ANÁLISE DA NOÇÃO DE JUSTIÇA EM ESTUDANTES COM ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO: UMA CONTRIBUIÇÃO EDUCACIONAL

ANALYSIS OF JUSTICE NOTION IN GIFTED STUDENTS: AN EDUCATIONAL CONTRIBUTION

ANÁLISIS DE LA NOCIÓN DE JUSTICIA EN ESTUDIANTES CON ALTAS HABILIDADES / SUPERDOTACIÓN: UNA CONTRIBUCIÓN EDUCATIVA

Bernadete Fatima Bastos Valentim
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Carla Luciane Blum Vestena
Universidade Estadual do Centro-Oeste, Brasil

ANÁLISE DA NOÇÃO DE JUSTIÇA EM ESTUDANTES COM ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO: UMA CONTRIBUIÇÃO EDUCACIONAL

Revista Educação Especial, vol. 32, pp. 1-21, 2019

Universidade Federal de Santa Maria

Recepção: 25 Outubro 2015

Aprovação: 04 Janeiro 2017

Resumo: A superdotação é conhecida pelos traços da criatividade, envolvimento com a tarefa e alto nível de motivação. Existem outros pouco explorados, como, por exemplo, a moral autônoma. O presente artigo teve como objetivo analisar a noção de justiça de estudantes com altas habilidades/superdotação. Os sujeitos pesquisados foram dez estudantes do ensino fundamental e médio com a idade entre onze e dezesseis anos identificados com altas habilidades/superdotação no contexto escolar e que frequentam salas de recursos multifuncionais em dois colégios públicos de um município no interior do Estado do Paraná/Brasil. Os dados foram obtidos por meio do método clínico piagetiano e o instrumento de investigação foi a entrevista semiestrutura compostas por dilemas morais envolvendo as categorias da justiça imanente, justiça retributiva, distributiva e respeito a regras. O estudo demonstrou que estes estudantes possuem uma ampla compreensão e sensibilidade em relação às injustiças que ocorrem no contexto geral da sociedade assim como o respeito às regras. Concluímos que os aspectos relacionados à moral autônoma ficaram evidentes nos estudantes pesquisados pela demonstração de uma refinada noção de justiça. No entanto, se faz necessário o desenvolvimento de ações pedagógicas que permitam discussões sobre temas do seu interesse no intuito de favorecer a construção de ambientes cooperativos. Por fim, destacamos que é fundamental que os professores conheçam as características das altas habilidades/superdotação a fim de estimular o exercício da autonomia moral e, assim, oferecer oportunidades para agir de acordo com esses princípios em ambientes cooperativos.

Palavras-chave: altas habilidades, superdotação, Piaget, noção de justiça, educação.

Abstract: Intellectual giftedness is popular by characteristics as creativity, task commitment and high level of motivation. There are other characteristics less emphasized as, for example, the autonomous moral. So the objective of this paper is to analyze gifted students’ justice notion. Samples was ten students from Elementary and High School between eleven and sixteen years old identified as gifted in scholar context which ones have gone to multifunctional classroom in two public schools in a country town in Paraná state/Brazil. Data were gotten by Piagetian clinic method and the instrument to research was a semi structured interview composed by moral dilemmas regarding categories as immanent justice, retributive justice, distributive one and rules. Results were these students have a wide comprehension and sensibility regarding injustices in general context of society as well as in relation to rules. We consider aspects regarding autonomous moral were evident in students when they demonstrated a sophisticated justice notion. However, it is necessary to develop pedagogical actions to allow debates about interesting subjects for them with the objective to help the construction of cooperative spaces. Finally, we emphasize that it is fundamental teachers know gifted students’ characteristics to stimulate the autonomous moral and then to offer opportunities to actions according these principles into cooperative spaces.

Keywords: intellectual giftedness, Piaget, justice notion, education.

Resumen: La superdotación es conocida por los rasgos de la creatividad, la participación con la tarea y la habilidad por encima de la media. Hay otros rasgos poco explorados como por ejemplo la moral autónoma. El presente artículo tuvo como objetivo analizar la noción de justicia de estudiantes con altas habilidades / superdotación. Los sujetos encuestados fueron diez estudiantes de la enseñanza fundamental y media con la edad entre once y dieciséis años identificados con altas habilidades / superdotación en el contexto escolar y que frecuentan salas de recursos multifuncionales en dos colegios públicos de un municipio en el interior del Estado de Paraná / Brasil . Los datos fueron obtenidos por medio del método clínico piagetiano y el instrumento de investigación fue la entrevista semiestructura compuesta por dilemas morales envolviendo las categorías de la justicia inmanente, justicia retributiva, distributiva y respeto a reglas. El estudio demostró que estos estudiantes poseen una amplia comprensión y sensibilidad en relación a las injusticias que ocurren en el contexto general de la sociedad así como el respeto a las reglas. Concluimos que los aspectos relacionados con la moral autónoma quedaron evidentes en los estudiantes investigados por la demostración de una refinada noción de justicia. Sin embargo, se hace necesario el desarrollo de acciones pedagógicas que permitan discusiones sobre temas de su interés con el fin de favorecer la construcción de ambientes cooperativos. Por último, destacamos que es fundamental que los profesores conozcan las características de las altas habilidades / superdotación a fin de estimular el ejercicio de la autonomía moral y, así, ofrecer oportunidades para actuar de acuerdo con esos principios en ambientes cooperativos.

Palabras clave: Altas habilidades , superdotación, Piaget, Noción de justicia, Educación.

INTRODUÇÃO

Em um contexto de educação inclusiva somos levados a refletir sobre a multiplicidade da sala de aula para que possamos reconhecer e compreender as necessidades educacionais especiais de crianças e adolescentes. Sabemos que existem os estudantes com deficiência física, visual, auditiva e/ou intelectual, assim como os que apresentam transtornos globais do desenvolvimento. Para atender a esses estudantes, a busca por metodologias que auxiliem na construção do conhecimento é uma preocupação constante entre professores e equipe pedagógica. No entanto, estudantes com altas habilidades/superdotação (AH/SD), que também precisam de atendimento especializado, estão quase invisíveis no contexto escolar. Muito embora estejamos num período de inclusão, é possível que não sejam reconhecidos e, consequentemente, não recebam os atendimentos necessários ao seu desenvolvimento pleno.

O número de pesquisas que investigam o tema AH/SD têm aumentado nos últimos anos, porém ainda de modo insípido quando se considera as produções em outros campos da educação especial, como as deficiências e transtornos globais do desenvolvimento. Percebemos que uma temática que está presente nas pesquisas é a necessidade de promover o atendimento educacional especializado aos estudantes com AH/SD, porém ainda é um processo que se encontra em fase de construção (PLETSCH E PONTES, 2009). Ademais, o atendimento a alunos superdotados é ainda mais restrito e, por vezes, inexistente (FERREIRA, 2016).

Outra temática recorrente nas discussões se refere à identificação das pessoas com AH/SD. Com esse intuito, Pérez e Freitas (2012) discutiram que as características gerais apresentadas por pessoas com altas habilidades/superdotação (PAH/SD) incluem habilidades acima da média em relação à forma como processam informações, envolvimento interessado em atividades que se propõem a fazer, motivação, elevado nível de esforço e alto nível de criatividade. Além destas, consideramos importante compreender características que envolvem as questões morais e afetivas, pois o que ocorre, muitas vezes, é que seu potencial intelectual fica tão evidente que o social aparece em segundo plano, como discutido por Valentim, Neumann e Vestena (2014). A partir de um estudo de caso, reconhecemos a possibilidade de existir certa defasagem afetiva na pessoa adulta com altas habilidades/superdotação em detrimento da supervalorização dos aspectos intelectuais.

Destacamos a relevância dessas relações na visão de Paludo (2013, p. 91) quando afirma que “por meio da interação eu-outro, a pessoa se avalia, (re) estrutura e (re) significa o que pensa sobre si mesmo (...)”. Por conseguinte, isso demonstra a atenção que se deve ter para criar um ambiente colaborativo para trocas sociais que permitam a valorização e o respeito às diferenças.

Esse fator nos remete ao reconhecimento das diferenças comportamentais nos espaços educativos. A esse respeito, Piaget (1977b) enfatiza a relevância das relações interindividuais e a tomada de consciência de si e dos outros que são construídas no campo social. A atenção a estes alunos na sala de aula é fundamental nesse sentido, o de construir ambientes cooperativos para que seja possível o desenvolvimento da moral, da autonomia, do saber pensar por si, de ser crítico e participativo na sociedade.

Um estudo sobre o desenvolvimento moral dos alunos com AH/SD realizado por Fortes-Lustosa (2007) mostrou que eles apresentam aguçado senso moral demonstrado pela compaixão, sensibilidade ao sofrimento alheio e sentido aguçado de proteção. Enfatiza que os superdotados não constituem um grupo homogêneo, por isso não se pode dizer que “são mais morais pelo fato de ter um desenvolvimento intelectual mais avançado” (FORTES-LUSTOSA, 2007 p. 73). No entanto, envolvem-se em causas sociais e existe o risco de perdermos estes potenciais. Logo, a educação precisa estar pautada na sua formação por meio do estímulo do respeito mútuo em qualquer tipo de relação, seja nas relações em família, sociedade e/ou escola.

Sabatella (2012) discute o desenvolvimento moral das pessoas com altas habilidades/superdotação (PAH/SD) como uma das características adicionais. Ressalta que passam pelos mesmos estágios que as demais pessoas, porém num ritmo mais acelerado e esclarece que geralmente tem uma reação aparente frente à injustiça, violência e exploração da mídia, por exemplo. Considera ainda que “(...) são indivíduos que estarão sempre mais motivados e inclinados à cooperação do que à competição” (SABATELLA, 2012, p.120). A cooperação é um elemento importante na constituição da moral e parte do princípio de um movimento bidirecional que valoriza o coletivo, sem desconsiderar o individual. Este elemento foi amplamente discutido por Piaget e também destacado por Kohlberg.

Os estudos sobre moral de Kohlberg (BIAGGIO, 2002) tiveram como referência os estudos de Piaget. No entanto, evoluíram no sentido da busca pela explicação do desenvolvimento moral em adolescentes e jovens com intuito de implantar programas de educação moral na escola para que pudessem pensar criticamente e tomar decisões de modo autônomo. Em relação com uma perspectiva educacional atual, o fim da educação moral seria a formação do cidadão crítico, previsto na grande maioria dos projetos político-pedagógico das escolas.

Lawrence Kohlberg, pesquisador e psicólogo norte-americano, investigou a moralidade em adolescentes e adultos. A partir de pesquisas realizadas nos Estados Unidos da América, México, China, Turquia e Malásia, Kohlberg concluiu que os estágios são os mesmos para todo o sujeito independente de condição social, gênero ou etnia. Propôs seis estágios de desenvolvimento moral agrupados em níveis: préconcenvional (nível I e II), convencional (nível I e II) e pósconvencional (nível I e II) (BATAGLIA, MORAIS, LEPRE, 2010).

Para realizar seus estudos, Kohlberg visitou um kibbutz israelense no verão de 1967 onde estudavam adolescentes pobres que tinham uma forma de conviver em sociedade que combinava princípios de discussão moral com princípios de educação coletiva (REIMER, 1997, p. 60). Assim, almejou que a educação moral pudesse ser desenvolvida na escola, uma vez que isso exercia forte influência no alcance de estágios convencionais de moralidade. O exercício desse modelo de prática grupal poderia servir para influenciar não somente o juízo, mas a ação moral a partir de comunidades justas. “A teoria da comunidade justa enfatiza que não pode haver um exercício eficaz de autoridade sem a presença de uma comunidade viável a qual todos os membros têm o sentimento de pertencer” (BIAGGIO, 1997, p.8). Foi essa prática que Kohlberg observou na comunidade israelense. No modelo de comunidade justa, professores e alunos repreendem e são repreendidos se quebrarem as regras estabelecidas coletivamente, ou seja, possuem direitos e deveres iguais, devem respeitar e ser respeitados. Nas palavras de Piaget (1977a), existe o respeito mútuo.

O enfoque de comunidades justas considera que o grupo cumpre uma função normativa em si mesmo, o grupo exerce certa disciplina sobre seus membros e compreendem que a vida em comum depende dos combinados, há uma vinculação emocional que ajuda a criar uma identidade social, de modo que quando um tem sucesso todos se sentem gratificados; é criado um senso de responsabilidade coletiva de maneira que se sentem motivados a se ajudarem mutuamente, a discussão de valores e conflito de valores para formar a identidade individual e social e o educador é um líder que respeita as decisões do grupo (REIMER, 1997, p. 62).

Foram essas observações que levaram Kohlberg a compreender como a educação moral deve levar em consideração aspectos que envolvem a discussão de dilemas hipotéticos da vida real que façam refletir sobre as consequências dos atos para si e aos outros (REIMER, 1997). A comunidade justa busca considerar um equilíbrio entre a justiça e a comunidade com o objetivo de chegar ao consenso com os direitos individuais (REIMER, 1997). Esta questão, apontada por Piaget (1977a), considera o trabalho em grupo como um conjunto de sistemas pedagógicos que desenvolvem a cooperação e favorece o desenvolvimento da moral.

Este modelo nos leva a refletir sobre a gestão democrática na escola que envolve toda a comunidade escolar pela participação nas instâncias colegiadas, onde estudantes têm fundamental importância na constituição dos grêmios estudantis e, assim, participar ativamente das decisões coletivas na escola que visam o bem comum e a aprendizagem de todos.

Ao considerar que a educação moral é pouco discutida na escola, salientamos a urgência de fazê-lo e, na tentativa de contribuir para suprimir esta lacuna, o presente estudo objetivou analisar a noção de justiça de estudantes com AH/SD. Verificamos, assim, que tipo de juízo moral prevalece em seus julgamentos e apontamos contribuições educacionais para a construção de ambientes favoráveis à construção da moral autônoma.

MÉTODO

Este estudo foi realizado por meio de uma pesquisa exploratória que se propôs a conhecer os caminhos trilhados por estudantes com altas habilidades/superdotação no desenvolvimento do juízo moral. Nesse intuito, utilizamos o método clínico com a aplicação de entrevistas como meio de investigar e compreender o que pensam a respeito das situações no seu entorno social e educacional no que se refere à noção de justiça, tema central no juízo moral, segundo Piaget (1977).

Foram entrevistados dez estudantes, com a idade entre 11 e 16 anos, de duas salas de recursos multifuncionais (SRM’s) para AH/SD em dois colégios estaduais no interior do Estado do Paraná. Na SRM1 foram entrevistados duas meninas e quatro meninos. Já na segunda sala (SRM2), três meninos e uma menina.

Como critério de escolha para participação na pesquisa, elegemos aqueles identificados com AH/SD no ensino comum, encaminhados para o atendimento educacional especializado e com frequência assídua em salas de recursos multifuncionais. Para frequentar a sala de recursos multifuncional, os estudantes passaram por avaliação orientada pela equipe de educação especial do Núcleo Regional de Educação (psicóloga, pedagoga e professor especialista).

Esse processo iniciou pela triagem dos professores do ensino comum e aplicação dos instrumentos de identificação propostos por Freitas e Pérez (2012). O instrumento de pesquisa foi a entrevista semiestruturada elaborada com dilemas morais cujo conteúdo apresenta conflitos cognitivos. Os dilemas abordaram as categorias da justiça imanente, justiça retributiva e distributiva, respeito a regras propostos por Piaget (1977a), porém, contextualizados a situações próximas aos estudantes. As entrevistas foram feitas sempre na mesma ordem para todos os participantes numa única sessão com duração em média de cinquenta minutos cada, porém, em dias alternados, de acordo com a disponibilidade dos estudantes e dos professores da SRM.

Os dilemas foram apresentados aos estudantes em slides e lidos pelas pesquisadoras. Após a leitura, eles foram questionados sobre o seu entendimento. Não foi necessário repeti-los para nenhum dos participantes, pois afirmaram ter compreendido. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas de acordo com o método clínico (DELVAL, 2002).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os dilemas morais utilizados na entrevista investigaram as concepções dos estudantes sobre justiça imanente, retributiva, distributiva e respeito às regras. Os procedimentos adotados para a discussão incluíram a apresentação do dilema e dos dados encontrados. Em seguida, a análise e a interpretação dos mesmos. Os estudantes foram identificados por letra, seguida de número.

A crença na justiça imanente

Este dilema investigou se os participantes acreditavam que as pessoas recebem castigos automaticamente, como se isso viesse de uma entidade divina. Para Piaget (1977a, p. 223), aqueles que pensam desta forma entendem, por exemplo, que “a natureza é cúmplice do adulto e pouco se importam os processos que emprega”. Para esta análise, foi proposto o seguinte dilema: Certa vez dois meninos roubaram pêssego no quintal do vizinho. De repente, chegou o dono e os dois meninos fugiram. Um foi pego, o outro foi pular o muro e caiu. O que você acha? Se ele não tivesse roubado pêssegos e assim mesmo tivesse pulado o muro, também cairia?

De acordo com as respostas, os estudantes não acreditam neste tipo de justiça e isso aponta para o indicativo de que adolescentes com altas habilidades/superdotação pensam que as consequências são relacionadas com os tipos de atos cometidos pelas pessoas, ou seja, são acontecimentos lógicos, decorrentes das ações e que não acontecem automaticamente. Isso fica claro nas afirmações: “Sei lá, perdeu o equilíbrio, alguma coisa assim. Caiu porque estava com pressa” (J12). “Não caiu como consequência que estivesse determinada a acontecer... só que como diz o ditado “quem planta milho colhe milho”. Se você só faz coisas erradas uma hora vai ter consequência” (G15). “Eu acho que não tem relação o fato dele roubar e o fato dele cair. Eu acho que foi, sei lá, na hora do nervosismo correr e querer fugir ele pode ter tropeçado, pode ter dado um passo em falso ou alguma coisa assim e, caiu. Não que tenha um carma, ou sorte, ou azar, ou alguma coisa assim. Eu acho que não tem essa relação” (L15).

Das análises desse dilema, destacam-se duas questões. A primeira é que os entrevistados não acreditam em castigos automáticos e a segunda é que compreendem as consequências diretas das atitudes na vida das pessoas e sua generalização com o futuro. Sobre a primeira, era esperado esse resultado, pois essa característica é peculiar de crianças na primeira infância. No entanto, em relação ao segundo, revela-se a capacidade de generalização e sincretismo típicos de um pensamento que é hipotético dedutivo. Segundo Piaget (1967, p.18), “o sincretismo é a tendência espontânea de ver através de visões globais (...); de achar analogias imediatas, (...) de ligar entre si fenômenos naturais heterogêneos; (...) é a tendência de tudo ligar a tudo”.

A ênfase nesse segundo aspecto permite refletir sobre a necessidade de diálogo em relação às atitudes dos estudantes para prever consequências das ações na escola e no seu desenvolvimento como um todo. É incoerente usar o verbalismo, ou seja, as lições de moral para repreender os estudantes com altas habilidades/superdotação, sem proporcionar uma reflexão das ações. Por suas análises, percebe-se que fazem relação dos atos e consequências. Isso precisa ser discutido na escola e, assim, favorecer a resultados mais favoráveis para a socialização e aprendizagem.

Os níveis de justiça

Para Piaget (1997a, p.173), a justiça é a “mais racional das noções morais, que parece resultar diretamente da cooperação”. Essa noção foi verificada a partir dos dilemas: 1) Uma mãe tinha duas filhas, uma obediente, outra desobediente. Gostava mais daquela que obedecia e dava-lhe os melhores brinquedos. O que você acha disso? 2) Certa vez uma mãe passeava com os filhos no parque, numa tarde de feriado. Às quatro horas, deu um sorvete a cada um. O menor se distraiu e deixou cair no chão. Que fez a mãe? Devia dar-lhe outro? O que acha o irmão maior?

Sobre a primeira história, constatou-se que oito dos participantes acharam injusto dar os melhores brinquedos para a menina obediente. Analisaram fatos correlacionando consequências futuras: “Bom, eu acho que, quando você tem duas crianças, não é bom você fazer essa diferença entre elas. Então a criança sente uma falta de atenção (...) isso mexe com o emocional” (L15).

Notamos uma compreensão sobre a percepção de como os pais têm orientado os filhos e o interessante é que a análise se estendeu a uma busca por alternativas para resolver a situação: “Se a criança é desobediente tenta conversar, fazer alguma coisa que ela gosta. Se eles não dão atenção pra aquela criança (desobediente) e dão pra outra (obediente) é lógico que essa criança vai de algum jeito tentar chamar a atenção ou fazer alguma coisa” (L15). Desse modo, percebemos que os estudantes com AH/SD são observadores, demonstram compreensão e fazem análises bem elaboradas dos fatos a eles apresentados.

Em outros exemplos, além de fazerem a crítica, projetaram o futuro da criança desobediente, caso esse comportamento se repetisse outras vezes. Isso foi percebido no depoimento de três adolescentes: “Pelo que eu vejo essa criança que é mais revoltada ela se torna o vilão depois” (M16). “Isso poderia até desencadear uma rebeldia porque estava sendo quase que desprezada dessa forma” (I15). “Se os pais não dão atenção pra aquela criança (desobediente) e dão pra outra (obediente) é lógico que essa criança vai de algum jeito tentar chamar a atenção ou fazer alguma coisa que chame a atenção dos pais. Eu acho que isso acontece muito hoje em dia. O pai é médico, advogado ou alguma coisa assim e fica o dia inteiro trabalhando, a mãe também. Ou, às vezes a mãe fica em casa e não dá bola pro filho. Então a criança sente uma falta de atenção. Então ela vai procurar atenção em outras coisas” (L15).

Identificamos nos depoimentos, novamente características do pensamento sincrético: aquele que é capaz de analisar um fato e fazer relações com outros (Piaget, 1967). Isso significa que os estudantes estabeleceram uma inter-relação, uma análise que implica a suposição sobre consequências das atitudes dos pais na vida social e emocional dos filhos, sem que isso tivesse acontecido no presente momento. Essa característica do pensamento das pessoas com AH/SD foi destacada por Sabatella (2005, p. 78) como a “(...), ponderação e busca de respostas lógicas, percepção das implicações e consequências, facilidade de decisão”. Assim, ao se deparar com a história, os estudantes imaginaram o cenário completo com os pais e a própria criança, bem como os efeitos dos comportamentos de ambos e estabeleceram a lógica das relações.

A justiça distributiva também foi identificada nos relatos: “Essa questão de dar melhores presentes não me agradou. Eu acho que deveria ter uma intervenção aí pra ambas ganharem o mesmo presente” (J12). “Ela (mãe) tem que tratar as duas filhas com igualdade” (M15). “Eu acho que, quando você tem duas crianças, não é bom você fazer essa diferença entre elas” (L15). O estudante M15 asseverou que os filhos têm que receber o mesmo tratamento, pois possuem o mesmo direito. Já L15 afirmou categoricamente ser prejudicial o tratamento desigual e J12 sugeriu que uma intervenção deveria ser feita, ou seja, os pais precisariam ser orientados sobre a percepção que filhos têm quando existe o favoritismo e que isso causa impactos na vida emocional.

Outra característica percebida foi a tolerância que deve existir com as falhas das crianças, já que todos podem errar em determinado momento da vida. Ao analisar a criança desobediente, um dos entrevistados destacou que, “todo mundo tem suas qualidades e seus defeitos. Eu acho que você tem que trabalhar mais com essas qualidades” (L15). Dar uma segunda chance para quem errou e valorizar as qualidades são atitudes descentralizadas, na medida em que todos estão incluídos na categoria do humano e sujeitos a equívocos. Em destaque nessa fala está a percepção do erro como estratégia pedagógica. Dito de outro modo, o estudante não subestima nem supervaloriza o erro, mas procura destacar o que a criança tem de melhor. Como seria produtivo se professores considerassem que cada aluno tem diversas possibilidades para aprender e que cada um é essencialmente capaz de se desenvolver!

Observamos nos discursos a valorização do “ser” em vez do “ter”, assim como o princípio da obediência: “Eu penso que quando uma pessoa é obediente tem que ser não porque vai ganhar presente, mas por lealdade, justiça (...) brinquedo é irrelevante, o quanto você vai dar” (G15). Chamamos a atenção para dois aspectos observados: o respeito por alguém que merece ser ouvido, no caso, a mãe; e o segundo, que o bem material é inexpressivo diante da atenção que a criança deveria receber dos pais. Situações semelhantes acontecem na escola e, nesse sentido, é fundamental entender a percepção dos estudantes sobre as injustiças, por exemplo, quando o professor não lhes dá atenção devida às dúvidas e contribuições que pode fazer durante as aulas. Esse reconhecimento, só o professor tem condições de dar neste momento.

Para o segundo dilema nesta categoria, as alternativas foram dar outro sorvete ou dividi-lo com o irmão. Oito dos dez estudantes escolheram a primeira opção e dois, a segunda. “Eu acho que ele devia dar outro pra ele porque não foi proposital, foi acidental” (M15). “Eu acho que sim, porque ele nem chegou a tomar o sorvete” (I15). “Eu acho que deveria dar outro, é justo, ele nem tocou no sorvete” (D12). “Eu acho que eles deveriam dividir o sorvete” (I11). “A mãe não devia comprar outro, mas pegar o sorvete do mais velho e dividir entre os dois daí não ia dar briga e um não ia ficar com inveja do outro” (L15).

Os estudantes entrevistados, quando indagados a respeito do que o irmão mais velho pensaria sobre dividir o seu sorvete, as respostas foram: “Se ele gostasse do irmão e fosse um irmão consciente ele ia entender que foi um acidente, mas se ele é daqueles irmãos revoltados que não queria ter irmão ele ir arranjar algum motivo pra mãe não comprar outro sorvete” (M15). “Se ele é uma pessoa mais revoltada, mais invejosa ou se é mais comportado. Se for (comportado) ele vai ignorar, se não for vai protestar, depende da pessoa” (M16). “Tipo assim o pequeno derrubou o sorvete dele, mas o irmão mais velho ia ficar brabo, mas o dever do irmão mais velho é cuidar do menor” (I11)

Observamos o pensamento hipotético-dedutivo por meio das suposições “se ele gostasse” e “se ele é”. Ao usarem essa conjunção, inferiram as possíveis alternativas sem elas terem ocorrido de fato. Esse exercício nos campos do cognitivo e do afetivo requer o pensamento reversível para pressupor análises e ideias na perspectiva da outra pessoa. Isso também revela uma “[...] capacidade de julgamento e avaliação superiores [...]” além das aparências, como comentado por Sabatella (2005, p. 78), o que demonstra a presença da alteridade tão aguçada nas pessoas com AH/SD.

Igualdade e solidariedade foram aspectos percebidos quando citaram que um irmão consciente deve entender o “desajeitamento” e cuidar do mais novo. Essa questão perpassa pela importância dada ao vínculo afetivo entre os irmãos e, para além da interpretação, a identificação de um ponto central na proposta do dilema: “Depende, alguns poderiam achar que é injustiça, mas eu acho que o maior valor aí na história é as crianças terem tomado o sorvete e não ter ganhado o sorvete” (I15) [grifos nossos]. Nas entrelinhas dessa fala, há compreensão de que cada situação deve ser analisada de acordo com o seu contexto. Para pensar desta forma é necessário ter pensamento reversível e, neste caso, influenciado por duas operações afetivas: vontade e respeito. A vontade é uma escolha, um ato racional, inspirado pela afetividade e respeito (PIAGET, 2005).

Fatos correlacionados com estes refletem uma forma de injustiça sentida com intensidade na escola. Por isso, o estudante com AH/SD pode se retrair e não querer participar das aulas ou no extremo, agitar-se e impor-se, descumprir regras da sala e criar uma barreira de comunicação com o professor e com os colegas da turma. A questão que se coloca é que existe a necessidade dessas regras. No entanto, elas podem ser elaboradas com a participação dos estudantes para que compreendam, pela cooperação, o sentido de respeitá-las coletivamente e também canalizar as operações afetivas em favor de sua aprendizagem e do convívio social, como nas comunidades justas.

Para Piaget (1996), uma forma de se encaminhar pedagogicamente a discussão e elaboração de regras é fazer assembleias na escola para discutir qualquer tema que seja pertinente aos conteúdos e/ou bem comum dos estudantes. Assim, aqueles com capacidade extraordinária de compreensão devem ser valorizados e estimulados a cooperar com os outros colegas, principalmente os que têm maior domínio de informações e conteúdos, o que torna seu ritmo de aprendizagem superior em relação aos de seus colegas (FREITAS, PÉREZ, 2012).

Percebemos que os estudantes com AH/SD possuem capacidade de compreender as injustiças sofridas na escola e, na maioria das vezes, sabem o que deveria ser feito nessas situações, mas não têm oportunidade para falar e ser ouvidos. Freitas e Pérez (2012, p. 19) observaram que na idade adulta existe a “[...] presença de princípios éticos e morais próprios muito elevados e rígidos [...]”. No entanto, encontramos nos participantes da pesquisa uma tendência a sentir, perceber e compreender com mais intensidade o que acontece a sua volta, disto decorre a importância de relações afetivas. Todavia, é importante destacar que precisam de estímulos para a convivência em grupo, de orientações para aproveitar essa capacidade e, assim, poder contribuir com a transformação da sala de aula em um ambiente mais cooperativo e menos autoritário.

As injustiças no contexto atual

Neste dilema, lançamos uma questão livre e pedimos que relatassem situações que consideravam injustas. Ao serem indagados a esse respeito, foi possível perceber indignação no tom de voz quando se referiram à falta de investimento na saúde, na educação e nos altos investimentos para a realização da Copa de futebol no Brasil. No âmbito individual, foram citados alguns fatos como alunos que não estudam e passam de ano, ter responsabilidades e não cumpri-las e a falta ou o excesso de punição. Veio à tona também o sentimento de serem injustiçados na escola quando têm seus conhecimentos desprezados pelos professores. Salientamos neste aspecto, a necessidade de formação continuada para que possam conhecer e reconhecer quem são os alunos superdotados e quais são as suas características de comportamentos, cognição e socialização.

Percebemos que, de modo geral, não citaram apenas fatos corriqueiros na escola ou em sua família, mas fizeram um panorama geral em relação a sua percepção de como está a sociedade atualmente. Encontramos preocupações com questões sociais, políticas, legais, educacionais e pessoais, porém as mais frequentes foram aquelas em que se envolveu o coletivo de pessoas.

Nas questões sociais, citamos três exemplos: “As desigualdades financeiras e desigualdades de direito” (J12). “Eu acho injusto um jogador de futebol ganhar setecentos mil pra jogar e um médico ganhar dois mil, eu acho injusto porque o jogador... o jogador salva vidas? Não. O jogador joga bola, o médico salva vidas, ele trata a pessoa, ele fala quando a pessoa está doente. Eu acho que deveria ter salários mais justos, não só aqui, mas no mundo inteiro” (M15). “Dar atenção para uma pessoa que é financeiramente mais rica do que a outra” (D12). “A guerra, a fome em outros países, tipo, na África. Pessoas sendo presas, punidas por causa de outras pessoas. As pessoas trocando coisas por causa de drogas. Tem mãe que troca o próprio filho por drogas” (I11).

Em relação à política: “Eu acho injusto ... nossa ... tanta coisa... acho injusto a política, política é injusta porque eles estão investindo em quê? Milhões em estádios enquanto... precisa de saúde e educação e eles não estão investindo nas necessidades do Brasil. Eles estão investindo nas necessidades dos outros países pra que os outros países pensem que o Brasil é um país bom, só que o Brasil não tá...completo... mas eu não gosto disso eu acho muito injusto” (M15). “Os políticos pegando dinheiro do povo pra fazer coisas com ele” (I11). “O jeito como as pessoas estão na política, o jeito que elas controlam o dinheiro” (G15). “Prefeito ganhar mais que vereador, eles deviam ganhar a mesma coisa” (D12).

Exemplos de injustiça relacionados com a legislação: “A própria justiça no sentido de leis (...) porque algumas vezes essas leis acabam favorecendo certas pessoas e deixando algumas outras. Até mesmo casos de pessoas mais importantes acabam sendo favorecidas” (I15). “É muita coisa assim, ah porque ele é filho de prefeito... ficou impune, só porque ele tem dinheiro...” (L15).

Questões pertinentes ao cotidiano escolar foram recorrentes em várias falas e surpreenderam pela originalidade das observações: “Quando a professora vai dá prova, a pessoa não estudou ela ganha nota em cima do trabalho em dupla em cima dos outros” (M15). “Olha uma coisa que eu sofro um pouquinho às vezes é o conservadorismo quando chega um daqueles professores que dizem que a gente não tem cultura e a gente tem que lê porque sim, porque vai cai no vestibular, sendo que eu tenho outra cultura mais contemporânea que eu acho que não é nem superior nem inferior aos livros, há autores famosos do Brasil e outras coisas, mas é muito menosprezo sabe! É difícil explica isso pra uma pessoa que não muda o seu pensamento” (M16). “Na escola um professor ser mais a favor de um e deixar outro de lado” (D12). “Um (aluno) da sala faz alguma coisa errada e a sala inteira tem que pagar. Meu professor fazia muito disso e eu achava muita injustiça” (L15).

Assuntos correlacionados com o dia-a-dia: “Dar um castigo pra alguém que fez sem querer. Não dar pra quem fez querendo (...) o mais grande bate no mais pequeno. O mais inteligente chamar o outro de burro” (J12). “Injusto comprar alguma coisa pra um filho e pro outro não” (D12). “Se alguém fez uma coisa certa, mas aí o outro diz que foi uma coisa errada. Isso pra mim é injusto” (A11). “A falta de punição por ter feito alguma coisa muito errada que seria pouca punição e muita punição para uma pessoa que faz uma coisa” (V15).

Encontramos que as preocupações foram globais e envolveram, desde a escola até o destino do país. Isso demonstra uma sensibilidade emocional e moral observada por Sabatella (2012, p. 119) como um “(...) extremo senso do certo e do errado, de justiça e grande preocupação com os outros”. A sensibilidade aos problemas sociais e aos sentimentos dos outros também foi destacada por Freitas e Pérez (2012, p. 120) como “uma característica muito mais complexa e elaborada que extrapola o alcance nos primeiros anos de vida (...) valores como solidariedade, respeito, honestidade, responsabilidade, compromisso, coerência, justiça, compreensão, a busca da verdade (...)”. Essas características relacionadas aos valores e sensibilidade moral se manifestaram antes da fase adulta, como observado nesta pesquisa. Desse modo, percebemos que a visão das injustiças não foi egocêntrica, mas descentralizada, pois a análise dos dilemas alcançou contextos gerais e manifestou um processo de internalização e manifestação da tomada de consciência. Ainda em relação à indignação que percebemos no tom de voz dos estudantes, ao falarem sobre as injustiças, La Taille (2003, p. 123) afirma que isso é “[...] um sentimento moral despertado pelo fato de direitos terem sido desrespeitados, pelo fato de alguma injustiça ter sido cometida”. Esse elemento se refletiu nos julgamentos morais dos estudantes com AH/SD.

A valorização e respeito às regras

Os estudantes entrevistados prezaram muito pelas atitudes corretas. Para eles, o fato de infringir uma regra elaborada no coletivo vai contra os seus princípios morais, até porque eles são seus próprios guardiões. Assim, podem até renunciar a “ajudar” um amigo se isso implica em atitude desonesta, pois essas regras morais acerca da justiça e o bem coletivo são provenientes de uma convicção interior. Além disso, não aceitam facilmente o fato de outros não agirem da mesma forma. Alguns exemplos a esse respeito: “Eu não, na verdade eu nunca passo cola assim, na verdade eu tiro dúvida antes da prova. A minha amiga que senta atrás de mim, chega antes da prova ela pergunta pra mim e eu explico pra ela” (M15). Outros justificaram com o fato de ter tido tempo para estudar, inferindo os motivos pelos quais o amigo da história não teria feito isso: “Eu não ia dar a resposta porque eles tiveram dias pra estudar então não tem o que querer ajudar eles tinham que saber esta prova de cor e salteado, então acho que o amigo não ia poder ajudar” (G15). “A professora deu matéria ele tinha que se esforçar um pouco e estudar” (D12). “Acho que não deve passar a resposta porque é uma coisa injusta, se ele não estudou” (V15).

Apontaram ainda que, se tiveram as mesmas oportunidades para aprender o conteúdo em sala de aula, a prova deveria ser feita individualmente e sem ajuda de outros, ou seja, a regra é para todos. “Esse mesmo tempo foi dado para o outro aluno. Ele foi lá, brincou, mexeu no computador e não fez nada eu acho que é meio injustiça também por você ter se esforçado e ele não” (L15). “Porque a prova, como o professor tinha explicado é para provar o que você aprendeu e para você pode estudar. Se você ver que não aprendeu aquele conteúdo, então do que adianta você passar a resposta para uma pessoa sendo que ela não vai estar provando o que ela aprendeu, então eu acho que cada um deve fazer a sua prova sem precisar de resposta dos outros” (I15).

Outro afirmou com veemência a compreensão do que é o ato de colar: “Isso não é justo, isso é trapaça... não ajudaria” (A11). Além disso, foi feito um julgamento sob a perspectiva lógica da ação-reação, como analisado no primeiro dilema: “Eu não daria, mas digo assim, se ele desse, seria uma escolha dele porque, nessas circunstâncias não há algo errado e certo exatamente. Porque o que existe é a ação e a consequência” (M16).

Percebemos que os estudantes valorizaram a regra que havia sido estabelecida das quais todos sabiam e concordaram. No entanto, nessa análise não foi observado apenas o fato em si, mas as justificativas minuciosas apresentadas sob o ponto de vista de todos os personagens da história. São percepções embasadas no respeito e na obrigação moral que “concernem ao que é preciso fazer e não apenas ao que é desejável ou preferível” (FREITAS, 2003, p. 104). Não significa, portanto, que a escolha feita pelos estudantes com AH/SD foi egocêntrica, mas descentralizada e de acordo com a moral que “[...] reflete a lógica dos sentimentos [...]” (FREITAS, 2003, p. 104). A decisão do que é preciso fazer depende da construção e conservação dos valores que fazem parte da formação da identidade típica da fase da vida em que se encontram os estudantes participantes da pesquisa.

Contribuições educacionais

Na escola devemos valorizar as atitudes e os sentimentos que afloram e ajudar os estudantes com AH/SD a sentirem que são aceitos e fazem parte desse meio. Isso será possível a partir de ambientes cooperativos que discutam a importância do respeito mútuo na sala de aula e tornem equivalentes as relações (FREITAS, 2003).

O contexto educacional escolar oferece muitas possibilidades para desenvolver nos estudantes a importância da cooperação e, por consequência, a formação da moral autônoma, no entanto, isso não é feito com frequência. Aos professores, tão necessário quanto conhecer e dominar os conteúdos básicos de sua disciplina, é preciso conhecer seus alunos, o que pensam e como se sentem em sala de aula. É preciso compreender que precisamos uns dos outros para nos afirmar como cidadãos críticos, aqueles tão almejados pelos projetos políticos pedagógicos das instituições escolares. A discussão verbal de problemas reais é um caminho para conseguir alcançar esse objetivo, já que desentendimentos entre os alunos e com professores são comuns acontecerem na escola. Precisamos aproveitar estes acontecimentos para refletir sobre as ações e busca de alternativas.

Ao início de cada período letivo faz parte do planejamento a organização dos conteúdos e encaminhamentos que nortearão o trabalho pedagógico e também o relacionamento entre professor/aluno e aluno/aluno na sala de aula e na escola como um todo. Geralmente, temos um regimento escolar imposto, onde não existe a possibilidade de discussão. O que propomos é que essa discussão seja feita em sala de aula e que as regras sejam discutidas no coletivo, onde todos possam ser ouvidos. Práticas desta natureza tendem a favorecer todos os estudantes. No entanto, ressaltamos que estudantes com altas habilidades/superdotação têm condições de colaborar neste processo uma vez que demonstraram coerência no entendimento da noção de justiça e do princípio das regras.

Na proposta de comunidades justas de Kohlberg “a educação moral deveria enfrentar problemas morais com consequências para o sujeito e para os outros. Também deveria levar em conta o contexto social no qual os indivíduos tomam decisões e agem” (BIAGGIO, 1997, p.6). Nessa perspectiva, a escola é o espaço diário de aprendizagem e desenvolvimento. Ela se constitui num importante contexto social para aprender conteúdos e formas de se relacionar uns com os outros, como ser cooperativo, respeitar opiniões e, assim, construir uma sociedade moral. Na perspectiva do trabalho coletivo de uma gestão democrática, os estudantes podem participar ativamente na escola pela participação em grêmios estudantis, na organização de feiras científicas, pesquisas e grupos de trabalho. Quanto mais tiverem possibilidade de trabalhar ativamente, mais demonstrarão e desenvolverão sua autonomia moral e intelectual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, professores tem demonstrado preocupação na preparação acadêmica de seus alunos. Porém, queremos salientar que tão importante quanto à aprendizagem dos conteúdos, devemos considerar aspectos sociais, já que a produção deste conhecimento se constrói nas trocas sociais, nas relações de cooperação e respeito mútuo. Estes aspectos não são exigência do planejamento pedagógico, já que fazem parte do currículo oculto e não do formal.

Nesse sentido, objetivamos com este estudo fazer uma análise da noção de justiça de estudantes com altas habilidades/superdotação, onde foi possível observar a predominância de uma noção refinada de justiça. Nos dilemas apresentados, os participantes da pesquisa demonstraram compreensão das regras e convicções interiores de suas respostas. Das categorias que esse estudo se propôs a investigar a luz da teoria da epistemologia genética, constatamos a predominância dos elementos da moral autônoma nos estudantes com AH/SD, em consideração às evidências relativas ao nível de justiça mais refinado (PIAGET, 1977a).

Destacamos a articulação do pensamento pelo entendimento que demonstraram sobre o que pensaram a respeito dos personagens de cada dilema, os quais foram integrados na elaboração das análises solicitadas. Procuramos dar oportunidade para que estudantes expusessem as percepções sobre o mundo ao seu redor, o seu entendimento do que ocorre em sala de aula, na escola e na sociedade. Assim, faz-se necessário que os professores também oportunizem debates em sala de aula que os permita se conhecerem, pois “o que importa antes de tudo é colocar os alunos em condições de descobrir por si mesmos” (DOLLE, 1987, p. 197). Diante desses apontamentos, podemos concluir que professores têm um papel relevante nesse processo e, para isso, precisam conhecer seus alunos e valorizar seus potenciais.

A organização do trabalho pedagógico flexível, que busca favorecer o desenvolvimento da moral autônoma dos estudantes com AH/SD colabora para a construção de um ambiente escolar favorável ao diálogo, respeito mútuo e cooperação, o que garante, assim, a valorização do senso crítico. É importante que os professores fiquem atentos e evidenciem mais as habilidades que as fragilidades, deem atenção a todos, ouçam mais e rotulem menos, reconheçam os que são sensíveis às injustiças, que nada passa despercebido aos estudantes com AH/SD e que todo esse cenário pode contribuir para a socialização e aprendizagem.

A ausência da discussão coletiva e de análise crítica reforça a apatia intelectual e a posição de expectadores em vez de agentes de transformação. Quando os estudantes com AH/SD são chamados a discutir, a encontrar soluções e colocá-las em prática, sentem-se parte do processo e estimulados a pensar na construção do seu projeto de vida que levam em consideração valores ideais coletivos. Se a escola for um ambiente que estimula os seus estudantes na elaboração das regras, favorecerá o respeito mútuo entre eles, ajudará na formação de adultos responsáveis na utilização da sua destacada habilidade. Quem sabe, assim, podemos chegar próximo ao ideal da comunidade justa proposta por Kohlberg.

Para atender adequadamente a esses estudantes e aproveitar o potencial que possuem, é fundamental existir este ambiente cooperativo que permita o exercício da autonomia moral. A partir deste pressuposto, há uma necessidade urgente de visibilidade e aceitação por parte de toda comunidade escolar que estes estudantes existem e precisam ser identificados, reconhecidos e valorizados. Ao passarem despercebidos, estamos a perder de aproveitar todo seu potencial para a construção de uma escola e sociedade mais justa para todos.

REFERÊNCIAS

BATAGLIA, P. U. R.; MORAIS, A. DE; LEPRE, R. M. Teoria de Kohlberg sobre o desenvolvimento do raciocínio moral e os instrumentos de avaliação de juízo e competência moral em uso no Brasil. Estudos de Psicologia, 15(1), jan/abr, 2010, 25-32. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2010000100004. Acesso em 21/07/2016.

BIAGGIO, A. M. B. Kohlberg e a "Comunidade Justa": promovendo o senso ético e a cidadania na escola. Psicologia Reflexão Crítica. vol. 10 n.1 Porto Alegre, 1977 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721997000100005. Acesso em 17/07/2016.

BIAGGIO, A. M. B. Lawrence Kohlberg: ética e educação moral. São Paulo: Moderna, 2002.

DELVAL, J. Introdução à prática do método clínico: descobrindo o pensamento das crianças. Trad. De Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002.

DOLLE, J. M. Para Compreender Piaget: uma iniciação à Psicologia Genética Piagetiana. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

FERREIRA, D., C., K. Salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE) na rede regular pública de ensino paranaense: desafios, limites e possibilidades do paradigma inclusivo. Revista Educação Especial, v. 29, n. 55, p. 281-294, mai/ago, 2016.

FREITAS, L. A moral na obra de Jean Piaget: um projeto inacabado. São Paulo: Cortez, 2003.

FREITAS, S. N.; PÉREZ, S. G. P. B. Altas habilidades/superdotação: atendimento especializado. Marília: ABPEE, 2012.

LA TAILLE, Yves. Moral e Ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed: 2006.

MENIN, M. et. al. Os fins e os meios da Educação Moral nas escolas brasileiras: representações de educadores. Revista Portuguesa de Educação. Universidade do Minho/Portugal, 2014. Disponível em http://revistas.rcaap.pt/rpe/article/view/4301/3197. Acesso em 21/07/2016.

PALUDO, K. I. A alteridade na constituição da identidade da pessoa com altas habilidades/superdotação. Revista Brasileira de Altas Habilidades/Superdotação. V. 1, n.1, jan/jun. 2013, p. 87-94

PÉREZ, S. G. P. B. Sobre perguntas e conceitos. In: FREITAS, Soraia Napoleão (org.) Educação e Altas Habilidades/Superdotação: a ousadia de rever conceitos e práticas. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2006.

PIAGET, J. O Raciocínio na Criança. 2ª Ed. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

PIAGET, J. O julgamento moral na criança. Tradução: Elzon Lenardon. São Paulo: Mestre Jou. 1977a.

PIAGET, J. A Tomada de Consciência. São Paulo: Melhoramentos, 1977b.

PIAGET, J. Os procedimentos da Educação Moral. In: MACEDO, Lino de. Cinco Estudos de Educação Moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.

PLETSCH, M. D., FONTES, R. De S. O atendimento educacional de alunos com altas habilidades/superdotação. In: GLAT, R. Educação Inclusiva: cultura e cotidiano escolar. Rio de Janeiro; 7Letras, 2009.

REIMER, J. El enfoque de la comunidad justa: la democracia de um modo comunitario. In.: KOHLBERG, L.; POWER, F. C.; HIGGINS, A. La educacion moral segun Lawrence Kohlberg. Gedisa Editorial, S.A. Barcelona, Espanha, 1997.

SABATELLA, M. L. P. Talento e superdotação: problema ou solução? Curitiba: IBPEX, 2005.

SABATELLA, M. L. P. Expandir horizontes para compreender alunos superdotados. In: MOREIRA, Laura Ceretta; STOLTZ Tania (coords.) Altas Habilidades/Superdotação, Talento, Dotação e Educação. Curitiba: Juruá, 2012.

VALENTIM, B. F. B.; VESTENA, C. L. B.; NEUMANN, P. Educadores e Estudantes: um olhar para a afetividade nas Altas Habilidades/Superdotação. Revista de Educação Especial de Santa Maria. V. 27, n. 50, 2014.

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por