RESENHAS
RESENHA CRÍTICA DO LIVRO “CIÊNCIA DA VIDA APÓS A MORTE”
CRITICAL REVIEW OF THE BOOK “SCIENCE OF LIFE AFTER DEATH”
RESEÑA CRÍTICA DEL LIBRO “CIENCIA DE LA VIDA DESPUÉS DE LA MUERTE”

| . MOREIRA ALMEIDA, Alexander; COSTA, Marianna Abreu; COELHO, Humberto Schubert. Ciência após a morte. Belo Horizonte: Ampla, 2023. n° p. 96.. 2023. Belo Horizonte. Ampla. p. 96pp. | 
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Recepción: 03 Agosto 2023
Aprobación: 14 Agosto 2023
É possível investigar cientificamente a hipótese de que a consciência sobrevive à morte do corpo? Alexander Moreira-Almeida, Marianna de Abreu Costa e Humberto Schubert Coelho não só apostam nessa possibilidade, mas também acreditam ter evidências suficientes para defendê-la. Esse é o espírito ousado – mas não menos controverso – de seu livro “Ciência da vida após a morte”, que foi publicado recentemente (2023) pela editora Ampla.
No primeiro capítulo, os autores apresentam dados indicativos de que a maior parte das pessoas crê em vida após a morte. Mas, como eles mesmos alertam, “a alta prevalência de uma crença não significa que ela seja factualmente verdadeira” (Moreira-Almeida; Costa; Coelho, 2023, p. 13)1 – tampouco a torna racionalmente justificada. Apenas boas evidências poderiam fornecer justificação a uma proposição, e é justamente isso o que eles prometem demonstrar adiante.
Mas, no segundo capítulo, os autores tomam um caminho argumentativo relativamente similar, ou seja, eles passam a citar diversos intelectuais que, ao longo da história, teriam endossado o dualismo. 2Como eles reconhecem que o apelo à autoridade (argumentum ad verecundiam) é tão falacioso quanto o apelo à multidão (argumentum ad populum), seu foco aqui está mais em refutar a noção preconceituosa de que apenas tolos acreditam em vida após a morte. Embora eles tenham sido bem-sucedidos nisso, notamos um exagero aparentemente seletivo na forma elogiosa com que eles mencionam teóricos dualistas. Por exemplo, enquanto Kant, Fichte e Stapp são respectivamente apresentados como “um dos pináculos do pensamento moderno” (p. 21), “um dos filósofos mais astutos de todos os tempos” (p. 21) e “o destacado físico quântico” (p. 29), Darwin é introduzido apenas como... Darwin (p. 14). Obviamente, nosso incômodo não reflete a ausência de louros endereçados aos monistas, mas ao excesso de honrarias concedidas aos dualistas – as quais, no nosso entendimento, flertam com o apelo à autoridade e podem confundir os espíritos menos versados em Filosofia.
O terceiro capítulo é dedicado a criticar alguns argumentos neurocientíficos a favor do monismo. Em vez de negarem a importância do cérebro para o fenômeno da consciência, os autores defendem que seu papel é mais instrumental do que causal. Tal como uma TV, que nos apresenta imagens captadas em estúdios, por exemplo, nossos bilhões de neurônios “apresentariam” estados e processos mentais que não dependeriam deles. Em outras palavras, o cérebro seria apenas um receptáculo temporário e condicionante da alma, e não o seu produtor.
A despeito de seu apelo intuitivo, essa hipótese do cérebro instrumental sugere a existência de variáveis (espirituais) aparentemente irrelevantes para compreendermos o comportamento humano. Sendo ainda mais específicos, tal como a seleção natural explica satisfatoriamente a origem das espécies sem invocar divindades (Plantinga; Dennett, 2022), parece não ser necessário adicionar espíritos aos modelos teóricos que explicam a origem da consciência (Damásio, 2000). Mas, segundo os autores, a existência de experiências anômalas que desafiam teorias monistas justificaria a consideração científica da hipótese de que mente e corpo são substancialmente distintos. Fenômenos extraordinários como mediunidade, experiências de quase morte (EQMs) e lembranças de vidas passadas são apresentados no quarto capítulo, e somos posteriormente convidados a apreciar, sem preconceito ou dogmatismo, estudos cujos resultados seriam favoráveis ao dualismo.
Iniciamos a leitura do quinto capítulo com a mente e o coração abertos. Dezenas de pesquisas interessantes são apresentadas, e seus achados são claramente compatíveis com a hipótese de que temos um espírito que sobrevive à morte do corpo. Por outro lado, compatibilidade teórica não pode ser confundida com consistência científica e nem sempre envolve evidências de boa qualidade – e, no nosso entendimento, os autores fazem essa confusão e apresentam muitas evidências ruins como se fossem razoáveis.
Em primeiro lugar, grande parte dos estudos citados consiste em relatos de caso. Basicamente, esse tipo de investigação não é capaz de produzir resultados ou conclusões generalizáveis (Appolinário, 2012), e tende a ser bastante deficiente no controle da fraude e de inúmeras variáveis confundidoras. Por exemplo, o primeiro autor desta resenha já teve quase vinte verrugas eliminadas de seu joelho esquerdo pouco tempo depois de ter sido levado a um benzedeiro. Mas, como ele também estava aplicando diariamente um medicamento sobre as lesões, não é possível garantir que a cura resultou da benzedura – muito menos que rezadores têm poderes sobrenaturais. Assim, ainda que relatos de caso possam ser importantes para a formulação de novas hipóteses e o preparo de estudos mais rigorosos, devemos ser cautelosos quanto às suas implicações e confiabilidade (Melo, 2001).
Em segundo lugar, os achados cientificamente mais surpreendentes citados pelos autores podem ser contrastados com achados nada surpreendentes que eles não citam. Isso significa que, diferentemente da impressão gerada por uma leitura inicial, a literatura científica sobre o tema é bastante inconsistente. Por exemplo, embora a meta-análise mencionada (Sarraf et al., 2021, p. 396) tenha encontrado evidências “que apoiam a hipótese de que alguns médiuns podem recuperar informações sobre pessoas falecidas por meios desconhecidos”, outra meta-análise do mesmo ano (Rock et al., 2021) não as encontrou. Naturalmente, estudos isolados que corroboraram esse poder mediúnico (e.g., Beischel; Schwartz, 2007; Beischel et al., 2015) podem ser pareados com aqueles cujos médiuns testados não demonstraram poder algum (e.g., Jensen; Cardeña, 2009; O’Keeffe; Wiseman, 2005). E, para citar alguns casos famosos discutidos pelos autores, a mediunidade de Leonora Piper e de Chico Xavier não convenceu todos aqueles que os investigaram (Lamont, 2017; Mori, 2010).
Sobre crianças que se lembrariam de vidas passadas – e que teriam marcas ou defeitos congênitos supostamente gerados por acidentes que acometeram seus corpos anteriores –, os autores afirmam – apoiados em Tucker (2008), por exemplo – que elas são encontradas em praticamente todas as sociedades. Isso seria mais condizente com a hipótese de que essas experiências têm origem espiritual, e não cultural. Por outro lado, o mesmo Tucker (2008, p. 244) reconhece que essas crianças “são mais facilmente encontradas em culturas com a crença em reencarnação”; e, em linha com isso, uma revisão sistemática recente constatou que elas tendem a ser meninos asiáticos (Kirschnick et al., no prelo). Embora não possam ser tomados como conclusivos ou incontroversos, achados como esses são mais compatíveis com a “hipótese cultural”.
Respaldados por alguns achados de Haraldsson (1995, 1997, 2003), os autores também argumentam que crianças com lembranças de supostas vidas passadas são psicologicamente similares àquelas sem esse tipo de experiência,3 podendo até ter habilidades cognitivas superiores. No entanto, o próprio Haraldsson (1995, 1997, 2003) verificou que elas tendem a ter mais problemas comportamentais (e.g., seriam mais briguentas, solitárias, confusas, falantes e propensas a se machucar) e a ser mais inclinadas a fantasiar, a buscar atenção, a dissociar e a ter sintomas de estresse pós-traumático. Considerando a importância desses dados para o trabalho dos autores – uma vez que, conforme Haraldsson (2003) comenta, eles dão força às explicações psicológicas para o fenômeno –, é curiosa sua decisão de não os reportar no livro. Como quer que seja, Haraldsson (2003) pontua que os casos em que há correspondências entre marcas ou defeitos congênitos daquelas crianças e aqueles sofridos por seus supostos corpos anteriores – quando identificados – desafiam o paradigma psicológico. Apesar disso, a revisão de Kirschnick et al. (no prelo) constatou que a força ou a qualidade das evidências desses achados costuma ser baixa.4
Por fim, a literatura científica sobre EQMs e experiências extracorpóreas parece ser igualmente inconsistente e controversa. Por exemplo, os autores citam achados sugestivos de que as características de EQMs são semelhantes entre os “experienciadores” (e.g., Martial et al., 2017; Sharland-Verville et al., 2020), mas os trabalhos revisados por Greyson (2013) indicam que elas são relativamente heterogêneas, podendo depender de variáveis como faixa etária, contexto religioso, tipo de risco de morte e se esse risco é real ou imaginário. Na verdade, nem mesmo as características mais frequentes (e.g., sentir paz, ver uma luz e encontrar-se com espíritos/pessoas) são universais (Martial et al., 2017). Além disso, quando revisitados por céticos, relatos de EQMs e outras experiências extracorpóreas podem se revelar incoerentes e/ou exagerados (e.g., Wiseman, 2017). Para citar mais um exemplo pessoal, o primeiro autor desta resenha teve a vivência incrível de se ver deitado sobre sua cama durante uma atividade meditativa. Contudo, no “mundo material”, seu corpo estava estendido sobre a cama de seu irmão. Se sua mente realmente tivesse feito um breve passeio transcendental, por que ela veria seu recipiente corpóreo deitado sobre o móvel errado? Esses tipos de incoerência talvez não sejam sempre percebidos ou, quem sabe, podem até ser suprimidos em alguns relatos sobre EQMs e experiências correlatas. Nessa linha, Greyson (2013) afirma que a dificuldade de se verificar a acurácia de narrativas retrospectivas prejudica a qualidade das pesquisas sobre o tema. E, entre outras limitações, ele também menciona o uso de amostras pequenas e/ou tendenciosas e o efeito gaveta, isto é, a possibilidade de “que aqueles estudos que descobriram EQMs mais elaboradas ou efeitos mais sensacionais [sejam] mais submetidos para publicação do que outros estudos com resultados menos dramáticos” (p. 266). Em um tom bastante ponderado, o autor conclui que as pesquisas têm “oferecido evidências indiretas que apoiam os três paradigmas da etiologia da EQM (ou seja, os paradigmas psicológico, neurofisiológico e transcendental), mas não há qualquer evidência direta de nenhum deles até o momento” (p. 267).
Não encontramos essa mesma ponderação nos capítulos finais de “Ciência da vida após a morte”. Por exemplo, após criticarem as hipóteses parapsicológicas para explicar os fenômenos anômalos supracitados, eles concluem que “não há candidato a paradigma concorrente [ao dualismo] que seja igualmente bem apoiado por evidências empíricas e capaz de explicar todos os fatos juntos” (p. 77). E, logo em seguida, eles asseveram que
Esta tem sido a conclusão a que chegaram muitas (provavelmente a maioria [das]) mentes científicas e filosóficas altamente qualificadas (de diversas origens intelectuais e geográficas) que, meticulosamente, desenvolveram e publicaram análises abrangentes das evidências disponíveis para a sobrevivência [da consciência após a morte] (p. 77).
Como esperamos ter demonstrado nesta resenha, a literatura científica está longe de apoiar consistentemente esse tipo de conclusão – e crer no contrário é, na nossa opinião, o maior equívoco dos autores. Não basta mencionar as possíveis objeções ao dualismo por parte de seus opositores – ainda que essas menções ao longo do livro tenham sido instigantes e enriquecedoras. Recomendamos que, em sua próxima edição – e/ou em trabalhos similares feitos doravante –, eles realizem uma revisão mais cuidadosa e discutam mais abertamente as inconsistências e controvérsias empíricas da área.
A despeito desses apontamentos críticos, apreciamos a ideia de que fenômenos anômalos sejam cientificamente investigados, e consideramos importantíssimo o trabalho de se reunir e discutir as evidências disponíveis na literatura. Pesquisadores de todos os cantos e das mais variadas visões de mundo precisam unir forças para compreender, da forma mais honesta e rigorosa possível, as experiências extraordinárias que marcaram e ainda marcam a vida de tantas pessoas. Como argumentam os autores, a existência de fraudes e confusões não justifica o descarte dogmático e acrítico da ideia de que temos um espírito imortal. Mas, ao mesmo tempo, devemos vigiar para que a esperança e o conforto proporcionados pelo dualismo não corrompam nossa racionalidade.
Somos gratos aos colegas Leonardo Martins e Vitor Villar Scattone por terem lido e feito comentários valiosos sobre a versão inicial desta resenha. Agradecemos também aos autores do livro por terem nos enviado um exemplar e à revista Interações pela oportunidade de publicação.