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Medir o que valorizamos ou valorizar o que medimos? Globalização, responsabilidade e a noção de propósito da educação
Measuring what we Value or Valuing what we Measure? Globalization, Accountability and the Question of Educational Purpose
¿Medir lo que valoramos o valorar lo que medimos? Globalización, responsabilidad y la noción de propósito de la educación
Revista Educação Especial, vol. 31, núm. 63, pp. 815-831, 2018
Universidade Federal de Santa Maria


Recepción: 07 Abril 2018

Aprobación: 08 Septiembre 2018

DOI: https://doi.org/10.5902/1984686X33482

Resumo: Uma das mais importantes dimensões do impacto da globalização nas políticas e práticas educacionais foi o aumento das medições comparativas em grande escala do desempenho dos sistemas educativos nacionais. Neste artigo, meu argumento é que em vez de esse desenvolvimento ter respaldado e promovido um debate acerca do bom ensino, essas medições substituíram as perguntas normativas sobre as orientações e os ganhos educacionais desejáveis por perguntas técnicas sobre a produção eficaz de um conjunto particular (e com frequência delimitado) de resultados educacionais. Por um lado, tenciono contribuir para a compreensão da razão por que se criou essa situação, e aqui destaco em particular uma mudança de um enfoque substancial e democrático para um enforque técnico e administrativo acerca de como se considera a prestação de contas em educação. Por outro lado, ofereço parâmetros para uma discussão mais explícita que se concentre nas perguntas acerca do que se busca obter na educação, não com o fim de especificar de uma vez por todas o que é ou deveria ser o bom ensino, mas para facilitar um debate mais sofisticado, variado e reflexivo acerca de quais poderiam ser os parâmetros de uma boa educação nas escolas, colégios e universidades e em outros ambientes e instituições educativas.

Palavras-chave: Globalização, Medição, Classificações, Prestação de contas.

Abstract: One of the significant dimensions of the impact of globalization on educational policy and practice has been the rise of large-scale comparative measurements of the performance of national educational systems. In this paper I argue that rather than that this development has supported and promoted discussions about good education, they have actually replaced normative questions about desirable educational orientations and achievements with technical questions about the effective production of a particular (and often narrow) set of educational outcomes. On the one hand I aim to contribute to the understanding of why this has been the case, and here I particularly highlight a shift in thinking about accountability in education from a substantive and democratic approach to a technical-managerial approach. On the other hand I provide parameters for a more explicit engagement with questions about what is educationally desirable, not in order to specify once and for all what good education is or should be, but in order to facilitate a more sophisticated, nuanced and deliberate discussion about what the parameters of good education in schools, colleges, universities and other educational settings and institutions might be.

Keywords: globalisation, measurement, league tables, accountability, school e effctiveness, democracy, good education.

Resumen: Una de las dimensiones más importantes del impacto de la globalización en las políticas y prácticas de la educación ha sido el aumento de las mediciones comparativas a gran escala del desempeño de los sistemas de educación nacionales. En este artículo, mi argumento es que más que este desarrollo haya respaldado y promovido un debate respecto de la buena enseñanza, estas mediciones han reemplazado las preguntas normativas sobre las orientaciones y logros educacionales deseables con preguntas técnicas sobre la producción e caz de un conjunto particular (y con frecuencia delimitado) de resultados educacionales. Por un lado, apunto a contribuir a la comprensión de por qué se ha dado esta situación, y aquí destaco en particular un cambio desde un enfoque sustancial y democrático a un enfoque técnico y administrativo respecto de cómo se considera la rendición de cuentas en la educación. Por otro lado, brindo parámetros para una discusión más explícita que se centre en las preguntas acerca de qué se busca obtener en la educación, no con el fin de especificar de una vez por todas lo que es o debería ser la buena enseñanza, sino más bien para facilitar un debate más sofisticado, variado y reflexivo acerca de cuáles podrían ser los parámetros de una buena educación en escuelas, colegios, universidades y en otros entornos e instituciones de educación.

Palabras clave: globalización, medición, clasificaciones, rendición de cuentas, eficacia escolar, democracia, buena enseñanza.

A construção da esfera educativa

Uma parte substancial da literatura sobre a globalização se concentra na dimensão econômica do assunto, ou seja, volta a sua atenção para a contínua redução das barreiras que se encontram entre as fronteiras nacionais, a fim de facilitar a livre circulação de bens, capital, serviços e trabalho. Não obstante, a globalização também ocorre em outras áreas e dimensões, como na política e suas decisões, na cultura e na tecnologia (veja-se MICHIE, 2011). Nessas áreas, a globalização tende a plasmar-se na convergência de processos, práticas e ideias e, portanto, em uma maior uniformidade nas maneiras de atuar, ser e pensar. Embora os sistemas educativos tendem a estar fortemente arraigados na história e identidade nacional, não somente como resultado, mas também como um fator de construção nacional (veja-se GREEN, 1990), nas últimas décadas se presenciou um aumento na globalização das políticas e práticas educativas (veja-se, por exemplo, RIZVI & LINGARD, 2009). Ainda que a globalização da educação seja em parte o resultado de processos relativamente “espontâneos”, e embora se conte com uma clara evidência dos efeitos do “empréstimo de políticas” (veja-se PHILIPS, 2005; PHILIPS & OCHS, 2004), a globalização cada vez mais pronunciada dos discursos e práticas da educação também se deve a intervenções concretas e específicas levadas a cabo por organismos e organizações supranacionais, tais como o Banco Mundial, a UNESCO e a OCDE.

Algumas dessas interferências são claramente substanciais. Tanto o Banco Mundial quanto a UNESCO, por exemplo, têm ideias claras ainda que distintas acerca da promoção do desenvolvimento da educação no mundo. Contudo, outro fator importante da globalização da educação surge no campo de intervenções muito mais formais, que se traduzem em medições comparativas em grande escala dos “resultados” da educação. Entre esses sistemas de medição, podem-se nomear o Estudo Internacional de Tendências em Matemáticas e Ciências (Trends in International Mathematics and Science Study, TIMSS), o Estudo Internacional de Competência Leitora (Progress in International Reading Literacy Study, PIRLS) e, de maneira mais destacada, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Program for International Student Assessment, PISA) da OCDE (veja-se MARTENS et al., 2010). Conquanto se possa argumentar que tais sistemas por si mesmos medem somente o que já se encontra “aí”, seu impacto real vai muito mais longe. Isto se deve ao fato de que muitos países tendem a ajustar as suas políticas e práticas em resposta, e de maneira antecipada, aos resultados de tais medições a fim de obter uma melhor posição nas classificações competitivas que criam esses sistemas. Portanto, não é somente o impacto de tais medições por si mesmas, mas a resposta a tais sistemas de medição comparativa o que impulsiona as mudanças nas políticas educativas em nível nacional com o objetivo de ajustar-se aos “padrões” implícitos de tais sistemas (veja-se também WALDOW, 2009). É precisamente dessa maneira que esses sistemas contribuem para a contínua normalização, harmonização e unificação da “esfera educativa” (TRÖHLER, 2010).

Com esta contribuição, eu gostaria de propor uma série de interrogações fundamentais acerca desses desenvolvimentos, particularmente em relação ao efeito que produzem nas ideias de qualidade e nos padrões da educação ou, como prefiro chamar (veja-se BIESTA, 2010), em relação ao impacto que têm nas visões do que é uma boa educação. A tese que desenvolverei é que as medições comparativas em grande escala dos resultados, em vez de apoiarem e promoverem o debate acerca da boa educação, na verdade substituíram as perguntas normativas sobre as metas e ganhos educativos desejados por perguntas técnicas acerca da produção eficaz com caráter particular (que com frequência costuma ser reduzida) de um conjunto de resultados educativos. Por um lado, meu objetivo é contribuir para a compreensão da razão pela qual isto ocorreu. Nesse ponto, destacarei a mudança da ideia que consiste em considerar a responsabilidade na educação com um enfoque substancial e democrática para a ideia que a considera com um enfoque técnico orientado para a gestão. Por outro lado, pretendo proporcionar parâmetros para um compromisso mais explícito que se concentre em perguntas acerca do que é educativamente desejável, mas não com o fim de especificar de uma vez por todas o que é ou deveria ser a boa educação, e sim facilitar um debate mais sofisticado, detalhado e reflexivo acerca de quais poderiam ser os parâmetros de uma boa educação nas escolas, faculdades, universidades e em outros ambientes e instituições educativas. Se não queremos entregar a responsabilidade de nossos processos e práticas educativas a sistemas abstratos de medição e aspiramos a manter um controle democrático sobre nossas iniciativas educativas e sobre as maneiras pelas quais avaliamos a sua qualidade, é sumamente importante, e isto é o que eu argumentarei, que se realize um debate acerca daquilo que nossos esforços educativos deveriam tratar de conseguir.

O auge da cultura da medição

Durante as últimas décadas se evidenciou um aumento substancial do interesse pelos estudos que medem a educação ou, nas palavras daqueles que participaram do debate, na medição dos “resultados” da educação. Essa tendência não se limitou ao mundo ocidental, mas foi-se transformando rapidamente em um fenômeno mundial, e não se pode culpar plenamente o papel desempenhado por organizações internacionais como a OCDE, a UNESCO e o Banco Mundial. As manifestações mais proeminentes do aumento de uma cultura mundial orientada para a medição se evidenciam nos estudos comparativos internacionais já mencionados, que dão como resultado ranqueamentos que são assumidos como indicadores de quem é melhor e quem é o melhor. Tais qualificações têm o propósito de proporcionar informação sobre o desempenho dos sistemas de educação nacionais em comparação com os de outros países. Portanto, costumam ter uma natureza competitiva, já que, afinal de contas, somente pode haver um “número um”.

Os governos de cada país utilizam os resultados e achados desses estudos como uma referência que inspira políticas educativas, com frequência sob o lema de “melhorar os padrões”, “criar excelência” ou “manter a iniciativa na economia mundial”. As classificações também se produzem em nível nacional com o objetivo de proporcionar informação sobre o desempenho relativo de cada escola ou distrito escolar. Essas classificações se fundamentam em um raciocínio completo que combina elementos de responsabilidade, seletividade e controle com um argumento de justiça social que exprime que todas as pessoas deveriam ter acesso a uma educação da mesma qualidade (veja-se WEBB, 2011). Os dados que são utilizados para criar essas classificações também se utilizam para identificar as denominadas “escolas fracassadas” e, em alguns casos, os “docentes fracassados” dentro das escolas. Nesse aspecto, essas medições claramente contribuem para criar um clima propício a “assinalar a vergonha” e culpar sujeitos pelo que frequentemente é o resultado de interações complexas de uma ampla gama de aspectos estruturais que se encontram além do controle de cada sujeito que atua como docente ou das próprias escolas (veja-se, por exemplo, GRANGER, 2008; HESS, 2006; KUMASHIRO, 2012; NICOLAIDOU & AINSCOW, 2005; TOMLINSON, 1997).

O auge da cultura da medição em educação teve um impacto profundo nas práticas educativas, cujas consequências se evidenciaram tanto nos níveis mais altos da política educativa quanto na atividade diária das escolas e dos docentes. Até certo ponto, esse impacto foi benéfico, uma vez que deu azo a debates que se sustentam em informação baseada em fatos, e não em suposições ou opiniões sobre o que poderia ser um determinado assunto. Não obstante, o problema é que a abundância de informação sobre os resultados educativos causou a impressão de que as decisões sobre a direção que tomam as políticas educativas, assim como o modo por que essas políticas dão forma e estabelecem as práticas educativas podem somente basear-se em informação que se depreende de fatos concretos. Contudo, há ao menos dois problemas derivados dessa abordagem.

Em primeiro lugar, embora seja sempre recomendável utilizar informação objetiva quando se tomam decisões relativas ao que se deveria fazer, o que se deve fazer nunca pode derivar de maneira lógica do que é um estudo de caso. Este problema, que na literatura filosófica ficou conhecido como o “problema do ser e do dever ser”, implica que quando participamos da tomada de decisões sobre a direção para a qual deve encaminhar-se a educação sempre temos de fazer necessariamente juízos de valor – juízos sobre o que é educativamente desejável. Isto significa que, se queremos dizer algo acerca da direção da educação, sempre temos de complementar a informação que se depreende dos fatos com diferentes perspectivas sobre o que se considera como desejável. Em outras palavras, necessita-se avaliar os dados e as evidências e, para tanto, como se sabe há muito tempo na área da avaliação da educação, necessita-se entrar na questão dos valores (veja-se, por exemplo, HENRY, 2002; HOUSE & HOWE, 1999; SCHWANDT & DAHLER-LARSEN, 2006).

O segundo problema, que se relaciona com o primeiro e em certo sentido é a sua consequência metodológica, é o problema da validade de nossas medições. Em lugar da pergunta sobre a validade técnica – ou seja, a pergunta sobre se estamos medindo o que buscamos medir – o problema reside no que eu sugiro chamar de a validade normativa de nossas medições. Isto tem a ver com a pergunta sobre se estamos medindo o que valorizamos ou se estamos medindo aquilo que é facilmente mensurável, chegando à situação em que valorizamos o que podemos medir ou aquilo que se mediu. O auge de uma cultura do rendimento em educação, uma cultura na qual os meios se transformam em fins em si mesmos e os objetivos e indicadores de qualidade se confundem com a qualidade mesma, foi um dos principais impulsionadores de um enfoque no qual a validade normativa (em que medimos o que valorizamos) está sendo substituída pela validade técnica (em que se supõe que temos que valorizar o que é medível) (veja-se, por exemplo, BALL, 2003; USHER, 2006).

A fim de entender o auge da cultura de medição em educação, sua transformação e seu impacto, devemos dirigir nossa atenção para o contexto em que ocorreram essas mudanças. Isto me leva à questão da responsabilidade.

A cultura da medição no contexto da responsabilidade

Em uma análise recente do fenômeno PISA, Stefan Hopmann faz uma pergunta simples, mas importante: “O que tem de diferente o PISA?” (HOPMANN, 2008, p. 417). A razão dessa pergunta é que o PISA não é a primeira tentativa de compilar dados comparativos internacionais sobre o funcionamento da educação. A Associação Internacional de Avaliação do Rendimento Escolar (International Association for the Evaluation of Educational Achievement, IEA), organização encarregada de estudos como TIMMS, PIRLS e os recentes ICCS, TIMMS Advanced e TEDS-M, por acrescentar alguns acrônimos à lista (veja-se www.iea.nl), foi estabelecida, ao fim e ao cabo, em fins da década de 1950. Então, o que explica o “êxito”, como o chama Hopmann – ou o “impacto”, como eu prefiro denominá-lo – do PISA? Hopmann argumenta que uma parte da resposta não deve ser buscada dentro do PISA, mas no contexto cambiante, no “entorno social” cambiante em que o PISA se realiza (HOPMANN, 2008, p. 418). O fator que Hopmann aduz para explicar o impacto de estudos como o PISA é a responsabilidade e, mais concretamente, o auge da influência de um enfoque em particular da responsabilidade como uma maneira pela qual as sociedades – especialmente no mundo ocidental – se ocupam de problemas de bem-estar, tais como a seguridade social, a saúde e a educação (HOPMANN, 2008, p. 418).

O fato de que necessitamos de dados para termos condições de responsabilidade não é, em si mesmo, uma afirmação problemática. Mas a pergunta aqui não é somente sobre os tipos de dados de que possamos necessitar; a pergunta é também sobre o tipo de responsabilidade que queremos obter. Com respeito à pergunta anterior, Charlton (1999, 2002) fez uma distinção prática entre os dois conceitos muito distintos de responsabilidade: uma concepção técnica orientada para a gestão e uma concepção mais ampla e geral, que, como se argumentará mais adiante, se pode caracterizar como uma concepção profissional ou democrática da responsabilidade. Em geral, a responsabilidade acarreta conotações do tipo “alguém deve encarregar-se e ser responsável por”. O significado técnico orientado para a gestão refere-se de maneira mais específica ao dever de prestar contas auditáveis. A princípio, a responsabilidade era utilizada somente em referência à documentação financeira. O uso atual da responsabilidade orientada para a gestão é uma extensão direta do termo no âmbito financeiro, em que se considera que uma organização responsável é aquela que tem o dever de prestar contas auditáveis de todas as suas atividades.

O vínculo entre a interpretação da responsabilidade técnica orientada para a gestão e a responsabilidade profissional democrática é fraco. Charlton declara que “somente na medida em que for legítimo supor que a entrega de documentação auditável é sinônimo de uma conduta responsável” se poderá evidenciar algum ponto em comum entre os dois significados de responsabilidade (CHARLTON, 2002, p. 18). Contudo, a retórica da responsabilidade opera precisamente na base de uma “mudança rápida” (Charlton) entre os dois significados, o que dificulta ver um argumento contra a responsabilidade como algo mais do que uma alegação por uma ação irresponsável.

Charlton não somente faz uma distinção útil entre as duas interpretações de responsabilidade, mas também mostra que o uso orientado para a gestão da ideia de responsabilidade tem a sua própria história em um contexto estritamente financeiro, em que o propósito das auditorias é “detectar e evitar a incompetência e a falta de honestidade quando se lida com dinheiro” (CHARLTON, 2002, p. 24). Segundo esse autor, a lógica das auditorias financeiras foi transposta para o contexto da gestão, sem considerar plenamente a pergunta sobre até que ponto esta lógica é apropriada para os propósitos da gestão. Em vez de adaptar os princípios dos processos de auditoria aos requerimentos e especificidades de um contexto diferente, Charlton demonstra que a cultura da responsabilidade levou a uma situação em que as práticas tiveram de se adaptar aos princípios do processo de auditoria (veja-se também POWER, 1994, 1997). Isto se baseia na seguinte corrente de pensamento: “As organizações transparentes se submetem a processos de auditoria, e as organizações que se submetem a processos de auditoria são questionáveis – e vice-versa. Portanto, as organizações devem submeter-se a auditorias” (CHARLTON, 2002, p. 22).

Embora Charlton pareça sugerir que os dois significados de responsabilidade atualmente coexistam, poder-se-ia argumentar que a tradição que a percebe como um sistema de responsabilidade (mútua), mais do que como um sistema de governança e controle, costumava ser a tradição dominante antes da chegada do enfoque técnico orientado para a gestão. Isto é evidente em educação, em que, como Poulson demonstrou (1996, 1998), os debates sobre responsabilidade nos fins da década de 1970 e inícios de 1980 estavam amplamente voltados para uma interpretação profissional da responsabilidade, no tempo em que surgiam tentativas de articular um enfoque democrático da responsabilidade em educação, mediante o argumento de que tornar as escolas responsáveis perante os pais, alunos e a cidadania, em geral, daria apoio à democratização da educação (DAVIS & WHITE, 2001; EPSTEIN, 1993). Mas isto, ao que parece, já não é o caso.

A reconfiguração da relação entre o Estado e os cidadãos

A mudança das noções profissionais e democráticas da responsabilidade para a atual hegemonia do enfoque técnico orientado para a gestão não deveria ser entendida em relação aos antecedentes relativos às mudanças gerais na sociedade. Muitos autores têm argumentado que o auge do enfoque técnico orientado para a gestão da responsabilidade tem relação com as transformações ideológicas (especialmente a chegada do neoliberalismo e neoconservadorismo) e com as mudanças econômicas (principalmente a crise do petróleo e a desaceleração econômica em meados da década de 1970, e o subsequente auge do capitalismo mundial) que, juntas, levaram ao declínio – senão à quebra – do estado de bem-estar e ao auge – senão à hegemonia – da lógica neoliberal capitalista de mercado mundial (veja-se também HOPMANN, 2008, p. 423). Uma das mudanças mais significativas que se verificaram como resultado desses desenvolvimentos foi a reconfiguração da relação entre o Estado e seus cidadãos. Essa relação se transformou menos em uma relação política – ou seja, uma relação entre o governo e seus cidadãos, que se preocupam juntos pelo bem comum – e cada vez mais se trata de uma relação econômica em que, na primeira etapa, o Estado é o provedor e o cidadão que paga impostos é o consumidor dos serviços públicos, e em que, na segunda etapa, o Estado deixa o fornecimento de tais serviços nas mãos de provedores privados e se transforma em um organismo regulador do “mercado de serviços públicos” (que coloco entre aspas para destacar que, tão logo os serviços públicos entram no mercado, perdem a sua finalidade pública – ver também abaixo).

A reconfiguração da relação entre o Estado e seus cidadãos não deveria ser entendida simplesmente como uma maneira diferente de relacionar-se. A nova relação mudou de maneira fundamental o papel e a identidade das duas partes e as condições em que se relacionam. Não somente se pode argumentar que a relação entre o Estado e os seus cidadãos se despolitizou. Poder-se ia, inclusive, argumentar que a própria esfera da política se erodiu (BIESTA, 2005; MARQUAND, 2004). E o que é mais significativo, a linguagem que se utiliza é uma linguagem econômica que coloca o governo como um provedor e o cidadão como consumidor (veja-se BIESTA, 2004, 2006). A escolha se transformou em uma palavra-chave neste debate. Não obstante, a “escolha” tem a ver com a conduta dos consumidores em um mercado em que seu objetivo é satisfazer as suas necessidades, e não deveria se confundir com democracia, que consiste em deliberação e contestação pública a respeito do bem comum e da (re)distribuição justa e equitativa dos recursos públicos.

De acordo com a lógica do mercado, a relação entre o Estado e os seus cidadãos já não é uma relação fundamental, mas se transformou em uma relação estritamente formal. Essa configuração está estreitamente relacionada com o auge da garantia da qualidade. Efetivamente, as atuais práticas da garantia da qualidade se concentram “nos sistemas e processos mais do que nos resultados” (CHARLTON, 2002, p. 20) – o que não sugere que os resultados não sejam considerados relevantes, mas que são considerados fora do “alcance” da pergunta sobre a qualidade, ou seja, a pergunta sobre quais são os “resultados” desejáveis e quem deveria ter voz e voto para defini-los. Por exemplo, acontece que a ênfase constante do governo britânico de “melhorar os padrões” na educação e outros serviços públicos é vazia, pois não tem respaldo em um debate (democrático) adequado sobre quais são os padrões ou “resultados” mais desejáveis. O mesmo problema subjaz à maioria das primeiras pesquisas sobre a “indústria da melhora e eficácia escolar” (GEWIRTZ, 2002, p. 15), dado que estes estudos privilegiavam principalmente a eficácia e eficiência dos processos, sem colocar a questão política e normativa mais difícil sobre os resultados que se esperavam desses processos (veja-se TOWNSEND, 2007 para uma recensão geral dos desenvolvimentos recentes nesta área).

Das relações políticas às econômicas

Tudo o que isto mostra é que o auge do enfoque da responsabilidade orientado para a gestão não é um fenômeno isolado; ao contrário, é um fenômeno que faz parte de uma transformação maior da sociedade em que as relações políticas e a esfera do político em si mesma parecem ter sido substituídas pelas relações econômicas. A base que sustenta o modo atual de responsabilidade parece ser de tipo econômico, dado que o direito à responsabilidade que o governo reivindica parece fundar-se nas quantias de dinheiro que investe em serviços públicos como a educação. Conquanto à primeira vista pareça haver oportunidades para uma “versão” mais democrática da responsabilidade, como na relação entre pais e alunos como “consumidores” da educação e as escolas como “provedores”, um dos problemas é que não existe uma relação direta de responsabilidade entre essas partes, mas somente uma responsabilidade indireta. A única função que os pais e os alunos podem desempenhar é a de consumidores da oferta da educação, não tendo a oportunidade de participar de nenhum diálogo público democrático sobre educação. Onara O’Neill descreve esse dilema da seguinte forma:

Em teoria, a nova cultura da responsabilidade e da auditoria faz que os profissionais e as instituições demonstrem a sua responsabilidade perante o público. Supostamente, isto se consegue publicando-se metas e níveis de ganhos nos ranqueamentos, e estabelecendo-se procedimentos de reclames por meio dos quais o público pode pedir a retificação em face de algum fracasso profissional ou institucional. Não obstante, sob este objetivo aparente de responsabilidade perante o público, encontra-se a exigência real de demonstrar responsabilidade perante os reguladores, organismos de governo, investidores e normas legais. As novas formas de responsabilidade impõem mecanismos de controle central – que mui frequentemente costumam concretizar-se como uma gama de diversas formas incoerentes e contraditórias de controle central (O’NEILL, 2002, p. 4).

O problema é que enquanto muitos gostariam que a cultura de responsabilidade fizesse o primeiro (ou seja, demonstrasse responsabilidade perante o público), o que realmente ocorre é o segundo (ou seja, demonstram responsabilidade perante os reguladores), tirando, portanto, do processo de responsabilidade as partes envolvidas mais importantes. Nesse sentido, o atual enfoque técnico da responsabilidade orientado para a gestão cria relações econômicas entre as pessoas e faz que as relações democráticas se tornem difíceis, senão impossíveis.

O impacto de tudo isso nas práticas do dia-a-dia nas escolas e outras instituições é que estas últimas parecem adaptar-se aos requerimentos da responsabilidade e das auditorias, e não ao contrário. Citando O’Neill mais uma vez:

Em teoria, a nova cultura de responsabilidade e auditoria torna os profissionais e as instituições mais responsáveis pelo bom funcionamento. Isto se manifesta na retórica da melhora e elevação dos padrões, do aumento e da eficiência das boas práticas, e do respeito a pais, alunos e empregados. Mas por trás dessa retórica admirável, o foco de atenção real se encontra nos indicadores do funcionamento que escolhem para facilitar as medições e o controle, mais do que pela razão de medirem com precisão qual é a qualidade de tal funcionamento (O’NEILL, 2002, p. 4-5).

A autora destaca que os incentivos da cultura da responsabilidade são assaz factíveis. Não obstante, esta cultura, em vez de atuar como um incentivo para ações profissionais e responsáveis, parece suscitar um comportamento que se ajusta ao sistema de responsabilidade – um comportamento que convém a inspetores e àqueles que são responsáveis pela garantia da qualidade. Ironicamente, isto pode levar com facilidade a uma situação que é prejudicial aos “consumidores” dos serviços públicos. Se, por exemplo, as escolas são premiadas por resultados altos nos exames, elas sempre buscarão atrair somente os pais “motivados” e os alunos “capazes” e tentarão excluir os “alunos difíceis”. No fim, isto leva a uma situação em que a pergunta já não é o que podem fazer as escolas pelos seus alunos, mas o que podem fazer os alunos pelas suas escolas (APPLE, 2000, 235; HOPMANN, 2008, p. 443-444).

Medir o que valorizamos?

A análise anterior sobre a chegada de um “regime” de responsabilidade no limiar do declínio do estado de bem-estar e o auge do neoliberalismo orientado para o mercado ajuda a explicar o que mudou no contexto em que ocorrem as atuais medições em grande escala da educação. De maneira mais específica, ajuda a explicar o notável impacto da cultura da medição, já que a medição, e em particular a medição comparativa, é o “combustível” do enfoque técnico da responsabilidade orientado para a gestão. Assim, este enfoque somente é possível se conta com informação constante sobre o funcionamento do sistema. Embora a abundância de dados sobre o funcionamento relativo dos serviços públicos possa dar a impressão de transparência e abertura, o problema é que muitas das partes reais interessadas já não fazem parte do processo de responsabilidade. Nesse sentido, o enfoque técnico da responsabilidade orientado para a gestão em vez de conceder mais poder, em realidade o está reduzindo. Ainda assim, em vez de as partes interessadas poderem opinar democraticamente sobre o que deveria estar em primeiro lugar dentro de uma gama de opções, a retórica da opção costuma limitar-se à escolha dentro de uma gama fixa pré-estabelecida. Não se pretende sugerir que no passado a democracia funcionava e no presente desapareceu por completo. Antes, busca-se realçar que a lógica da opção é fundamentalmente oposta à lógica da democracia.

A análise anterior não somente ajuda a entender o impacto, a influência e o êxito da cultura de medição sob as condições de responsabilidade técnica orientada para a gestão. Ao mesmo tempo, sugere que esta não é a única maneira de abordar as questões sobre a educação de qualidade e a responsabilidade na educação. Em outras palavras, sugere que realmente existe a opção de escolher, pois a responsabilidade não deve ser entendida necessariamente no sentido técnico orientado para a gestão, mas que também existe uma alternativa democrática. Esta é a alternativa na qual as partes interessadas não ficam fora do processo de responsabilidade, mas desempenham nele uma função central, especialmente em relação à capacidade de tomar decisões sobre o que deveria ser oferecido em vez de somente ter a permissão de escolher entre ofertas pré-estabelecidas. Trata-se de uma alternativa na qual a ênfase se encontra em medir o que se valoriza e não em indicadores de funcionamento “escolhidos para facilitar o trabalho de medição e controle (O’NEILL, 2002, p. 5), em que se “valoriza o que se pode medir”, como indica O’Neill. Portanto, esse enfoque da responsabilidade requer um tipo de medição diferente, uma medição que não somente gere dados comparativos a fim de indicar quem é melhor e quem é o melhor – em que a ênfase está na competição mais do que na cooperação – mas uma medição na qual exista uma preocupação genuína em melhorar a qualidade: não a qualidade dos processos, mas a qualidade que se supõe que esses processos deveriam realizar. Isto não quer dizer simplesmente que devemos colocar nossa atenção nos “resultados”, pois os regimes de medição e a responsabilidade atual, até certo ponto, destacam muito os “resultados”. O que se busca, ao contrário, é colocarem-se questões normativas e políticas com profundidade sobre que “resultados” são considerados desejáveis, não somente em termos de preferência individual (a lógica da opção), mas também em termos do que se considera de maneira coletiva desejável (a lógica da democracia, que é uma lógica que precisamente pode limitar ou transformar as preferências de alguns em benefício do bem comum). Quando as medições são realizadas em função de um enfoque que concede mais poder à responsabilidade, faz-se necessário que inclua a questão do propósito – o que me leva ao segundo tema deste artigo, isto é, a pergunta do propósito educativo e da “bondade” da educação em geral.

A pergunta sobre o propósito: Para que serve a educação?

No início deste ensaio fiz uma distinção entre validade técnica e validade normativa. Enquanto a validade técnica tem a ver com a pergunta sobre se realmente estamos medindo o que deveríamos medir, a validade normativa, segundo a minha definição, tem a ver com a pergunta sobre se em realidade estamos medindo (ou ao menos tentando medir) o que valorizamos. Na área da educação, isto nos leva imediatamente à pergunta sobre o propósito, ou seja, para que serve a educação, já que é somente em função de um conjunto de ideias sobre o que aspiramos a alcançar com nossas atividades e esforços educativos que a medição dos “resultados” educativos pode de alguma maneira ser significativa e como tal ter validade normativa. Na cultura atual da medição, esta pergunta não parece estar muito presente. Talvez seja mais preciso dizer que tais estudos parecem sustentar-se sobre uma perspectiva inquestionável do “senso comum” sobre o propósito da educação, centrando-se em um conjunto de resultados geralmente limitado e específico (para uma discussão sobre estes problemas relativos ao PISA, veja-se HOPMANN, 2008, p. 438-440). Isto pode facilmente resultar em uma situação em que o que se mede e é mensurável se transforma no que se valoriza, especialmente se é “conveniente” de um ponto de vista político, ou por assim dizer, para recorrer a uma definição limitada – e inclusive poderíamos chamá-la de populista – do que é uma boa educação. (É preciso lembrar que o PISA se limita a um conjunto de matérias curriculares – ciências, compreensão leitora e matemáticas – e, portanto, representa uma concepção assaz limitada e específica do que supostamente deveria “importar” na educação). Isto, por sua vez, pode conduzir a uma situação em que as medições e as políticas alimentam umas às outras e se reforçam a si mesmas, sem perguntar-se se a direção para a qual se encaminha a política e as medições que alimentam as políticas são desejáveis em si mesmas (para um exemplo dessa relação problemática, veja-se BIESTA, 2009b).

Mas não se trata somente de senso comum ou de noções populistas sobre quais são os propósitos da educação. Por alguma razão – que pessoalmente julgo difícil de apontar com precisão – existe uma falta de atenção geral e de claridade com respeito à pergunta sobre o propósito da educação, ou pelo menos é assim no mundo anglófono. Isto não quer dizer que faltem afirmações sobre o que é uma boa educação, mas essas afirmações em geral não têm fundamento. Darei dois exemplos. Um pode ser encontrado na afirmação de que o propósito da educação é que os alunos aprendam; algumas vezes se formula em termos mais específicos, tais como que os alunos participem de um processo de aprendizagem ativo ou de um processo colaborativo. Embora a “aprendizagem” como uma meta da educação soe bem, em realidade não significa muito se não especificamos o que os alunos devem aprender e, talvez ainda mais importante, por que deveriam aprendê-lo. Dizer que o propósito da educação é que os estudantes aprendam parece responder bem a pergunta sobre o propósito a que serve a educação, mas em realidade é uma resposta que diz muito pouco (veja-se também BIESTA, 2013).

Surge o problema similar com o conceito que teve um grande impacto no desenvolvimento da cultura da medição na educação: a noção de eficácia. Poder-se-ia dizer que a ambição de melhorar a eficácia da educação, seja no nível do sistema escolar, seja no nível de cada escola, disciplina ou docente e seu exercício profissional, descreve um propósito claro da educação. Inclusive, realiza-se por meio do uso de uma linguagem de valor, pois não se pode refutar que a “eficácia” é um termo avaliativo. Não obstante, aqui o problema é que a eficácia é um valor instrumental, um valor que expressa algo sobre a capacidade de certos processos de gerar certos resultados. Mas a ideia da eficácia é neutra com respeito à conveniência dos resultados (como se comprova pelo fato de que pode existir uma tortura eficaz, por exemplo). Essa é a razão pela qual a educação eficaz não é suficiente e, até certo ponto, pode ser enganosa. Sempre existe a pergunta “eficaz para quê?” – e dado que o que é eficaz para um aluno ou grupo de alunos pode não sê-lo para outros, também se deve colocar a pergunta “eficaz para quem?” (veja-se BOGOTCH, MIRÓN & BIESTA, 2007).

Funções da educação e áreas do propósito da educação

Tanto a “aprendizagem” como a “eficácia” são, desse modo, conceitos inadequados para responder à pergunta sobre o propósito da educação. Por exemplo, sobre os resultados educativos que são considerados desejáveis. Ainda que qualquer resposta a esta questão, claramente, seja polêmica e – no sentido positivo da palavra – ideológica, é benéfico nas discussões sobre o propósito da educação (e em particular da educação escolar) destacar que as diferentes dimensões das funções da educação não se relacionam necessariamente de maneira sinérgica entre elas, e que as diferentes noções escolares, as filosofias educacionais e inclusive pedagógicas articulam uma postura distinta com respeito a essas dimensões. O ponto mais importante aqui é reconhecer que a “educação” é um conceito composto. Isto se vê refletido no fato de que as práticas da educação são multifuncionais, e com frequência as funções ocorrem de maneira simultânea. Com relação a esse ponto, sugeri a distinção de três funções da educação, as que denomino de qualificação, socialização e subjetivação. (Por razões de espaço aqui apresentarei brevemente cada conceito a fim de indicar que implicações há em lidar com a ideia do propósito em educação. Para uma discussão mais detalhada dessas ideias, veja-se BIESTA, 2009b, 2010, 2014).

A qualificação tem a ver com a maneira pela qual a educação contribui para a aquisição de conhecimento, destrezas e habilidade que nos qualificam para fazer algo – um ofício que pode ir do mais específico (como capacitar-se para um trabalho em particular) ao mais geral (como no caso da educação liberal). A socialização tem a ver com a maneira pela qual, por meio dos processos e práticas educativas, as pessoas se integram na ordem sociocultural, política e moral. As escolas participam da socialização de maneira deliberada, por exemplo, com o ensino de valores, da formação de caráter, da educação cívica, ou com relação à socialização profissional. A socialização também ocorre de maneira menos visível, como ficou claro na literatura sobre o currículo oculto e na função da educação na reprodução da desigualdade social. Enquanto alguns argumentaram que a educação somente deveria centrar-se na qualificação, e outros defendem que a educação tem uma função importante na socialização das crianças e jovens, a educação tem uma terceira função que se distingue da qualificação e da socialização. Essa função tem a ver com a maneira pela qual a educação contribui para a individualização ou, como prefiro chamar, a subjetivação de crianças e jovens. A função de subjetivação pode, talvez, ser entendida como o oposto da função de socialização. Não se trata da inserção dos “recém-chegados” à ordem existente, mas de formas de ser que insinuam a independência de tais ordens. Trata-se de maneiras de ser em que o indivíduo não se limita a ser um “espécimen” de uma ordem mais geral.

O sentido de realçar essas distinções não é somente com o fim de argumentar que a educação pode impactar de um modo potencial em dimensões completamente diferentes (o que seria vê-las como três funções diferentes da educação). As mesmas dimensões desempenham uma função importante na justificação dos processos e práticas da educação, e determinam posturas diferentes – ou diferentes dimensões de posturas – sobre o propósito a que serve a educação (o que significa que também podem ser vistas como três áreas diferentes do propósito da educação, ou seja, três domínios nos quais podemos e devemos tentar buscar a resposta de qual é a função da educação). Conquanto haja exemplos de justificações da educação (escolar) que se concentram somente em uma dessas dimensões – o caso mais destacado é a postura de que a educação escolar somente deveria atuar no domínio da qualificação –, a maioria das justificações da educação contêm uma mescla dessas três dimensões, e uma das perguntas práticas importantes para os educadores é como as três dimensões podem manter-se “em equilíbrio”, ou, por assim dizer, se se enfatiza uma dimensão em relação a outra, isto pode prejudicar o que se poderia ganhar em outra dimensão. Por essa razão, prefiro representar as três funções/propósitos da educação como um diagrama de Venn de três círculos parcialmente sobrepostos. Esses pontos de sobreposição destacam tanto o potencial da sinergia – ou seja, que o trabalho no domínio da qualificação pode apoiar uma mudança significativa no domínio, por exemplo, da subjetivação – como do conflito, ou seja, em que o trabalho no domínio da socialização, por exemplo, contradiz o que se busca conseguir no domínio da subjetivação. A ideia de “equilíbrio”, para dizer de outro modo, não deve ser concebida em termos quantitativos, mas qualitativos. Observá-lo dessa maneira também ajuda a ver a distorção de um equilíbrio significativo que ocorre quando a medição somente recebe enfoque em uma dimensão (na maioria dos casos, trata-se da dimensão da qualificação).

Minha razão para destacar o fato de que a educação pode realizar diversas funções e servir a propósitos diferentes não pretende criar um debate sobre o que é a educação ou para que deveria servir – um tema que precisamente deveria ser objeto de preocupação, deliberação e contestação constante nas sociedades democráticas. Ao contrário, o que se busca é enfatizar que o compromisso com a questão do propósito na medição educativa requer um enfoque multidimensional ou, ao menos, um enfoque que leve em conta a gama de ideias diversas sobre o que é educativamente desejável. Somente quando partirmos dessa concepção, poderemos nos mover para uma situação em que mediremos o que valorizamos, em vez de terminar em uma posição na qual valorizamos o que é ou pode ser mensurável.

Discussão e conclusões

Neste ensaio partir da observação de que o atual clima educativo em muitos países do mundo se caracteriza por uma abundância de medições, em especial medições comparativas internacionais em grande escala. Referi-me a isso como uma “cultura da medição” e destaquei alguns aspectos do impacto problemático que tem na prática da educação, especialmente com relação aos processos da globalização da educação. Um problema tem a ver com a maneira pela qual a cultura da medição contribui para a vigilância e para o controle constante dos processos e práticas educativas. Outro problema tem a ver com o fato de que contribui para uma cultura da competição e talvez inclusive para uma cultura do medo, em que a ambição de estar na frente dos outros se relaciona com o medo de ficar atrás. Igualmente, a atual cultura da medição funciona em escala mundial e, como resultado, contribui para a convergência de sistemas nacionais de educação para uma definição particular da boa educação promovida pelos sistemas de medição globais. (Para uma análise de processos similares com respeito à educação superior, veja-se BIESTA, 2011). Sugeri que o impacto da atual cultura da medição deveria ser entendido em relação ao pano de fundo de um regime em particular de responsabilidade – um regime que chamei de responsabilidade técnica orientada para a gestão. O auge desse regime deveria ser entendido em contraposição ao contexto de declínio do estado de bem-estar e do auge de formas neoliberais de governo e governança.

Contudo, também mostrei que há duas formas de entender a responsabilidade. Não somente a técnica orientada para a gestão, em que a responsabilidade é basicamente um sistema de controle central com efeitos de diminuição de poder e antidemocráticos. Também a responsabilidade democrática, em que as partes interessadas se encontram mais dentro do processo de responsabilidade do que fora, e em que a ênfase não se concentra na posição na qual cada pessoa se encontra em relação às demais, mas em questões válidas, como é o caso do que constitui uma boa educação. Mostrei que esta última pergunta é uma pergunta composta, pois a educação sempre atua em diferentes dimensões de maneira simultânea. Isto não somente significa que as justificações e articulações sobre o educativamente desejável terão de ser multidimensionais, mas implica também que qualquer tentativa de medir ou avaliar os ganhos da educação deve considerar o caráter multidimensional da educação. Para este fim, além de prestar uma atenção explícita a essas dimensões, deve-se oportunizar perguntas sobre as maneiras mais apropriadas de avaliar os ganhos e resultados nessas diferentes áreas. Isto também requer, em outras palavras, o desenvolvimento de maneiras de avaliar e reexaminar que sejam “adequadas segundo a dimensão”.

É por essa razão que argumentei pela necessidade de responder à pergunta sobre o propósito da medição, valorização e avaliação da educação, pois somente quando estes fatores forem considerados poderemos passar da posição na qual valorizamos o que é ou pode ser mensurável a uma situação em que deixamos que nossos juízos sobre a educação se sustentem nas medições do que valorizamos. A ênfase aqui não é somente no “valor” (medir o que nós valorizamos), mas também em “nós” (medir o que nós valorizamos). Para que as medições sejam um impulsionador positivo nas formas de responsabilidade democrática e na qual seus membros tenham poder, é importante que não nos concentremos no que se valoriza em sentido abstrato, mas que demos a palavra a todas as partes interessadas em articular o que é aquilo que é considerado como desejável.

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