Demanda Contínua
Recepção: 09 Março 2015
Aprovação: 13 Outubro 2016
DOI: https://doi.org/10.5902/1984686X19389
Resumo: A obrigatoriedade do laudo clínico para identificar os alunos público-alvo da Educação Especial tem sido tradicional no meio educacional brasileiro. Sendo assim, este artigo objetivou discutir a (im)prescindibilidade do laudo clínico para identificar os estudantes com altas habilidades nas redes de ensino. Para essa realização, a pesquisa foi respaldada em estudo bibliográfico, utilizando-se de buscas em documentos oficiais educacionais pertinentes à Educação e Educação Especial, livros especializados da área de altas habilidades, artigos, dissertações e teses. Os resultados obtidos indicaram que os sistemas escolares ainda exigem a apresentação de laudo clínico para identificar os estudantes com altas habilidades e registrá-los no censo escolar. Além disso, as orientações recentes emanadas, via SECADI/MEC, não indicaram a obrigatoriedade do laudo clínico para atender qualquer aluno público-alvo da Educação Especial, mas, sim, a avaliação pedagógica realizada pelos profissionais das salas de atendimento especializado, bem como, apurou-se que o laudo clínico pode ser exigido em caráter complementar, se necessário.
Palavras-chave: Educação Especial, Altas habilidades, Laudo clínico.
Abstract: The obligation of the health report to identify the students, public of Special Education, has been traditional at the Brazilian educational environment. This paper aimed to discuss the essentiality of the health report to identify the students with high abilities at the mainstream schools. For that realization, the research was based in the bibliographical study, using the searches in the educational documents of Education and Special Education, specialized books about high abilities, papers, dissertations and thesis. The results indicated that school systems still demand the presentation of the health report to identify the students with high abilities and register them at the school census, also the orientations, via SECADI/MEC, didn’t indicate the obligation of the health report to provide any student that is public of Special Education but just the pedagogical evaluation realized by the professionals from specialized rooms, as well as, it was resulted that the health report can be demanded in complementary character if necessary.
Keywords: Special Education, High abilities, Health report.
Introdução
A Educação Especial como modalidade de ensino, respaldada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), aponta o público a ser atendido pelos seus serviços como sendo os alunos com deficiências, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades ou superdotação1.
Verifica-se, porém, que esses serviços têm sido ofertados com maior ênfase aos estudantes que possuem deficiência ou algum tipo de limitação (FREITAS; PÉREZ, 2014). Os escolares que se destacam por capacidades elevadas são deixados à margem do atendimento especializado, possivelmente porque o meio educacional é envolto de mitos sobre esses sujeitos, por exemplo, de que eles são nota 10 em tudo ou que eles caminham por si sós por conta de suas capacidades (ALENCAR; FLEITH, 2001; FREITAS, RECH, 2006).
É importante ressaltar que estudos clássicos da área de altas habilidades (NOVAES, 1979; ALENCAR, 1986; ALENCAR; FLEITH, 2001; SABATELLA, 2005; FREITAS; PÉREZ, 2010, 2012) mencionam a necessidade de oferecer apoio educacional e emocional a esses estudantes, uma vez que eles têm dificuldades com o sistema de ensino que não os reconhecem por seus potenciais.
Na mesma direção, a legislação brasileira pertinente à Educação e à Educação Especial é contundente quanto às garantias do apoio especializado a eles, mas por que isso não tem ocorrido com a mesma intensidade que ocorre aos alunos com deficiência? Possivelmente, a resposta esteja na comiseração que a sociedade e os sistemas educacionais têm sobre os sujeitos com limitações (FREITAS; PÉREZ, 2010, 2012).
Diante desse cenário, o fato é que as pessoas com altas habilidades existem em uma probabilidade de 3 a 5% em qualquer população, sendo essa cifra mensurada por testes padronizados em áreas como lógico-matemática e verbal. Gagné (2008) apontou que esse número chega a 10% em cinco domínios de capacidade humana, quais sejam: o intelectual, o criativo, o social, o perceptual e o físico, e Renzulli (2014), pesquisador americano, anunciou que tais índices podem chegar a 20%.
No âmbito legal, as orientações da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) orientam que as áreas a serem contempladas para efeito de identificação e atendimento especializado são: a intelectual, a acadêmica, a criativa, a artística, a liderança e a psicomotricidade.
Apesar das áreas apontadas, percebe-se que autores como Delou (2007, 2012), Rangni (2012), Sabatella (2012) e Virgolim (2014) mencionam, de certo modo, a valorização das capacidades acadêmicas nas escolas, desprivilegiando outras áreas que os estudantes possam se destacar. Além disso, segundo Gagné (2008), a possibilidade de fracasso acadêmico pode ser comum em alunos com potenciais em outras áreas.
Dessa forma, um dos entraves para o reconhecimento desses estudantes no ambiente escolar encontra-se no conhecimento sobre a temática, ainda fragilizada entre os educadores. Alencar e Fleith (2001) e Sabatella (2005, 2012) ressaltam que a identificação e os instrumentos para reconhecer as capacidades dos alunos podem se constituir em impeditivos, pois, infelizmente, não há instrumentos que garantam uma avaliação 100% confiável.
É nesse sentido que Alencar e Fleith (2001) apontam para a identificação como o tópico mais estudado na área, o que denota as dificuldades em torno do tema. É importante acrescentar, todavia, que a Educação Especial esteve enviesada por uma abordagem clínica para identificar os sujeitos para o apoio especializado no que tange à deficiência e isso vem ocorrendo, também, com os alunos com altas habilidades ao longo do tempo.
Um laudo, normalmente, originado de psicólogos, psiquiatras, neuropsicólogos ou neuropsiquiatras, que possa atestar as altas habilidades dos educandos que se destacam, principalmente no contexto acadêmico, ainda tem sido solicitado para que os estudantes com altas habilidades recebam os serviços especializados em resposta educativa às suas necessidades em contraponto às recentes orientações legais.
Desta forma, justifica-se a relevância deste artigo no sentido de suscitar reflexões nos educadores a respeito da solicitação de laudo clínico para alunos com altas habilidades, prática essa que vem sendo reconsiderada nos dispositivos legais.
Sob esse viés, objetivou-se apresentar e discutir a (im)prescindibilidade do laudo clínico para identificar os alunos com altas habilidades nas redes de ensino. Para tal, valeu-se de pesquisa bibliográfica que, de acordo com Gil (2011) é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. O mencionado autor explicita que a vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente.
O percurso metodológico delineado para atender ao objetivo proposto assentou-se em buscas em documentos pertinentes à Educação Especial, geralmente disponibilizados em sites oficiais, bem como na literatura nacional na área de altas habilidades como: livros especializados, artigos científicos, teses e dissertações.
Para o desenvolvimento desta proposta, abordar-se-ão os direitos emanados da legislação pertinente à Educação e Educação Especial sobre a identificação e o atendimento aos estudantes com altas habilidades e a exigência do laudo para efetuar o reconhecimento a essa parcela de alunos no sistema educacional.
Identificação e atendimento: direitos incontestáveis
Neste item serão abordados os direitos legais para que os alunos que se destacam por seus potenciais possam ser atendidos nos sistemas escolares brasileiros. Serão citados três documentos para essa explanação, são eles: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996); Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) e o Decreto n° 7.611 (BRASIL, 2011).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN, (BRASIL, 1996), atualizada pela Lei 12. 796 (BRASIL, 2013), trouxe em seu texto, artigo 59º, que o público-alvo da Educação Especial consiste nos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. A LDBEN também acentua nos parágrafos II e IV que:
II - terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados;
IV - educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora. (BRASIL, 1996, s/p).
Nota-se que, apesar da atualização recente do público-alvo, por meio da Lei 12.796 (BRASIL, 2013), a terminologia não foi atualizada, no citado artigo, mantendo apenas o termo “superdotados”. As áreas contempladas (artística, intelectual ou psicomotora) não estão condizentes com a literatura especializada (ALENCAR; FLEITH, 2001; SABATELLA, 2005; RENZULLI, 2014, entre outros) e tampouco com as orientações da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), que expressam seis áreas de capacidades aos educandos com altas habilidades: intelectual, acadêmica, artística, liderança, criatividade e psicomotricidade.
Essa política nacional define os alunos com altas habilidades como sendo:
Aqueles que demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, de liderança, psicomotricidade e artes, além de apresentar grande criatividade, envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse. (BRASIL, 2008, p. 9).
Ainda, em 2011, o Decreto 7.611, que orienta o atendimento educacional especializado, em seu artigo 1º, apontou para a garantia de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades. Esse dispositivo manteve o público-alvo a ser atendido pela Educação Especial, consonante à LBBEN e à Política Nacional.
O Decreto 7.611 assinala que o atendimento especializado é compreendido como o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucional e continuamente, prestado das seguintes formas:
I - complementar à formação dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, como apoio permanente e limitado no tempo e na frequência dos estudantes às salas de recursos multifuncionais; ou
II - suplementar à formação de estudantes com altas habilidades ou superdotação (BRASIL, 2011, s/p).
Desse modo, vale frisar que o atendimento aos alunos que se destacam deve ter abordagem suplementar, e não complementar como é realizado aos alunos com deficiência. Entre as formas de atendimento indicadas aos alunos com altas habilidades, podendo ser entendido como suplementar, está o enriquecimento, que é definido como:
Compreende a promoção de estímulos e experiências investigativas compatíveis com os interesses e as necessidades apresentadas pelos alunos, fundamentados em ações planejadas e preparadas, de modo a proporcionar troca de conhecimentos, investigação de temas variados, desenvolvimento de distintas habilidades, envolvimento em trabalhos no contexto real e condução de experimentos. (PEREIRA; GUIMARAES, 2007, p. 165).
Pereira e Guimaraes (2007) revelam que o enriquecimento tem sido o tipo mais comum de atendimento utilizado nas escolas regulares.
No que se refere ao atendimento suplementar, poucos documentos oficiais explicitam essa definição. O Parecer nº 06 (BRASIL, 2007, p.03) indicou que “suplementar: compreende o sentido de ampliar, aprofundar ou enriquecer a base nacional comum” e explicou que: “fugiria à base nacional comum, strictu sensu, somente as atividades suplementares e as substitutivas”.
O Decreto 7.611 (BRASIL, 2011) orienta, entre outros aspectos, a distribuição de fundos para a dupla matrícula dos estudantes público-alvo da Educação Especial.
Para efeito da distribuição dos recursos do FUNDEB, será admitida a dupla matrícula dos estudantes da educação regular da rede pública que recebem atendimento educacional especializado.
§ 1o A dupla matrícula implica o cômputo do estudante tanto na educação regular da rede pública, quanto no atendimento educacional especializado (BRASIL, 2011, s/p).
Entretanto, é possível inferir que, para que esse recurso seja repassado aos sistemas, é imperioso haver uma avaliação que comprove as necessidades de atendimento especializado, ou seja, essa demanda deve constar no censo escolar dos sistemas educativos.
Já o Decreto 7.611 não orienta aos sistemas educacionais sobre como a avaliação deve ser realizada. Pressupõe-se que cada sistema de ensino constitua, por si, os procedimentos avaliativos que indiquem os alunos aos serviços especializados. Ainda que os estudantes com deficiência já recebam a identificação pelo sistema de saúde, estes devem, também, ser avaliados pedagogicamente para as adequações necessárias. Entretanto, os alunos com altas habilidades não entram na escola identificados por seus potenciais, e um dos motivos é o fato de as altas habilidades, especialmente as acadêmicas, somente serem reconhecidas no transcurso da vida escolar.
Pelo exposto, infere-se que a identificação e o atendimento dos estudantes com altas habilidades pressupõe uma avaliação ampla que se sobrepõe apenas a um laudo clínico.
A questão do laudo
Percebe-se que é tradicional na Educação Especial a abordagem clínica para a avaliação, exigindo-se o laudo da área da Saúde para ser inserido ao censo escolar (FREITAS; PÉREZ, 2014). Mas o que se discute é se as pessoas com altas habilidades têm que passar por avaliação com esses profissionais para serem identificadas por seus potenciais.
Nesse entendimento, é válido mencionar que algumas ideias são tradicionalizadas, como a concepção mítica de que o quociente de inteligência (Q.I.), mensurado por testes psicológicos padronizados, são reveladores de capacidade elevada. Alencar e Fleith (2001); Sabatella (2005, 2012) e Linhares e Rangni (2014) ressaltam que até a metade do século passado essa ideia era consistente no meio científico, no entanto, estudos desenvolvidos no tocante à inteligência comprovaram sua muldimensionalidade, refutando o conceito de que para ter altas habilidades bastava ser avaliado por testes de QI.
Nesse aspecto, averigua-se, todavia, que os resultados acadêmicos são supervalorizados em ambientes escolares, porém o subaproveitamento em disciplinas escolares tradicionais pode ocorrer, ou seja, alunos podem se destacar em psicomotricidade, mas não apresentar altos índices em disciplinas como Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, entre outras.
Assim, entendeu-se e aceitou-se por muitos anos em nosso sistema escolar a exigência de laudo para esse grupo de educandos com origem de profissionais externos à educação.
Sob esse cenário, julga-se pertinente salientar alguns aspectos para reflexão:
i) Os testes de Q.I. mensuram apenas duas áreas, a lógico-matemática e a verbal, sendo assim, utilizar apenas esse meio avaliativo será extremamente excludente com estudantes que apresentam capacidade em outras áreas;
ii) Qual o custo dos testes padronizados para os sistemas de ensino?
iii) Os sistemas de ensino estão equipados com recursos profissionais e materiais para aplicar os testes nos alunos?
iv) Por que a manutenção da exigência de laudo clínico, comparando as altas habilidades com aspectos organicistas e psicológicos? Afinal de contas, possuir capacidade elevada consiste em diferença e não em morbidade.
Atualmente, o Censo da Educação Básica de 2012 indicou 10.092 matrículas de alunos com altas habilidades. Essa cifra é ínfima se contar que, minimamente, pelo menos 3 a 5% de qualquer população pode ter altas habilidades, em um universo de 2.500.000 de estudantes inseridos no sistema educacional brasileiro (FREITAS; PÉREZ, 2010, 2012, 2014).
Na tentativa de oferecer solução a esse impasse, o Conselho Brasileiro para a Superdotação (ConBraSD) tem atuado para que os sistemas escolares se utilizem da avaliação pedagógica para alunos com altas habilidades em detrimento da avaliação clínica. Em face a isso, em 2013, o ConBraSD manifestou-se junto à Diretoria de Políticas Educacionais da SECADI/MEC sobre esse tema.
Em recente reunião com a Diretora de Políticas Educacionais da SECADI/MEC, Martinha Clarete Dutra dos Santos, no dia 11 de março de 2013, em Brasília, essa foi exatamente uma das consultas realizadas, visto que esse Conselho tem recebido denúncias de Secretarias de Educação que estão exigindo um laudo para os alunos com altas habilidades/superdotação sejam declarados no Censo e/ou recebam AEE. A dirigente foi muito clara quanto ao equívoco que está sendo cometido e garantiu que é desnecessário que a área de saúde emita quaisquer documentos para que a escola ofereça o AEE. Informou que, conforme a legislação educacional determina, é o professor do AEE que deve realizar a avaliação pedagógica das necessidades educacionais especiais de todos os alunos da Educação Especial. (CONBRASD, 2013, s/p).
Na trilha dos procedimentos para dar respostas às reivindicações, a SECADI/MEC publicou a Nota Técnica nº 4, em 23 de janeiro de 2014 (BRASIL, 2014), denominada “Orientação quanto a documentos comprobatórios de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação no censo escolar”. A referida Nota reafirmou o já orientado no Decreto 7.611 (BRASIL, 2011): para realizar o AEE, cabe ao professor que atua nesta área elaborar o Plano de Atendimento Educacional Especializado (Plano de AEE), documento comprobatório de que a escola, institucionalmente, reconhece a matrícula do estudante público-alvo da educação especial e assegura o atendimento de suas especificidades educacionais (BRASIL, 2014).
Apesar da Nota Técnica nº 4 dispor que não há obrigatoriedade de laudo clínico para o atendimento especializado e, sim, que pode ser um documento complementar, o dispositivo salienta que a equipe escolar, se assim julgar necessário, pode articular-se com profissionais da Saúde, mantendo a orientação para o atendimento pedagógico sob a responsabilidade das instituições escolares. O citado documento abre um precedente para manter, especialmente para alunos com altas habilidades, a exigência da complementariedade, que, possivelmente, pode perpetuar a tradição da exigência do laudo.
A Nota Técnica nº 4, refere-se globalmente ao público-alvo da Educação Especial, no entanto, é mais contundente em relação aos alunos com deficiência, apresentando no documento os seguintes trechos:
[...] Por isso, não se trata de documento obrigatório, mas, complementar, quando a escola julgar necessário. O importante é que o direito das pessoas com deficiência à educação não poderá ser cerceado pela exigência de laudo médico.
[...] Pelo exposto, a fim de assegurar o direito incondicional e inalienável das pessoas com deficiência à educação essa área técnica fica à disposição, para informações complementares que se fizerem necessárias. (BRASIL, 2014, s/p) (grifos nossos).
Nota-se que os alunos com altas habilidades, uma vez identificados pela equipe escolar, não terão de serem submetidos a nenhum tipo de avaliação clínica, no entanto, a Nota Técnica apenas menciona, sem dar orientações mais precisas, que os sistemas não precisam recorrer à área de Saúde para oficializar a avaliação dos alunos e colocá-los nos sistemas do censo escolar. Outro ponto que merece menção é a avaliação pedagógica para esse grupo de alunos, que se evidencia em bases formativas dos recursos humanos (equipe escolar, especificamente, o professor de AEE) para o cumprimento dessa tarefa.
Percebe-se que os cursos de licenciatura, cursos de especialização e de pós-graduação strictu sensu carecem de maiores abordagens sobre a temática de altas habilidades, o que possivelmente vem formando educadores sem capacitação suficiente para identificar e atender os alunos mais capazes em suas salas de aulas (PÉREZ, 2006; DELOU, 2012). Infere-se, portanto, que possivelmente seja mais fácil ignorar esses alunos ou levá-los para a avaliação clínica, neste caso, caracterizando-se como a lei do mínimo esforço para o sistema educativo.
Em termos legais, pode-se observar que há respaldo para que o laudo clínico não seja imprescindível para identificar e atender os alunos com altas habilidades, mas será a legislação suficiente? Desde 1971, com a Lei de Diretrizes e Bases nº 5.692, esses alunos estão contemplados pelos serviços da Educação Especial, mas o número de matrículas do Censo de 2012 denota que a leis não têm garantido o atendimento. A questão é, quando as leis funcionarão para esses alunos?
Em tempos de movimentos de inclusão, ainda se vê que esses alunos são relegados à própria sorte nas escolas. Muitas vezes, eles abandonam o sistema escolar porque não tiveram suas expectativas e interesses atendidos. Quando eles permanecem nas escolas são desatendidos, tendo que se adaptar ao sistema de aulas maçantes e, possivelmente, com dificuldades emocionais (VALENTIM; BLUM; NEUMANN, 2014).
Sobre a questão emocional, Fleith e Alencar (2007) cita Silverman (2002) e aponta que a assincronia dos sujeitos com altas habilidades pode gerar estresse social e emocional. Por isso, recomenda-se a inclusão, no contexto educacional, de serviços de aconselhamento psicológico, visando a combater e prevenir problemas emocionais ou comportamentais que esses estudantes possam vir a apresentar.
Mas, o que dizer dos milhares de discentes com potenciais elevados que estão em processo de integração2 e não de inclusão nas escolas brasileiras? De quem é a responsabilidade em exclui-los, sem prover a eles respostas educativas às suas necessidades? Qual será a solução para essas inquietações? As garantias existem, mas a solução não é realizada por meio de obrigatoriedade legal, se assim o fosse, não teria fundamento essas reflexões, pois, como mencionado, há legislação suficiente que os garanta.
Realmente com o quadro apresentado, supõe-se que o Brasil perde seus potenciais desde a tenra idade, enquanto as nações desenvolvidas buscam conservar e desenvolver esses recursos. Neste sentido, Pffeifer (2015, s/p) ressalta que “negligenciar o desenvolvimento desses talentos não é prejudicial apenas para eles. Ao agir dessa forma, o País perde, no mínimo, boas oportunidades. Crianças com altas habilidades são um precioso recurso nacional que precisa ser protegido, nutrido e desenvolvido”. Pereira (2015, s/p) acrescenta que, agindo dessa forma, “perdem-se líderes, invenções, profissionais com potencial para se tornar nomes de destaque em diversas áreas do conhecimento”.
Com todas essas possíveis perdas de talentos, pode ocorrer que outras nações, com maior discernimento para a temática, oferecerem condições em alto nível para o desenvolvimento dos potenciais esquecidos em nossas escolas, bem como ao desenvolvimento de pesquisas, fato pontuado por Pereira (2015). Não é uma situação confortável, uma vez que o discurso político ventila ao acesso e à educação nos sistemas de ensino no Brasil.
Desta forma, considera-se que a exigência de laudos de cunho clínico para identificar as altas habilidades nos discentes deve ser revista nos sistemas escolares.
Considerações finais
Com este artigo buscou-se apresentar uma breve discussão sobre a exigência de laudos para alunos com altas habilidades para que pudessem ser atendidos pelos serviços educacionais especializados.
Conforme discorrido, durante muito tempo esses sujeitos tiveram os testes de Q.I. como meio para sua identificação. Entretanto, com os avanços científicos no campo da inteligência, verificou-se que a muldimencionalidade da inteligência e outras áreas foram contempladas.
Por isso, é necessário ressaltar que os potenciais precisam ser observados e valorizados em todos os domínios da capacidade humana, detecção que, dificilmente, profissionais da área clínica conseguem realizar. Os professores e familiares são peças importantes para identificar os potenciais de seus alunos e filhos.
A legislação brasileira pertinente à Educação e à Educação Especial, como foi apresentada, é consistente ao garantir o atendimento especializado aos alunos com altas habilidades. São garantias indiscutíveis, porém, os resultados deste estudo apontam que barreiras burocráticas, como a simples exigência de laudos clínicos, podem ser fatores desencadeantes para não identificá-los e, consequentemente, atendê-los.
É notório que a maioria dos sistemas educacionais brasileiros não possuem equipes multidisciplinares suficientes para proceder as avaliações de alunos e suas várias necessidades especiais, assim, não haveria possibilidades, pelo menos atualmente, de se procederem testes padronizados, por exemplo de Q.I., nos milhares de alunos que apresentam potenciais elevados.
Notou-se com os apelos pela emissão da Nota Técnica nº 4 pelo órgão governamental que a cultura do laudo clínico é bastante cristalizada, ainda, nos sistemas educacionais. Providências como a formação de educadores, estendidas aos gestores públicos, que versem sobre a temática das altas habilidades, são necessárias para desconstruir mitos de que as altas habilidades são uma doença ou que seja imprescindível a avaliação clínica.
Os educadores precisam compreender que sua competência é educacional junto aos seus alunos e para tal devem agir pedagogicamente, tenham eles deficiências ou altas habilidades. Sendo assim, pontua-se que a avaliação educacional é imprescindível para os alunos com altas habilidades e deve ser naturalizada nas escolas. Que o laudo possa ser utilizado de forma complementar, se necessário, de acordo com os preceitos legais.
A intenção com esta discussão é propiciar aos leitores reflexão e possíveis ações que favoreçam os sujeitos com capacidades elevadas a serem desenvolvidas e não deixem esses recursos humanos se perderem em meio a burocracias que somente contribuem para desperdiçar os talentos que podem ser aflorados.
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Notas
Autor notes
Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. Bairro: Monjolinho. CEP: 13565-905. São Carlos, São Paulo, Brasil