DEBATES E COMUNICAÇÕES
ENFERMIDADE E VIVÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE: estudo de caso1 de uma pessoa sem religião a partir da disciplina Epistemologia Axiológica de Marià Corbí
Illness and Living Spirituality: a case study of a person without religion from Marià Corbi Axiological Epistemology
Enfermedad y Espiritualidad Viva: un estudio de caso de una persona sin religión basado en la Epistemología Axiológica de Marià Corbí
ENFERMIDADE E VIVÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE: estudo de caso1 de uma pessoa sem religião a partir da disciplina Epistemologia Axiológica de Marià Corbí
Interações, vol. 18, núm. 2, e182c01, 2023
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 09 Abril 2023
Aprobación: 05 Mayo 2023
Resumo: As pesquisas em espiritualidade e saúde têm se mostrado de grande valia para o entendimento de como se dá essa relação e sobre como ela pode fazer parte do cotidiano das equipes multidisciplinares na área da saúde e de seus pacientes. Nesse contexto, surgem questionamentos se é possível o cultivo da espiritualidade em pacientes que se denominam sem-religião, espiritualidade pela óptica do epistemólogo Marià Corbí: Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda. O presente trabalho tem por objetivo apresentar um estudo de caso sobre a vivência da espiritualidade de uma paciente em cuidados paliativos. Trazemos para esta comunicação uma análise qualitativa preliminar, a partir da Epistemologia Axiológica de Marià Corbí, considerando as informações coletadas em entrevista individual. Um ponto relevante é a busca da paciente por estudos desenvolvidos com foco em câncer pulmonar - CPNPC ALK-positivo, sítio primário da paciente. Este trabalho reafirma a necessidade da busca de estudos empíricos para nos embasar de conhecimentos sobre espiritualidade, evidenciando a necessidade de capacitação de toda equipe multidisciplinar em relação à fundamentação teórica e prática para a tomada de decisão frente à complexidade da área.
Palavras-chave: Espiritualidade, Saúde, Sem-religião.
Abstract: Research on spirituality and health has been of great value for the understanding of how this relationship occurs and how it can be part of the daily life of multidisciplinary health teams and their patients. In this context, questions arise as to whether it is possible to cultivate spirituality in patients who call themselves non-religious, spirituality from the point of view of the epistemologist Marià Corbí: Human Quality and Deep Human Quality. The present paper aims to present a case study on the experience of spirituality of a patient in palliative care. We bring to this communication a preliminary qualitative analysis, based on the Axiological Epistemology of Marià Corbí, considering the information collected in an individual interview. A relevant point is the patient's search for studies developed focusing on lung cancer -ALK-positive NSCLC, the patient's primary site. This work reaffirms the need to search for empirical studies to provide us with knowledge about spirituality, highlighting the need for training of the entire multidisciplinary team in relation to the theoretical and practical basis for decision making facing the complexity of the area.
Keywords: Spirituality, Health, Non-religion.
Resumen: La investigación sobre espiritualidad y salud ha demostrado ser de gran valor para la comprensión de cómo se produce esta relación y cómo puede formar parte del día a día de los equipos multidisciplinares del área de la salud y de sus pacientes. En este contexto, surgen preguntas sobre si es posible cultivar la espiritualidad en pacientes denominados no religiosos, espiritualidad desde el punto de vista del epistemólogo Marià Corbí: Calidad Humana y Calidad Humana Profunda. El presente trabajo tiene como objetivo presentar un estudio de caso sobre la vivencia de la espiritualidad de un paciente en cuidados paliativos. Aportamos a esta comunicación un análisis cualitativo preliminar, desde la Epistemología Axiológica de Marià Corbí, considerando la información recogida en una entrevista individual. Un punto relevante es la búsqueda por parte de la paciente de estudios desarrollados centrados en el cáncer de pulmón - CPNM ALK-positivo, localización primaria de la paciente. Este trabajo reafirma la necesidad de búsqueda de estudios empíricos que nos proporcionen conocimiento sobre la espiritualidad, destacando la necesidad de formación de todo el equipo multidisciplinar en relación a las bases teóricas y prácticas para la toma de decisiones frente a la complejidad del área.
Palabras clave: Espiritualidad, Salud, No religión.
1. INTRODUÇÃO
As sociedades do conhecimento2 - termo elaborado pelo pesquisador Marià Corbí3 (2020) para se referir às sociedades que vivem de inovação e criação constantes, terão que abarcar um outro conceito, o da espiritualidade, o que Marià Corbí compreende como Qualidade Humana Profunda. Faço uso do conceito espiritualidade, devido a sua popularidade, flexibilidade e sua ampla abrangência, fatores que permitiram sua consolidação social nas últimas décadas.
As definições acerca do conceito de espiritualidade são bastante variadas e podem variar de acordo com a fonte onde se busca. Na maioria das vezes, a espiritualidade é confundida com o conceito de religião; em algumas situações, aponta para um sentido da vida.
A espiritualidade, contudo, trata também de experiências individuais e pode se referir a algo da vida que nem sempre evocará essa noção do sagrado como algo transcendente e imaterial. Há, nesse sentido, a possibilidade da existência de espiritualidades não religiosas. Os seres humanos, como animais necessitados e incompletos, perguntam-se pelos sentidos para as suas vidas e questões de cunho ontológico. Nesse cenário, as definições de espiritualidade, para além do domínio das crenças religiosas, apontam para perspectivas mais pessoais, a algo que as pessoas reconhecem como livres de regras, regulações e responsabilidades associadas à religião (Vieira, 2020). A espiritualidade não religiosa4, ou cultivo da Qualidade Humana Profunda, pode representar um elemento necessário para o desenvolvimento de muitas das habilidades relacionadas à capacidade de acolher o outro, ouvi-lo, amadurecer as ideias e as posturas, discernir os posicionamentos e valores existentes, avaliar, cultivar a profundidade existencial e as opções fundamentais, centrar-se, etc.
Assim é que a espiritualidade deve favorecer um diálogo com a existência concreta das pessoas e das sociedades e os desafios nelas presentes (Souza, 2013). Compartilhamos da noção de que espiritualidade se refere a algo que é inerente ao ser humano, como animal que fala. A fala ou a linguagem é o que abre o animal humano para o duplo do real, sua Dimensão Absoluta e sua Dimensão Relativa5.
O surgimento de uma espiritualidade não religiosa, cresce junto com o grupo de pessoas que se reconhecem como sem-religião. Particularmente, no Brasil das últimas quatro décadas, o número de pessoas que assim se reconhecem saltou, segundo dados do último Censo Demográfico do IBGE, de 0,8% da população brasileira em 1970, para 8,04% em 2010 (Senra; Campos, 2014).
Nesse sentido, por meio de pesquisa qualitativa e estudo de caso, Esta comunicação é parte da dissertação de mestrado intitulada ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: O Cultivo da Qualidade Humana e da Qualidade Humana Profunda no enfrentamento da enfermidade.
2 QUALIDADE HUMANA E QUALIDADE HUMANA PROFUNDA
Marià Corbí nos convida a cultivar a Espiritualidade – Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda - a qual é livre, distante de valores pré-estabelecidos, de hierarquias e submissões. Marià Corbí nos traz que [...] “a Qualidade Humana é a consciência de viver e cultivar nosso duplo acesso à realidade: a da dimensão relativa às nossas necessidades e a da dimensão não relativa a essas necessidades ou dimensão absoluta” (Corbí, 2020, p. 189, tradução nossa)6. Para desenvolver a Qualidade Humana, Mariá Corbi cita características indispensáveis, que se resumem em IDS-ICS, aptidões e atitudes, e são elas (QUADRO 1):
| Primeira característica: | Interesse pela realidade; interesse mental e sensitivo; atenção desperta e alerta. |
| Segunda característica: | Adquirir capacidade de distanciamento das realidades; desapego; desimplicação. |
| Terceira característica: | Capacidade de silenciamento interior completo. |
A diferença entre Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda é o grau de radicalidade, ambas se desenvolvem através das mesmas características, IDS quando pensada de forma individual e através da junção da ICS partindo para um pensamento de cultivo de forma coletiva. O ICS é composto pelas seguintes características (QUADRO 2):
| Primeira característica: | Interesse pela realidade; interesse mental e sensitivo; atenção desperta e alerta. |
| Segunda característica: | Adquirir capacidade de distanciamento das realidades; desapego; desimplicação. |
| Terceira característica: | Capacidade de silenciamento interior completo. |
“Essas características unidas, inseparáveis, transformam-se em uma atitude de total interesse pela realidade, em estado de alerta, com distanciamento, desapego e silenciamento interior, impedindo nossas projeções sobre a realidade” (Corbí, 2010, p. 281). IDS e ICS são o resultado final da Qualidade Humana básica e fundamental.
A Qualidade Humana e a Qualidade Humana Profunda possuem nomes diferentes, características específicas, mas não estão em uma relação de sentido que opõe. A Qualidade Humana e a Qualidade Humana Profunda formam, segunda Marià Corbí, uma dimensão não dual do ser humano, um dado antropológico que não necessita das religiões, e sim do silenciamento, mas não do silenciamento, da ausência de ruído que conhecemos, mas sim do silenciamento do nosso eu, do nosso ego. E a partir desse instante conseguir soltar as amarras de todas as opiniões pré-existentes do que é real, de como devemos nos portar, pensar e quais direções devemos seguir.
A Qualidade Humana Profunda
“[...] é viver e cultivar a lucidez de nossas duas dimensões do real para, em última análise, residir na dimensão absoluta. Residir nessa segunda dimensão proporciona aceitação da realidade como se trata, incluindo a morte; acaba com o medo; dá paz, dá amor e veneração por toda criatura; nos faz sentir que nada nos é estranho, e nos leva à unidade” (Corbí, 2020, p. 189, tradução nossa)7.
Para Marià Corbí, “[...] a Qualidade Humana Profunda é o que nossos ancestrais chamavam de espiritualidade ” (Corbí, 2020, p. 189, tradução nossa).8
Quando estamos fragilizados, enfrentando uma enfermidade ou até mesmo cuidando de um paciente, fica mais evidente esse cultivo, pois nos abrimos a uma realidade desnudada de interesses e ego. Precisamos simplesmente ajudar, queremos que a saúde seja restabelecida, por isso utilizamos de vários fatores, características que ultrapassam a nossa condição de seres individualistas, egoístas, dispomo-nos ao outro de maneira livre, desinteressada. Isso se dá de maneira real, de maneira absoluta, não vem a ser algo transcendente. É algo de mais profundo e silencioso que nos dá força e lucidez. Por isso, a necessidade de se construir projetos axiológicos coletivos desprendidos dos sistemas religiosos e a disciplina axiológica de Marià Corbí vêm a ser um instrumento valioso para esse processo como um todo.
3 ENFRENTAMENTO DA ENFERMIDADE E VIVÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE
“As pesquisas sobre espiritualidade e saúde tiveram um avanço significativo nas últimas décadas9, o que impulsionou a criação de um campo próprio de estudo” (Esperandio; Machado, 2020, p. 156). Nesse contexto, surgem questionamentos, como um exemplo: é possível o cultivo da espiritualidade em pacientes que se autodenominam sem- religião?10. Na tentativa de responder esse questionamento, foi realizado um estudo de caso com uma paciente oncológica, com câncer pulmonar - CPNPC ALK-positivo, sítio primário da paciente. A paciente frequenta o ONCOPOÇOS - Grupo de Assistência e Apoio ao Paciente Oncológico, conhecido como GAAPO. Larissa Garcia, que se denomina sem pertença religiosa ou ideologia, busca através de seu trabalho como atriz, do amor de seu marido e de sua família, levar da melhor maneira seu tratamento paliativo, o que fez com que ela desenvolvesse uma espiritualidade não religiosa, baseada na sua realidade e nos seus limites como ser humano. Desde o início de seu tratamento, Larissa se pautou em pesquisas científicas, em novos tratamentos11 que poderiam lhe dar a melhor resposta para efetivar seu tratamento. Através de dados coletados em entrevista com a paciente, buscamos identificar traços de espiritualidade - cultivo da Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda - no enfrentamento da sua enfermidade (Figura 1):

As características encontradas na fala e na vivência da paciente diante do enfrentamento de sua enfermidade nos permite constatar o cultivo de um espiritualidade não religiosa ou, de acordo com Marià Corbí, um possível cultivo da Qualidade Humana e da Qualidade Humana Profunda.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente comunicação tem como objetivo evidenciar o possível cultivo da Qualidade Humana e Qualidade Humana Profunda - em uma paciente que se declara sem-religião. Para análise dos dados coletados no campo, utilizamos da Disciplina Epistemológica Axiológica de Marià Corbí, para identificar características de uma espiritualidade não religiosa, um cultivo de práticas sem estarem agarradas a uma Epistemologia Mítica, que não condiz com a realidade das novas sociedades do conhecimento. Um cultivo da Qualidade humana e Qualidade Humana profunda - sem hierarquia, sem submissão, sem castigos divinos ou punições.
A princípio, destacamos traços marcantes da Qualidade humana e Qualidade Humana profunda - na paciente, conforme figura acima. Vale salientar que a paciente se baseia em estudos científicos e avanços tecnológicos para dar sequência ao seu tratamento, contando com uma equipe multidisciplinar para lhe dar o devido suporte. Suporte o qual relata ser de extrema importância para uma se ter um tratamento eficaz e capaz de devolver a ela as condições que são necessárias para se ter uma vida normal e digna. A paciente frisa a necessidade de profissionais qualificados para abordar temas de tamanha importância como a vivência de cada paciente no aspecto de práticas religiosas, espirituais, sejam elas institucionalizadas ou sem pertença religiosa.
O aparato teórico sobre o contexto saúde e espiritualidade nos convida a buscar mais respostas no campo de pesquisa, para que possamos trazer à tona a realidade de como os pacientes encaram e desenvolvem sua espiritualidade diante da enfermidade.
REFERÊNCIAS
CORBÍ, Marià. Para uma espiritualidade leiga: sem crenças, sem religiões, sem deuses. São Paulo: Paulus, 2010.
CORBÍ, Mariá. Proyectos colectivos para sociedades dinámicas: Principios de Epistemología Axiológica. Barcelona: Herder, 2020.
ESPERANDIO, Mary Rute Gomes; MACHADO, Geilson Antonio Silva. Brazilian Physicians’ Beliefs and Attitudes toward Patients’ Spirituality: Implications for Clinical. Journal of Religion and Health, [s.l.], v. 58, n. 4, p. 1172-1187, Aug. 2020.
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NAVARRO, I.; ORTIZ COTTE, A.; VALDERRAMA IZQUIERDO, J.; CASTAÑO CORVO, M. B. Experiencia universitaria del estudio de la obra de Marià Corbí. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 13, n. 37, p. 613-618, 4 abr. 2015.
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Notas