DEBATES E COMUNICAÇÕES

PARA UMA LEITURA NÃO MÍTICA DAS NARRATIVAS MÍTICO-SIMBÓLICAS: apontamentos à luz da epistemologia mítica segundo Marià Corbí1

Towards a Non-Mythical Reading of Mythical-Symbolic Narratives: notes in the light of mythical epistemology according to Marià Corbí

Hacia una Lectura no Mítica de las Narraciones Mítico-Simbólicas: apuntes a la luz de la epistemología mítica segundo Marià Corbí

Milene COSTA
PUC Minas., Brasil

PARA UMA LEITURA NÃO MÍTICA DAS NARRATIVAS MÍTICO-SIMBÓLICAS: apontamentos à luz da epistemologia mítica segundo Marià Corbí1

Interações, vol. 18, núm. 2, e182c02, 2023

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepción: 23 Febrero 2023

Aprobación: 28 Julio 2023

Resumo: Esta comunicação é parte da pesquisa de doutoramento da proponente e apresenta a perspectiva da disciplina da epistemologia axiológica de Marià Corbí sobre o papel das narrativas míticas- simbólicas originadas nas tradições religiosas das sociedades pré-industriais. Da premissa de que o sistema mítico-simbólico é uma modelação da realidade, indaga-se como estão estruturadas essas narrativas e qual relação estabelecem com a programação do modo de vida dos grupos humanos à luz da disciplina corbiana, construindo um percurso de resposta em três pontos. O primeiro ponto é o fundamento antropológico dual a partir da compreensão de que o ser humano é um animal linguístico. O segundo ponto é relativo à apresentação, segundo a disciplina corbiana, de que os mitos e os símbolos funcionam como estruturas de programação coletiva que configuram o pensamento, o sentimento, a atuação e a organização dos povos. As mitologias para Marià Corbí são a expressão das atividades centrais para a sobrevivência das comunidades humanas e engendram histórias que sustentam costumes e hábitos do grupo social. Por fim, destaca-se que se os mitos funcionavam como programadores, ao deixar de configurar a vida social, podem ser lidos a partir de uma perspectiva não mítica.

Palavras-chave: Epistemologia axiológica, Marià Corbí, Epistemologia das Ciências da religião.

Abstract: This communication is part of the proponent's doctoral research and presents the perspectiveof Marià Corbí's axiological epistemology discipline on the role of mythical-symbolic narratives originated in the religious traditions of pre-industrial societies. Based on the premise that the mythical-symbolic system is a modeling of reality, it is asked how these narratives are structured and what relationship they establish with the programming of the way of life of human groups in the light of Corbian discipline, building a response course in three points. The first point is the dual anthropological foundation from the understanding that the human being is a linguistic animal. The second point is related to the presentation, according to the Corbian discipline, that myths and symbols functionas structures of collective programming that configure the thinking, feeling, acting, and organization of people. Mythologies for Marià Corbí are the expression of activities central to the survival of human communities and engender stories that sustain the customs and habits of the social group. Finally, it is highlighted that if myths functioned as programmers, by failing to configure social life, they can be read from a non-mythical perspective.

Keywords: Axiological epistemology, Marià Corbí, Epistemology of the Sciences of Religion.

Resumen: Esta comunicación forma parte de la investigación doctoral del proponente y presenta la perspectiva de la disciplina epistemológica axiológica de Marià Corbí sobre el papel de las narrativas mítico- simbólicas originadas en las tradiciones religiosas de las sociedades preindustriales. Partiendo de la premisa de que el sistema mítico-simbólico es una modelización de la realidad, se pregunta cómo se estructuran estas narrativas y qué relación establecen con la programación del modo de vida de los grupos humanos a la luz de la disciplina corbiana, construyendo una respuesta curso en tres puntos. El primer punto es la fundamentación antropológica dual a partir de la comprensión de que el ser humano es un animal lingüístico. El segundo punto se relaciona con la presentación, según la disciplina corbiana, de que los mitos y símbolos funcionan como estructuras de programación colectiva que configuran el pensar, sentir, actuar y organizarse de los pueblos. Las mitologías para Marià Corbí son la expresión de actividades centrales para la supervivencia de las comunidades humanas y engendran historias que sustentan costumbres y hábitos del grupo social. Finalmente, se destaca que si los mitos funcionaron como programadores, al no poder configurar la vida social, pueden ser leídos desde una perspectiva no mítica.

Palabras clave: Epistemología axiológica, Marià Corbí, Epistemología de las Ciencias de la Religión.

1. INTRODUÇÃO

Maria Corbí (1932) é um epistemólogo2 que se propôs a estudar e analisar os fenômenos axiológicos coletivos mediante as mudanças percebidas com os avanços das sociedades técnico-científicas. Autor de vasta produção acadêmica sobre o tema,3 Corbí desvela a nova condição cultural capaz de demonstrar a origem e a construção dos valores para as atuais sociedades humanas.

Sua proposta científica, marcada pelo rigor acadêmico, desvela como foram construídos os sistemas mítico-simbólicos nas sociedades pré-industriais, regidas pela religião e a epistemologia própria dessas sociedades, isto é, a epistemologia mítica.

O presente trabalho propõe pontuar a concepção de uma nova antropologia via epistemologia axiológica, a partir do animal linguístico; como os sistemas míticos- simbólicos foram construídos nas sociedades pré-industriais e se tornaram programadores axiológicos; e, porque não são mais adequados como configuradores para as novas sociedades que vivem da criação continuada. Dessa forma, separar o mito de sua função pré- industrial e aprender a lê-lo de maneira não mítica é uma proposta de cultivo da qualidade humana para as novas sociedades.

2. A NOVA CONDIÇÃO CULTURAL

Corbí (2020) recusa as categorizações do humano filosóficas e antropológicas.4 Escolhe fazer sua investigação a partir do dado básico de que o ser humano é um animal, assim, a premissa básica é que o ser humano é uma espécie que possui elementos semelhantes aos demais animais para sobreviver e fazer possível a manutenção da vida. A partir desse dado, o nivelamento se fundamenta em três leis básicas de sobrevivência que são válidas para os mamíferos. Primeiro, sua determinação genética que possibilita sua ação no meio em que vive; segundo, a modelação que faz a partir de sua determinação genética para construir o seu mundo; e, terceiro, a dualidade que cria para sobreviver.

O animal humano está, assim, submetido a estas leis básicas de sobrevivência, pois sua determinação genética, nos estudos corbianos, possui quatro eixos de sustentação, a saber: sua fisiologia, sua sexualidade, sua simbiose e sua competência linguística. Diferente dos demais animais, o animal linguístico não tem uma programação determinada, ou seja, não tem configuração prévia de como utilizará sua carga (determinação) genética.

Para Corbí (2020), é a competência linguística que modela – cria o mundo do animal que fala – comunica e operacionaliza os modos de organizar e conduzir as funções de vida – determinação genética - desse animal. Dessa forma, a programação do que está determinado geneticamente é completada por meio da linguagem. A partir desse fundamento, Corbí analisa as consequências da linguagem para os animais linguísticos.

Para esta exposição, aborda-se exclusivamente como a competência linguística produz o duplo acesso ou bifurcação da realidade que é característica exclusiva do animal linguístico.

A linguagem para o animal linguístico é formada por um significante acústico – som – ligado a um significado semântico – palavra - que se refere a uma realidade extralinguística, entende o autor. (Corbí, 2020). Com a expressão acústica se pode descrever e objetivar. Esse processo permitirá a modelação da realidade, ou seja, a possibilidade de construir o mundo à medida – de acordo com a necessidade - do animal linguístico. Modelar, dar forma, descrever ou objetivar cria um fenômeno que somente o animal linguístico vivencia: a distância objetiva da realidade.

A distância objetiva é a forma como o animal linguístico modela a realidade, afirmando o que a realidade representa para ele e, simultaneamente, o que é a realidade de fato. A partir dos termos corbianos, a operação de o animal linguístico modelar a realidade de acordo com sua necessidade confere à realidade um valor funcional, que é o acesso relativo às suas necessidades. Contudo, a realidade não é o que o animal linguístico modelou. Ao mesmo tempo, o animal que fala tem o acesso à realidade solta – absoluta - da sua modelação, como valor gratuito – sem a mediação de sua necessidade. A mesma realidade está dentro e fora da forma objetivada da linguagem humana, é modelada e está solta do animal que fala e solta das suas formas linguísticas. Não existem duas realidades, mas é um efeito da linguagem a produção dos dois acessos.

Esse processo se dá em uma relação de interdependência para o animal linguístico, como afirma o epistemólogo:

Na língua, e no mundo que a linguagem torna possível para nós humanos, tudo são diferenças e interdependências; nada existe autônomo; nem o acústico, nem os significados, nem os referentes, nem o mundo objetivo nem as necessidades, nem as realidades modeladas pelas necessidades. Nem sequer existe a dimensão absoluta da realidade (Corbí, 2013, p. 64, tradução nossa).5

Portanto, a realidade por meio da linguagem é bifurcada para o animal linguístico. Não é a realidade que tem duas dimensões, é a linguagem que bifurca a realidade quando é modelada pelo vivente que fala. Corbí (2013) afirma que é uma exclusividade da nossa espécie e estrutura fundamental dos humanos.

Essas seriam as bases da nova condição antropológica da disciplina da EA. Com essa referência é possível relacionar o modo de sobrevivência e a construção dos sistemas míticos-simbólicos das sociedades pré-industriais.

3. A CONSTRUÇÃO DOS SISTEMAS MÍTICOS-SIMBÓLICOS

Corbí (2007) analisa as sociedades pré-industriais de caçadores-coletores, horticultores, agrícolas e pecuaristas e percebe uma relação entre o modo de sobrevivência e o paradigma que rege as narrações mitológicas dessas sociedades. Constrói uma base metodológica quando descobre um padrão, isto é, quando há modificação na forma de sobrevivência de um grupo de animais linguísticos, altera-se a estrutura dos mitos, símbolos e rituais.

A partir desta análise, Corbí (2007) elabora o esquema presente em todas as sociedades pré-industriais: a partir de um modo de sobrevivência, por exemplo, caçar, uma ação é produzida – matar o animal para comê-lo – essa ocupação se converte, por meio da linguagem, em uma metáfora que será o paradigma – matriz axiológica - que cria o mito, a narração simbólica para interpretar a realidade – uma morte para dar a vida.

Dessa forma, a cultura, ou nos termos corbianos, o programa axiológico coletivo (PAC) é construído via linguagem, modelando as funções de vida para viabilizar a sobrevivência dos animais linguísticos. Para a epistemologia axiológica, a cultura é “um programa que inclui um sistema de compreensão e valoração da realidade” (Corbí,2017, p.124, tradução nossa).6 A cultura tem como apoio um sistema de ocupação central para a sobrevivência e um paradigma correspondente ao modo de sobrevivência.

Quando as narrativas mitológicas se estruturam por meio do paradigma, uma epistemologia é construída. A base dessa epistemologia é creditar como real as modelações que as palavras descrevem. Corbí nomeia essa relação linguagem-modelação-verdade como epistemologia mítica, indicando que, ao largo da história, tornou-se a fonte de muitos conflitos:

A epistemologia mítica tem sido, ao largo da história, uma fonte de conflitos graves entre PACs concretos e de conflitos graves ainda mais entre religiões. Se dois modos de vida coletiva (dois PACs) se consideravam revelações fidedignas dos deuses, ou duas religiões que também se autoatribuíam como origem direta dos deuses se enfrentavam, o conflito resultava grave. A história humana está cheia desses conflitos, alguns muito sangrentos (Corbí, 2017, p. 25, tradução nossa).7

Assim, as narrativas mitológicas funcionaram como PACs nas sociedades pré- industriais, condicionadas ao modo de sobrevivência. Com a mudança no modo de viver que as sociedades de inovação trazem consigo, então, os sistemas míticos-simbólicos não poderiam mais funcionar como PACs, assim como a epistemologia mítica que acompanharam aquelas sociedades. A questão que se coloca é que se ainda existe riqueza de sabedoria nessas narrativas que possa ser apreciada nas novas sociedades.

Se os mitos são desnudados e revelados como PACs pré-industriais, pode-se aprender a lê-los sem epistemologia mítica, isto é, sem creditar suas descrições como reais. Considera- se que é possível aprender como aquelas sociedades cultivaram seu duplo acesso à realidade e estimularam a qualidade humana por meio das artes, da espiritualidade, da música, dos poemas e de elementos e processos que permitem perceber uma realidade aberta e não modelada pela linguagem.

Ao expressar o valor e o sabor dos mitos como sabedoria, Corbí usa uma metáfora afirmando que “beber o vinho e enterrar as taças com agradecimento, respeito e amor” (Corbí, 1996, p. 04, tradução nossa).8 Na perspectiva do autor, é nossa tarefa de gratidão por tão grande riqueza da humanidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma leitura não mítica das narrativas mítico-simbólicas é o desafio que as novas sociedades técnico-científicas têm diante de si. Um desafio que aumenta a cada momento, pois, extrair a epistemologia mítica exige conhecer uma realidade aberta que possibilita construir a cultura que o humano almeja.

Aprender com os textos de sabedoria, como os animais linguísticos de outros sociedades cultivaram o duplo acesso ao real e como mostraram que a vida não está presa às formas que os atuais animais linguísticos constroem para viver. É urgente perceber e compreender a nova condição cultural que modifica o conceito da antropologia e, ao mesmo tempo, libera o humano das submissões das palavras, até mesmo das mais sagradas, para poder livremente ler os textos com o sabor vívido que narram a mudança na forma de ver a realidade.

A epistemologia axiológica como disciplina criada para auxiliar na compreensão dos fenômenos axiológicos nas sociedades pré-industriais, industriais e nas sociedades do conhecimento está disponível para apoiar e direcionar os animais linguísticos neste desafio.

REFERÊNCIAS

CORBÍ, Marià. Hacia una espiritualidad laica: sin creencias, sin religiones, sin dioses. Herder: Barcelona, 2007.

CORBÍ, Marià. La construcción de los proyectos axiológicos colectivos: principios de epistemología axiológica 01. Bubok: Barcelona, 2013.

CORBÍ, Marià. Las sociedades de conocimiento y la calidad de vida: principios de epistemología axiológica 05. Bubok: Barcelona, 2017.

CORBÍ, Marià. Proyectos colectivos para sociedades dinámicas: principios de epistemología axiológica. Barcelona: Herder, 2020.

CORBÍ, Marià. Religión sin religión. Madrid: PPC, 1996. E-book. Disponível em: https://cetr.net/es/religion_sin_religion_2/. Acesso em: 22 jan. 2021.

Notas

1 Trabalho apresentado sob a orientação do Prof. Dr. Flávio Senra. Comunicação apresentada no VIII Congresso ANPTECRE: Religião e teologia entre o Estado e a Política: uma abordagem interdisciplinar. Realizado de 28 a 20 de setembro de 2021. Link de acesso: https://anptecre.org.br/congressoanptecre2021.
2 Mariá Corbí também é músico, teólogo e filósofo. Há mais de 40 anos se dedica à pesquisa sobre os fenômenos axiológicos coletivos, as sociedades pré-industriais e as sociedades do conhecimento. É responsável pela criação da Epistemologia Axiológica (EA) como disciplina adequada para manejar os fenômenos axiológicos coletivos em qualquer sociedade. Fundador do Centro de estudo das tradições de sabedoria (CETR), em Barcelona.
3 Corbí escreveu até 2022, oito volumes sobre os princípios de epistemologia axiológica e um compêndio, além de diversos artigos e outros livros com comentários de textos de diversas tradições religiosas, de variadas espiritualidades e formas de sabedoria.
4 Categorias ou pressupostos que descrevem o ser humano como corpo/espírito ou animalidade/razão.
5 En la lengua y en el mundo que nos posibilita la lengua a los humanos, todo son diferencias einterdependencias; nada existe autónomo; ni lo acústico, ni los significados, ni los referidos, ni el mundoobjetivo, ni las necesidades, ni las realidades modeladas por las necesidades. Ni siquiera existe la dimensiónabsoluta de la realidad
6 [...]un programa que incluya un sistema de comprensión y valoración de la
7 La epistemología mítica ha sido, a lo largo de la historia, una fuente de conflictos graves entre PACsconcretos y de conflictos más graves aún entre religiones. Si dos modos de vida colectiva (dos PACs) seconsideraban revelación fidedigna de los dioses, o dos religiones que también se les atribuía origen directode los dioses se enfrentaban, el conflicto resultaba grave. La historia humana está llena de estos conflictos,algunos muy sangrientos.
8 No nos queda más que una posibilidad de sabiduría, fidelidad y honestidad: recoger el vino sagrado de lasvenerables manos de antepasados, enterrándoles a ellos con amor y respeto.
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