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A convivência entre crianças com e sem deficiência e o papel do professor na educação infantil
Mixed groups of disabled and non-disabledchildren and the teacher’s role in children’seducation
Revista Educação Especial, vol. 31, núm. 60, pp. 107-117, 2018
Universidade Federal de Santa Maria

Artigos – Demanda contínua


Recepción: 25 Octubre 2016

Aprobación: 05 Mayo 2017

DOI: https://doi.org/10.5902/1984686X24604

Resumo: O presente artigo aborda a convivência entre crianças com e sem deficiência em duas turmas mistas dos dois últimos anos da Educação Infantil de uma Escola da rede privada da cidade de Porto Alegre, RS (idades entre 5 e 6). A partir da experiência no campo, o artigo propõe algumas reflexões sobre a interação entre as crianças no espaço escolar e o papel do adulto em cenas vivenciadas pelo pesquisador. Este artigo é fruto de uma pesquisa para tese de doutoramento. A pesquisa tem caráter qualitativo e utiliza entrevistas semiestruturadas e registros de observação no diário de aula do pesquisador para compor o conjunto de dados analisados. A análise dos dados aponta para benefícios advindos do convívio entre crianças com e sem deficiência. Pelo convívio em turmas mistas, as crianças com deficiência desenvolvem-se via imitação do comportamento das crianças com desenvolvimento típico. Aquelas sem deficiência aprendem a conviver com as diferenças, tornando-se pessoas mais abertas à diversidade. O professor é peça chave para que esse convívio possa contribuir para o aprendizado e desenvolvimento delas. A Educação Infantil é uma etapa relevante para o desenvolvimento de habilidades sociais e percepção de alteridade.

Palavras-chave: Educação inclusiva, Turmas mistas, Interação.

Abstract: This article discusses the interaction between children with and without disabilities in the two last years of two mixed Early Childhood Education groups from a private school in the city of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil (ages 5-6). Drawing from field observation, the article proposes some reflections on the interaction between children at school and the role of adults in some interactions witnessed by the researcher. This article presents part of the results of research done for a doctoral dissertation. The research is qualitative and makes use of semi-structured interviews and observation records from the researcher’s field diary to compile the data analyzed. The data analysis points to benefits from the interaction between children with and without disabilities. By interacting in mixed classes, children with disabilities develop through the imitation of the behavior of children with typical development. Children without disabilities learn to tolerate differences, becoming more open to diversity. The teacher’s role is essential to ensure that those interactions contribute to the learning and development of children. Preschool education is an important step for the development of social skills and the perception of otherness.

Keywords: Inclusive education, Mixed groups, Interaction.

Introdução

Este artigo busca desenvolver algumas questões relacionadas à Educação Inclusiva na Educação Infantil. Ao definir o campo de estudo para a minha pesquisa, o universo da Educação Infantil mostrou-se propício para o tipo de investigação que tinha em mente, que envolvia observação participativa e entrevistas. Para tanto, utilizo excertos das entrevistas que realizei durante a minha pesquisa de doutoramento com as proprietárias e diretoras (Leila e Rosalia), com a coordenadora pedagógica (Luciana) e com duas professoras titulares das turmas em que fiz observação (Débora e Lígia)1. Todos os sujeitos da pesquisa fazem parte de uma Escola2 inclusiva que atua na Educação Infantil e Ensino Fundamental até o quinto ano. O artigo também aporta anotações do meu Diário de Aula, na perspectiva de Zabalza (2004). No Diário registrei dois anos e meio de observações sistemáticas na Escola nas duas turmas dos últimos anos da Educação Infantil, seguindo um roteiro de observação pré-determinado e embasado nas considerações de Bogdan e Biklen (1998).

Nesse sentido, a partir dos dados coletados, o artigo aponta algumas reflexões sobre o entendimento das entrevistadas sobre as características de turmas da Educação Infantil em que convivam crianças com e sem deficiência. Proponho os seguintes questionamentos: há benefícios percebidos nesse convívio? Qual o papel do adulto nesse contexto? Para propor algumas possíveis respostas, utilizo algumas das anotações do meu Diário. Neste artigo utilizo os registros realizados em 2015 das duas turmas observadas. Opto por apresentar 4 crianças, duas de cada turma. As duas crianças que pude observar e interagir na turma da professora Lígia durante o ano de 2015, ano em que elas completaram 5 anos, são Cláudia, uma criança com Síndrome de Down e Ivan, que tem diagnóstico de autismo. Já na turma da professora Débora, as duas crianças são Bianca e Eduardo, que completaram 6 anos durante o ano de 2015. Bianca tem Síndrome de Down e Eduardo tem diagnóstico não concluído de autismo.

Classes mistas na Educação Infantil: convivência e o papel do adulto

A inclusão de crianças com deficiência em escolas regulares ainda suscita várias incertezas por parte das escolas e falta de acolhimento às famílias. Entretanto, pelos achados da pesquisa, o convívio entre crianças com e sem deficiência se mostra rico em experiência para todos os envolvidos: crianças, professores, escola e famílias. As entrevistadas para a pesquisa concordam que há ganhos tanto para as crianças com deficiência, quanto para as que não apresentam deficiência. Esses pontos positivos estão relacionados ao convívio, que proporciona a possibilidade de lidar com as diferenças e aprender com elas. O que pode ser explicitado no seguinte excerto da entrevista da coordenadora pedagógica Luciana:

Eu acho que numa escola como a nossa que tem uma proposta mais cooperativa, eu tenho clareza que a sala mista traz benefícios para todo mundo no sentido de poder olhar o Outro que é diferente de mim, com coisas melhores que as minhas ou com coisas piores que as minhas [...] Eu olhando pro Outro, eu consigo identificar melhor meus pontos fortes e meus pontos fracos. Eu acho que numa proposta cooperativa é isso. (Luciana, 2015)

O respeito no ambiente escolar é fundamental para o desenvolvimento de relações saudáveis. Karagiannis, Stainback e Stainback (1999, p. 22) identificam que a inclusão desenvolve, nas crianças sem e com deficiência, atitudes positivas com relação ao Outro, “habilidades acadêmicas e sociais e de preparação para a vida na comunidade”. As atitudes positivas, para os autores, se manifestam na sensibilidade, na compreensão, no respeito e na convivência de forma confortável com as diferenças e as semelhanças. Acrescento que a criança com deficiência também percebe que pode viver em um ambiente sem (com menos) preconceito, que pode ser aceita, conviver em sociedade e ter “relações sociais e afetivas”, como aponta Leila na sua entrevista. Para Hanline e Daley (2002), os pais de crianças sem deficiência que estudaram em escolas inclusivas relatam que a sensibilidade e a aceitação das diferenças aumentam com o contato com crianças com deficiência. Nas palavras da professora Débora:

Claro que tem dias que as crianças estão mais tolerantes pra algumas coisas, tem dias que não, mas eles respeitam. Isso eu acho bacana, eles respeitam. Conseguem entender, conseguem falar. Então, é tudo muito tranquilo. (Débora, 2015)

Karagiannis, Stainback e Stainback (1999) trazem vantagens nas habilidades acadêmicas e sociais levantando a discussão sobre o aprendizado de crianças com deficiência. Nesse impasse, alguns defendem que a criança com deficiência deve estar na escola apenas para socializar. Enquanto que os autores defendem que ela, mesmo que não consiga aprender todo o conteúdo, deve estar na escola para desenvolver habilidades acadêmicas e não somente sociais. Por outro lado, os locais segregados, aqueles exclusivamente para pessoas com deficiências, são prejudiciais em função de serem mais um local de cuidado do que de aprendizado, na visão dos autores. De modo que nesses locais segregados, os alunos com deficiência:

[...] recebem pouca educação útil para a vida real, e os alunos sem deficiência experimentam fundamentalmente uma educação que valoriza pouco a diversidade, a cooperação e o respeito por aqueles que são diferentes. Em contraste, o ensino inclusivo proporciona às pessoas com deficiência a oportunidade de adquirir habilidades para o trabalho e para a vida em comunidade. (KARAGIANNIS; STAINBACK; STAINBACK, 1999, p. 25)

O ambiente inclusivo e o aprendizado decorrente dele não aceita que as capacidades de uma pessoa com deficiência sejam subestimadas ou que elas sejam tratadas com tal condescendência que não tenham limites. Oliveira (2011, p. 215) considera que o professor de Educação Infantil tem alguns procedimentos fundamentais para a organização desse ambiente, dentre eles: “estabelecer limites e apresentar regras com clareza, justificar proibições, ajudar as crianças a fazer acordos e lembra-los desses acordos, quando necessário”.

Para Carvalho (2014), mais que as barreiras físicas e arquitetônicas (acessibilidade), estão as barreiras invisíveis, atitudinais, de todos os que circulam na escola, que implicam no olhar para o Outro como um ser inferior, impossibilitado de compreender ou de fazer e totalmente sem limites. Sobre as atitudes na Escola, Débora afirma:

Como tu não tem a coisa de “Ah, coitadinho tem Síndrome de Down” ou “Ah, coitadinho é autista”, ou ainda “Não fala, não caminha...”, mas e o resto? O que é que pode ser tirado de bom disso? O que é que tu faz? (Débora, 2015)

Essa atitude mais igualitária é perceptível na Escola. Durante o tempo que eu passei na Escola, pude perceber que as combinações, as atividades, as exigências, as regras são para todos. Entretanto, Kwon, Elicker e Kontos (2011) trazem pesquisas que apontam que as crianças com deficiência tendem a ter menos interação social, a brincarem menos com os colegas sem deficiência. Em muitos casos, são menos escolhidas como parceiros nas brincadeiras e tem mais chance de serem rejeitadas pelos colegas. “Ainda que as crianças com deficiência possam apresentar déficits quando estão interagindo com seus pares, se o professor der apoio nas interações as crianças podem apresentar melhoras” (KWON; ELICKER; KONTOS, 2011, p. 267).3

Kwon, Elicker e Kontos (2011) trazem o resultado de uma pesquisa desenvolvida por Harper e McCluskey, que apontou que crianças com habilidades linguísticas limitadas, quando comparadas com outras crianças com outro tipo de deficiência ou as com desenvolvimento típico, tendem a passar mais tempo brincando sozinhas. Já as crianças que não têm problemas de locomoção ou dificuldades para falar não têm diferenças substanciais no envolvimento em trocas sociais que as crianças com desenvolvimento típico. Da mesma forma, as crianças que precisam de ajuda para se locomover desenvolvem uma dependência maior do professor ou monitor. Esses achados indicam que o professor deve usar estratégias diferentes de acordo com as peculiaridades de cada aluno e deficiência.

Cláudia, uma das crianças da turma da Educação Infantil que estavam com 5 anos quando as observei em 2015, tem Síndrome de Down e acabou por gostar bastante da minha companhia, é uma criança mais fechada, brinca bastante tempo sozinha ou fica mais quieta observando os colegas nos momentos de brincadeiras livres. Mesmo que a deficiência de Cláudia não afete a fala, é bastante raro ouvir a sua voz, mesmo quando chama os outros colegas pelo nome é quase um sussurro. Com o passar do tempo, fui me aproximando mais de Cláudia, tentando conversar com ela e fazer perguntas, até que ela começou a me propor algumas brincadeiras: esconder-se atrás de mim, fingir que dormia ou que uma boneca dormia para que eu pudesse acordá-las, fazer minhas unhas, trocar as fraldas da boneca ou do homem aranha, empurrar no balanço, dentre outas. Lira e Kopezynski (2015, p. 170) entendem a brincadeira como uma atividade expressiva que pode “desenvolver a criatividade, a expressão, a comunicação e a imaginação, além de promover a socialização”.

Depois de uma das tardes de brincadeiras no pátio, fiz a seguinte anotação no meu Diário:

No pátio estão as duas turmas juntas, empurro balanços, inclusive o da Cláudia, que fica muito, muito feliz. Ela sorri para Débora e Lígia. As profes comentam que isso só acontece quando estou junto. Cláudia imita os outros e me diz: “Empurra, Marcelo!”. Depois resolve me ajudar a empurrar as outras crianças no balanço. Me dá a mão. Não consigo empurrar mais os outros e tenho medo que ela se machuque. Proponho sairmos dali. Cláudia vem comigo de mão. Lígia interfere: “Cláudia, deixa o Marcelo aqui comigo, pega um baldinho e vai brincar com os colegas na caixa de areia”. Encorajo que ela vá brincar com os colegas. (Diário de Aula, 07 maio 2015)

A interferência da professora ocorre no sentido de fazer com que a abertura e a felicidade que Cláudia estava demonstrando ao brincar comigo pudesse se estender para as brincadeiras com os colegas. Lira e Kopezynski (2015) defendem a ideia que o professor em momentos de pátio deve mediar e interagir com as crianças, não apenas ditar regras ou controlar as brincadeiras. Em sua pesquisa, as autoras quase não encontraram proposições de outras brincadeiras ou outros materiais que não fossem os brinquedos fixos no pátio, bem como não houve incentivo para os alunos mais tímidos participarem das brincadeiras, ao contrário da situação vivenciada na Escola. Mesmo que alguns possam pensar que a presença do professor ou de um adulto nesse cenário possa inibir a interação, Kwon, Elicker e Kontos (2011) acreditam que o professor (adulto) deva interferir para que ocorra maior interação entre os pares. O que não significa dizer que o professor deva dirigir as brincadeiras, mas sim implica em entender que se o professor é receptivo, encoraja o comportamento social e a interação entre as crianças.

Na entrevista com a diretora Leila, o assunto da simpatia da Cláudia por mim veio à tona, pois o seu comportamento, que era antes mais quieto e introspectivo, havia mudado para melhor. Comentei com Leila sobre a intervenção de Lígia, pois acredito na importância da interação entre as crianças, mas também comentei que me sentia muito bem com a relação que havia estabelecido com Cláudia. Leila faz o seguinte comentário:

Se a professora entende aquele sujeito como um sujeito aprendiz, como um sujeito que precisa que tu pegues pela mão e conduza, se ela deixar que a Cláudia fique o tempo todo contigo do jeito que a criança quer, perdeu o valor dela como professora. (Leila, 2015)

Esta passagem me fez refletir sobre o papel do professor (ou do adulto) em propiciar momentos de interação entre as crianças com e sem deficiência, em especial nesse caso, por ser uma criança mais tímida e introspectiva na sala, pois, em uma conversa informal, Lígia me contou que com a família Cláudia é bastante falante e ativa. Para Lira e Kopezynski (2015), esses momentos de brincadeiras em espaços mais amplos e livres propiciam às crianças maior autonomia para encaminhar e organizar as brincadeiras, sempre atrelado à participação do adulto seja ao definir o momento para o pátio, seja ao cuidar e ao orientar as brincadeiras. Nos achados da pesquisa de Kwon, Elicker e Kontos (2011) aparece que crianças com deficiência respondem ao apoio e fala dos professores para interagirem com seus colegas, aumentando a quantidade de interação entre crianças com e sem deficiência, tendo em vista que crianças com deficiência tendem a ter menos interação com seus pares. Os autores acreditam que o professor pode ser fundamental na promoção dessas interações entre as crianças.

Com relação aos pontos positivos para as crianças sem deficiência no convívio com crianças com deficiência, as entrevistadas ressaltam que, a partir de uma Educação Inclusiva, elas se constituirão pessoas mais abertas à diversidade, mais respeitosas, mais compreensivas, com menos preconceitos e entendendo que cada pessoa tem um ritmo diferente. Débora sintetiza da seguinte forma:

A diferença faz com que tu busque na tua essência a solidariedade. Eu acho que é isso, um espírito mais solidário, mais companheiro, de olhar pro Outro, de respeitar o Outro. O convívio em sociedade é isso: tu olhar pro Outro, respeitar. (Débora, 2015)

E para as crianças com deficiência o principal ponto positivo é o convívio com crianças que se comportam conforme a normalidade, pois servem de espelho e de desafio. Ao perceberem seus colegas se desenvolvendo, aprendendo, a criança com deficiência pode entender que também tem condições de fazê-lo. Débora traz o exemplo de Bianca que tem Síndrome de Down e que ilustra esse desafio posto para a criança com deficiência:

Tem um desejo de ir adiante. Eu vejo pela Bianca, os colegas fazem e assinam o desenho... ela ainda tá na garatuja – nominada, mas enfim... – Já tem o deslocamento, ela já tá tentando fazer bolinhas e tá significando aquelas escritas. Então, eu tenho feito um exercício de: “Que legal! Tu escreveu teu nome, então escreve o nome do colega tal.” Ela vai lá e escreve. Ela tá te trazendo isso, tá te mostrando isso, tem desejo ali. (Débora, 2015)

Não basta ter o desejo, o desafio e a intenção de imitar os colegas, a criança precisa de apoio e incentivo. Em alguns momentos pude presenciar esse espelhamento no comportamento das crianças com deficiência ao verem as outras crianças se relacionando comigo. O comportamento de Cláudia que parece observar como os colegas chamam a minha atenção, como nas situações em que eles querem que eu empurre nos balanços, para depois me chamar para empurrá-la também. Nesses momentos de pátio, sempre que um deles me chama para empurrar no balanço, os outros também querem. Em um desses dias Cláudia ficou observando essa brincadeira, na próxima semana se sentou no balanço e, por fim, também se arriscou a dizer: “Marcelo, empurra!”. Outro exemplo dessa imitação pode ser encontrado nesse trecho do Diário de Aula que também envolve Cláudia:

Cíntia me serviu bolo numa forminha de brincar na areia.

Cintia: Um bolo para você!

Eu: Ah, obrigado! De que é?

Cíntia: Laranja.

Eu: Está delicioso!

Cláudia acompanhou esse diálogo e ficou trazendo bolos de areia pra mim o resto do tempo de pátio. Ela trazia uma pá para eu comer, mas tirava a pá da minha mão para fazer outro bolo. (Diário de Aula, 07 maio 2015)

Cláudia se mantinha mais afastada em um primeiro momento, observando o comportamento dos colegas comigo, para depois propor alguma interação. Hanline e Daley (2002) identificam a principal razão para termos um ambiente inclusivo na escola: criar expectativas acessíveis para as crianças com deficiência, esse desejo que Débora identifica em Bianca, que pode ser encontrado na imitação e no espelhamento, até mesmo na imitação das estratégias que Cláudia elabora para me chamar para a brincadeira. E para as crianças sem deficiência, segundo os autores, o objetivo é ter um entendimento maior sobre as deficiências.

Em um ambiente inclusivo, essa interação pode acontecer de maneira espontânea ou com menos intervenção do professor. No primeiro dia de observação de 2015, fiz alguns registros sobre Eduardo, que tem possível diagnóstico de autismo, e Bianca e suas interações com os colegas:

No pátio: Eduardo brincou um tempo grande sozinho na caixa de areia, mas depois por um bom tempo também brincou com os outros. Bianca está mais falante que no ano passado. Ela brincou bastante com os colegas. [...]

Na sala: Em roda no chão, enquanto alguns foram ao banheiro ou tomar água, Eduardo toca uma flauta. Débora falou que ele estava tocando uma música para os colegas. As crianças começaram a bater palmas e outras a cantarolar. Eduardo pareceu curtir muito. (Diário de Aula, 19 mar. 2015)

Neste trecho do meu Diário aparecem duas formas de interação entre as crianças. Uma mais espontânea, no pátio, em que há a tendência ao isolamento de algumas crianças com deficiência e também que o ambiente inclusivo favorece a interação entre deficientes e não deficientes. Na segunda situação, já na sala de aula, aparece a intervenção da professora Débora para transformar aquilo que poderia ser um incômodo – um colega tocando flauta enquanto eles estavam se organizando para a próxima atividade – em uma brincadeira em que todos pudessem participar.

Uma situação muito parecida com a que envolveu Cláudia, aconteceu em outra tarde com a Cíntia, que não tem deficiência. Cíntia, ao contrário de Cláudia, é uma criança que tem características mais controladoras, gosta de organizar as brincadeiras e, de certa forma, impor a sua vontade, pela percepção que tive. Sua personalidade não faz dela uma das colegas preferidas dos outros, pois intenta que sua visão da brincadeira prevaleça, tendo dificuldade em participar de uma brincadeira organizada por outra criança. Nesse dia fiz esta anotação no Diário de Aula:

No pátio, Cíntia vem toda hora pedir para brincar comigo, quer que eu vá para dentro da casinha com ela, argumento que está muito quente para ficarmos na casinha e que podemos brincar junto com os outros. Ela não aceita. Lígia me chama e Cíntia vem junto. Lígia diz para Cíntia: “Agora o Marcelo vai ficar um pouco aqui comigo”. Cíntia se senta no chão ao nosso lado para esperar. Lígia sorri pra mim com cumplicidade e diz para Cíntia “Agora é hora dos adultos conversarem, vai brincar com teus colegas”. (Diário de Aula, 23 out. 2015)

Estes dois episódios envolvendo Cláudia e Cíntia descritos no meu Diário apontam para um tratamento igualitário, independentemente de deficiência. As duas passagens são relativas a uma atitude da professora baseada na crença de que o momento do pátio é importante para o desenvolvimento das crianças. Esse momento não é para ser passado com os adultos, mas sob a supervisão e encorajamento dos adultos. Ao mesmo tempo que eu procurava brincar com as crianças, também buscava não interferir tanto no andamento normal das atividades e práticas das turmas. Encontrar esse equilíbrio entre brincar e apenas observar, ceder a uma vontade ou não foi bastante desafiador. Dessa forma, também tive que conhecer as combinações das turmas para adequar o meu comportamento.

As duas intervenções de Lígia acontecem para desvincular a criança do adulto e para impulsionar a interação entre as crianças. No caso da Cláudia, a intervenção da professora foi necessária em função da sua timidez e, com Cíntia, por sua intenção em monopolizar minha atenção. Quando estamos na sala de aula, Cíntia fica mais aberta a que eu brinque junto com os colegas, mas em algumas situações de pátio prefere que eu brinque somente com ela, afastando os colegas. No registro das minhas observações do dia 12 de novembro de 2015, aparece uma situação bastante semelhante com Cíntia e novamente a intervenção para que ela vá brincar com os colegas e não exclusivamente comigo. Nesse mesmo dia, registro o seguinte diálogo com Lígia:

Eu: A Cíntia está impedindo o Ivan4 de brincar com a Cláudia.

Lígia: A Cláudia só brinca se for com o Ivan. Isso vai pro relatório dela – ela até consegue brincar, mas é só com ele. Já o Ivan consegue brincar com os colegas. Não sei o que eu posso fazer mais.

Eu: Perguntei pra Cláudia se ela gostava de brincar com o Ivan, ela me respondeu que sim, aí perguntei se ela gostava de brincar com os outros ela não me respondeu.

Lígia: Se o Ivan não está, ela não brinca. E a Cíntia quase não vem, semana passada faltou toda por causa da chuva, por isso tem dificuldade de se entrosar com os colegas.

Os três estão nos cavalinhos, nos levantamos e fomos até lá.

Eu: Vocês estão brincando de quê?

Ivan: De andar de cavalo.

Lígia: Vocês têm que brincar os três juntos. [são só dois cavalos]

Eu: Como são só dois cavalos, quem sabe vocês três vão brincar de outra coisa?

Cíntia chama Ivan para ir brincar em outro lugar, mas ele não vai. Ficam Ivan e Cláudia nos dois cavalos. (Diário de Aula, 12 nov. 2015)

Este episódio demonstra, mais uma vez, o papel do professor em fazer com que as crianças interajam entre elas e que possam utilizar esses momentos de brincadeira livre da forma mais proveitosa possível. Como em todas as relações humanas, há medidas de força e dificuldades em chegar a um consenso. A professora Lígia tenta também evitar que haja uma forma de segregação na qual Cláudia e Ivan reforcem as duas deficiências se isolando dos outros colegas. Kwon, Elicker e Kontos (2011) acreditam que as crianças em locais segregados, ou seja, não inclusivos, tendem a interagir menos entre os seus pares com deficiência e desenvolver maior interação com os professores. Entretanto, com o apoio dos professores, as crianças com deficiência desenvolvem relações com mais intensidade e volume com os pares em ambientes inclusivos. Nas palavras dos autores:

Os achados apontam nossa hipótese que as crianças com deficiência em ambientes inclusivos teriam um maior nível de interação social que aquelas em locais segregados. As crianças que nós observamos tem mais tendência a interagir com os pares e menos em jogos não-sociais que aquelas que estão em salas de aula segregadas. E as crianças em salas de aula segregadas tendem a interagir mais com os professores do que com os pares. (KWON; ELICKER; KONTOS, 201, p. 275)5

Uma das crenças que Hanline e Daley (2002) desconstroem em sua análise é o de que a criança com deficiência vai sempre interromper o processo das atividades, comprometendo os processos de ensino e de aprendizado. Os autores partem do princípio que todas as crianças com ou sem deficiência vão passar pelos mesmos estágios de desenvolvimento, portanto crianças com ou sem deficiência podem ter a mesma atividade, como desenhar, por exemplo. Enquanto umas farão um desenho mais elaborado, outras ainda estão na garatuja, algumas assinam a sua obra ainda com letras espelhadas, enquanto outras não, independentemente da deficiência. Aqui mais uma vez aparece o mito da sala de aula homogênea, em que todos aprendem o mesmo trabalho ao mesmo tempo, tem os mesmos interesses, as mesmas dificuldades, o que é impossível em uma turma.

Considerações finais

Neste artigo, busquei, por meio de exemplos vivenciados no campo, entender algumas das relações que se apresentam entre as crianças com deficiência e as que tem desenvolvimento típico. Da mesma forma, o artigo entende a escola regular como um espaço propício para o desenvolvimento das crianças com e sem deficiência. Pelo convívio entre as crianças é que se dá o aprendizado sobre o respeito e celebração das diferenças. Vale ressaltar que o ambiente da escola deve ser propício para que essa experiência seja positiva e desenvolva as crianças. A escola deve ser um lugar em que se acredite nas possibilidades de cada criança e não na homogeneização.

Nesse sentido, o papel do adulto é fundamental no momento em que lança mão de estratégias diferentes para promover o aprendizado. Da mesma forma que não espera que todos tenham o mesmo ritmo, interesses, vontades, necessidades, que saiba respeitar as diferenças equalizando o olhar para o indivíduo e para o grupo. O professor é quem está mais próximo do grupo misto de crianças para apoiar a interação entre elas, buscando que todas as crianças tenham as mesmas possibilidades de aprendizado pela brincadeira, pelo convívio, pelas propostas dirigidas ou mais livres.

A etapa da Educação Infantil é relevante para a constituição do adulto e percepção do outro. Pelos achados da pesquisa é possível afirmar que o principal ponto positivo do convívio entre as crianças com deficiência e as que possuem desenvolvimento típico está no jogo de imitação em que o desafio está lançado pela própria observação do outro. E para as crianças sem deficiência aparece a possibilidade de se tornarem pessoas mais abertas, mais acolhedoras, mais tolerantes com a diferença e mais conscientes da diversidade humana. Nesse sentido, o papel do professor é fundamental para mediar e modular o convívio entre as crianças.

Referências

BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. 1996. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 2014.

BOGDAN, R; BIKLEN, S. K. Qualitative research for education: An introduction to theory and methods. 3. ed. Boston: Allyn & Bacon, 1998.

CARVALHO, R. E. Escola inclusiva: A reorganização do trabalho pedagógico. Porto Alegre: Mediação, 2014.

HANLINE, M. F.; DALEY, S. ‘Mom, will Kaelie always have possibilities?’: The realities of early childhood inclusion. Phi delta kappan, v. 84, n. 1, p. 73-76, sep. 2002. Disponível em: . Acesso em: 07 jun 2014.

KARAGIANNIS, A.; STAINBACK, W.; STAINBACK, S. Fundamentos do ensino inclusivo. In: STAINBACK, S.; STAINBACK, W. Inclusão: um guia para educadores. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. p. 21-34.

KOWN, K.; ELICKER, J.; KONTOS, S. Social IEP objectives, teacher talk, and peer interaction in inclusive and segregated preschool settings. Early childhood education journal, v. 39, n. 4, p. 267-277, 2011. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2015.

LIRA, A. C. M.; KOPEZYNSKI, J. A. Quando o brincar tem hora e lugar: reflexões sobre o uso do parque na educação infantil. Roteiro, Joaçaba, v. 40, n. 1, jan./jun., 2015, p. 169-186.

OLIVEIRA, Z. M. R. Educação infantil: Fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2011.

ZABALZA, M. A. Diários de aula: Um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre: Artmed, 2004.

Notas

1 Neste artigo, todas as pessoas, sejam elas as entrevistadas ou as crianças que faziam parte das turmas observadas, receberam codinomes.
2 Para fins deste artigo a Escola objeto desta pesquisa será assim denominada. A Escola foi fundada em 1990 com o intuito de se constituir um espaço de integração entre crianças com e sem deficiência, antes mesmo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996).
3 Minha tradução. Even though children with disabilities often display deficits when engaged in peer interactions, if supported in these interactions by teachers, they can improve.
4 Ivan tem diagnóstico de autismo.
5 Minha tradução. The findings supported our hypothesis that children with disabilities in inclusive settings would display a higher level of social functioning than those in segregated settings. The children we observed in inclusive classrooms were more likely to engage in peer interaction and less likely to engage in non-social play than those in segregated classrooms. Children in the segregated classrooms were more likely to interact with teachers than peers.


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