o Mestre Bento, muito conhecido aqui na região, essa bandeira já tem mais de 50 anos, agora tem 4 anos que ele faleceu. Foi cantar reis no céu, era ele o Mestre da bandeira. Agora sou eu o responsável, mas o terreiro já recebe a bandeira há muitos anos. Vou contar pra você, mas a gente precisa se encontrar mais vezes porque é muita história, muita coisa pra falar”. “Você pode estranhar, né? O Pai Francisco receber a Folia de Reis, ele adora, faz questão, é que na outra encarnação, antes dele ser escravo lá na Bahia, ele era padre10, por isso que o centro está com imagens de santos como a Igreja Católica (Oliveira, 09 set. 2022).

Na fala do mestre da bandeira e pai de santo fica evidente a importância, na sua devoção, tanto da Folia de Santos Reis quanto da Umbanda sem, contudo, misturar as suas crenças. Mais adiante, na entrevista, afirma: “não é porque a Folia de Reis vai ao terreiro que ela é da Umbanda, nós sabemos que ela é católica.” (Oliveira, 09 set. 2022).

Pai Francisco benzendo os foliões
Foto 2
Pai Francisco benzendo os foliões
arquivo pessoal 11

Nesse caso, o que podemos perceber é que as práticas devocionais da Igreja Católica – no caso aqui analisado, a Folia de Reis – não se fundiu ao ritual da Umbanda. São devoções diferenciadas, de religiões diferentes, praticadas pela mesma comunidade que tem consciência dessa pluralidade devocional.

Um outro exemplo que podemos apresentar foi nossa experiência na festa de arremate na sede da Bandeira Estrela do Oriente II, do Mestre Claudio, em julho de 2022.

Chegamos ao local às 20h e o ritual já havia começado; então, a reza já tinha acontecido. Estavam tocando uma toada de agradecimento pela jornada que fora realizada com grande sucesso, e pelas muitas graças alcançadas, diante de um quadro de grande referência simbólica no cristianismo católico: a Santa Ceia.

Durou aproximadamente 30 min de cantorias no entorno da mesa que já estava posta para a ceia. O contramestre passou o pão que ali estava para todos os foliões antes que se sentassem, o mestre continuou a puxar a cantoria de agradecimento. Cearam e, logo após, descantaram12 a ceia, pois, nesse momento, um colaborador da organização da festa soltou fogos anunciando a chegada de um grupo visitante.

Bandeira Estrela do Oriente II
Foto 3
Bandeira Estrela do Oriente II
arquivo pessoal 13

Todos os gestos estavam ali pautados pelas práticas de um catolicismo que vem de longe. No entanto ao entorno, no altar oficial e na entrada do local, as simbologias de um ritual de Umbanda se faziam presentes, na casa de Exu, no cruzeiro das almas e na reverência ao povo cigano. Toda uma referência à Umbanda que, oficialmente, é a religião do mestre, pai de santo, ou zelador, como gosta de ser chamado.

É importante ressaltarmos serem comuns as visitas dos grupos de Folias de Reis aos terreiros de Umbanda e, às vezes, até aos candomblés na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Porém, existe sempre a separação entre o que é a devoção católica e o que são as práticas da umbanda. Quando chegam para cantar Reis, é comum louvar, através do cantorio, cada santo que se encontra no Congá14 do terreiro.

Os devotos dos Santos Reis transitam nesse universo sem colocar em jogo a legitimidade de suas crenças. É assim que o auto das Folias de Santos Reis se aproxima da Umbanda sem negar o mito que a gerou.

A extensão do envolvimento da Umbanda no ritual da Folia de Reis é estabelecida por dois fatores: os personagens da manifestação, uma vez que muitos são umbandistas, inclusive o Mestre da bandeira é pai de santo e médium da Umbanda e o terreiro, Centro de Caridade Nossa Senhora Aparecida, local sagrado onde o Mestre da bandeira, incorporado pela entidade da Umbanda – Pai Francisco – benze os foliões. Essa conexão sincrética utiliza dois tipos de códigos religiosos, dos quais o Senhor Claudionir deve ser detentor.

Aqui o sincretismo pode ser abordado na perspectiva bastidiana, quando o autor explica que “o sincretismo não é uma coisa fixa, cristalizada, mas variável (...) dá sempre lugar às nossas identificações.” (Bastide, 1973, p. 174). O Senhor Claudionir e a comunidade conhecem os códigos e estão cientes da forma que escolheram para louvar.

Para entendermos as subjetividades das crenças que envolvem o cotidiano desses devotos dos Santos Reis, precisamos navegar em outros códigos sagrados que estão além das práticas do catolicismo brasileiro, o qual não se furtou em apresentar aos fiéis que os queria conquistar com uma legião de santos. Embora fosse o cristianismo que seria revelado, os santos é que seriam os intercessores para se chegar ao Cristo, e eles também atuaram em vários outros papeis na devoção popular.

O termo sincretismo religioso pode apresentar um significado positivo ou negativo, dependendo do lugar onde está situado o interlocutor e qual é a sua posição dentro da religião. No caso do catolicismo, na visão eurocêntrica do seu praticante, ou seja, no lugar onde ele se situa, esse catolicismo goza da consideração de uma religião superior, o que implica o sincretismo vir a ser extremamente desconsiderado, inclusive como uma ameaça à pureza da crença. Mas se ele for considerado, como já vimos, fruto de uma assimilação do povo que vive a experiência da fé com outras expressões religiosas, ele é aceito. Para Boff,

nossa tarefa é mostrar a legitimidade do sincretismo como processo de vida de uma religião. Sua relevância no Brasil é grande, dada a profunda sensibilidade religiosa do povo e a efervescência de expressões religiosas existentes, de distinta procedência, da África, dos indígenas, dos caboclos, do cristianismo colonial-medieval, reformado e modernizado, das várias congregações cristãs. Aqui o catolicismo pode, ao encarnar-se e abrir-se a esta riqueza religiosa, criar um rosto novo (Boff, 1981, p. 161).

Sínteses que não se furtam a experiências e resultam em ritos ricos nas suas expressões, nas quais a intimidade com o sagrado se dá de forma muito natural, o que mostra ser esse sincretismo um processo contínuo, permeado de conflitos resultantes da absorção de diferentes elementos, embora legitimado em suas formas de crer.

As formas de se relacionar com o sagrado através do contato com distintas culturas, nos permite entender essa legitimidade conferida ao sincretismo, sobretudo nesse aspecto agregador e pacificador de conflitos causados pela aproximação humana, que ele assume em vários momentos, “manifestando-se por porosidades e contaminações mútuas.” (Sanchis, 2001, p. 24-25).

Diante de todas as controvérsias que envolvem a Umbanda, principalmente pelo seu mito de fundação, em 1908, que retrata o episódio ocorrido com Zélio Ferdinando de Moraes o qual, em estado de transe incorporou um caboclo por ele denominado “Caboclo das Sete Encruzilhadas” – espírito de um índio que, em outra encarnação, já teria sido um padre jesuíta – aglutinou elementos kardecistas e cristãos a uma nova religião, o que, de certa maneira, promoveu um discurso de pacificação.

Segundo Simas (2021), foi quando aconteceu a mudança do regime político do país e o catolicismo perdeu o regime de Padroado, que as práticas religiosas afroindígenas brasileiras passaram a ser ainda mais reprimidas e vistas como atrasadas, desprovidas de história, o que reforça a repercussão do pensamento eurocêntrico legitimador do cristianismo.

É emblemático que a umbanda, se tomarmos como referência aqui o mito fundador da anunciação do caboclo, tenha começado a estruturar o seu culto em um momento singular dos debates sobre a construção da identidade nacional: o período pós-abolição e as primeiras décadas da República. A história da umbanda e os significados do seu mito fundador contam muito sobre os tensionamentos que pautaram os debates sobre a formação brasileira (Simas, 2021, p. 99).

Os foliões dos Santos Reis se deslocaram das lavouras no interior do estado, em meados do século XX, em busca de uma qualidade de vida melhor nesses centros urbanos. Eram trabalhadores de terras alheias, detentores da herança de um catolicismo popular, conforme vemos explicitado em Hoornaert (1974); porém, não mudando o seu padrão socioeconômico, tal qual acontecia na Colônia e no Império.

Esses rituais devocionais e festivos, tradicionalmente dirigidos aos Santos Reis, encontraram acolhimento nas macumbas – origem da Umbanda – que, mesmo perseguidas, segundo Simas (2021), aproximavam as pessoas que buscavam as curas por elas promovidas através da medicina popular.

Portadores de um discurso metafísico, esses sacerdotes de viola como denomina Brandão (1981), passam a ter esperança em melhores conquistas materiais, e chegam para habitar este território urbano, onde os conflitos sociais e as disputas religiosas passam a fazer parte de seus cotidianos. A exploração de suas forças de trabalho agora encontra-se nas mãos de novos agentes exploradores, mas a fé e a devoção nos Santos Reis, como também, a aproximação cada vez maior com os Pretos Velhos dos terreiros de umbanda que os acolheram, lhes garantem a sustentação necessária para a manutenção das suas tradições, mesmo que reelaboradas ou reinventadas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As religiões de matriz africana conseguiram disfarçar suas crenças e se manter em função desse sincretismo. Não se trata apenas de uma correspondência entre divindades africanas e europeias: o sincretismo deu sustentação às crenças brasileiras e afro- brasileiras que vêm se reinventando e se reafirmando diante das transformações sofridas pelo campo religioso na contemporaneidade.

Embora o forte contexto e status do candomblé com seu culto aos orixás seja a grande constante nos estudos, nossa pretensão nesse trabalho foi fazer uma aproximação maior com a Umbanda, obviamente sem descartar o legado das crenças africanas na sua origem. Foi com a Umbanda, religião fundada, no Brasil, no início do século XX, que as práticas ritualísticas das Folias de Reis encontraram suporte, principalmente por sua aproximação com o catolicismo santeiro e as competências atribuídas a esses santos que permearam o imaginário brasileiro.

Um conjunto de fatores, como a deslegitimação pela religião que entronizou a devoção, a chancela de um catolicismo popular que reinventou as práticas devocionais e a saída do campo para as cidades, promoveu uma aproximação dos devotos dos Santos Reis com os cultos da Umbanda que passava por processos de legalização na República e, também, por não descartar o cristianismo da sua configuração teológica, como a anunciada por Zélio de Moraes que, segundo Giumbelli (2002), já era uma construção tardia, opinião ratificada por outros construtos teóricos, pois já se praticava a Umbanda, mesmo que essa denominação só tenha aparecido no século XX, a partir das revelação do Caboclo das Sete Encruzilhadas, incorporado no médium Zélio.

Porém, não é nossa intenção trazer para análise, neste artigo, as controvérsias existentes sobre a Umbanda, mas, sim, mostrar que, no Rio de Janeiro, o caráter sincrético das Folias de Reis se acentua por causa do acolhimento que tiveram na Umbanda e da jornada que não se encerra no Dia de Reis – 6 de janeiro – uma vez que ela, conforme supramencionado, se estende até o Dia de São Sebastião – 20 de janeiro – e, assim, nestas duas fases da jornada podemos entender melhor o porquê desse sincretismo mais latente.

Falamos aqui de uma dinâmica contida na religiosidade dos grupos de Folias dos Santos Reis. Passado e presente se conectam evidenciando um sincretismo nos seus gestos rituais. Um sincretismo religioso que não tem a intenção de dar cabo de tanta complexidade. Em um discurso mais contemporâneo – decolonial – poderíamos usar a categoria hibridismo cultural para interpretarmos tamanha complexidade; porém, nossa intenção foi pautarmo-nos no fenômeno do sincretismo religioso, sem ampliarmos para outras categorias culturais.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 A devoção aos Santos Reis realizada pelos grupos de Folias de Reis está pautada na representação que fazem em um outro tempo e espaço da visitação dos magos ao menino Jesus. Autos e dramas introduzidos pela pedagogia catequética dos padres jesuítas, que com a romanização do catolicismo sofreram o afastamento da igreja. Autos que continuam a ser realizados por esses devotos, que de acordo com Brandão (1985, p.133), são os agentes religiosos populares.
2 Foliões são devotos integrantes das folias de reis, que ocupam uma função dentro do grupo; mestres reiseiros são os que exercem a figura de líderes do grupo, inclusive no âmbito espiritual.
3 Vale ressaltar que a macumba nasce no Rio de Janeiro com o processo de urbanização da cidade no início do século XIX. De acordo com Bastide (1971), a macumba mistura a cultura africana iorubana com as de tradição banta, os espíritos dos caboclos, os santos católicos e as entidades do espiritismo. A partir da macumba “nascerá”, no início do século XX, a Umbanda. De acordo com Simas (2021) a criação da umbanda gira em torno da disputa, principalmente, de duas versões: uma que se reivindica como cristã e brasileira, a Umbanda branca, ligada a conjuntura histórica específica das primeiras décadas do Brasil no século XX; a outra, a Umbanda afro-brasileira, ligada a uma identidade afrodiaspórica do culto.
4 Devidamente autorizada pelo Sr.. Claudionir Francisco de Oliveira.
5 Bandeira Sagrada família da Mangueira e Bandeira Nova Flor do Oriente.
6 As jornadas correspondem ao ciclo compreendido entre a noite de Natal e o dia de reis, uma correspondência ao caminho feito pelos magos ao encontro do Deus menino.
7 Os giros são as saídas que a folia faz no período da jornada, visitando seus devotos.
8 Episódio com muitas narrativas produzidas pelos devotos foliões de reis.
9 Foto feita na Casa de Caridade Nossa Senhora Aparecida, quando o próprio mestre da Folia de Reis Estrela do Oriente II, incorporado com o Pai Francisco da Bahia, recebe seus foliões.
10 Essa fala tem muita correspondência com o que foi falado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, incorporado em Zélio de Moraes, por ocasião da fundação da Umbanda.
11 Nessa foto a interação entre os foliões e o preto velho, mostra como o sincretismo afrocatólico está presente nos autos das Folias dos Santos Reis.
12 Cantoria feita em agradecimento após a ceia.
13 Foto Hélio Azevedo
14 Palavra de origem africana. utilizada na Umbanda Sagrada para denominar o altar onde ficam as imagens dos caboclos, pretos-velhos, santos católicos e outros elementos presentes nas crenças umbandistas.
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