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Habilidades sociais de alunos surdos na perspectiva de professores da classe bilíngue, da classe comum e intérprete
Habilidades sociais de alunos surdos na perspectiva de professores da classe bilíngue, da classe comum e intérprete
Revista Educação Especial, vol. 30, núm. 57, pp. 55-67, 2017
Universidade Federal de Santa Maria
Recepção: 30 Outubro 2015
Aprovação: 23 Agosto 2016
Resumo: Este trabalho objetivou descrever o repertório de habilidades sociais, problemas de comportamento e a competência acadêmica de 15 crianças/adolescentes com surdez, na visão de professores de classe bilíngue, intérprete e de professores de classes comuns. Participaram deste estudo quatro professores e um intérprete, sendo dois de classe comum e dois de classe bilíngue. Utilizou-se como instrumento de coleta de dados, o Sistema de Avaliação de Habilidades Sociais (SSRS-BR). A avaliação dos professores para as três escalas do instrumento – Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica – foi positiva, pois a maioria dos alunos foi classificada com repertórios medianos e altos. Os resultados ainda mostraram-se contrários à hipótese inicial, pois esperava-se que as professoras da classe bilíngue, por atuarem diretamente com os alunos surdos, utilizando a Libras como língua de instrução, pudessem avaliá-los de forma mais positiva, com relação às Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica, quando comparados às avaliações dos professores da classe comum, o que não ocorreu. Conclui-se que de modo geral os alunos surdos foram avaliados com um repertório mediano de habilidades sociais e competência acadêmica, sendo os professores da classe comum os que fizeram avaliações mais positivas. Sugere-se que pesquisas com a utilização de outras medidas de avaliação sejam realizadas para aprofundar e confirmar os dados obtidos.
Palavras-chave: Educação Especial, Habilidades sociais, Surdez.
Abstract: This study aimed to describe the repertoire of social skills, behavior problems and academic competence of 15 children / adolescents with hearing loss, the vision of a bilingual class teacher, interpreter and regular classroom teachers. The study included four teachers and one interpreter, two common class and two bilingual class. It was used as data collection instrument, the System of Social Skills Assessment (SSRS-BR). The teacher evaluation instrument for the three scales - social skills, behavior problems and Academic Competence - was positive since most students were classified with high median and repertoires. The results also proved to be contrary to the initial hypothesis, it was expected that the teachers of the bilingual class, for work directly with deaf students using the pound as the language of instruction, could evaluate them more positively, with respect to Social skills, behavior problems and Academic Competence compared to teacher evaluations of the common class, which did not occur. We conclude that in general the deaf students were evaluated with a median repertoire of social skills and academic competence, and the teachers of the common class who made more positive ratings. It is suggested that research on the use of other valuation measures are carried out to deepen and confirm the data obtained.
Keywords: Special Education, Social skills, Deafness.
Introdução
A inclusão escolar de crianças e jovens com deficiência é um assunto que vem sendo amplamente discutido e questionado por diversas esferas sociais e governamentais que ainda buscam ações para viabilizar este direito. Apesar de esses indivíduos terem respaldos legais que garantam o acesso e a permanência no ambiente escolar, como por exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96, e outros, a prática tem sido desafiadora. Quando se trata da educação e inclusão de alunos surdos, a discussão torna-se ainda mais inquietante, visto que este público possui uma especificidade linguística própria que deve ser considerada, principalmente na escola.
A surdez pode ser definida como uma perda, em maior ou menor grau, da percepção dos sons (BRASIL, 2006, p. 19). Contudo, a classificação, segundo Gesser (2009) vai muito além dos aspectos clínicos, que buscam medir a audição do sujeito com o objetivo de normalizá-lo, medicalizá-lo, atuando sob uma perspectiva exclusivamente fisiológica, pois os termos deficiência auditiva e surdez são marcados por uma diversidade cultural. Uma pessoa com deficiência auditiva normalmente busca a oralidade para se comunicar, se identifica com pessoas ouvintes, é usuária de aparelho auditivo, enfim, prefere estar imersa na cultura ouvinte. O sujeito surdo, por sua vez, normalmente assume uma identidade surda e busca utilizar a língua de sinais como sua língua, além de preferir conviver com pessoas que também façam uso dela. Geralmente, participam de Associações de Surdos, lutam por seus direitos, enfim, se mobilizam por uma cultura e comunidade surda.
No Brasil, muitas pessoas com surdez não têm acesso a uma escolarização que atente para suas necessidades linguísticas, metodológicas, curriculares, sociais e culturais. A maioria das escolas ainda atua sob o enfoque da perspectiva oralista e espera que os alunos surdos se comportem como ouvintes (SOUZA, 2010). Por outro lado, não há como generalizar esta afirmação visto que algumas propostas vêm sendo implantadas numa abordagem bilíngue, mesmo que ainda em casos isolados (NASCIMENTO, 2011; MARTINS; MARTINS L.; LACERDA, 2011).
De acordo com o Decreto 5.626/05, a organização do espaço escolar numa proposta Bilíngue deve considerar a especificidade linguística do aluno surdo. Para isso, são necessárias algumas condições para que tal proposta seja realmente eficaz, como por exemplo, que a língua de sinais seja usada como L1 (Primeira Língua) e o português, na modalidade escrita, como L2 (Segunda Língua), sendo esta última ensinada a partir do conhecimento da primeira (SALES, et. al, 2010); que os educadores tenham domínio das línguas envolvidas, ou seja, Libras e Língua Portuguesa (LODI; LACERDA, 2009), entre outros.
Além disso, segundo o Decreto, a proposta da educação bilíngue deve ser implantada apenas na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental I, pois a partir do Ensino Fundamental II (6° ao 9° ano), espera-se que o aluno surdo acompanhe a sala de aula com ouvintes e com a presença do intérprete, cabendo a cada unidade escolar a organização desta proposta.
Para que os alunos surdos tenham seus direitos garantidos, o papel do intérprete em sala de aula é imprescindível. Concorda-se com Kotaki e Lacerda (2013) quando afirmam que, muito além de propiciar o acesso dos alunos surdos aos conteúdos acadêmicos, os intérpretes também oportunizam a inserção e a interação social no espaço escolar, pois ao mediarem as línguas (português oral e Libras), acabam viabilizando a comunicação entre ouvintes e surdos.
Além disso, a relação aluno surdo-intérprete tem uma amplitude que, em algumas situações, pode perpassar os aspectos meramente acadêmicos, influenciando, também, nas habilidades sociais destes alunos. Conforme apontado e discutido por Kotaki e Lacerda,
Os alunos surdos buscam os intérpretes para conversarem sobre assuntos pessoais, contarem situações do seu dia a dia, uma vez que este profissional é um interlocutor fluente e consegue compreender melhor suas questões e dialogar com eles. [...] a convivência diária com os alunos surdos faz com que se estabeleçam intensos vínculos que não podem ser desconsiderados. (KOTAKI; LACERDA, 2013, p. 212).
Além do intérprete, o docente também exerce influência significativa sobre as habilidades sociais de seus alunos à medida que, dentro do contexto escolar, interage com eles, sendo esta uma condição para a aprendizagem social e acadêmica. Estas interações estabelecidas “dependem tanto da competência interpessoal do professor (para planejá-las e conduzi-las) como da competência social dos alunos para melhor usufruírem dessas interações” (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2005, p. 241). Sendo assim, um refinado e competente repertório de habilidades sociais de professores, intérpretes e de alunos pode contribuir e favorecer o sucesso escolar.
Tais habilidades podem ser aprendidas de forma incidental ou por meio de treinamento ao longo da vida e espera-se que a criança venha a ser um indivíduo competente socialmente, pois “um repertório elaborado de habilidades sociais contribui decisivamente para relações harmoniosas com colegas e adultos na infância” (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2005, p. 16).
De acordo com os referidos autores, o termo Habilidades sociais aplica-se às diferentes classes e subclasses de comportamentos sociais do repertório de um indivíduo, que contribuem para a competência social, favorecendo um relacionamento saudável e produtivo com as demais pessoas. São comportamentos aprendidos pela criança ao longo da vida e que estão fortemente relacionados à cultura, aos fatores da situação e aos fatores pessoais.
A Competência social, por sua vez,
é a capacidade do indivíduo (autoavaliada ou avaliada por outros) em apresentar um desempenho que garanta, simultaneamente: a) a consecução dos objetivos de uma situação interpessoal; b) a manutenção ou melhoria de sua relação com o interlocutor, incluindo-se aí a busca de equilíbrio do poder e das trocas nessas relações; c) a manutenção ou melhoria da autoestima; d) a manutenção ou ampliação dos direitos humanos socialmente estabelecidos. (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 1999, p. 47).
A competência social está relacionada à possibilidade do indivíduo em “articular pensamentos, sentimentos e ações em função de objetivos pessoais e de demandas da situação e da cultura, gerando consequências positivas para o indivíduo e para a sua relação com as demais pessoas” (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2005, p. 33). Os autores acrescentam a necessidade de se considerar as dimensões de funcionalidade instrumental e a ético-moral. A dimensão instrumental trata-se de critérios que levam a consequências instantâneas e subjetivas (atingir os objetivos) e a ético-moral, refere-se às implicações positivas de médio a longo prazo pautadas pelo respeito aos direitos humanos interpessoais, que contemplam além do indivíduo, o outro ou mesmo um grupo (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2011).
No entanto, ao considerar-se uma criança surda diante desta situação, alguns problemas podem emergir. Primeiramente, a criança surda é, na maioria das vezes, proveniente de família ouvinte, o que, por si só, pode acarretar prejuízos consideráveis de linguagem e interação e, como consequência, pode-se esperar um déficit de habilidades sociais. Além disso,
as deficiências cognitivas, afetivas, perceptivas e motoras incidem sobre a capacidade de identificar as demandas do contexto social bem como sobre o planejamento e/ou emissão dos desempenhos esperados sob tais demandas, reduzindo, portanto, o nível de proficiência desses desempenhos. (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2005, p. 26).
Além de a surdez poder dificultar a emissão dos desempenhos sociais, também pode dificultar a identificação dessas habilidades no desempenho das outras pessoas. Assim, cabe à escola, enquanto espaço de formação e de preparação de futuros cidadãos, favorecer as relações interpessoais para que os alunos, sejam eles público alvo da educação especial (surdos) ou não, desenvolvam ou potencializem suas habilidades sociais, pois “um repertório socialmente competente é um facilitador no estabelecimento de condições que favorecem a entrada de crianças com necessidades educacionais especiais na escola regular” (FERREIRA, 2008, p. 10).
Algumas pesquisas vêm apontando para a importância do papel do professor neste contexto de relações interpessoais que propiciam o desenvolvimento de habilidades sociais em seus alunos, especificamente nos que fazem parte do público alvo da educação especial (SOUZA, 2010; FREITAS, 2011; AMARO, 2012). No entanto, nenhuma pesquisa foi encontrada relatando experiências sobre o desenvolvimento de habilidades sociais em crianças surdas, usuárias de Libras e que frequentem ou frequentaram uma sala de aula na proposta bilíngue em que o professor fosse o mediador direto da relação professor-aluno.
Desse modo, o presente estudo objetivou descrever o repertório de habilidades sociais de crianças/adolescentes com surdez, na visão de professores de salas bilíngues, intérpretes e de professores de salas comuns que lecionavam para alunos com tal deficiência.
Método
Participaram deste estudo quatro professores e um intérprete, sendo três do sexo feminino e dois do sexo masculino. Dois professores (P1 e P2) lecionavam para o 6° e 9° anos do Ensino Fundamental; o intérprete (P3) trabalhava no 9° ano e duas professoras (P4 e P5) ministravam aulas na classe bilíngue. A idade dos participantes variou entre 27 e 50 anos (M = 35; DP = 16,26) e o tempo de experiência com a docência esteve entre três e 28 anos. Com relação à formação inicial, todos possuíam cursos de nível superior, sendo que a maioria já o havia concluído, com exceção do intérprete, que ainda cursava uma graduação.
Com relação aos alunos surdos, os professores avaliaram um total de 15 alunos, sete do sexo masculino e oito do feminino, sendo que quatro deles cursavam o 6° ano do Ensino Fundamental; dois o 9° ano do Ensino Fundamental e; nove frequentavam a classe bilíngue: quatro na turma I, com a professora P5 e cinco na turma II, com a professora P4.
Sobre a idade dos alunos, os que frequentavam o 6° ano do Ensino fundamental possuíam idade entre 11 e 17 anos (M = 14; DP= 4,24); os que frequentavam o 9° ano tinham a mesma idade, 16 anos; os que frequentavam a turma I da sala bilíngue possuíam idade variada entre 6 e 9 anos (M = 7,5; DP = 2,12) e, por fim, os que frequentavam a turma II tinham entre 10 e 12 anos (M =10,6; DP = 1,41).
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) para análise e obteve aprovação (CAAE n°. 34967814.3.0000.5504). A coleta de dados foi realizada em uma escola municipal de uma cidade de aproximadamente 220 mil habitantes, do interior do estado de São Paulo onde há a implantação da proposta bilíngue e alunos surdos matriculados regularmente. Os dados foram obtidos por meio da utilização do instrumento Sistema de Avaliação de Habilidades Sociais (SSBR-BR), validado para o Brasil por Bandeira, Del Prette, Del Prette e Magalhães (2006), que foi desenvolvido para avaliar as habilidades sociais, problemas de comportamento e competência acadêmica de crianças e adolescentes (versão para professores). Os professores preencheram o instrumento na forma de questionário, individualmente, sendo agendado de acordo com a disponibilidade uma data para devolução do mesmo que variou entre 15 e 40 dias. Os dados obtidos por meio do SSRS-BR foram analisados com base no manual do instrumento.
Resultados e discussão
Habilidades sociais, problemas de comportamento e competência acadêmica dos alunos surdos, na visão dos professores e intérprete
A tabela 1 apresenta a posição e a interpretação da posição percentil dos alunos surdos para as escalas de habilidades sociais, problemas de comportamento e competência acadêmica, na perspectiva dos professores e do intérprete.
valor e interpretação da posição percentil do repertório de habilidades sociais, problemas de comportamento e competência acadêmica dos alunos – escores totais.
Escala de Habilidades sociais: RAE: Repertório Altamente Elaborado de habilidades sociais; RE: Repertório Elaborado de habilidades sociais; RAMI: Repertório Abaixo da Média Inferior de habilidades sociais; BR: Bom Repertório de habilidades sociais; RMI: Repertório Médio Inferior de habilidades sociais.
Escala de Problemas de Comportamento: RB: Repertório Baixo de problemas de comportamento; RM: Repertório Mediano de problemas de comportamento; RAMS: Repertório Acima da Média Superior de problemas de comportamento; RMB: Repertório Muito Baixo de problemas de comportamento.
Escala de Competência Acadêmica: CAM: Competência Acadêmica Mediana; CAA: Competência Acadêmica Alta; CAAMI: Competência Acadêmica Abaixo da Média Inferior; CAMI: Competência Acadêmica Média Inferior.
Nota-se que os participantes P1 e P2, os professores de classe comum, na escala de Habilidades Sociais, avaliaram a maioria dos alunos (A1, A2, A5 e A6) de modo semelhante, com exceção de A3 e A4. P3, o intérprete, por sua vez, avaliou os alunos 5 e 6 de maneira diferente de P1 e P2, com valores da posição percentil mais baixos para a escala de habilidades sociais.
Para a escala Problemas de Comportamento, observa-se que P1 e P2 avaliaram de modo bastante semelhante os alunos A2 (repertório mediano de PC), A3 e A4 (repertório acima da média para PC), mas também bastante divergentes, para os alunos A1, A5 e A6. Para os alunos que obtiveram resultados semelhantes, talvez, pode-se supor que possuam problemas de comportamento independentemente do ambiente ou da aula que frequentem, necessitando, inclusive, de um Treinamento de Habilidades Sociais a fim de amenizar esses problemas comportamentais. Por outro lado, os alunos que obtiveram resultados muito divergentes, (como por exemplo, na avaliação de P1 o aluno 1 foi classificado com percentil 60 na escala Problemas de Comportamento, o que o classifica com repertório mediano de PC; porém, para P2, esse mesmo aluno obteve escore igual a 20, cuja classificação é repertório muito baixo de PC), talvez possuam mais interesse pela disciplina e características pessoais ou didáticas desta professora (P2) quando comparada às aulas de P1.
Ou ainda, pode-se considerar tais diferenças pelo fato de P1 ministrar aulas de Ciências para o 6° e 9° ano, cuja condição de trabalho envolvia alunos ouvintes presentes, alunos surdos e a presença do intérprete. Já P2, apesar de também ser professora destes mesmos alunos, ministrava suas aulas de Língua Portuguesa em um espaço diferenciado da sala de aula de P1. P2 atuava somente com os alunos surdos e o intérprete e se dirigiam a outra sala para terem o conteúdo desta disciplina (português), considerada L2 para os alunos surdos e, portanto, a forma de ensiná-la (Língua Portuguesa na modalidade escrita) deve ser diferenciada, pois constitui-se como língua estrangeira, conforme apontado no Decreto 5.626/05 (BRASIL, 2005). Pode-se supor que devido à organização estrutural que se tem durante a aula de P2 (menor número de alunos que talvez permite a P2 observar melhor e fornecer mais atenção aos alunos), ao método utilizado pela professora, dentre outros faça com que estes se sintam mais envolvidos pelas atividades e emitam comportamentos mais compatíveis com o esperado pela professora e menos problemas de comportamento (que representam comportamentos concorrentes aos esperados dentro de sala de aula).
Os resultados indicados por P1 chamam a atenção, uma vez que ele avaliou com percentis de mediano a altos a Competência Acadêmica dos alunos surdos (com exceção de A4), mas para os mesmos alunos ele atribuiu valores mais negativos para a escala Problemas de Comportamento. Esse dado provoca certa estranheza, pois geralmente, espera-se que, quando o aluno obtém percentis altos para a escala Problemas de Comportamento, tende a obter índices mais baixos para a escala Competência Acadêmica e vice-versa.
Diferentemente de P1, na avaliação de P2 foi possível notar semelhança na direção de dados da literatura sobre a existência de correlação positiva entre as escalas de habilidades sociais e competência acadêmica e correlação negativa dessas duas últimas com a de problemas de comportamento (BANDEIRA; ROCHA; PIRES et. al, 2006; CIA; BARHAM, 2009; FEITOSA; DEL PRETTE; DEL PRETTE et. al, 2011). É interessante observar que os alunos A1, A5 e A6, que na escala Problemas de Comportamento foram avaliados de forma diferente por P1 e P2, obtiveram os percentis mais altos na escala Competência Acadêmica, segundo avaliação de P2. Contudo, se compararmos a avaliação destes alunos, de acordo com P1 e P2, para a escala Competência Acadêmica, nota-se que P2 avaliou com índices bem mais baixos que P1. Sabe-se que a Língua Portuguesa para surdos é considerada como segunda língua (L2). Sendo assim, será que esses alunos acham essa disciplina mais difícil que Ciências e, por isso, obtiveram escores medianos e medianos baixos para a escala Competência Acadêmica? Será que o menor número de alunos em classe possibilitou uma avaliação mais precisa e coerente da competência acadêmica dos alunos?
Com relação à avaliação de P3 para essa mesma escala (Competência Acadêmica), observa-se que o intérprete indica percentuais iguais a 35 para os alunos 5 e 6, apontando resultados abaixo da média. Supõe-se que o intérprete, pelo fato de permanecer o período todo de aulas junto aos alunos 5 e 6, tenha os avaliado pensando em seus desempenhos de modo geral, enquanto P1 e P2 avaliaram especificamente com relação à disciplina que lecionavam, Ciências e Língua Portuguesa, respectivamente.
Para a escala de Habilidades Sociais também houve divergências entre as avaliações dos professores de classe comum (P1 e P2) e do intérprete (P3). Para vários itens da escala de Habilidades Sociais e Competência Acadêmica, a avaliação de P3 foi mais negativa, ou seja, em muitos itens o participante assinalou a opção nunca, enquanto P1 e P2 assinalaram a opção algumas vezes ou muito frequente (exemplo: para o item Defende-se quando acha que você o(a) tratou de forma injusta, P3 indicou a opção nunca enquanto P1 indicou muito frequente e P2 algumas vezes), ou então, indicou que os alunos estavam entre os piores da classe, para a escala Competência Acadêmica.
Considera-se válido, ainda, destacar a avaliação que P1 e P2 fizeram para a aluna A4, especificamente. Em ambas as avaliações, os participantes indicaram percentis para a escala Habilidades Sociais e Competência Acadêmica que a classificaram com um repertório abaixo da média inferior e, em contrapartida, os escores para a escala Problemas de Comportamento indicaram um repertório acima da média superior. Esses resultados permitem inferir que essa aluna, por apresentar esses índices, possa ter problemas interpessoais graves, inclusive em outros ambientes aos quais ela participa. A idade de A4 é bastante discrepante da maioria dos demais alunos de sua sala (17 anos e frequentando o 6° ano) e, devido ao baixo repertório de habilidades sociais, a aluna esteja com dificuldade para interagir com os pares e os problemas de comportamento possam estar se manifestando com mais intensidade como uma tentativa falha de ajustamento ao grupo, na qual estes problemas possam ser a única forma de solicitar atenção de outros indivíduos. Considera-se necessária uma investigação mais profunda para compreender suas dificuldades interpessoais atuais (talvez problemas com a segunda língua – português, por exemplo).
Até o presente momento, foram descritas e discutidas as interpretações das escalas Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica dos alunos matriculados no 6° e 9° ano (A1-A6) de acordo com as avaliações de P1, P2 e P3. A seguir, serão descritas as interpretações dessas mesmas escalas conforme avaliação de P4 e P5, respectivamente, para os alunos da classe bilíngue (A7-A15).
Inicialmente, torna-se interessante considerar que, apesar de P4 e P5 lecionarem para uma sala bilíngue, dividindo o mesmo espaço físico, compartilhando materiais e planejamentos, percebe-se que P4 avaliou seus alunos mais positivamente com relação às Habilidades Sociais, mesmo alguns deles apresentando escores elevados na escala Problemas de Comportamento, quando comparada à avaliação de P5, que atribuiu valores bem mais altos para a escala Problemas de Comportamento do que para a de Habilidades Sociais e a de Competência Acadêmica de seus alunos.
Notou-se que P4 avaliou seus alunos com escores de mediano a alto para a escala Habilidades Sociais, com exceção do aluno A8 que, por meio do percentil recebido, foi classificado com um repertório médio inferior de HS. Se observarmos as três escalas avaliadas por P4, é perceptível que a escala Habilidades Sociais foi a que obteve percentis mais elevados. Será que o fato dessa professora ser a única com formação (pós graduação) específica em Libras pode ter contribuído com as avaliações mais positivas? Supõe-se que, talvez, comparada à outra professora, P5, que também atua na sala bilíngue, P4 tenha um domínio maior da língua de sinais e, devido a isso, seja capaz de se comunicar melhor com eles, de observar e identificar mais comportamentos socialmente habilidosos em seus alunos. Ou, ainda, o fato de ser uma professora com menor idade, talvez sua formação inicial tenha enfatizado outras questões educacionais, entre elas a importância de um bom relacionamento interpessoal com seus alunos.
Além disso, pode-se supor, também, que esses alunos que receberam escores mais altos (A9 e A10, por exemplo) tenham famílias que participem mais ativamente da vida pessoal e acadêmica de seus filhos, saibam Libras (caso sejam ouvintes) para ter uma relação mais próxima com eles e, talvez, isso influencie num repertório mais elaborado de habilidades sociais, pois as práticas parentais apresentadas pelas famílias podem favorecer ou não a aquisição por parte dos filhos de algumas habilidades como autocontrole, autorregulação, senso de competência, habilidades essas que desempenham uma forte influência no ajustamento social e também no desempenho acadêmico(PINHEIRO; BIASOLI-ALVES, 2008; CAETANO, 2009).
A avaliação de P5, por sua vez, apontou resultados mais negativos com relação às escalas avaliadas. Essa professora, apesar de lecionar para a classe bilíngue, atuar diretamente com os alunos surdos, utilizando a Libras como língua de instrução, assim como P4, enfatizou muito mais os problemas de comportamento de seus alunos do que as habilidades sociais e a competência acadêmica deles. Para ela, apenas um aluno (A12) foi classificado com um repertório mediano de habilidades sociais, sendo que os demais foram classificados com resultados de médio inferior a abaixo da média inferior. Esses mesmos resultados foram observados para a escala Competência Acadêmica.
Segundo os dados de caracterização, P5 apresentava idade em uma faixa etária mais elevada. Será que o fator idade e o tempo de formação influenciam nesses resultados? Será que, por conta disso, ela nutra menos expectativas positivas com relação ao progresso e rendimento de seus alunos, ou seja, direcione seu olhar apenas para o rendimento acadêmico e não olhe para outras habilidades, como as sociais, por exemplo?
Por outro lado, torna-se importante ressaltar que os alunos avaliados por P5 foram os mais novos do grupo (no quesito idade) e que estão iniciando o Ensino Fundamental e, portanto, aprendendo diversos comportamentos e conteúdos, tanto acadêmicos quanto sociais e, por esta razão, possam ainda apresentar maiores dificuldades tanto com relação às Habilidades Sociais, como também aos conteúdos acadêmicos. Conforme enfatizado por Del Prette e Del Prette (2005) as Habilidades Sociais são classes e subclasses de comportamento que vão sendo aprendidas ao longo da vida. Dessa forma, é muito importante que a professora reforce os comportamentos pró-sociais e ofereça modelos adequados, para que assim possa contribuir positivamente com o desenvolvimento de seus alunos, configurando-se assim como um fator de proteção (MAIA; WILLIAMS, 2005).
Outra consideração a ser feita sobre esses alunos que não obtiveram percentis que puderam classificá-los com resultados dentro ou acima da média na escala geral de Habilidades Sociais, diz respeito ao que Del Prette e Del Prette (2005) apontam sobre o fato de que as crianças não desenvolvem por igual suas diferentes classes de habilidades sociais e nem as desempenham com igual proficiência em todas as situações. Por isso, torna-se importante identificar as dificuldades específicas apresentadas por esses indivíduos para que intervenções pertinentes possam ser propostas.
Seria indicado, portanto, propor treinamento específico a esses profissionais para ajudá-los a observar esses alunos de modo diferenciado, buscando analisar/observar o contexto e identificar de forma mais acurada o repertório de habilidades sociais de seus alunos além de ser um agente multiplicador dessas habilidades (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 1997).
Considerações finais
O presente estudo objetivou descrever o repertório de habilidades sociais de crianças/adolescentes com surdez, na visão de professores de salas bilíngues, intérprete e de professores de salas comuns. Os resultados mostraram-se contrários à hipótese inicial, pois esperava-se que as professoras da sala bilíngue, por atuarem diretamente com os alunos surdos, utilizando a Libras como língua de instrução (L1), pudessem avaliá-los de forma mais positiva, com relação às Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica, quando comparados às avaliações dos professores da classe comum.
No que se refere ao repertório de habilidades sociais dos alunos notou-se que a maioria deles (12 alunos) foi avaliada como apresentando ao menos um repertório mediano de habilidades sociais, com exceção de A4, A14 e A15 que foram avaliados com classificação abaixo da média. Para os Problemas de Comportamento, a maioria obteve escores que puderam classificá-los com repertórios de mediano a altos, com exceção dos alunos A1, A5, A6 (segundo avaliação de P2) e A9. Por fim, para a escala Competência Acadêmica, a maioria dos alunos foi avaliada com repertórios medianos, sendo que A2, A9 (segundo avaliação de P1) e A10 obtiveram percentis altos para essa escala e, em contrapartida, os alunos A4, A8, A14 e A15 foram avaliados com repertórios abaixo da média.
Conclui-se que o trabalho atingiu o objetivo proposto e trouxe contribuições significativas para a área, entretanto as considerações levantadas aqui remetem a uma pequena população, evidenciando a necessidade de estudos futuros que possam ampliar essa amostra, incluindo, sobretudo, outros instrumentos e participantes, a fim de que novas e, talvez, diferentes perspectivas possam ser apresentadas.
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Notas
Autor notes
Ana Claudia Paviani Casalli – Rodovia Washington Luís, km 235 – Caixa Postal 676. CEP: 13565-905, Monjolinho – São Carlos, São Paulo, Brasil